Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Adriana de Queirós Mattoso
Entrevistada por Rodrigo Godoy e Cláudia Leonor
São Paulo, 14 de Dezembro de 2004
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: SOS_HV008
Transcrito por Susy Ramos
Revisado por Carolina Cervera Faria
P/1 - Boa ta...Continuar leitura
Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Adriana de Queirós Mattoso
Entrevistada por Rodrigo Godoy e Cláudia Leonor
São Paulo, 14 de Dezembro de 2004
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: SOS_HV008
Transcrito por Susy Ramos
Revisado por Carolina Cervera Faria
P/1 - Boa tarde, Adriana. Obrigado pelo seu comparecimento aqui no projeto e, para iniciar, eu queria perguntar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Adriana de Queirós Mattoso, nasci 11 de janeiro de 1956, em São Paulo.
P/1 – São Paulo? E qual o nome dos seus pais?
R – Eusébio Mattoso e Guaraci Mirgalowska.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho uma irmã.
P/1 – Uma irmã? E você nasceu e se criou em qual localidade de São Paulo?
R – Nasci no Jardim Paulistano e me criei em Pinheiros, sempre nessa região.
P/1 – Região de Pinheiros, ali...
R – Vila Madalena.
P/1 – Zona oeste.
R – Na zona oeste.
P/1 – E como eram, na infância, esses bairros em que você cresceu?
R – Bom, na verdade, eu primeiro nasci bem no coração do Jardim Paulistano, depois eu morei na Iguatemi, onde hoje passa a Brigadeiro Faria Lima. Minha casa não tem mais. Depois eu fui morar em uma chácara em Interlagos, onde então eu passei a minha primeira infância. Eu morei em uma chácara que era um sítio na verdade, porque ela tinha lago, tinha floresta, pomar, eucalipto, era uma chácara, não era uma roça, mas tinha vaca, tinha baia. Então minha primeira infância eu tive bastante contato com a natureza.
P/1 – E no coração de São Paulo...
R – Interlagos, hoje em dia virou uma periferia. A chácara ainda existe, mas cercada de periferia brava, tipo, Jardim Ângela, não sei o que é...
P/1 – E como foi para você crescer em um ambiente onde tinha verde, onde tinha animal, tinha todas essas coisas que hoje em uma cidade a gente não tem contato?
R – Você vê o que é uma criança... Eu era tão neurótica que eu falava que eu queria morar em uma casa que tinha quintal (risos). Mas eu curtia, eu gostava de morar lá, lógico. Tinha uns amigos que alugavam uma casa dentro da mesma chácara e convivia também com os filhos dos caseiros, dos jardineiros, então era interessante, era legal.
P/1 – E do que você costumava brincar nessa idade?
R – Eu andava pela chácara inteira, ia ao pomar, ia pescar, pescava bastante, andava de bicicleta, brincava que nem criança. Catava fruta, tinha muita fruta.
P/1 – E seus pais faziam o que da vida?
R – Meu pai é engenheiro e trabalhava lá, sempre com construção, essas coisas. A minha mãe, na época, não trabalhava, mas depois ela se separou do meu pai e teve uma boutique famosa em São Paulo (risos). A “Parafernália” foi uma das primeiras boutiques mais transadas, na região da Rua Augusta, uma boutique bem badalada. Meu pai trabalhava com um negócio interessante, trabalhava com aglomerado de madeira, com vigas e uma coisa chamada “laminarco”, que era um produto que até hoje tem no SESC, são aglomerados de pinho; depois ele foi vender carro.
P/1 – E essa casa onde você morava era chácara, depois você disse que foi para Pinheiros?
R – Então, depois eu fui para a Rua Juquiá, ali em frente à Escola Britânica, o Saint Paul, onde eu passei minha infância mais propriamente dita, digamos, acho que dos seis aos dez anos. Ali andava de bicicleta, jogava taco na rua, brincava ali com os vizinhos, ia na escola, nada de...
P/1 – É, a sua infância...
R - Tudo que qualquer criança faz.
P/1 – Não se difere de uma infância do interior digamos assim, pelo menos...
R – Não, não, não, uma infância...
P/1 - ...uma liberdade de...
R – É, nunca morei em apartamento.
P/1 – Você tinha liberdade de rua, contato com outras...
R – Tinha. Eu ia muito para Santa Catarina, onde foi uma coisa bem marcante. Eu tinha uma babá que ela era filha de alemães, de imigrantes, ela tinha um sítio perto de Joinville, Santa Catarina, e eu ia para lá passar as férias, então lá eu tive o primeiro contato com a vida no campo de verdade. Uma vida de pequenos agricultores, alemães, então tinha uma cultura, foi uma experiência muito rica.
P/1 – E a primeira vez que você foi para lá, qual a idade que você tinha mais ou menos?
R – Acho que uns sete anos.
P/1 – Era bem criança ainda.
R – Imagina, sete anos!
R – Já tinha caído do cavalo, já tinha aprontado bastante.
P/1 – E qual a maior diferença que você se deu conta nessa sua viagem, com a vida que você tinha, com o que você via em São Paulo? Quais foram os aspectos que mais te marcaram dessa sua viagem para Santa Catarina, onde diz ter esse primeiro contato?
