SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Gustavo Martinelli
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 19/01/2005
Realização Museu da Pessoa
Código SOS_HV032
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Ana Calderaro
P/1 – Bom dia, Gustavo.
R – Bom dia.
P/1 – Obri...Continuar leitura
SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Gustavo Martinelli
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 19/01/2005
Realização Museu da Pessoa
Código SOS_HV032
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Ana Calderaro
P/1 – Bom dia, Gustavo.
R – Bom dia.
P/1 – Obrigado por você estar aqui. Eu gostaria de começar com você falando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – O meu nome completo é Gustavo Martinelli. Nasci no Rio de Janeiro, na Cidade do Rio de Janeiro, no dia trinta de dezembro de 1953.
P/1 – A sua família é do Rio de Janeiro?
R – A minha família é do Rio de Janeiro, com exceção do meu pai, que veio da Itália muito cedo, ainda menino, neném.
P/1 – E vocês moravam aonde?
R – Moramos em vários lugares. Quando eu nasci, mesmo, morávamos na Tijuca. Ainda bebê, moramos no Leblon e em Ipanema, mais ou menos. São os principais lugares no qual minha mãe mora até hoje, no Leblon.
P/1 – E a família era grande?
R – Não, minha família era só o meu pai e minha mãe. E eu tenho uma irmã, Cristina Martinelli, que é bailarina clássica, uma pessoa que tem uma história muito interessante, que marcou também muitos aspectos da minha vida porque teve poliomielite quando nasceu. E tudo que a medicina pôde fazer naquela época foi feito, até que os médicos recomendaram então, aos quatro anos, que a minha mãe colocasse ela numa natação, num balé, em alguma coisa, porque ela tinha que exercitar aquela deficiência, aquele pequeno defeito que ela tinha numa das pernas. E a minha mãe a botou no balé. Eu sei que, mais ou menos aos dezesseis anos, a minha irmã passou em primeiro lugar na escola de dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, se tornou primeira bailarina do corpo de baile do Theatro Municipal do Rio e depois foi primeira bailarina no balé de Madrid, na Espanha, depois morou acho que oito ou doze anos, sendo primeira bailarina no balé de Genève, na Suíça. Então aquilo, para mim, teve vários efeitos interessantes. Um deles era a força de vontade que ela tinha para vencer. Eu me lembro pequeno, a minha irmã fazia exercícios de balé praticamente o dia inteiro, e à noite, com sacos de areia na perna, continuava em casa fazendo aqueles exercícios. Por outro lado, esse problema fez com que meus pais também tivessem que ter um cuidado muito maior com ela, e eu tinha um espaço maior para fazer todas aquelas besteiras que as crianças e pré-adolescentes fazem. Então fui criado assim, bem solto. Essas duas coisas foram marcantes na minha infância, no meu começo.
P/1 – Gustavo, o seu pai, qual era a profissão dele?
R – Meu pai, na verdade, começou numa empresa como vendedor mirim — ele tinha, eu acho, até o nível secundário só — numa empresa americana de equipamentos de petróleo e foi crescendo, crescendo, crescendo até que a empresa o mandou para os Estados Unidos. Ele fez uma faculdade de Marketing, voltou e ficou como diretor de marketing dessa empresa, na qual ele trabalhou 42 anos.
P/1 – E como foi a sua infância?
R – A minha infância foi muito solta, foi uma infância normal. Estive em escolas de classe média, sem problema nenhum. Eu sempre gostei muito de praia, de coisas ligadas à natureza. Meu pai tinha um pequeno lugarzinho que a gente ia aos fins de semana em Araras, que era para mim uma delícia. Aquilo era maravilhoso, sexta-feira ir pra serra, que era uma região serrana. Mas fui criado na praia, começando no surf, aquelas coisas todas.
P/1 – E os amigos? Você tinha muitos amigos? Você brincava muito?
R – Tinha. Eu sempre andei naquela fase de pré-adolescência, de adolescência, com turmas, bandos de garotos e garotas da mesma idade. Acho até que era para suprir um pouco aquela ausência da família em si, que era dedicada à minha irmã. Tinha grupos grandes de amigos, sempre fui cheio de amigos.
P/2 – E como era o Rio de Janeiro nessa época da sua infância, adolescência? Era muito diferente do que é hoje?
R – Ah, sim. As mudanças no Rio de Janeiro são, comparado ao período do tempo, enormes. Por exemplo, no Leblon a gente podia sentar no que a gente chamava “o murinho”. Era um ponto de encontro, um edifício de esquina com a rua que nós morávamos que tinha uma muretinha ideal para se sentar, como se fosse um grande banco. Ali ficavam dez, quinze, vinte garotos e garotas sentados conversando, tocando violão, fazendo bagunça, com a praia. Tudo isso era possível. Hoje você não tem, é tudo grade, não tem nem como conversar porque é um trânsito enorme, barulho. Então toda aquela possibilidade que as pessoas tinham de se encontrar na rua, na praia. Quer dizer, a praia continua sendo um ponto de encontro, mas veja, não é o dia-a-dia. Chegávamos da escola, todo mundo se encontrava no murinho. Hoje isso tudo acabou. Acabou toda aquela tranquilidade de você poder ficar até a hora que os pais marcavam, quer dizer, você tinha que voltar para a casa. E ficava na praia, sentado na beira de uma calçada conversando. Tudo isso acabou. Acho que o Rio de Janeiro passou por um processo terrível de descaracterização e de políticas públicas mal elaboradas e mal aplicadas. Deteriorou-se em muitos aspectos: ambientalmente, socialmente, a violência que a gente vê hoje no dia-a-dia — o que me fez, depois de casado e com o meu primeiro filho, sair do Rio de Janeiro.
P/2 – Nessa época de final da década de 1960, início da década de 1970, foi quando você começou a ir atrás de questões relacionadas à faculdade, à carreira.
R – Esse foi um ponto interessante. Na verdade, nos últimos anos antes do vestibular eu fui um péssimo aluno. Era época de namoradas, praia, e estudos quase nada. E eu tinha uma grande dúvida: o quê que eu queria fazer. Na verdade, o que eu queria fazer era pegar surf e ficar na praia. Mas tinha uma pressão do meu pai, o quê eu ia fazer. E foi um pouco por causa dessa dificuldade de assumir alguma das áreas do conhecimento para fazer o vestibular que eu acabei entrando no trabalho que eu tenho hoje. Porque o meu pai tinha um amigo, morava no Leblon e se encontravam quase todo dia, compravam o pão na mesma padaria. Então todo dia de manhã os dois senhores andavam e se encontravam na padaria e voltavam pras suas casas com os seus pãezinhos pro café da manhã. O meu pai um dia reclamou pra essa pessoa que eu não queria nada, eu era um vagabundo, só queria saber de surf, de natureza, de andar no mato, mas estudar mesmo, não estudava, que ele estava preocupado. E esse senhor, que se chama Wanderbilt Duarte de Barros, que já morreu, era uma figura bem interessante, um sujeito muito interessante. Foi o criador e primeiro administrador de um Parque Nacional no Brasil, que era o Parque Nacional de Itatiaia e falou para o meu pai: “Eu vou arrumar um estágio para ele, então. Ele gosta de viver de natureza? Vou arranjar um estágio pra ele fazer alguma coisa.” E um dia o meu pai chegou em casa com essa novidade: “Olha, arranjei um estágio para você. Você vai para o estágio, vai estudar, porque não vai ter mais mesada, não vão ter aquelas coisas.” Aquela coisa normal das famílias. E foi por essa circunstância que eu cheguei ao Jardim Botânico.
P/2 – Isso foi em que ano?
R – Isso foi em 1972, no começo do ano.
P/2 – Isso você ainda não tinha nem sequer entrado?
R – Eu estava com a intenção de fazer vestibular para Química.
P/2 – Então não era o que você efetivamente queria?
R – Não, eu estava assim meio para Química. Eu não sabia bem, eu não tinha realmente parado e olhado o leque de opções. Eu não sei por que, uma coisa dizia que eu tinha que fazer pra Química. Talvez fosse a matéria que eu tivesse melhor, eu achei que era melhor continuar por ali. Mas o fato foi que eu comecei esse estágio no Jardim Botânico exatamente no mesmo ano que eu entrei para o vestibular pra fazer Biologia.
P/2 – E o que você fazia nesse começo de estágio? Quais eram as suas funções? Qual foi a sua impressão quando você chegou?
R – Esse foi o ponto. O que aconteceu? Um dia, quando o meu pai falou: “Olha, você vai se apresentar no Jardim Botânico no dia tal às nove horas da manhã. Vai procurar uma pessoa lá, e você vai começar a fazer alguma coisa lá. Se vira lá. Vai para lá.” Bom, nesse dia de manhã eu acordei, coloquei minha melhor roupinha, tirei aquela roupa de vândalo que antigamente a gente usava, botei uma roupinha mais... E estava me preparando para pegar o ônibus e ir ao Jardim Botânico, quando o telefone tocou e alguém do Jardim Botânico me disse: “Olha, não é pra você vir para cá, não. Você espera aí na porta da sua casa que vai uma pessoa te pegar de carro e você não vem, não. Espera aí.” Desci do meu prédio, fiquei lá embaixo esperando. Parou um carro, era uma Rural Willys, aquele carro antigo, preto com uma tarja branca, escrito uma sigla, carro oficial. Um cara dirigindo, um outro cara atrás e me saiu um sujeito de quase um metro e noventa, de bota, facão pendurado. Isso no Leblon, na Rua Aristides Espínola — em que eu morava —, de facão, um cara grande. E eu: “Bom, vou ser preso”. Achei que aquele carro parou, eu relacionei com o quê? “Seria uma coisa relacionada ao Jardim Botânico? Era a polícia que ia me levar? Um cara de facão no Leblon?” E era um botânico do Jardim Botânico, chamado Dimitri Sucre — que já morreu também e que foi um cara muito importante na minha vida — que se apresentou. Disse: “Olha, eu sou o Dimitri e eu vim aqui pegar você. Nós vamos fazer uma excursão para uma restinga e você vai com a gente.” Quando eu olhei para a roupa dele, olhei pra minha, eu falei: “Isso não vai dar certo.” Mas entrei no carro. O motorista era o Alamir e atrás tinha o Jorginho, que era um trepador de árvore famoso, um cara que subia em todas as árvores, e fomos. Passei o dia inteiro com o meu melhor sapatinho, a minha melhor roupinha, andando dentro do mato. Voltei todo esculhambado, rasgado, sujo e imundo. Mas aquilo foi uma surpresa tão forte, foi tão grande, foi tão, assim, diferente da minha expectativa que me encantou realmente. E nossa: “Se trabalhar ali vai ser isso, então é maravilhoso.” Mas não era bem assim. No dia seguinte eu fui para o Jardim Botânico e comecei a aprender o Bê-A-Bá com a pessoa que foi mestre, minha mestra, mas mestre também de uma geração toda lá na instituição. Chamava-se Graziela Maciel Barroso. Era uma senhora, era uma sábia, uma pessoa sábia. E entre os ensinamentos que ela me deu, era que eu devia aprender botânica muito mais no campo, no mato, do que nos livros. E que eu tinha que cumprir uma parte que era no laboratório, que ela ia me ensinar. Então eram pilhas de plantas desidratadas que eu tinha que olhar no microscópio, desenhar, aprender a entrar naquelas chaves de identificação, aprender o Bê-A-Bá do negócio. E, assim, se passaram cinco anos. O Dimitri seria o cara que tinha mais um trabalho de campo muito forte, foi um grande botânico. E eu ia a todas as expedições com ele pelo Brasil. Naquela época o dinheiro era curto, as viagens eram menores. Mas chegamos a trabalhar no cerrado, no Mato Grosso, e viajamos o Brasil inteiro. Aquilo pra mim era uma delícia. Tinha que conciliar um pouco as faltas com a universidade, porque eu, junto com isso, tinha as aulas. Tive que trocar, eu gostei tanto... Diga-se de passagem, quando a gente é estagiário, a gente não ganha nada. Um trabalhador grátis. Estagiário é estagiário. Era como eu falei: o soldado mais raso que tem. E eu não tinha bolsa. Aquela época não tinha as facilidades que hoje tem. Os estagiários novos hoje conseguem bolsas, bolsas de iniciação, tem uma porção de coisas. Naquela época era trabalho meio escravo mesmo. E passei até a universidade para a noite para poder ficar mais tempo, o dia inteiro, no Jardim Botânico. E foi assim que eu comecei me encantei com aquela história toda. E foi assim.
P/1 – E, Gustavo, voltando um pouquinho. Que a sua vida mudou radicalmente.
R – Foi.
P/1 – O que você fazia? E como foi essa mudança para você e na família?
R – Isso foi uma coisa muito interessante. Meus pais sempre incentivaram os dons. Tinha uma coisa que eu esqueci de falar. Eu, antes, gostava muito de desenho. Cheguei a estudar desenho quase seis anos. Era uma atividade, assim, meio paralela, junto com a época de colégio e tal. E eu desenhava bem. Já tinha ganhado uns pequenos prêmios, eu sempre gostei de desenhar, que é um dom que eu herdei do meu pai. Mas meu pai sempre foi um incentivador desses dons, tanto que ele foi um grande incentivador da minha irmã, como ele também me incentivava no desenho. Mas quando eu mudei, a transformação foi tão grande que ele percebeu, e ele me incentivou muito a abraçar uma carreira. Ele viu que houve uma transformação em mim. Na verdade eu larguei o surf, larguei a praia e foi uma mudança muito brusca, mesmo, foi repentina. Sabe quando cai a ficha assim e você se transforma naturalmente, pelo cenário, mesmo que você se envolveu.
P/1 – E quando você entrou na universidade você tinha quantos anos?
R – Por causa dessas histórias de surf e indefinições, na verdade, eu tinha perdido um ano. Foi o ano que o meu pai estava bravo, que não ia me dar mais mesada, porque eu não tinha decidido o quê que eu ia fazer, então não fiz o vestibular e fiquei um ano de praia e surf. Eu tinha dezessete, eu acho, em 1972. Eu estou com 51 agora. Eu tinha dezessete para dezoito anos, que era aquela época de você entrar no vestibular.
P/1 – E você falou que entrou na Universidade do Rio de Janeiro, é isso?
R – Eu entrei na Santa Úrsula. Mas da Santa Úrsula logo no ano seguinte mudei porque a Santa Úrsula não tinha à noite. Aí tive que estudar numa universidade mais longe um pouco, mais na Zona Norte da cidade, para poder fazer à noite.
P/1 – E como que nesse período da década de 1970, início, como que era a universidade? O quê que estava se discutindo?
R – Biologia foi uma disciplina que estava no começo de uma consolidação, porque antes as pessoas eram formadas mais pela História Natural. No biólogo tinha muito o que a gente chamava de “bicho-grilo”, todo mundo muito pacato, paz e amor, diferente um pouco dos movimentos que eu acompanhei no tempo já mais para faixa de idade da minha irmã, movimento estudantil, gente mais politizada. Na Biologia não tinha muito isso. Sempre foi mais todo mundo na paz, na natureza, olhar baleias, aquelas coisas assim. Mas foi muito fácil porque, para as matérias que não eram bem do meio que eu já estava a frequentar, que era uma expedição científica, eu tinha que estudar. Mas para o resto que era relacionada, aquelas matérias, botânica, tudo, aquilo foi natural. Boa parte do meu curso da faculdade, a minha professora era também estagiária no Jardim Botânico. Então, num dado momento até eu estava liberado de fazer botânica porque, veja, eu já trabalhava lá em um outro nível e não tinha sentido. Então ela me liberou. Ela também trabalhava comigo. Então, esses quatro anos de universidade fluíram assim, sem eu enxergar. E de uma forma que eu não me dediquei. A minha dedicação era o meu estágio. E foi.
P/1 – Esse tempo que você ficou na universidade foi o seu tempo de estágio?
R – Praticamente. Eu só consegui ser auxiliar de pesquisa com um contrato lá através de um convênio com fundações, não sei o quê, depois que eu me formei cinco ou quatro anos depois. Eu me formei no quarto ano, no quinto ano eu já arrumei lá um contratozinho. Foi minha primeira carteira assinada, aquelas coisas, como assistente de pesquisa.
P/2 – E aí mudaram as responsabilidades?
R – Mudaram as responsabilidades. Aí eu... Veja, porque eu ia pra um lugar que eu gostava. Então eu não tinha essa obrigação de ter que ir, horário. Como estagiário às vezes eu trabalhava até de noite. Tem dias que se eu pudesse, eu dormia lá dentro. Tanta coisa que eu gostava de mexer naquelas plantas, ver aquele mundo. Era um mundo que ia se abrindo, cada vez crescendo mais e eu cada vez ficando mais encantado. Foi um negócio que foi indo e é até hoje. Porque uma das lições que eu aprendi com essa mestra que eu te falei, a Doutora Graziela, como a gente chama, foram duas lições. Essa primeira dica que ela me deu de aprender botânica no campo, não só nos livros. Usar menos os livros no começo, valorizar o conhecimento no campo. Foi que ela tinha me dito: em ciência quanto mais a gente aprende mais a gente percebe que não sabe nada. E isso, para mim, era uma lição de humildade, porque a minha visão dos grandes nomes da ciência era de poços de saber. E era ela o contrário, uma pessoa que se preocupava em passar o conhecimento. Ela tinha uma humildade que eu não sei nem te explicar. Mas você olhava para ela, era uma pessoa com aparência frágil, tão delicada. Mas uma mulher com uma fibra, uma mulher com uma força, uma humildade, uma sabedoria incríveis. Ela realmente foi, nesse país, nesse meio, foi uma perda incrível. Comoveu o mundo inteiro. Acho que vieram coisas do mundo inteiro, ela era conhecida no mundo inteiro. De todos os países do mundo vieram mensagens, foi um negócio. E ela tinha me ensinado um pouco, além da botânica, lições de vida. E eu fiquei intrigado naquelas coisas que ela falou pra mim. Então, foi mais ou menos assim, com esses ensinamentos que eu lidei, com esse cenário todo novo. Era uma coisa que cada vez era mais novo, cada vez tinha mais novidade, cada vez o mundo era maior. A gente tinha um mundo impossível de abraçar todo, mas você tinha que ir galgando ele, se aprofundando nele.
P/2 – E aí você não parou como Auxiliar de Pesquisa, né? Você continuou no Jardim Botânico?
R – Na verdade isso é engraçado. Isso aconteceu na minha vida lá dentro, eu nunca tinha uma preocupação de ser um auxiliar de pesquisa, um pesquisador ou um titular. Isso, para mim, não dizia nada, eu sempre vivi assim. O que me interessava eram as plantas, o status era uma consequência. Evidentemente que bem cá na frente, casando, tendo filho, já um cara com idade, pelo lado econômico, formalidades e tudo isso, era importante porque tinha responsabilidade. Mas naquele momento, nos primeiros 25 anos lá de Jardim Botânico, vinte anos, para mim, se eu ganhasse cem ou quinhentos: “Ah, legal, quinhentos, vai sobrar mais.” Mas não era a minha preocupação. Minha preocupação era estar no mato, andar este país inteiro, ter aquela experiência que foi impressionante, mudou toda a minha vida, mudou tudo. Eu não tinha essa preocupação. Esse é um fato engraçado. Eu convivi com mulheres muito tempo. Na minha instituição isso não é muito diferente da maioria das outras instituições no Brasil. A grande maioria das pessoas que trabalham com botânica são mulheres. E na minha instituição era igual. E eu aprendi muito a trabalhar junto, no meio de mulheres que são diferentes, eu vim compreender isso mais tarde. É diferente na competitividade, nas relações, do ambiente em que trabalham homens. Mas eu percebia que, por exemplo, um grande objetivo de vida profissional das pessoas era adquirir posições. Ser chefe, ser chefe de um departamento, chefe de um setor, ser diretora, como se isso fosse uma meta. Isso para mim não era nem meta, nem almejava isso. E é engraçado que você sabe que depois que eu voltei do meu doutorado na Escócia, eu fui ser Vice-Diretor e Diretor de Pesquisa, sem nunca ter almejado isso. E junto com pessoas que passaram muito tempo, anos da sua vida, lutando para serem. Foi tão doido tudo isso, entendeu? Mas eu nunca tive esses objetivos. Tanto que eu aceitei, foi tipo assim “tudo bem, foi um doutorado no exterior pago pelo governo.” Então você tem que dar uma contribuição aqui, assume aqui, assume ali. Eu achei que isso era justo, fiz essa contribuição, mas por um tempo limitado, foi quase um ano e sete meses só que eu assumi todas essas posições administrativas, burocráticas, que foi uma experiência muito interessante também, mas completamente longe de plantas.
P/1 – E nesse período da década de 1970 que você estava como estagiário tão empolgado, você viajou muito?
R – Viajei muito. Mas não foi a época maior da minha viagem não. As minhas viagens eram viagens mais que dependiam das viagens dos outros. Como estagiário eu não tinha direito a ter um carro, motorista, para poder traçar destinos e localidades. Então eu acompanhava muitas pessoas, acompanhava o Dimitri — que era o meu tutor, vamos dizer assim — nessa parte toda de experiência de trabalho de campo, até o próprio diretor da época, que era o Padre Raulino Reitz. Na verdade a concentração maior das minhas viagens foram a partir de 1978, já como Assistente de Pesquisa. Aí realmente eu fazia expedições de só voltar pra casa cinco meses depois. Teve uma coisa interessante nos anos 1970 que, naquela época, todos os Presidentes da República, os militares, antes de assumirem a presidência, ficavam morando numa casa que existia dentro do Jardim Botânico, chamada Casa do Ministro. E uma vez, voltando do mato com a Doutora Graziela com o Dimitri no carro oficial, o Jardim Botânico era cercado por policiais e aquela SNI [Serviço Nacional de Informações], aquele sistema de segurança. E era o Geisel que estava morando lá. Aí o carro parou. Tinha cinquenta homens de gravata, aquelas coisas de militares. “O que é isso aí?” Faziam revista no carro da própria instituição. Eu achava aquilo uma invasão. Que, veja, eu era da instituição e de repente foi um cara de fora, que ocupava a minha instituição, traçava novas regras para entrar. Aí a Dona Graziela falou lá, esbravejou. Bom, final desta história: ficamos proibidos de entrar no Jardim Botânico durante um tempo até o Geisel estar, no dia em que ele ia assumir, em Brasília, aí eles iam para Brasília e aquilo tudo voltava a ser normal. Se disfarçou para a coisa não ir para a imprensa, como se tivesse saído de férias e tal. “Dona Graziela e o Gustavo ficaram de férias.” Uma cena que me marcou. Eu era tão desligado desse movimento político. Eu sempre fui desligado, meu negócio era natureza, plantas. Mas aquilo foi um impacto, para mim, eu ter sido proibido. Eu até que... Como eu não tinha contratos formais, o diretor me levou lá... Eu fiquei meio assim, meio satélite na história. Mas eles dois eram profissionais da instituição. E os seguranças falaram ao diretor do Jardim Botânico que eles estavam proibidos de entrar. Então, eles tinham folha de ponto, como é que eles iam fazer? Tiveram que acertar. E eu não tinha nada, fiquei uns dias sem ir lá, umas duas, três semanas. Depois comecei a ir e tal, não deu nada. Mas foi um fato, um baque. Foi um fato interessante.