R – Eu acho que foi uma coisa de valorizar as populações tradicionais, populações com uma carga cultural, com processo próprio. Porque lá era uma casa em estilo normando, alemão, e atrás era acoplado o celeiro. Então tinha tudo ali, tinha os cavalos, as vacas, os porcos, as galinhas, tinha uma oficinazinha de marcenaria, no meio tinha o paiol, tinha tacho de fazer farinha e melado e tinha uma moenda mesmo, para moer cana, e era tudo acoplado na casa. Foi uma experiência muito rica, de saber como que pessoas que moram no campo... E aí, naquela época eu cortei palmito, cacei tatu, derrubei árvore, matei passarinho, fiz cabana no mato, fiz tudo que realmente... A gente pescava no rio, gradeei, arei terra, colhi, limpei cana, foi uma vivência que acho que poucas crianças da cidade tiveram. Essa minha babá foi uma pessoa bem marcante na minha vida. Eu também era muito metida, queria fazer as coisas, porque eu fazia de tudo, com sete anos eu já pegava um facão desse tamanho, ia lá, picava mandioca, banana verde e batata doce para dar para as vacas. Era a maneira como eles criavam os filhos deles lá. Então foi uma experiência importante, marcante, até quero voltar lá um dia, para ver no que deu, mas parece que continua parecido.
P/2 – Você lembra o nome dela, da babá, para a gente registrar?
R – Claro! Aninha! Lembro o nome dos cavalos, dos porcos, das galinhas, fazia tudo parte da família.
P/1 – Era uma grande família.
R – Tinha um irmão dela que fazia apito de caçar passarinho, esses apitos de inhambu, jacu. Era uma vida realmente bem ligada. Eles faziam pão, faziam queijo, faziam linguiça, faziam melado. Era muito interessante, uma coisa bem rica.
P/1 – Bom, e aí de volta para São Paulo, aonde você estudou, Adriana?
R – Estudei no Pio XII, aqui perto, depois estudei no Dante Alighieri.
P/1 – E quais são suas lembranças desse período escolar?
R – Nada...
P/1 – Marcante?
R – Não, eu era muito indisciplinada. Tinha alguns amigos, mas a minha vida escolar não foi nada tão marcante, muito menos no Dante Alighieri, que era um saco.
P/1 – Pulando um pouquinho mais, você já adolescente, na década de 70, mais ou menos, quando você estava lá na sua adolescência, qual era a sua noção de meio ambiente? Você já tinha alguma noção da questão ambientalista, já tinha contato?
R – Na verdade nem tinha movimento ambientalista nessa época, mas eu, quando adolescente, depois desse período da infância que eu ia para Santa Catarina, durante toda a minha adolescência eu frequentava um acampamento de férias, Paiol Grande, em Campos do Jordão, lá em São Bento do Sapucaí. Então isso foi realmente uma vivência marcante, porque até hoje é um lugar muito bonito. Era um lugar muito importante, porque você acordava e as nuvens estavam despencando pelo Baú, se descortinando lá para baixo, era um espetáculo visual, e a gente fazia excursões, dormia, acampava. Então foi uma coisa que apesar do Paiol, assim, ser ele todo ajardinado com "pinus elliottii", mas enfim, era uma paisagem ali para a gente, uma vivência também coletiva. Era um assunto que também foi muito marcante, um contato muito forte com a natureza. Então eu sempre tive essa coisa de natureza bastante viva em mim, eu tinha sempre uma convivência com a natureza, a vida inteira. Meu avô também era pescador, ele pescava aqui, tinha um barquinho na Billings, e a gente saía de vez em quando e dormia no barquinho, pescava, pescava nada, mas tinha um contato com a natureza.
P/1 – Quando você acabou o colégio, você já foi fazer faculdade direto?
R – Infelizmente eu fui dessa turma que não foi passar um ano viajando para lugar nenhum, fui fazer cursinho e fui fazer faculdade.
P/1 – E que curso você fez?
R – Eu entrei na FAU, na USP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, que aí foi uma experiência mais marcante, porque foi uma escola fantástica, que me deu uma formação muito boa. Eu nunca na verdade arquitetei, de fazer projeto, desenhar e fazer, mas eu arquiteto, aprendi a arquitetar. Porque naquela época, a faculdade é de arquitetura e urbanismo, então teoricamente teria planejamento urbano, mas desde que eu entrei na faculdade eu já estava mais ligada na questão ambiental, até porque eu tinha essa convivência de lugares fora de São Paulo, fazendas que eu frequentava de amigos do meu pai e a gente frequentava o Guarujá, então, desde criança a gente tinha apartamento no Guarujá. Aí, quando eu tinha uns doze anos eu falei: “Papai, eu não quero mais vir para o Guarujá”, eu já não achava graça no Guarujá, já achava que o Guarujá já estava muito civilizado para o meu gosto. Aí eu passei a frequentar Paraty, foi a primeira vez que eu fui para Paraty. Eu tinha ido quando criança, mas depois eu voltei no começo dos anos 70, não tinha a Rio-Santos ainda, então a gente descia por Cunha, era a única opção. Era completamente diferente, era uma cidade minúscula e realmente a ligação ali com a natureza, com a cultura local, era maior. Então eu passei a ter um pouco de senso crítico no sentido de tentar, digamos, manter espaços culturais e naturais, um conjunto que sempre fez parte, que sempre marcou a minha vida. Então, quando eu entrei na faculdade, eu logo me apaixonei pelo laboratório de fotografia e comecei a fotografar bastante, e o primeiro trabalho que a gente fez, de estudante, foi visitar uma comunidade, a Granja Yuba, uma comunidade de