P/1 – Você não estava tão ligado na questão política nessa época. Mas nesse período, na década de 1970, qual era a importância do Jardim Botânico para o Rio de Janeiro? Eu digo, assim, para cidade.
R – Eu acho que, naquela época, o Jardim Botânico não era tão... Ele era importante, sempre foi, mas ele era muito mais visto. Quer dizer, o Jardim Botânico tem 198 anos. Então ele faz parte da história da cidade. Em 1808 ele foi criado por Dom João VI. Mas nesse período da década de 1970, eu acho que ele era muito mais visto como uma área de lazer, confundido com um parque, assim como você vai ao Parque Nacional da Tijuca ou vai para uma grande praça. Ele era visto como um parque, eu acho, muito menos do que como uma instituição de pesquisa. As pessoas desconheciam que existiam laboratórios, herbários, pesquisadores, cientistas. Eu acho que isso, depois de 1985 pra frente, é que ele começou a se configurar mesmo, se tornar mais visível do seu lado, seu conteúdo científico. Jardins botânicos, no fundo, são instituições muito pouco compreendidas. É difícil para você classificar mesmo o que é um jardim botânico. Qual é a diferença de um jardim botânico para um parque em que você paga, entra, tem manequins, gramado, árvores. E essa dificuldade de você identificar o que é um jardim botânico o próprio governo tinha. O próprio governo tem. Se você pegar ao longo da história do Jardim Botânico, ele já foi de diversos órgãos governamentais. Já foi do Ministério da Agricultura, já foi do Ministério do Interior, quando existia, já foi das Secretarias Especiais do Meio Ambiente e hoje está no Ministério do Meio Ambiente. Mas, o que a gente faz mesmo, o que é? É meio confundida qual a diferença entre uma instituição de pesquisa no sentido clássico, uma universidade, de um jardim botânico. Mas hoje já existem decretos caracterizando o que é um jardim botânico, classificando os tipos de jardim botânico, já tem redes de jardim botânico. Sem falar que no mundo inteiro existem quase dois mil jardins botânicos, então hoje se tem relações internacionais. Mas naquela época Jardim Botânico era um incompreendido, não só pela população carioca que via aquilo como uma área de lazer e os turistas gostavam de visitar, como pelo próprio governo que administrava aquela instituição. “O que é bem aquilo, o que aquele cara faz eu não sei bem, deixa eles lá.” Era mais ou menos assim.
P/1 – Mas, financeiramente era...
R – Nos meus trinta e poucos anos lá eu tive altos e baixos. Períodos de melhora, períodos de piora, que dependiam às vezes do próprio diretor que estava lá, da sua capacidade, como também do próprio governo acima deles, de incentivar ou não. Teve épocas áureas e épocas de altos e baixos. Eu acho que isso acontece na maioria de instituições e universidades. Mas hoje eu acho que o Jardim Botânico tem evoluído ao longo do tempo, períodos mais ou menos, ele tem evoluído. Tem coisas engraçadas. Por exemplo, nós somos servidores federais, servidores públicos. Mas eu acho isso interessante, nós somos uma instituição em que a gente trabalha num lugar em que entram, às vezes, duas mil pessoas, mil pessoas num dia, vendo. Então isso tem uma relação difícil, é diferente de eu trabalhar dentro de um prédio em que as pessoas estão lá longe e eu estou aqui no meu prédio. Não, lá as pessoas convivem ali, tinha uma... Interessante, você está, tem um contato um pouco com o público em si. Os laboratórios menos, por que estão em áreas mais restritas. Mas é importante você abrir a porta do seu escritório, estar vendo as pessoas passarem olhando se o Jardim Botânico está bonito, se não está. É engraçado isso, tem uma relação interessante. Mas tem todo um sistema, dificuldades inerentes a qualquer serviço público. Eu acho que o grande passo que a gente deu foi adotarmos... Nós hoje estamos vinculados a uma carreira de ciência e tecnologia. Antes nós éramos de ciência, mas não estávamos agregados a um plano de carreira específico. Acho que nós, hoje, conseguimos uma autonomia muito interessante como uma autarquia federal vinculada direto ao Ministério do Meio Ambiente, um status quase de Secretaria do Ministério, que deu um pouco de autonomia. Acho que evoluiu porque o Jardim Botânico, hoje, consegue se relacionar com a iniciativa privada e consegue hoje viver boa parte com apoio, recursos, captações e entrosamento com a iniciativa privada. Acho que tem um processo que é demorado, é difícil, tem todo um engessamento administrativo e jurídico do serviço público, mas com esse status de autarquia federal melhorou muito. Então, coisas do passado do tipo toda arrecadação dos pagantes do Jardim Botânico ia para Brasília e não necessariamente ficava na instituição, voltava para instituição. Hoje não, hoje a gente consegue viver, ter o direito a usar os recursos arrecadados pela própria instituição, de todas as pessoas que pagam. Mas é uma instituição interessante, que tem anos que recebe setecentas, oitocentas mil pessoas. Um lugar interessante, você trabalha num lugar em que as pessoas te vêem. Não estou escondido num prédio em que ninguém entra, ninguém sabe o quê que eu estou fazendo. Tem uma visibilidade interessante.
P/1 – Gustavo, nós estamos na década de 1980, um pouco falando desse seu período paralelo, a sua fase de trabalho, do estágio e, depois, de pesquisador. E o outro lado? Como era a sua vida?
R - Eu vou te dizer, perdi muitas namoradas por viajar demais. Mas até que fui também muito namorador, tenho que confessar. Mas eu conciliava bem. É uma fase em que eu não dava tanta importância ao outro lado. Meu negócio era viajar, plantas. Mas, sempre fui meio namorador. Tinha minhas namoradas e tal. Mas cada vez mais me afastando do lado familiar em si. Eu fui para um lado mais... Morei sozinho muitos anos, morei com o Diduche anos, foi uma coisa muito legal.
P/1 – E você casa em que período?
R – Eu casei em 1990, eu acho, nem me lembro mais. Mas, me casei. Morava no Rio de Janeiro ainda nessa época, tive um primeiro filho, o Gabriel. E aí, quando minha esposa estava grávida do Gabriel, a gente fez uma opção. O meu pai tinha esse lugar que eu te falei em Araras, que eu ia aos fins de semana. E eu adorava aquele lugar. Então trabalhava o dia inteiro no Rio de Janeiro, no Jardim Botânico, mas no fim de semana eu queria ir pra Araras. Coletava plantas em Araras, lá tinha amigos, namoradas, conciliava bem. Eu não tive problemas assim. Acho que essas minhas namoradas tiveram, porque eu sumia mesmo. E aí fizemos uma opção de morar na serra. Era uma época em que o Rio de Janeiro estava, assim, num desses ápices da violência, estava tendo sequestro, estava um negócio... Aí a gente morava na Lagoa, olhava para baixo e tinha um playgroundzinho de cimento. “Não quero criar meu filho aqui.” Sempre fui criado perto da praia, podendo andar. Nessa época então no Rio não podia, todo mundo andava olhando assim para ver se vinha alguém te sequestrar, te roubar. Ela estava grávida, tinha um emprego. Ficou grávida, foi um daqueles planos Collor, em 1990, a empresa fechou, fizeram um acerto com ela de, sei lá, dois anos de salário sem precisar trabalhar. Aí fomos morar na serra. Ficamos morando catorze anos numa casinha a 1150 metros de altitude, num lugar chamado Araras, embaixo de uma montanha linda, montanha de quase dois mil metros, no meio da florestinha ali, no silêncio. E assim foi.
P/1 – No meio das suas plantas.
R – No meio das plantas.
P/2 – E o doutorado que você disse que fez na Escócia, onde que entra aí? Que época?
R – Na verdade, o doutorado já vinha sendo alimentado. E fez parte, da mesma forma que eu não tinha a menor preocupação em ter posições, cargos, eu não tinha a menor preocupação com esse negócio de fazer mestrado, doutorado. Para mim isso não queria dizer muita coisa. Mas depois fui percebendo que no mundo acadêmico isso é importante. Você ter a titulação é um aprimoramento. E eu fiz talvez um pouco diferente do que a maioria faz. Realmente. Eu, por exemplo, fiz um doutorado e já era um profissional. Já era um cara profissional. Então geralmente o que acontece quando você já trabalha num lugar, já vem com uma experiência anterior, quando você vai fazer um aprimoramento, você já vai fazer em cima daquilo que você já vem fazendo. Eu estudo genética. Então tudo bem, estou trabalhando. Vou fazer um doutorado, eu vou fazer em genética para me aprimorar, pegar técnicas mais modernas. Eu fiz uma opção diferente. Em primeiro lugar eu optei em fazer no exterior. A história foi mais ou menos assim: em 1986 eu fiz, eu tinha uma fama. É importante também aqui dar esse depoimento, nesses anos 1980 eu tinha uma fama de que eu era completamente maluco, porque eu fugia dos padrões daquele sistema que existia do funcionário público. Eu fugia um pouco desse padrão. Eu, para mim, tinha coisas mais importantes do que ficar obedecendo a certas regras. Eu fugia mesmo, pulava o muro total. Então eu tinha uma fama de meio maluco. Nesse período dessa fama, eu resolvi dar importância a dinheiro. Ninguém tinha dinheiro para os projetos. Tudo aquela mesma história, todo ano todo mundo de pires na mão, fazendo um pouquinho daquilo que planejava. Quem trabalha nesse meio tem que ter ideal, tem que ser idealista. Se o cara vai para ser cientista, pesquisador numa instituição que tem vontade de ganhar dinheiro, o cara está totalmente outside. Tem que ir para outra coisa. Porque esses lugares não são para quem almeja ter recursos, montar um pé de meia. Não é. Isso é para quem tem um ideal, para quem gosta do que está fazendo. Quem gosta de sofrer um pouquinho também. Tem um pouco isso. As pessoas acabam até ficando um pouco infelizes porque carregam esse carma todo daquela dificuldade para querer comprar um materialzinho para fazer a própria pesquisa, para produzir um conhecimento para a sociedade. Qual o papel de um cientista? Produzir conhecimento, informação para a sociedade. E a sociedade nem sempre também enxerga isso, que informação é importante. Tem vários problemas nesse meio. E aí eu escrevi um projeto em 1987. O CNPq chegou lá no Jardim Botânico numa indução de que todas as instituições de pesquisa tinham que trabalhar com novas linhas temáticas, em vez de trabalhar assim, o Jardim Botânico é bom em anatomia. Fulano da universidade tal é bom. Vamos trabalhar por ecossistemas em um novo conceito. Então o Jardim Botânico tem que juntar todo o seu potencial para trabalhar com o que? É Mata Atlântica, é restinga, é cerrado. “O que vocês querem fazer?” Eles vieram para as instituições tentando fazer uma grande separação de disciplinas clássicas para ecossistemas, que eu achei interessante a ideia. E a indução significava que, desde que a instituição se posicionasse, ia haver uma entrada de recurso para os projetos serem feitos para aquela linha temática que a instituição adotou. Isso aconteceu, só que o tal recurso que o CNPq dava era um negócio totalmente irrisório. Juntando com a pobreza do próprio ministério que administrava os recursos do Jardim Botânico, a coisa ficou um ano parada lá. Nada funcionou. Quer dizer, fizeram uma indução, montamos uma ideia e tudo ficou. Aí me deu uma ideia de escrever um programa. Me chamaram para assumir esse projeto que ninguém conseguiu fazer, ficou um ano sem fazer nada, não gastaram o dinheiro. Tinha lá um pouquinho que nem conseguiram gastar. Eu assumi o troço, me empurraram meio no sufoco. Eu gastei o dinheiro em três meses, pedi uma prorrogação e não sei o quê, e gastei tudo. E falei: “Assim não vai dar”. Escrevi um projeto que custava um milhão e duzentos mil dólares na época. E aí eu personifiquei o Gustavo que é doido para todo mundo, quando a gente disputava cinquenta cruzeiros novos, nem sei nem que dinheiro era. Enquanto se disputava cinquenta reais eu saí com um projeto escrito no papel, que custava um milhão e duzentos mil dólares. Mas você sabe que foi a primeira experiência interessante na minha vida, mesmo assim, que mudou também lá, que foi um passo para descobrir outras potencialidades minhas. Foi aí que eu consegui. Eu peguei esse dinheiro e mandei umas correspondências, eu ficava assim fascinado quando lia nas revistas internacionais, aquelas ONGs internacionais fazendo projetos na África, na Indonésia, um milhão de dólares. Os caras eram os nomes da conservação. E eu era vidrado em conservação. Eu não sabia como fazer, achava que gerando o meu conhecimento eu estava ajudando na conservação. Conservação, na verdade, era meio etéreo naquela época. E aí eu mandei uma proposta, no meu inglês macarrônico da época, e alguém lá deu um sinal de que se interessou. Só. E que estaria vindo ao Brasil para conhecer a proposta, para eu fazer uma apresentação. Fiquei apavorado. Eu tinha um amigo que tinha uma ONGzinha carioca, falava bem inglês. Eu falei: “Me ajuda aí.” Porque eu era órgão do governo. Se aquela proposta o cara aceitasse eu não podia receber o dinheiro. O governo não pode receber um dinheiro direto. “Então vamos ver como que está.” “Está bom.” Fizemos a proposta e o cara, Dean Martin, falou assim: “Olha, vou voltar agora para os Estados Unidos e em uma semana te dou uma posição. Mas eu gostei muito da proposta. Queremos apoiar.” Eu fiquei: “Caramba, será que isso vai mesmo?” Uma semana depois ele me mandou uma carta dizendo que a proposta estava aprovada naquele valor, mas num sistema de matching found, que significa que a cada dois dólares que eu conseguisse, ele botava um, até um milhão e duzentos mil dólares. Aí eu falei: “Ganhei, mas não levei.” Ou seja, o cara me dá, mas eu tenho que arranjar dois milhões e quatrocentos pra ele me dar um milhão e duzentos. Bom, não desisti. Peguei aquele projeto e acabei na Shell do Brasil e vendi o projeto na Shell, que estava precisando de um projeto ambiental. E então ela topou, me deu 450 mil dólares. Aí eu fiz a conta, 450 mil, 225 lá, passei para 775. Pra quem não tinha um tostão, pensou em um milhão e duzentos. Achei ótimo e assim comecei. Criei esse programa e toquei esse programa durante, sei lá, uns quatro anos, 1986, 1987, por aí, até 1990. E me dei conta de que, da primeira experiência, tudo foi muito legal. O projeto começou a fluir, tinha dinheiro, compramos Toyotas, equipes, seis mil horas, homens no campo, floresta, inventários. O troço foi dando um... E eu me peguei sentado em uma mesa assinando cheque, resolvendo problema do motor da Toyota que estourou o pneu, não sei o quê. O outro que deu um pití na floresta, não sei o quê. Todo mundo numa floresta e eu com o marketing da Shell, com a ONG de um lado, com a fundação americana do outro, cobrando relatórios e eu desesperado. Eu falei: “Não.” E nessa época, voltando ao doutorado, já existia uma pressão em cima de mim e dos meus colegas no mundo acadêmico: “Olha, cara, você tem que fazer um doutorado, tem que ter titulação, sabe, para tu pegar a grana aí. Para tu ficar, tem que ser doutor.” Eu achava aquilo, não mudava nada. E vamos lá. Até que eu achei que doutorado era um escape para essa situação em que eu estava, tinha que juntar aquilo tudo. Bom, fiz uma proposta para o CNPq pedindo uma bolsa para o exterior e fui aceito em várias universidades. Naquela época eu já estava com... Sabe, eu era muito impetuoso, sempre fui mesmo. Eu passei o fim dos anos de 1979, 1980, e até 1988 eu trabalhei naquele projeto “Flora da Amazônia”. Passava cinco, seis meses viajando na Amazônia, entregue. Passava quatro meses sem ter uma cadeira para sentar, sabe aqueles sistemas assim? Eu adorava aquilo. Falo, mas eu adorava. Voltava cascudo mesmo, era tudo que eu gostava. Aquele trabalho duro mesmo, florestas, coisas novas. Eu conheci o pessoal todo do Jardim Botânico de Mauá, que era um projeto do International Science Foundation, CNPq, um projeto bilateral Brasil-Estado Unidos, para levantar a flora da Amazônia. Expedições enormes, barcos, tudo aquilo que eu gostava. Então eu tinha o contato, era impetuoso, aí facilitou. Foi assim que eu escolhi fazer um doutorado na Escócia com uma coisa nova. Em vez de eu fazer um doutorado, como eu estava falando, dentro daquilo que eu já vinha fazendo, trabalhando com taxonomia de bromeliário, bromélias, mais ou menos assim, eu resolvi um troço que eu nem conhecia. Trabalhar com biologia reprodutiva, relação entre animais e plantas, vamos dizer assim, sexo das plantas, como as plantas se reproduzem usando os vetores, beija-flores, morcegos, um negócio totalmente diferente e que foi muito legal. Tive que me atualizar. Foi duro uma época porque na véspera de eu viajar, na véspera de tudo organizado, bolsa, minha esposa ficou grávida novamente de gêmeos. E aí tive que atrasar um ano porque o médico falou: “Olha, não vai. Vai ter gêmeos num lugar que vocês não têm babá, empregada. Vocês vão ter três crianças de fralda. Aguenta um ano. Deixa as crianças nascerem aqui.” Bom, e fomos com os nenéns, os gêmeos já tinham nove meses, quase um ano. Fomos com aquelas três crianças. Fiz um doutorado lá na Universidade de St Andrews e voltamos depois de três anos e meio. Na verdade o doutorado me serviu para um aprimoramento, também, mas para escapar de uma situação que eu aprendi. Tudo a gente tem uma decisão, não é? Eu, quando montei aquele projeto, que fui arrumar dinheiro, foi tudo muito bacana. Mas quando eu me peguei na burocracia, todo mundo usufruindo do dinheiro, indo para floresta, trabalhando o dia inteiro no mato e eu assinando cheque, resolvendo problema, eu falei: “Não, espera aí, não é isso que eu quero.” Aí fui, juntei as duas coisas.
P/1 – Gustavo, eu queria te perguntar uma coisa. Esse projeto, em que você acabou ficando na burocracia...
R – Ele existe até hoje.
P/1 – Ele é sobre o quê?
R – Esse projeto tinha o objetivo de fazer o que se chama rapid assessment. Eram inventários florísticos e fitossociológicos em Mata Atlântica. O quê que a gente fazia? A gente selecionava uma área de Floresta Atlântica que não tinha quase informações, tinha poucas coletas, montava coisas chamadas quadrades. Você vai achar que isso é trabalho de doido, mas era assim. A gente pegava com cordas coloridas, tirava um hectare. Fazia um quadrado de um hectare no meio da floresta. Se você olhava numa perspectiva era um quadrado mesmo, de corda colorida, toda dividida em outras cordas, em quadradinhos de dez por dez. Então era como se você tivesse encaixado uma rede dentro de uma floresta, toda em quadradinho certinho, medido com bússola, tudo perfeito. E em cada quadradinho de dez por dez, a gente levantava tudo que tinha ali dentro. Todas as plantas, tamanho, diâmetro, altura, copa, estrutura, nome, nome científico, nome vulgar, para quê que serve, tinha isso, tinha aquilo. Tudo, quadradinho por quadradinho. Isso significava seis mil horas no mesmo campo por ano. Significaram equipes entrando e saindo de seis da manhã, sete da manhã, até cinco da tarde dentro do mato tirando amostra, prensando. É todo um processo. Tirando altura com trenômetros, todo um... Fitas para ver os diâmetros das árvores, trepadeira, cipó, tudo. Como se fizesse uma varredura mesmo. Como se tivesse perdido, sei lá, um brilhante do teu brinco aqui, você evacua essa área e começa vindo de lá com uma lente, nesse quarto todo. Era mais ou menos isso. Esses dados todos iam para o computador e aí a gente tinha uma informação concreta do que tinha naquela floresta. A gente fazia normalmente três hectares desses. Uma numa área, um num outro gradiente, uma área numa encosta, outro dentro de um vale para poder comparar isso. Era um trabalho de chinês o tempo todo. Muito legal. Nesse, a gente era um trabalho de levantamento florístico e fitossociológico.
P/1 – E você fez direto o doutorado? Você não fez um mestrado?
R – Não.
P/1 – Que sorte, hein? Eu sofri no mestrado e no doutorado.
R – Não precisava, eu já tinha uma quantidade de trabalhos publicados e um currículo.
P/1 – Eu estava te falando antes para você contar um pouquinho como foi esse projeto da Amazônia.
R – O projeto da Amazônia, na verdade, era um projeto que existia em âmbito nacional. Era uma cooperação internacional. Surgiu acho que até pelo tempo lá daquele, o tal do Brasil Grande, sabe? Transamazônica, conquistar... E o governo mexeu também ter noção, ter conhecimento, o quê que tinha na Amazônia. E, na verdade, eu participei desse projeto como convidado. Tem histórias incríveis, são minhas primeiras viagens na Amazônia, sabe? Coisas assim.
P/1 – Conta uma para nós aí.