japoneses, mas que viviam em uma comunidade em Araçatuba, então plantavam, viviam lá... E fui procurando um pouco esse caminho. Desde o começo eu nunca me liguei na questão urbana, eu sempre me liguei na questão ambiental mesmo, da zona rural. Eu passei a frequentar aquela região de Paraty, então, quando começou com a construção da Rio-Santos veio aquela violência contra o litoral. Eu acompanhei todo esse processo, desde 1974, depois a região de São Sebastião, que foi já na década de 80, que a Rio-Santos foi aberta. Então, todo esse processo foi um processo um pouco doloroso para mim, de ver aquelas máquinas rasgando aqueles barrancos e sujando as praias, aterrando praias, aterrando nascentes, cachoeiras. A construção da Rio-Santos aterrou mais de setenta praias e muitas cachoeiras, e muitas nascentes, enfim, foi uma transformação nesse espaço que a gente tinha, nesse espaço nosso de fim de semana, de feriado, do litoral norte, que foi muito forte. Com a Rio-Santos veio a especulação imobiliária, o desenvolvimento turístico, teve particularmente ali na região de Paraty uma briga na Trindade, de uma grande multinacional imobiliária, Brascan, querendo aquele espaço que era uma fazenda que tinha sido comprada pelo Carlos Lacerda, então governador. Acho que já sabendo que iam fazer a Rio-Santos ele comprou uma grande área lá, para depois vender para um empreendimento turístico. Esse empreendimento chegou inicialmente querendo comprar à força as terras dos caiçaras, aí começou uma briga mesmo. Nessa época eu tinha dezesseis anos, quando começou essa história, então era o lugar que eu frequentava e que eu gostava e que juntou um grupo de pessoas que frequentavam essa praia para tentar ajudar os pescadores a se defenderem dessa multinacional. A gente fundou a Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, que é uma entidade que existe até hoje. Hoje em dia ela está concentrada mais em defender o arquipélago de Alcatrazes, mas a gente teve uma luta lá que foi bem sucedida. No fim de muita campanha, muita exposição, muito filme, muita coisa, a gente conseguiu uma mobilização e acabou que a multinacional implantou o condomínio Laranjeiras, onde era a sede dessa fazenda e a parte da Trindade, a parte da vila, ficou uma área grande para os trindadeiros. O filé mignon, digamos, ficou para eles e hoje em dia tem uma vila que se desenvolveu lá, não tão bucolicamente quanto a gente gostaria, mas enfim, é um dos poucos lugares do litoral brasileiro onde o caiçara é dono do negócio, tem seu hotel, tem o seu restaurante, a sua pousada. Embora essa questão ambiental ainda tenha muito para resolver, mas é um lugar onde o caiçara não foi totalmente expulso, então, a questão começou aí. Dentro da universidade eu tive a oportunidade de fazer trabalhos sempre ligados a essas questões, foi um período interessante.
P/1 – E por que você escolheu arquitetura? Você tinha algumas outras opções em mente?
R – Não, minha mãe falava assim: “Você vai ser arquiteta, né, Adriana?” ai eu fui ser arquiteta. Para mim a arquitetura casava, era uma coisa que envolvia arquitetar, você pode arquitetar qualquer coisa, então eu comecei a fazer cinema naquela época, fazia uns documentários em Super 8. Depois eu fiz um documentário justamente sobre a briga da Trindade, chamado Vento Contra, em 16 mm [milímetros], que passa até hoje, é uma coisa interessante, ele tem vinte e cinco anos, ficou pronto em 1980, e até hoje ele passa, passa em Paraty, passa em São Paulo. Ele tem uma trajetória bem interessante, foi um filho único, mas foi bem aproveitado, foi bem curtido.
P/1 – E sobre essa associação do litoral norte, que você disse, que ano que ela foi fundada?
R – Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, ela foi fundada em 1978.
P/1 – 1978? Por quem?
R – Por esse grupo: o Fausto, que trabalhou no Instituto Florestal, o Zezo que é videomaker, Ricci, que mora hoje em dia na Trindade, o Jarbas, que foi o advogado, que mora no Rio e uma galera aí.
P/1 – E quais ações vocês desenvolviam nessa defesa do...
R – Eu trabalhava mais com a parte de documentação. Eu fotografava, filmava, publiquei uma série de matérias em jornais do Brasil inteiro sobre essa história, e fiz esse filme e fiz outros filmes também. Fiz também um filme em Super 8 que é uma passeata que os trindadeiros fizeram para a cidade, que também é muito interessante. Eu fazia isso. Já o Fausto, ele articulava a parte da defesa dos trindadeiros, a parte jurídica, conseguir um bom advogado. Mas depois tinha que medir as áreas, fotografar, fazer o memorial descritivo, fazer todo um trabalho de defesa jurídica deles. O Ricci mudou para lá e ficava lá segurando a onda da cabeça do povo, porque eles tinham medo. Era uma companhia aí com quarenta jagunços ameaçando eles, exigindo que eles vendessem a terra, naquela época ainda era uma repressão política. Então o cara reclamou, reclamou vai parar na delegacia, não tinha a justiça, como ainda não está até hoje, ela não estava voltada para o pequeno. Então era um trabalho intenso de vivência com os moradores, amizade, algumas pessoas já casaram por lá mesmo, foi um trabalho bem envolvente, porque o nosso lazer era esse, era ir para lá e ficar lá fotografando e fazendo matéria e filme, depois faz cartaz e monta exposição fotográfica, vai para o Rio de Janeiro e faz passeata, foi assim, foi uma boa militância.