R – Conto. Bom, teve uma viagem lá, uma das primeiras, que fomos com uma equipe de americanos e uma equipe de brasileiros. E eu nomeado para coletar, era o cara que gostava de coletas de mato. E eu, aquele barco andando, ninguém fazia nada. Aí eu fiquei amigo do cozinheiro do barco e amigo de um dos mateiros e guias da expedição. Era um barco grande com cabine, mas ele tinha, junto lá dentro, uma porção de motores de popa e voadeirazinhas. Eu sei que eu preparei um rancho com o cozinheiro, preparei um mateiro lá no equipamento. Um dia de manhã acordei cedinho com o mateiro lá, botei o barco na água e embarcamos lá, todo mundo dentro. E eu, entrando nos igarapés, voltava no fim da tarde lotado de plantas. No segundo dia que eu fiz isso fizeram uma reunião. Um dos estrangeiros estava extremamente irritado comigo, porque eu não podia ter feito aquilo, que não sei o quê. Aí eles acharam melhor me mandar embora da expedição. E eu fiz aquele estilo carioca mesmo, falei assim: “O quê? Eu sou brasileiro, este barco é brasileiro, essa região é do Brasil, eu sou pesquisador de uma instituição federal. E se alguém tiver que ir embora vai ser você. Eu não saio daqui.” E foi uma confusão, uma briga. Ligações para o IMPA [Instituto de Matemática Pura e Aplicada]. FEle veio para falar uma coisa dessas para mim, eu fiz logo um barulho maior ainda. Continuei a viagem. Aí ficou tudo tranquilo. “Ah, eu vim aqui pra trabalhar, vou ficar andando dentro de um barco aqui olhando as plantas passarem pelas margens? Não. Porque vocês não pegam um barco? Vamos lá juntos.” Aí contornou, deu tudo certo. E assim fui à várias expedições. Depois gostei tanto que eu passei até a liderar, guiar expedições até de cineastas. Fiz projetos com uns cineastas alemães, com Jorge Bodanzky, de andar na Amazônia. Depois que você vai, tem experiência, você sabe como é que funciona, quais são os caminhos, quais são as... Fui a lugares em que muito homem branco nunca tinha posto o pé, que é uma experiência interessante. E tem coisas muito legais. Foi uma aprendizagem muito grande a gente ir à Amazônia, aos lugares da Amazônia original. Você percebe que a gente é um micróbio no meio de uma potência, a gente não é nada, a gente é pequenininho. Eu vejo o reflexo da lição da Dona Graziela na época. A gente se acha o poderoso, mas quando você está dentro de uma floresta mesmo, você vê que você é um... Aprendi muita coisa. Muita coisa que eu fui, de andar no mato anteriormente, já tinha deixado. Eu tinha... Como se tivesse uma vida dupla. Eu sempre fui nascido e criado numa cidade, mas eu me transformava quando entrava numa floresta. Me transformo até hoje. É uma coisa natural como o instinto. O cheiro, os instintos mudam, eu me torno outra figura. É incrível isso, mas é uma transformação até física, inclusive. É metabólica, é orgânica. Mas os meus companheiros falam: “O cara fica diferente, fica outro.” E é verdade. Isso é um lado... Nem falo muito nisso que...
P/1 – A gente vai entrando no...
R – É, noutra.
P/1 – Gustavo, na verdade a sua vida sempre foi ligada ao meio ambiente, sempre estava. E você sempre trabalhou numa instituição que é o Jardim Botânico. E quando você estava lá, você começou a atuar em alguma ONG? Você tinha um contato com ONG?
R – Tinha, eu sempre tinha. Esse meu estilo que era considerado maluco lá, era o estilo, eu sempre pulei muito muro da minha instituição. Então eu trabalhei com milhares de ONGs quando o Brasil não tinha nenhum boom de ONGs. As ONGs eram realmente internacionais como WWF. Então, eu ajudava essas pessoas. Ia acontecendo, não era uma busca. Bom, diversas, trabalhei com diversas ONGs. Hoje sou do conselho de um monte delas. Sempre acho interessante porque eu trabalho para o governo. E tem um outro lado, que é o da sociedade civil organizada, que são as ONGs. Então são dois lados em que eu circulo e acho muito interessante porque um contrapõe o outro, um ajuda o outro em determinados momentos, como também competem. Tem várias coisas nesse meio. Mas é natural, foi espontâneo. ONG muitas vezes, na maioria das vezes, é trabalho voluntário. Mas a maioria das vezes não. É um trabalho voluntário, assim como eu sou conselheiro da SOS Mata Atlântica e de outras organizações. Sou fundador e conselheiro também de uma outra, como trabalho voluntário. Eu acho que todo mundo tem um papel para cumprir. E um papel pra cumprir é relacionado a conhecer, prover informações e tentar fazer, salvar o máximo possível do que existe de riqueza e biodiversidade nesse país. Esse é meu papel. E eu uso todas as armas. A ONG, ou seja, a minha instituição como uma instituição que tem credibilidade acadêmica para fazer o máximo que eu posso fazer e mostrar como que é importante as pessoas se organizarem e lutarem. Eu acho que tem, ainda, temos problemas clássicos no meio desse mundo da conservação e também integração. No fundo, no fundo, se tem mais competitividade do que integração e articulação. Esse é um ponto que eu acho que as reflexões precisam ser feitas. O mundo corre numa velocidade que quase não dá mais tempo pras pessoas refletirem. As decisões têm que ser tomadas hoje, agora. Ou vai ou não vai. Isso é ruim porque refletir é um fato muito interessante. Você entrar numa floresta antes de sair tirando amostra, coletando, já anotando, acho você precisa fazer dez minutos de respirar, olhar, escutar os sons, sabe? Não é meditar, não, é simplesmente passar da fase “urbano poderoso” para um “humilde observador”. Precisa fazer isso. Acho que é uma, por exemplo, Mata Atlântica, nós estamos aqui num workshop de Mata Atlântica. Quantos esforços, quantas instituições federais, estaduais, não-governamentais. Quanta coisa precisa ser feita. Todo mundo está fazendo. Cada um está fazendo. Mas precisa ter um processo, uma articulação, refletir as estratégias. É um sistema do mundo é assim, é meio: “Vamos lá, quer ou não quer? Tem ou não tem? Vamos ou não vamos? Vai? É aqui ou não é? É pra lá ou pra cá?”. Não tem tempo pra você perguntar: “Pra cá é assim, vamos ver os prós e os contras”. Não tem tempo disso. É tudo muito. Isso causa uma desintegração, uma dificuldade de articulação e que muitas vezes se transforma também em competição. Uma competição, não é que eu seja contra competição, mas uma competição não muito sadia. Na verdade os efeitos se diluem e às vezes até sobreposições de esforços. Tem alguém fazendo uma coisa que você está aqui, está relutando pra fazer no mesmo sentido, na mesma direção porque faltou: “Vem cá, ou vamos fazer juntos ou não. Então eu vou mudar de...” Então tudo está meio um pouco assim. Isso é reflexo do que é, até no governo. O órgão federal diz uma coisa, o estadual diz outra, o municipal diz outra. Tem certa uma salada ainda que precise de ajustes, planos. E muitas vezes esses planos estão no terreno dos discursos. Na prática, faz-se documentos. Você vê hoje o que tem de informação de produtos já escritos e publicados sobre a Mata Atlântica. Eu me pergunto. Por que eu como cientista produzi tantas informações, por que ninguém leu e falou: “Bom, tá aqui já, vamos fazer assim.” Não. Tem umas desconectividades aí que precisam se aparadas. É isso que eu acho, que é importante participar de um workshop como esse. Na verdade, o workshop aqui está dentro dos dezoito anos da Mata Atlântica, mas é uma atualização num plano de ação que a gente tem que fazer com a Mata Atlântica. E, me parece, ontem foi a primeira rodada das reuniões, que o ponto da falta da articulação vai ser focal ao longo desses dias. Não é bem quem, who is who, quem está fazendo o quê, mas como a gente junto pode fazer alguma coisa mesmo. Porque isso tudo é muito doido. Veja, a gente está num bioma que só tem 7%. Só sobrou 7%. Ainda estão discutindo como vamos fazer. É doido isso. Então eu acho que essa coisa é meio urgente, da articulação. Para isso você tem que deixar um pouco de lado a competitividade. Você tem que deixar um pouco de lado. No fundo, os recursos são escassos e as fontes são praticamente as mesmas. Todo mundo converge. Isso está um pouco desbalanceado, no meu ponto de vista, entre as organizações não-governamentais e entre os próprios órgãos governamentais. Precisa de ajustes que são a necessidade de reflexão e de renegociação, de frear um pouco a forma. Acho que é um processo bem interessante.
P/2 – E, quando foi que se deu o seu primeiro contato com a Fundação SOS Mata Atlântica?
R – Olha, cara, eu nem sei. Já perdi isso ao longo do tempo. Depois de cinquenta anos o esquecimento é permitido.
P/2 – Mas foi no início da fundação, foi na década de 1990?
R – Não, foi um pouquinho depois. As pessoas que fundaram, que criaram a fundação, eu já conhecia do meio, mas eu não tinha uma ligação, assim, muito... Foi depois, com a ajuda de projetos, auxiliando tecnicamente projetos da fundação. “O Gustavo, vamos consultar o Gustavo. O Gustavo dá uma ajudada na criação do Atlas, os dados de campo.” Porque uma coisa o satélite vai lá e faz, e outra coisa é ter alguém que rodou aquilo tudo no chão, com o pé no chão lá dentro, embaixo dos mosquitos, no sol e na sombra. Então são duas informações que se acoplavam. Eu ajudei muito nesse aspecto. “Ó, essa imagem aqui, isso aqui não é bem mato, isso aqui é uma capoeira, aquilo ali não é. Já andei aqui.” É difícil ter um lugar em que eu já não tenha passado. Isso é uma coisa que eu vou fazer quando me aposentar, eu acho que eu vou ter tempo, vou tentar arranjar um mapa do Brasil e vou fazer um. Esses 33 anos, por onde eu viajei só tem um estado que eu nunca fui: o Amapá. O resto, todos os estados do Brasil, eu andei. E se eu te falar que eu andei em lugares tem, sei lá, metade desse estado, nem capital eu fui. Só fui para o mato. Só fui para os lugares que ainda tinha as caatingas, Pantanal, Amazônia. Rodei esse troço todo, peguei malária. Eu gostava era disso. E tentava usar esse conhecimento aplicando no meio, numa instituição de pesquisa. Isso me dava um embasamento muito grande para falar. As pessoas falam muito de coisas que nunca nem viram, nem foram. É difícil. O cara está em Brasília tentando resolver um problema do cara que está em Guaporé. Nunca foi a Guaporé. Nunca sentiu como é que é o sufoco, o que tem lá, entendeu? Essa diferença me dava muita segurança em poder contribuir nesses processos de conservação. E a Amazônia, depois daquele projeto Brasil-Estados Unidos na Floresta da Amazônia, eu fiz milhares de outros projetos. Aí eu sempre tinha um projetinho para poder voltar e ir a lugares que eu ainda não tinha ido na Amazônia, subir rios que eu nunca tinha subido. Muito legal, muito legal.
P/2 – E foi com o Atlas, então, o seu primeiro contato? Assim, o seu primeiro trabalho?
R – Não, eu acho que foi antes, eu acho que foram indicações de algumas áreas. Naquela época a SOS era muito São Paulo. Então... Eu às vezes era mais... Tentando aproximações... Porque ela fez um barulho aqui em São Paulo bom. A SOS foi responsável por um movimento ambientalista focado, com uma meta que era a Mata Atlântica. Não era falar dos bichinhos. Não, era a Mata Atlântica. Então aquilo foi legal também. Se não me engano, boa partes dessas ONGs internacionais que eu tinha contato também tinham contato com a SOS. A SOS se fez reconhecida também internacionalmente. Então as pessoas normalmente circulavam. Foi assim. Eu não tenho nenhum... Não consigo nem lembrar a data que foi isso. Mas, talvez, de um trabalho mais efetivo mesmo, foi com o Atlas.
P/2 – Foi no início, então, da década de 1990?
R – Foi com o Atlas.
P/2 – E fala uma coisa, Gustavo. Você fez todas essas viagens para todos os ecossistemas brasileiros, não é? Desde que você começou essas viagens lá na década de 1970, até hoje, como está à situação do meio ambiente no Brasil, dos diversos biomas? O que melhorou, o que piorou, o que se modificou nesse tempo todo que você pôde observar?
P/1 – Só pegando o gancho dele. Houve mudanças significativas na defesa também? Digo, do movimento, que aí você pode...
R – Olha, essa é uma pergunta difícil. Vou tentar ser bem sucinto e resumido. Eu não sou um cara pessimista por natureza. Pelo contrário, eu sou um cara otimista. Eu acredito que é possível. Mas, como cientista, eu tenho que dizer que eu vejo a situação muito ruim em todos os biomas. Na verdade nós estamos convivendo numa fantasia completamente fake e que mostra claramente a diferença entre o discurso e a prática. Acho que a Amazônia, o que se levou quinhentos anos pra deixar a Mata Atlântica em 7% — sendo que desses esses 7% apenas 1% a 2% são ainda florestas primárias primitivas, o resto são todas capoeiras secundárias —, acho que isso vai em menos de cem anos, nós vamos destruir uma área trinta vezes maior com toda essa tecnologia que hoje existe disponível no mundo. Hoje, entre o discurso de conservação, desenvolvimento sustentável, tudo isso, você tem 5% do PIB dependendo de expansão de soja, agropecuária na Amazônia, aquele avanço, aquele empurro de grilagem, uma verdadeira falta de conceito prático, de aplicação do conceito de todos esses jargões que se fala aí de desenvolvimento sustentável, tudo isso. Então o país tem que, mais na frente, fazer uma escolha entre aplicar esse discurso ou parar com ele. Não dá para mentir. Mudar o sistema econômico de que você vai depender. Se você vai depender dos 5% do seu PIB, ou até mais, do agrobusiness, que necessita de áreas, essas áreas vão destruindo os ambientes naturais que o país tem, que são uma riqueza da sociedade. Veja, não é do governo, não é meu, é nosso. O governo tem que administrar isso. Eu acho que a gente está vivendo um momento complicado. Não sou dos catastrofistas que acham que vai... Mas eu vejo que às vezes infelizmente alguns processos dolorosos vão ser obrigados para acordar um pouco e mudar o sistema. Eu, às vezes, falo que 7% já era, acabou 93%. Vai faltar esse pouquinho para a água terminar mesmo, para haver migrações complicadas, para acentuar a pobreza. Eu fico triste, mas eu não sou muito, vamos dizer assim, pessimista. Mas eu tenho que enxergar isso como uma realidade. A realidade é isso. Nós deixamos 7%. Desses 7%, apenas 1% a 2% pode ser chamado que foi original. Mas tem chances de sobreviver. E esses 7% está em fragmentos. Então por si só, se ninguém mexesse, se ninguém tocasse, cada cidadão respeitasse, por si só iam morrer ao longo do tempo. Porque não tem conectividade. Geneticamente estão enfraquecidos, isolados e vão definhar. E, por outro lado, você vê uma sociedade crescendo, as cidades empurrando, as pessoas precisando de... É uma pobreza que eu chamo uma pobreza ignorante, uma pobreza sem educação. Eu, no caso da Mata Atlântica, fico meio apreensivo. No caso da Amazônia, mais ainda. Porque o processo lá é diferente. O que levou quinhentos anos para acabar, deixar em 7%, lá em menos de cem vai embora. Já vai. Você já vê a descaracterização do povo mesmo da Amazônia, do caboclo. Você já vê os processos todos antrópicos acontecendo. E você vê o desconhecimento. E olha que a Amazônia é talvez o ecossistema que, popularmente, é mais conhecido. Você entra num restaurante, numa loja de sucos aqui no Rio de Janeiro, toma dez sucos da Amazônia, do açaí à taperebá, bacaba, não sei o que lá, cupuaçu. Não é então mais da Mata Atlântica. Pode arrumar aí, fixamente, um suco de pitanga ou de caju. Então, lá ainda tem um conhecimento, mas é um processo duro.
P/2 – E o movimento, o que mudou nesse tempo?
R - O movimento mudou na sua capacidade técnica. Eu acho que o movimento passou de ativista para ser um movimento mais embasado e engajado tecnicamente. Isso é uma diferença. Uma coisa é reclamar, outra coisa é reclamar mostrando dados, informações precisas e consolidadas por técnicos, cientistas, especialistas. Isso foi uma mudança. ONGs preparadas. Você pega uma SOS Mata Atlântica, faz hoje uma parceria com o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], que é a nossa top line da cabeça de pesquisas espaciais. Então tem mapa, monitora. Rio de Janeiro, “nesse período aqui destruiu tantos hectares”. Então ele tem ferramentas técnicas, tem o perito que tem que entender das técnicas, ter capacidade de manejar essas ferramentas técnicas. Conservação internacional, programas sofisticados de alto nível, muito mais alto nível até que os próprios órgãos do governo. Então isso tem um volume. Por outro lado, as pequenas organizações, as menores ficaram, se perderam um pouco entre o social e o ambiental. Tentaram acompanhar um pouco a questão do discurso do governo e ficou num balanço entre o social e o ambiental, o socioambiental, que é complicado. Agora, eu acho que daqui para frente, sempre positivo. A diferença é sempre que com uma organização não-governamental ou qualquer sociedade organizada, ela parte do interesse do cidadão, não mais de governo, de empresa, iniciativa privada ou de força de mercado. Apesar de que forças de mercado hoje já criam também organizações não-governamentais para trabalharem paralelas a ela. Mas esse eu acho que é um ímpeto que é bom. Nós moramos juntos aqui nesse bairro. Um monte de coisa está errada. Um dia nós começamos a nos reunir e falar, reclamar, reclamar e essa reclamação vai evoluindo até que um dia nós nos reunimos: “Vamos criar aqui uma associação, uma ONG, vamos lutar por esse troço aqui com regras, estratégia, vamos pressionar mesmo como pessoa jurídica.” Tem várias formas. Em muitos casos é melhor você não ser, é melhor você ser um movimento etéreo, brigar lá com o prefeito de algum lugar. Seja um movimento de pessoas com força. Mas não tem uma porta, uma sede pra ninguém ir lá, o prefeito mandar prender, sabe como é? Então a estratégia realmente é melhor. “Mas quem são esses caras?” “Ah, não sei. Fulano, beltrano.” É todo mundo e é ninguém. Juridicamente é uma forma de você... Mas geralmente isso evolui para você se estruturar e organizar, ter uma sede. Então eu acho importante esse movimento. Acho que precisava ter mais. Na verdade não é ter mais organizações, é a sociedade se engajando. Acho que tem mesmo porque tem organizações, é difícil você sobreviver. Na verdade, se você não tem uma administração empresarial como uma empresa, tu não passa de quatro anos. Se você não se profissionaliza com uma organização não-governamental, mesmo como associação de moradores, meu amigo, tu não vai pra frente. E isso tem que ter um processo, tem que ter uma dinâmica, tem que ter engajamento. Não é só aquele engajamento, eu faço um cheque, dou minha contribuição de cem reais e resolvi minha vida. Não. Eu tenho que ir lá um sábado ajudar a limpar um rio, segurar um cartaz lá, fazer um barulho na porta do prefeito. É engajamento. Eu acho que isso é uma acomodação para que a sociedade brasileira tem que acordar. Quando se dá conta que só tem que ter 7%, tem que se dar conta de que está tudo ficando difícil, água, abastecimento, pobreza, bolsões de favelas e de gente sem as menores condições, violência. Tudo isso são processos que são sinais da deterioração mesmo. Vai piorando se as pessoas não acordarem para contribuírem já com as organizações existentes. Onde não tiver se cria. Acho que tem algum problema de comunicação que eu não sei te dizer. Também fui ontem na abertura. A necessidade de comunicação, falta de articulação entre organizações, instituições, de fato também é um problema de falta de comunicação. Se não me comunico com quem está fazendo ali alguma coisa perto de mim, eu não sei o que está fazendo. De repente eu estou arrumando dinheiro para fazer, o cara já arrumou também, está fazendo. Estamos gastando dinheiro e esforço para fazer a mesma coisa que podíamos ter feito de outra maneira mais barato, mais integrado. Então tem também um problema de comunicação. Eu acho que marketing ambiental é uma coisa muito difícil mesmo. É porque... Uma coisa sou eu como uma empresa, por exemplo, eu dou um dinheiro para um projeto e associo a marca da minha empresa naquele projeto, faz alguma coisa. Mas comunicar isso é realmente você sentir que aqueles três mil funcionários, duzentos ou trezentos estão engajados ali naquela coisa, tem diferenças, tem outras histórias. Então eu não sei, eu não sou dessa área, mas eu sinto que tem algum problema de comunicação também para atingir as pessoas, sabe? “Deixa que esse negócio de conservação é uma coisa de bacana, de quem não tem nada para fazer, de cientista. Eu estou querendo é botar feijão na minha barriga.” Sabe aquele discurso assim? Isso é um erro de comunicação. Feijão não nasce sem água, sem solo.
P/1 – Gustavo, quando você entra para o conselho da SOS?
R – Eu tenho impressão de que há uns dois ou três anos atrás. Porque o conselho tem lá um período que vai mudando os conselheiros. Eu ainda estou lá. Eu preciso até que ver quando é o meu período porque eu acho importantíssima a renovação. Conselho é renovação. Ideias novas, gente brigona entrando. Acho que esse é muito bom para conselho. Mesmo quando o conselho está ótimo, todo afinado, é importante mudar. Às vezes entrar um polêmico também é legal, criar dinâmicas. Eu tenho impressão de que eu não sei quando vão ser as próximas eleições porque são periódicas. Um sai, acho que tem mais tempo, sai. Vai todo um... Eu sou meio desligado dessa parte.
P/1 – Você estava falando em comunicação, das pessoas aderirem a movimentos, terem a conscientização. Pensando um pouco nisso, qual a campanha que você lembra, da SOS, que você acha que foi mais gravada nas pessoas e que mais te tocou?
R – A coisa que mais me tocou na SOS foi, na verdade, a marca. “Estão comendo o nosso verde.” É o nosso verde. E quem está comendo somos nós mesmo. Aquela marca, para mim, chamou muito a atenção. Naquela época, como as campanhas eram muito direcionadas para São Paulo, a SOS ainda não tinha campanhas no âmbito nacional mesmo. Começou a ter há pouco tempo atrás com algumas vinhetas na tv e tal.
(Pausa)
P/1 – Nós estávamos terminando, você estava falando da campanha.
R – É, a campanha. Eu acho que a questão da campanha é complicada. Você quer ver uma coisa? Me lembre dez frutas da Mata Atlântica aí.
P/2 – Você quer que eu fale?
P/1 – Sim.
R – É, deve ser. Então vou diminuir. Sem essa pitanga e caju que eu falei, me diz cinco frutas da Mata Atlântica.
P/1 – Amora é?
R – Amora é da Europa.
P/2 – Fruta do Conde?
R – Algumas são. Vamos considerar que você acertou perto aí uma. Pinha.
P/1 – Graviola é?
R – Pinha e graviola. Esse grupo é, algumas são.
P/2 – Acerola.
R – Acerola.
P/1 – Estamos indo bem.
P/2 – Estamos indo bem. Deixa eu pensar na minha região, as frutas que tem lá.
R – Qual é a tua região?
P/2 – Águas de Lindóia, Serra da Mantiqueira.
P/1 – Manga?
R – Manga é da Índia.
P/1 – É da Índia. É nativa.