P/1 – E até que ano você se manteve nessa sociedade, você participou ativamente?
R – Eu sempre participei, depois também participei do projeto Alcatrazes. Quando houve um acordo entre a companhia e os moradores de Trindade, foi uma época em que a gente também se definiu. Foi à época que entrou o governo Montoro e nos chamaram para montar uma equipe de resolução de conflitos de terra dentro do Governo. Era um núcleo dessa turma, que foi trabalhar na Sudelpa, que era Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista, que era, na verdade, para o governo Laudo Natel, que era o antecessor, era uma companhia de abrir estrada. E nós entramos já com uma proposta de desenvolvimento sustentável, de apoio aos pequenos posseiros e atendemos mais de cem comunidades que tinham conflitos de terra no litoral e Vale do Ribeira. Foi um projeto muito de ponta, porque o governador bancou de defender posseiro. Foi muito interessante, porque hoje em dia essa coisa de invasão de terra você, tudo bem, invade uma terra, mas quem está invadindo muitas vezes não tem tradição nem com a agricultura, nem com aquela terra e também tem gente que nem sabe o que está fazendo direito, tem gente que faz isso por lazer. Já vi escrito, “De fim de semana eu vou lá invadir terra”. Agora, quando você trabalha com posseiro que está em uma área há gerações, é uma coisa muito interessante, porque ele tem uma ligação muito forte com a terra, com o lugar, com aquelas plantas, o pai dele nasceu lá, aquela casa ele construiu. Então foi um trabalho onde a gente atendeu basicamente esse tipo de posseiros, que moravam nos confins de São Paulo e começaram a ser confrontados com grileiros que iam tirar eles de lá. E esse trabalho deu origem à implantação das Unidades de Conservação, porque muitos desses lugares eram dentro das Unidades de Conservação, tinha posseiro na Juréia, tinha posseiro lá no Parque da Serra do Mar, que a gente atendia no Vale do Ribeira. E esses lugares hoje em dia viraram quilombos, são parques, grande parte deles são áreas protegidas. Então um trabalho foi levando ao outro, aí a gente entrou, justamente formando o Grupo da Terra na Sudelpa, que trabalhou durante esse período do governo Montoro. Foi um trabalho interessante, porque ao mesmo tempo em que a gente estava defendendo a população tradicional no modo de vida ligado com a terra, junto com a Mata Atlântica, a gente estava começando aí um trabalho de implantação das Unidades de Conservação estratégico. Tanto, que aí a Sudelpa acabou e nós fomos transferidos para a Secretaria do Meio-Ambiente e a gente acabou indo parar no Instituto Florestal, que era o lugar que administra os Parques Estaduais de São Paulo. A questão das unidades de conservação em São Paulo, o início da implantação dessas unidades, teve muito a ver com a questão fundiária, com a questão de entrar em contato com as pessoas que moravam nesses lugares e fazendo esse trabalho.
P/1 – Em que ano foi esse início?
R – Foi em 1983.
P/2 – Para a gente registrar, o que são Unidades de Conservação?
R – A gente fala e acha que todo mundo entende (risos). Unidades de Conservação são áreas protegidas legalmente. Você tem a APA - Área de Preservação Ambiental, você tem Parque Estadual, Estação Ecológica, Reserva Estadual, mas basicamente Parques.
P/1 – Resumidamente, como se dá o processo de transformar uma área comum em uma área protegida?
R – Só por um decreto. Hoje em dia a legislação exige que você faça uma consulta pública para transformar uma área em Parque, justamente porque, por exemplo, o próprio Parque da Serra do Mar, alguns pontos dele foram criados em cima de lugares onde havia comunidades caiçaras. Isso até hoje gera um conflito enorme, porque, pela lei do parque, morador ali não pode construir, derrubar mata, é uma confusão dos diabos. Então, hoje em dia tem esse processo de consulta pública, mas na verdade nós trabalhamos em áreas que já existiam, porque os Parques de São Paulo foram criados assim. Teve uma grande quantidade de Parques que foi criada pelo Paulo Egídio quando governador, em 1977: foi o Parque da Serra do Mar, o Parque da Ilha Anchieta, o Parque da Ilha Bela. O Parque da Serra do Mar é o maior Parque de São Paulo e é o maior Parque de Mata Atlântica do Brasil. Eram Unidades que já existiam, o Petar, que é o parque das cavernas, foi criado há muito tempo, o Parque da Ilha do Cardoso foi criado em 1962, quer dizer, embora essas Unidades já tivessem sido criadas, elas não tinham implantação. E teve a campanha pela criação da Estação Ecológica da Juréia, que foi o um período, quando a SOS também estava começando, foi um período muito rico de campanha pela criação da Estação Ecológica, que foi resultado desse trabalho. Foram coisas concomitantes: a criação da SOS, a criação da Estação Ecológica da Juréia e a criação da própria Secretaria do Meio Ambiente, foi tudo mais ou menos ao mesmo tempo.
P/1 – É sobre isso que eu queria perguntar para você, isso tudo se deu na década de 80. Como você caracterizaria o movimento ambientalista não só no sentido de instituições, mas como “causa”, nesse início dos anos 80? Como era a recepção do público em geral? Como era a relação entre os ambientalistas nessas diferentes frentes, digamos assim? Dá uma pintada nesse panorama para a gente.
R – Isso foi durante o tempo da ditadura, quando resolveram construir a Rio-Santos, não teve estudo de impacto ambiental. Quando resolveram construir a Usina Nuclear de Angra também não teve, então esses fatos foram marcantes. Aquela época do Brasil foi a época das grandes obras “e não interessa o impacto que houver”.
P/2 – A Transamazônica também.
R – A Transamazônica, toda aquela coisa. Eu acho que o movimento surgiu muito em função de tentar barrar empreendimentos absurdos. E uma ação que foi marcante, que eu acho que uniu um pouco o pessoal de São Paulo, foi o Aeroporto de Caucaia do Alto. Na década de 70, surgiu um grupo que estava querendo se movimentar contra a construção do aeroporto de Caucaia, e aí conseguiram. Teve uma série de passeatas e eventos, e eu acabei conhecendo esse povo. Eu não sei te contar muito bem como é que eu fui encontrar essas pessoas, mas eu me lembro que uma pessoa marcante foi o Fábio Feldmann, que eu conheci, mas eu não sei te dizer exatamente como as coisas se uniram. Eu me lembro que de repente resolveram criar a SOS e eu fui chamada para fazer parte, por causa da minha atuação no Grupo da Terra, na Sudelpa. Na verdade foi por causa disso, então acho que o Klabin, o Fábio, o Randau, não sei bem como foi a conspiração aí, mas eles resolveram criar uma Fundação, com o Rodrigo Mesquita também. Eram pessoas que, de uma forma ou de outra, estavam ligadas. Na época, o Jornal da Tarde, o Rodrigo é da família Mesquita do Estadão, e eles deram muito apoio para essa questão. Então acho que foi um pouco isso, a gente tinha um grande aliado na imprensa, então o Randau, que trabalhava no Jornal da Tarde, tinha a Priscila Siqueira, que trabalhava no Estadão, Marcos Ferrer. Tinha uma turma do jornal, do Grupo Estado, do Fernão Mesquita também. O Fernão, embora caçador na época também, todo caçador gosta do meio ambiente, porque se você destrói o meio ambiente não tem mais caça... De qualquer forma, então eles apoiavam essas questões com coragem na época. Era uma época que ainda tinha censura, ainda apareciam receitas de bolo nas matérias que saiam no Jornal da Tarde, e eles começaram, publicavam séries sobre o litoral, sobre a Juréia, sobre essas áreas mais esquecidas em volta de São Paulo. Acho que isso congregou essa turma.
P/1 – E quais as instituições de meio ambiente desse período, que você se lembra? Instituições que foram importantes para o movimento ambientalista brasileiro.
R – Tinha essa Apedema, Assembléia Permanente de Defesa do Meio Ambiente, que era o pessoal aqui de São Paulo, que a gente também participava. Tinha a Associação de defesa da Juréia, tinha a Sociedade de Defesa do Litoral, que não agia tanto aqui, ela agiu mais concentrada lá na Trindade também, e depois nesse projeto Alcatrazes. Aí foi fundada a SOS Mata Atlântica, não sei te dizer muito.
P/1 – E nesse início da movimentação ambientalista no Brasil, quais foram os pontos focais? Quais foram os momentos mais marcantes, em sua opinião, ou de catástrofes que tenham acontecido ou de movimentações, ou de causas que tenham sido encampadas por esses movimentos? Porque foi um período bastante conturbado para o meio ambiente também, né? Como você mesmo disse a especulação imobiliária não tinha controle. Quais as outras causas que eram muito marcantes?
R – Teve essa história da Trindade, que foi uma história muito marcante, porque pegou várias praias ali em Paraty, e foi uma briga feia. Em Paraty teve outras brigas que eu estava também ligada, A Sociedade de Defesa do Litoral apoiou também a defesa dos moradores da Praia do Sono, que era próximo ali do lado de Laranjeiras. Mobilizou-se também para reforçar a briga deles, mais para dizer: “Olha, nós estamos do lado de vocês”, porque não tinha ninguém do lado deles. Era o grileiro lá ameaçando, e eles, os caras não tinham estrada, não tinham telefone, não tinham nada, estavam lá bem isolados. Teve esse negócio do aeroporto de Caucaia, teve essa história da Juréia, porque tinha a Gomes de Almeida Fernandes, que tinha lá um empreendimento imobiliário previsto para ser implantado na Juréia. Então teve esse movimento para criar a Estação Ecológica, no caso da Picinguaba, no Parque da Serra do Mar, que fica ali perto de Paraty também. O Governo Maluf tinha um projeto de fazer setecentas e cinquenta casas, onde é hoje o núcleo Picinguaba do Parque da Serra do Mar. Então eu não estou sabendo pontuar para você. Teve a questão da Usina Nuclear, mas depois que a usina já estava construída acho que começou a briga pela Angra II e Angra III, mas a primeira passou.
P/1 – E a população tinha noção do que estava acontecendo? A população geral, não os ambientalistas, o que você acha? A população média sabia, por exemplo, da questão nuclear? Eles tinham algum posicionamento claro sobre isso ou ainda estava muito esfumaçado na mente do povo?
R – Na verdade eu acho que a gente, como saiu de um momento que era uma repressão política, então essa atividade política, a atividade de mobilização era muito pequena. Quer dizer, tinha a Pastoral da Terra naquela época, que também era muito atuante nessa questão de defesa dos direitos das populações. A gente tratava mais desse aspecto. A questão não era tanto ambiental, mas era um pouco de que: “Escuta, os caras estão lá, vocês vão lá, acham que vão tirando povo para vocês fazerem um empreendimento?” Então isso mobilizava também muito pelo lado humano, pelo lado dos direitos...