R – Frutas da Mata Atlântica.
P/2 – Jaca.
R – É da Índia.
P/1 – Bom, paramos. Pode seguir.
P/2 – É, não conseguimos.
R – Isso significa o que? A cultura associada à questão da Mata Atlântica, é impressionante como ela é completamente fora de propósito. A colonização exterminou o conhecimento empírico como uma tentativa de escravizar a população que dominava um conhecimento dessa floresta, que eram os índios que viviam aqui. Exterminou sem obter conhecimento. A Floresta Atlântica é mais rica num hectare, se você fizer um quadrate daqueles que nós falamos, na verdade tem mais espécies, mais riqueza, mais biodiversidade que a Amazônia. Então a própria colonização conseguiu usar economicamente uma ou duas espécies de madeira aí, o Pau Brasil e uma outra qualquer. Nem sequer o potencial de tudo isso foi aproveitado. Não houve um repasse do conhecimento como é hoje, como na Amazônia já foi diferente. O índio para o caboclo, o caboclo para o urbano. Não. Essas frutas pararam no Sudeste brasileiro, nas capitais. Cupuaçu virou açaí. Qualquer urbano de academia de ginástica toma um açaí. Então veja. E da Mata Atlântica? Então foi uma falta de conhecimento, uma falta da cultura da Mata Atlântica, uma descaracterização tão violenta. Eu saio com você aqui fora desse prédio, vou te dizer, não estou contando a matinha que tem em volta. Todo paisagismo usado aqui, em qualquer lugar desse país, 95% usa plantas de fora do Brasil, um país que tem a maior riqueza em biodiversidade, megadiversidade. Veja como a cultura, a falta do conhecimento, está associada a uma nova sacação de como mudar isso, essa pobreza de informação e de ignorância. Parece que nós estamos tentando salvar um negócio. Não sei se isso tem influência de alguns ícones, miquinho, macaquinho, que viram com o negócio. Que às vezes se sente muito mais do que até lá fora, para alavancar recursos que vieram para cá para salvar o mico. Eu não sou dessa área, como eu já disse, mas alguma nova estratégia, alguma nova. Eu acho que a SOS tem essa capacidade de trazer uma coisa nova porque, pelo que eu sei, todas as campanhas dela são campanhas que não ficam para trás de nenhuma campanha de grandes empresas para vender mais o seu produto. Então, eu acho que uma sacação... Eu acho que, não sei por quê, o meu sentimento é de que é uma nova forma de mostrar, informar, comunicar e mudar essa cultura completamente fora de propósito num ecossistema maravilhoso. A gente tem que começar a adotar para atingir mesmo o lado do desconhecido. Tem um desconhecimento muito grande. Eu digo isso para você, eu fiz essa brincadeira das frutas em cursos. Tem pessoas formadas na área de biologia que não sabem. Ficam surpresas com você. “Mas carambola não é do Brasil?” Isso se repete em plantas, as ditas plantas medicinais caseiras, chá de quebra-pedra, arruda, não sei o que lá, tudo veio com a colonização europeia ou africana. Cadê as nossas, gente? Isso vai assim. A gente substituiu. E essas substituições parecem que desvalorizaram. O cara que compra um terreno num lugar assim, sei lá, aqui nessa região aqui, Embu das Artes, um sitiozinho na serra. “Vou limpar meu terreno.” Por quê? Porque para a cultura aquela matinha com as quaresmeiras, aquilo é um mato, cara. Mato. Para quê que serve aquilo? “Vou limpar, vou ter um gramado, vou fazer um pomar.” Essa é a cultura. Tem que ter uma mudança. Às vezes isso pode levar gerações, eu não sei, depende da agressividade dessa campanha porque no fundo tem também outras comunicações forçando o contrário. Mas eu acho que boa parte do sucesso de todas essas campanhas da SOS foi porque ela começou a mostrar algumas coisas diferentes, que acordavam as pessoas. Eu acho que é um caminho. Mas algo tem que ser feito nessa linha. É uma falta de conhecimento mesmo, de informação. Eu estou falando isso porque eu estou falando com um nível de universitário, até gente de alto nível, vamos dizer, intelectual, mas que desconhece o bioma, o ecossistema em que vive. Não é? É incrível. Pega aí um cara que é PhD em sei lá o quê, em engenharia, e o cara não usa no seu dia-a-dia nem um ciclo de aproveitamento da água normal, reciclagem da água. É uma coisa de comportamento mesmo. “Mato, vamos arrancar esse mato.” Foi assim que hoje tem 7%. Olha a situação, sobrar 7% isolados em fragmentos, em Unidades de Conservação que são corroídas como um câncer em volta. Isso em pleno século XXI continua acontecendo, com tecnologias mais avançadas e apuradas para destruir com mais rapidez e facilidade e menos barulho. Avanços na legislação tem, mas nem sempre. Tem um monte que não pega. Sabe como é aquela lei que não pega? Tem algo muito revolucionário e muito forte. Tem que acordar, tem que fazer acordar. Eu espero que eu, para não ser igual os catastrofistas ambientalistas, de que vai haver a maior seca, vão morrer milhares de pessoas. Tem previsões incríveis no mundo. A população de 1950 a 2000 duplicou e a perspectiva é que de 2000 a 2050 triplique, de seis bilhões passa para dezoito. E o colapso é matematicamente comprovado. Têm outros que dizem que não vai ser bem assim. Então tem várias teorias, perspectivas e modelagens, estudos matemáticos. Eu prefiro sempre trabalhar um pouco com as otimistas, mas veja. Se você tem só 7%, é colapso. Não vamos nos iludir. Estamos no colapso de perder um bioma inteiro. Riquezas inexploradas, desconhecidas. Porque esse desconhecimento se reflete na ciência. Veja, eu nesse lugar que eu falei do Programa Mata Atlântica fazendo hectare, aquilo ali é um lugar setenta quilômetros em linha reta de uma cidade de dez milhões de habitantes como é o Rio de Janeiro, cem quilômetros em linha reta. Só naquele lugarzinho ali, nesses hectarezinhos que a gente estudou, são quase dez espécies novas. Ciclo de árvores de 25 metros que a gente nem sabe quais os produtos químicos que possam ter farmoquímicos ou fitoquímicos importantes para a sociedade para curar. Nem sabemos. Aquilo é mato. Porque a gente não derruba esse troço aqui e planta? Vamos fazer pomar, horta. Vamos vender, vamos ganhar dinheiro, plantar feijão. Triste, mas é assim.
P/2 – Gustavo, olhando pra trás, esses dezoito anos da SOS, e a partir do momento que você teve contato e acompanhou mais profundamente a fundação, e tivesse que fazer um balanço da atuação dela, dos objetivos alcançados, qual seria o saldo?
R – Extremamente positivo porque a SOS sempre foi uma instituição dinâmica. Assim como ela hoje está fazendo 18 anos, acabou a adolescência, vamos para a cidade. Ela está buscando uma nova dinâmica, uma nova forma e tal, ela ao longo desses dezoito anos viveu fazendo isso. Ela nunca foi uma organização que... Começou em São Paulo, hoje está em âmbito nacional e sua capacidade é de expandir esse âmbito da nacionalidade. O Atlas é uma ferramenta, o Atlas atua no bioma. Talvez faltem alguns trechos do Nordeste, mas não tem como. Lá na frente ela vai estar vendo o Nordeste. Então já é uma instituição que antes falava com o ambientalista pra brigar com o governo, hoje ela trabalha com o governo. O governo precisa dessas informações. Ela é capaz de apontar qual o município, dentro da Mata Atlântica, que desmatou mais entre o período de tal a tal. Ela é capaz de chamar o governo: “Vem cá, no Paraná fez um monte de desmatamento simplesmente pelo INCRA que assentou assentamentos em área de floresta”. Veja, ela é capaz de apontar. Então ela teve essa vivência dinâmica dela. As empresas que ela atua e que são parceiras da SOS já têm uma dinâmica que nunca estagnou. Isso eu acho uma coisa fantástica. Uma tendência normalmente é você, em períodos, ficar disperso. E essa é uma coisa interessante ao longo dos dezoito anos da SOS. Ela sempre estava buscando novos caminhos, novos projetos, novas integrações, aliança com a Conservação Internacional, buscando recursos, aplicando em programas e projetos. Eu acho que ela, daqui pra frente, como conselheiro posso dizer isso: ela vai necessitar atualizar, vamos dizer assim, aprimorar e fortalecer, dar sua contribuição no fortalecimento das pequenas outras organizações que estão vindo, as pequenas ONGzinhas. Hoje a SOS tem esse papel. Ela é uma organização forte, tem experiência, tem estratégia, pode contribuir através de pequenas parcerias locais. Então ela vai atingir essa coisa que ficou mais em São Paulo, muito mais ao longo, dando todo o know-how, tecnologia, formação. Como tem formação de Recursos Humanos, a formação de Recursos ONGanos, vamos dizer assim. Acho que isso é uma coisa que a gente tem discutido até no âmbito do conselho e acho que é extremamente importante: as parcerias locais. Às vezes uma ida de um diretor da SOS numa ONGzinha local lá não sei onde, que está lá lutando com dificuldade para montar uma estratégia, uma matriz de um plano de ação com aqueles carinhas que estão ali. Ela vai poder dar uma expansão, mesmo de atuação, muito boa. Traduzir essa experiência dela de conhecimento para parcerias de outros projetos também. Acho que tudo, esse caminho está sendo mesmo natural dela. Então eu acho que ao longo dos dezoito anos, eu não vejo uma curva descendo. Num gráfico dos dezoito anos que ela viveu, eu não vejo nenhuma curva negativa ou uma descida qualquer significativa. É impressionante. É uma das poucas organizações que teve um caminho mesmo de crescimento. Hoje é uma organização forte, uma organização que tem um poder de captação, trabalha com empresa, com seriedade, com níveis internacionais. Isso perto de uma organização que começou a brigar ali pela represa, aqui em São Paulo, pela matinha ali. Juntou pessoas com vontade e com garra, como todas as ONGs, todos os movimentos que são espontâneos. Esse é o lado bonito das ONGs, das organizações não-governamentais. É uma ação espontânea da sociedade. Não está vinculada ao governo, à iniciativa privada, nada. Nós nos reunimos como nós quatro aqui, resolvemos fazer uma organização para lutar contra sei lá o quê, as deficiências na comunicação, as mentiras dos meios de comunicação. Vamos sentar aqui e vamos lutar. Um montante de tema, vamos arrumar, vamos falar, vamos gritar, fazer panfleto. Esse é um processo natural.
P/1 – Gustavo, tudo bem que você é otimista. Mas como você vê a fundação e o movimento ambientalista daqui uns dez anos?
R – Olha, é difícil, até porque a minha circulação no meio das organizações não-governamentais não tem uma profundidade. De ONG mesmo eu criei uma e ajudei a criar uma outra. O resto eu trabalho mais no nível de conselho, de consultoria, de conselheiro, de projetos. A minha instituição hoje tem vários convênios com várias organizações não-governamentais, mas no âmbito de projetos técnicos, mas não no âmbito administrativo de uma organização em si. Pelo cenário que eu vejo, da minha pouca experiência, é que as organizações crescem como um movimento com certa força e tem um período aí de quatro a seis anos, que é o período chave. Quando você chega a quatro, seis anos, se você não se profissionaliza quase como uma empresa, ou seja, você não tem capacidade de auto-sustentabilidade, de captação de recursos pra manter um staff, uma diretoria, uma equipe, fecha. Ao mesmo tempo em que abrem centenas de ONGs aí por semana, provavelmente, uma grande maioria, grandes dezenas fecham. Então esse movimento se profissionalizou. Técnicos de governo, técnicos de iniciativa privada, hoje fazem parte também desse meio. Organizações estão profissionalizando como empresas, gerenciadas como empresas. Então eu acho que ao longo de dez anos vai haver um realinhamento. Os próximos dez anos, um realinhamento. Porque quanto mais ONGs profissionais existirem, mais a competitividade vai aumentar. E os recursos não aumentam proporcionalmente, pelo que eu vejo. As fontes de recurso, as grandes ONGs internacionais que buscam um grande dinheiro, capitais internacionais, na verdade também têm suas filiais implantadas no Brasil, com equipes brasileiras. Então talvez algumas grandes fusões de algumas grandes... Tem organizações hoje que trabalham no âmbito quase nacional, num programa na Amazônia, programa na caatinga, programa no Pantanal, programa na mata. Vão ter uns realinhamentos em termos de prioridades porque manter programas em grandes níveis é só para poucas. E acho que vai evoluir muito a rede de organizações, o sistema de rede, de network, de trabalhos em que vai pesar. É o que eu espero, o que vai pesar vai ser aumentar a articulação entre as ONGs, a comunicabilidade. E todas vão trabalhar integradas numa pressão única e conjunta. Porque isolada a pressão maior fica enfraquecida. Então eu acho que o caminho que eu vejo, mais ou menos... E isso é meramente especulativo porque, como eu te disse, eu não sou muito, eu olho, eu circulo nos dois. Sou do governo, trabalho num órgão, numa instituição acadêmica de pesquisa do governo, mas também trabalho com um monte de ONG. Então eu tenho um pouco essa flexibilidade de ver. Esse realinhamento das ONGs, ele também provoca um rebatimento nas organizações acadêmicas, governamentais ou não, mas que estão ligadas ao meio ambiente. Porque tem uma modernização também acontecendo. O que a gente chamava mais de meio ambiente e ecologia, hoje a gente está com o termo biodiversidade, que implica num reconhecimento de que existe uma diversidade cultural acoplada à diversidade natural. São fatores extremamente importantes. Antes “meio ambiente” era “meio ambiente”. Hoje meio ambiente implica a biodiversidade, implica no reconhecimento de que, além da diversidade de animais, plantas e etc, existe uma diversidade cultural ao longo do mundo. Tem realinhamentos que vão provocar certo rebatimento nas instituições acadêmicas. Para você ver uma coisa, na área de botânica, quantas universidades, milhares de universidades que trabalham com a taxonomia, ou seja, com a identificação das espécies, fazem trabalhos de mestrado, doutorado, revisão do gênero, da família, sem sequer escrever uma linha sobre a conservação daquelas espécies com que eles estão trabalhando. Eu falo isso para os meus alunos: “Mas, vem cá. Você visitou os herbários do Brasil inteiro. Você teve que ir ao mato, na natureza, buscar essas plantas todas. Você resolveu todo o problema dessas espécies, os nomes estão corretos. Agora quem precisar ver tem uma chave para você identificar. Mas e o estado de conservação dessas plantas? Por que você não escreveu um parágrafo dizendo: “Olha, dessas cinquenta plantas aqui que tem nesse trabalho, só vinte estão agora em pequenas populações. Você viu tudo isso, por que você não escreveu? Por que você não incorporou no seu trabalho acadêmico?” Esse rebatimento das organizações não-governamentais, se tornando técnicas importantes para a comunidade também acadêmica incorporar nas suas pesquisas nos seus estudos essa preocupação. Porque ela se reflete. Assim como a sociedade em geral não sabe nem que a jaca veio da Índia. Sabe, eu fico abismado porque, veja, desse jeito... Mora no Sudeste, mora na Mata Atlântica, mora num bioma, lê nos jornais. Ele vê alguma propaganda, seja da SOS, seja de quem for, de que Mata Atlântica é um hotspot, que é uma das florestas tropicais mais ameaçadas e ele não acoplou uma informação extremamente importante para as organizações. Amanhã uma organização vai estar lutando para salvar aquela região, aí ela: “Olha, nesse trabalho diz que só nesse lugar aqui que nós estamos lutando tem essa planta.” Olha, haja mico para agregar aquela luta, não haver informação. Esse rebatimento das ONGs é importante para as instituições também formais, tanto da iniciativa privada como do governo. Eu acho que esse realinhamento vai caminhar por aí, que eu espero que integre as coisas de uma forma mais... Haja um argumento mesmo de poder chegar num congresso desses aí, desse sistema louco, mas fazer uma pressão de que reverta mesmo o quadro.
P/1 – Gustavo, a gente está terminando. Eu queria que você me dissesse qual a importância e qual o peso que tem a questão ambiental na sua vida.
R – Como eu te falei no início, acho que cada um vem com uma missão. Eu descobri que eu, ao longo da minha vida, nem fico muito me perguntando por que eu fazia aquilo, porque que eu gostava. Mas hoje, depois de já bastante tempo, eu acho que todo mundo vem com uma missão. E essa missão eu sou, eu me sinto na missão de poder contribuir. A minha missão como cidadão, como brasileiro, como da espécie humana, é de lutar para reverter um quadro de destruição. Eu luto com as minhas armas. Não sou um ativista, sou um cientista. Eu luto tentando gerar conhecimento e mostrar essa informação, o meu conhecimento. Mostrar a importância de que as coisas não podem ser vistas da forma como são. Meio ambiente é uma coisa que atrapalha. Eu não vivo sem poder andar no mato, eu não vivo sem poder estar em contato com as plantas. Hoje isso passou a ser parte da minha vida. Eu não sei, às vezes eu fico doente de achar que eu poderia fazer mais, poderia contribuir melhor, ser mais agressivo. Mas a gente tem que respeitar também a índole, a capacidade da gente. Eu prefiro muito mais trabalhar no âmbito de ajuda, da colaboração, do que da briga. Não é necessário. A gente briga, mas é assim, é por isso até porque eu pulei os muros acadêmicos da minha instituição e comecei a trabalhar com um monte de organizações. Porque, como eu falei, são movimentos em que eu identificava uma energia que era legal. Eu vou ali ajudar porque eu posso dar ali um conhecimento, áreas. E como eu andei muito no país inteiro, onde eu posso também contribuir bem? Identificação de áreas prioritárias, que são áreas da Mata Atlântica boa. Tem pequenos fragmentos que a gente tem que salvar. Qual o melhor? Esse é onde eu sei bem. Já andei ali, se não andei eu sei onde andar, eu sei fazer esse diagnóstico. Então eu tento até de uma forma impulsiva mesmo estar contribuindo. Às vezes sou até mal interpretado. Também tem isso: “O quê esse cara quer vir aqui? A gente já sabe isso.” Tudo bem, mas é assim. Mas a gente tem um papel mesmo. Eu vou ficar velhinho, tentando fazer esse papel. Acho que as pessoas têm que parar com o egoísmo. Tem uma porção de coisas que são comum na sociedade para você ajudar. Eu tento ajudar. Sou muito mais da ação no campo do que também no discurso político, no falatório. Detesto isso. Mas, eu acho que é isso. Isso é uma missão. Eu sinto como se fosse a minha missão, entendeu? Estou cumprindo ela na medida do possível, dentro das possibilidades. Mas eu não me acomodo, não sinto me acomodando em relação a esse tipo, fazendo aquela: “Mas são 7%, acabou. Deixa isso para lá.” Eu não. Eu não acho que a coisa tem que ser assim. Eu tento ensinar isso aos meus filhos, eu tento.
P/1 – Gustavo, assim acho que acabou
R – Então sem problema. Vocês vão. Quando você achar que está bom.
P/1 – O que eu vou te perguntar, Gustavo, antes de terminar, tem alguma coisa que a gente não te perguntou e que você não falou, que você acha extremamente importante e que você quer falar?
R – Tem.
P/1 – Gustavo, você quer falar alguma coisa que você não disse e que nós não te perguntamos?
R – Eu queria só uma coisa, na verdade. É uma coisa que eu acho que a minha vivência me permitiu perceber. As coisas não são distanciadas. No fundo tudo é interligado. Eu acho que estou vivendo um momento muito interessante de poder começar a estabelecer as ligações verdadeiras e efetivas, seja no âmbito de cada área do conhecimento. Então o que eu queria mesmo dizer, de fato, é que mesmo que o sistema não permita a gente refletir, mesmo que tenha tempo para refletir e que a gente tenha que tomar a decisão, mesmo que os sistemas de vida que a gente tem não permitam a gente estabelecer essas conexões, essas ligações, a coisa que eu aprendi com o meio ambiente é que tudo é interligado. Uma pequena ação nossa está interligada com tudo. E esse é um ponto fundamental para a gente realmente começar a mudar todo um processo, todo um sistema que vem, que é muito falso, que é vendido e que a gente absorve para a gente viver de uma forma mais justa, mais equilibrada. E essa ligação, por incrível que pareça, está diretamente relacionada a uma questão fundamental, que é da sobrevivência. A gente ainda não tem esses níveis de percepção do quanto a nossa sobrevivência nesse planeta, nesse nosso lugar que a gente vive na sociedade, está em desbalanço. A gente não tem essa percepção. Esse é um ponto que é uma reflexão, quase uma tomada de uma outra consciência que é fundamental e que precisa de um pouco de reflexão, precisa um pouco parar aquela vida e começar a olhar determinadas coisas, determinados gestos, determinadas ações. É como o sujeito que, muito animado, ganhou muito dinheiro, trabalhou muito, suou a camisa, comprou um terreno. Ele dá uma paradinha antes de tomar aquela atitude: “Vou limpar o meu terreno, vou plantar a minha horta.” Para quê ele comprou aquele terreno? Porque aquilo já está ali, os pássaros estão ali. Aquela árvore que ele vai tirar afeta aquele pássaro, que afeta aquele inseto, que vai... Nós estamos falando de uma rede de destruições imperceptível, que é impossível monitorar e nem são números nem nada. Então a gente tem que fazer o processo inverso agora, tentar em pequenas coisas, pequenos detalhes, parar para refletir até onde está indo esse nosso status quo, essa nossa capacidade.
P/1 – E, Gustavo, você quer deixar registrado um recado para a SOS dos dezoito anos?
R – Acho que eu quero. Eu vou dizendo sim a tudo, você já reparou né? É por isso que às vezes eu fico enlouquecido de tanto trabalho. Mas eu quero sim. Acho que meu o recado é, inclusive, bem para agora. Aproveite toda essa energia nova, por trás da maturidade dos dezoito anos, todo esse fluxo energético, essa vibração. Tantas pessoas aí trabalhando, pensando como fazer. Elas se preocupando com a memória do passado pensando já no futuro. Aproveitar essa energia toda para dar um... Vamos dizer assim, até não no sentido agressivo, eu não gosto dessa palavra, mas para fazer um barulho novo. Passar por uma linha nova mesmo. Acho que o momento, o cenário, a energia, tudo está favorável para uma nova estrada aí com uma nova forma. Acho que esse é o recado. Mas eu desejo mesmo e me sinto humildemente contribuindo um pouquinho como conselheiro, lutando contra velhos ideais para mudar novos ideais. Eu adoro coisa nova.
P/1 – Então obrigada.
P/2 – Muito obrigado, Gustavo.Recolher