P/2 – Humanos.
R - Dos Direitos Humanos. Foi uma época, até tinha gente aqui brigando, era a luta pela anistia, a luta pelo não sei quê. E a nossa luta, a gente revestiu esse começo, a gente deu esse selinho ambiental, mas na verdade, a questão no aeroporto, por exemplo, e no lugar, ela é uma questão ambiental e ela é uma questão dos direitos humanos também. Como é que você vai fazer um empreendimento no lugar sem consultar os interessados? Eu acho que o movimento ambientalista, no começo ele teve muito essa bandeira de: “Escuta, nós queremos ser ouvidos!” Eram campanhas no jornal, eram campanhas jurídicas utilizando a legislação existente, pelo direito das pessoas resolverem o que ia acontecer na área delas. Essa questão se ligava com o movimento político, com os movimentos sociais... por causa disso, depois a gente passou a defender também esses pequenos posseiros. Agora, a questão da Mata Atlântica mesmo foi a SOS que pôs no ar, porque eram campanhas. Campanha pela Juréia, campanha por isso, campanha por aquilo, eu me lembro também, teve uma campanha pela defesa do rio da Barra do São João, lá no Rio de Janeiro. É interessante, porque não tinham tantas campanhas, eu, pelo menos, eu não me lembro de muitas. Quando a SOS surgiu, eu acho que tem uma coisa marcante nessa mesma época, porque foi tanto a SOS quanto a Associação de Defesa da Juréia, elas entraram com um projeto de comunicação de massa. Não sei se vocês lembram, mas tinham uns “outdoors” com os bichinhos de origami da Juréia, é um cartaz que eu acho até que vale a pena vocês documentarem. Eu tenho em casa, que a onça, o tigre, o macaco, tudo feito em origami, então era um “outdoor”, “Salve a Juréia”, e ninguém nem sabia o que era Juréia, mas foi a primeira campanha de impacto desenvolvida até pela DPZ, à pedido da Associação Pró-Juréia, que começou a trazer essa questão ambiental em nível de comunicação de massa. Então a SOS também, com aquela campanha “Estão tirando o verde da nossa terra”. O movimento ambientalista atuava mais no plano jurídico. A gente usava o jornal, a televisão, mas essa coisa de fazer campanha de “marketing”, no bom sentido, para a questão ambiental, eu acho que foi a SOS que começou. Tinha o WWF, que já atuava com o símbolo do panda, o Greenpeace, que eu não me lembro bem quando surgiu, mas também atuava em campanhas de massa, mas a SOS e a Pró-Juréia trouxeram essa forma de atuação e de disseminação da questão ambiental, eu acho que foram as primeiras. Isso mudou a dimensão, não foi um negocinho assim, foi uma coisa que estava ali e acolá e de repente, “BOOM! Mata Atlântica!”. Então o que é Mata Atlântica, o que tem na Mata Atlântica, quais são os bichos da Mata Atlântica, isso tudo é mérito total da SOS, não tem quem tire isso. Há quem critique a SOS por trabalhar muito no plano do marketing, tem gente que fala: “Ah, a SOS é uma entidade que trabalha com ‘marketing’, ela vive de ‘marketing’”. Agora, esse trabalho de marketing que a SOS faz, é um trabalho muito importante, porque lembra as pessoas da Mata Atlântica, então no plano de gestão mesmo, no plano de políticas públicas e de gestão ambiental, ela teve essa parceria com o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], de mapear a Mata Atlântica por imagem de satélite. Então ela fez um trabalho concreto, científico, geográfico, localizado, que com esse monitoramento você pode ver o que está acontecendo, onde está a Mata Atlântica, tudo isso. A SOS catalisou, porque não interessa o que está acontecendo nos laboratórios e nos doutorados e nos mestrados se isso não vem à tona. Então, depois ela fez o “workshop” da Mata Atlântica, junto com a Conservation International, que foi publicado pelo Ministério do Meio Ambiente também, com apoio de outras ONG’s... Mas foi assim: “Quais são os “hotspots” da Mata Atlântica, quais são os pontos mais críticos para isso, para aquilo?” Quer dizer, esse trabalho é um trabalho científico a nível macro, e o trabalho com o grande público é o trabalho do simbólico mesmo, é o trabalho do conceito. Eu acho que é um caminho super válido você trabalhar nesse aspecto. Foi um trabalho pioneiro e foi um trabalho que consolidou essa ideia de Mata Atlântica. A Amazônia, ela tem uma força por si própria, então é uma coisa que não tem ninguém vendendo “Salve a Amazônia”, porque é um negócio já também vindo dos anos 80. Porque até os anos 80 a Amazônia era aquele pedaço no mapa escolar que era um verde, você olhava, metade do Brasil era Amazônia, e hoje já não é. A gente olhava para aquilo lá e era um mundo longe, incrível. Mas para a Mata Atlântica ninguém olhava. Eu passei a minha infância inteira atravessando a Serra do Mar e todo mundo via a Mata Atlântica até aqui na cidade e tudo, mas essa consciência “A Mata Atlântica, o que é a Mata Atlântica, precisamos defender a Mata Atlântica”, a SOS que jogou no mercado.
P/1 – Você acha que teve alguma influência dessas ONGs internacionais, como Greenpeace, WWF, na constituição das ONGs brasileiras? Na forma de organização?
R – Não.
P/1 – Você acha que ela se distingue em quê?
R – Não, sabe por quê? Porque, você vê, a única ONG, das poucas ONGs no Brasil que têm esse caráter maior, digamos, de serem maiores, atuarem mais nacionalmente... Tanto que o WWF montou uma filial no Brasil, o Conservation International montou uma filial no Brasil, o Greenpeace também se instalou no Brasil, mas são entidades que, na origem, nasceram fora do Brasil.
A SOS nasceu no Brasil e teve apoio de várias organizações de fora, eu acho que ela foi pioneira nisso e que teve como objetivo uma área métrica, uma área tão grande assim. Tinha aquela ONG do Lutzemberger, mas ele foi um pioneiro na época, eu nem lembro mais como chamava a ONG dele, não é nem do tempo de vocês (risos), eu não me lembro mais, mas o Lutzemberger tinha lá, não sei, na Asplan, era lá no Rio Grande do Sul, também foi uma ONG... Mas as ONGs brasileiras elas sempre surgiram para resolver questões pontuais.
P/2 – Locais?
R – É. O que é bem interessante, porque se forma um grupo para defender a figueira da rua tal, e isso é muito interessante, porque você tem um objetivo muito claro, você vai lá e briga por isso. Então essas ONGs multinacionais, elas têm um esquema com origem nessas organizações americanas, Sociedade Audubon, que é aquela que faz aqueles guias de pássaros, de parques nos Estados Unidos que é do século retrasado, do século XIX, que é muito interessante. Mas aqui no Brasil... Você sabe quem foi o pioneiro ambientalista do Brasil? Foi o José Bonifácio, conselheiro do Dom Pedro...
P/1 – Tutor?
R – Tutor do Dom Pedro, ele que começou a falar: “'Peraí' meu, agora nós vamos parar”.
P/2 – Floresta da Tijuca?
R – Floresta da Tijuca ? Eu não sei bem os detalhes.
P/2 – Eles contrataram uma pessoa para fazer reflorestamento.
R – Não sei se foi ele, mas acho que até foi nessa época. Porque aqui no Brasil o normal era você destruir a Mata Atlântica, então ele foi um dos pioneiros. Agora, eu acho que não. Eu acho que o movimento ambiental brasileiro ele surgiu de forma diferente, tanto que agora é que as ONGs estão mais profissionalizadas. A SOS foi uma das primeiras que tinha uma equipe contratada, que tinha um sistema. Eu não estou falando de outros tipos de ONGs dos movimentos sociais, mas enquanto movimento ambientalista. Quando a gente trabalhava na Sociedade de Defesa do Litoral foi sempre voluntariamente, sem nunca a gente ter pensado em prestar serviço e ninguém nunca cobrou serviço da gente, era todo um trabalho voluntário.
P/2 – Nessa época do litoral ali de Paraty, você tinha dezesseis, dezessete anos. Como sua família via sua atuação? Final de repressão, começo de década, como é que a tua família via essa tua atuação?
R – Minha mãe ela tinha comprado um sítio em Paraty, então a gente frequentava lá, não tinha nada demais.
P/1 – Eles ficavam sossegados?
R – Não era nada, claro que, enfim: “Ah, vão te pegar!” Mas era um movimento, não era um movimento de uma pessoa isolada. Eu estava lá, mas tinha outras pessoas, não chegou a ter um risco de violência física, eu não sei bem por quê. Como a gente entrou logo junto com o Jornal Nacional, Jornal Estadão, então como a gente andava com a imprensa aqui, não dava para mandar bater. Eles chegaram a estuprar as professoras, eles compraram a igreja, eles compraram o padre, mas eles iam lá nos pequenininhos e a gente não era, porque a gente estava ligado. A gente não era de bobeira, a gente estava ali assim, apesar do “oba, oba”, saía de chifre na época (risos). Mas a gente estava ligado na imprensa, na justiça, acho que também não chegaram tão longe.
P/1 – E se dava algum tipo de troca de experiências entre essas ONGs todas que você citou do início da década de 80?
R – Eu acredito que sim, porque o pessoal da Pró-Juréia tinha ligação. Tinha pessoas que eram da Pró-Juréia que eram da SOS. Depois a gente formou esse grupo dentro do governo também, que tinha uma postura um pouco de ONG ainda, de fazer as coisas, então tinha uma comunicação. O Fábio foi uma pessoa também que uniu muito, porque ele foi o primeiro presidente da SOS eu acho, ou foi um dos primeiros, e daí já teve aquela candidatura dele para deputado, aí veio a época da Constituinte. Então, nessa época, ele chamou muita gente que estava nesses movimentos para ir para Brasília, chamava para dar uma assessoria. Eu não lembro muito bem, porque na verdade eu sempre fiquei muito concentrada nesse meu trabalho, nessa época eu estava implantando o Núcleo Picinguaba no Parque da Serra do Mar. Na década de 80, depois que acabou a briga da Trindade, a gente foi trabalhar no Grupo da Terra. Trabalhava no litoral, Vale do Ribeira, e daí eu fui me concentrando mais para essa área, onde eu trabalho hoje também, que é o Parque da Serra do Mar. Então tinha essa troca pela própria SOS. A gente trabalhava sempre, fazia muito trabalho, como exposição fotográfica, a gente canalizava um pouco, fazia uma exposição, aí fazia debate. A exposição que nós montamos sobre a questão da Trindade, o filme, a gente passava nos lugares.
P/1 – E você falou na Constituinte. Diz-se muito que a legislação ambiental brasileira é um das melhores do mundo.
R – É.
P/1 – Das mais completas. Você concorda com isso?
R – Concordo.
P/1 – E ela é efetivamente aplicada em sua opinião? Ela tem uma efetiva aplicação?
R – Mais ou menos. Porque é assim, hoje em dia você tem condição como, por exemplo, a Estrada do Sol, que era uma estrada que era para cruzar o Parque da Serra do Mar em um ponto ali entre São Sebastião e Salesópolis. Essa estrada ela deixou de ser construída porque o Consema não aprovou, o Conselho Estadual do Meio Ambiente. Então a gente pode dizer que a legislação ela tem uma aplicabilidade. Por exemplo, semana passada o Parque Estadual da Serra do Mar, o Instituto Florestal, em parceria com a Prefeitura de São Sebastião, eles estão demolindo barraco que invade o Parque da Serra do Mar. Eles trabalham conjuntamente e eles vão lá e demolem, porque a Prefeitura de São Sebastião tem uma procuradoria jurídica que faz um processo. Está na Constituição, na Lei Orgânica de São Sebastião que se você está construindo, fazendo uma obra não autorizada dentro de um terreno, você pode ir lá e derrubar, e isso é uma coisa que depende. Por exemplo, quando você tem um grupo que apoia a aplicação, a lei ela é reflexo do que quer a sociedade, então se a gente fala: “Tem lei que pega, tem lei que não pega”, o que é uma lei que pega? É a lei que as pessoas fazem ser aplicada, então vou dar alguns exemplos. Por exemplo, antigamente, a gente ia todo mundo acampar na praia, pegava sua mochilinha, escolhia onde você ia acampar, “pumba”, arrumava sua barraca. Você e mais milhões de pessoas, milhares de estudantes, de mochileiros, armavam a barraca onde queriam. Aí as prefeituras começaram a colocar uma legislação que “é proibido acampar”. Agora, só é proibido acampar até a hora que chega alguém e te tira de lá, porque você vai e acampa embaixo da placa, e fica esperando. Mas o que acontece? As pessoas, tanto os caiçaras quanto até os proprietários de casas na beira da praia começaram a se injuriar com essa coisa das pessoas acamparem na praia e fazerem tudo o que queriam na praia e deixar lixo, enfim, ousar contra os bons costumes e você sem fazer nada. Então essa lei pegou, porque as pessoas não deixam mais os outros acamparem na praia. Outras leis então não pegam, vou dar um exemplo bem interessante: nós temos o Parque da Serra do Mar, que tem locais onde existem vilas, onde existem comunidades, onde ainda hoje se constrói. O exemplo mais concreto disso é o bairro Cota, ali na região de Cubatão. Aqueles bairros da Vila Anchieta, têm lá uma cidade, tanto que já foi recortado um pedaço do parque, porque aí a lei não houve condição de cumprir. Outro exemplo que eu não vou dar detalhes, mas existem áreas em que houve liminares de despejo de cinquenta, sessenta, setenta famílias em áreas protegidas, digamos, dentro de um Parque, dentro de uma área de mananciais, por exemplo, tem liminares que não foram cumpridas, tem áreas de mananciais que estão com sentença demolitória, e aí? Demoliu ou não demoliu? Então, muitas vezes, até uma sentença judicial é desrespeitada e ninguém peita. Você vai pegar um bairro que tem mil famílias e vai despejar? Não vai. Esse é um lado. Por outro lado, na Praia do Sono, na Reserva Ecológica da Joatinga, que é uma população que tem um histórico de luta, e essa Reserva Ecológica da Joatinga, que é subordinada ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, a lei dela diz que não pode construir, não pode fazer nada, só o caiçara pode continuar sobrevivendo, é bem interessante, essa modalidade, não está no SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação] essa reserva ecológica, mas enfim. O que acontece na Praia do Sono? Alguns caiçaras começaram a vender terra e a gente ia lá no começo desse trabalho que eu fiz para a SOS, por que eu queria poder falar um pouquinho sobre esse trabalho, a gente ia lá e falava isso: “Escuta, não deixa o cara acampar na praia, porque você está perdendo. Depois quem vai limpar o lixo dele, quem vai pisar no cocô dele? É você, o cara vai aí, vai fumar, vai transar, vai nadar pelado, e você está ali, assistindo tudo isso, pagando para assistir. Então você tem que inverter, ele é quem tem que pagar para você. Você tem que tirar ele da praia, colocar ele no seu quintal, oferecer um banheiro, oferecer uma água e segurar ele lá dentro e cobrar.” Mas eles tinham uma timidez em relação a isso, não é que nem a gente, que vai cobrando. A gente muitas vezes tem dificuldade em cobrar um trabalho, imagina o cara lá, que para ele receber uma pessoa de fora é até interessante.
P/2 – A questão da hospitalidade.
R – Exatamente. Lá na Praia do Sono, de tanto a gente fazer reunião e conversar, e eles calejados, eles começaram a perceber que tinha gente comprando. Só que as pessoas que começaram a comprar terras deles, comprar posses na beira da praia, eram comerciantes de Trindade, pessoas de fora que montaram comércio em Trindade, com uma visão comercial boa: “Ah, vou comprar lá, vou fazer um bar”. Essas pessoas, a gente ficou ali só na subversão. Tem a lei, “é proibido construir”, mas a gente falava: “Escuta, esse cara aí, o fulano para quem você está vendendo a terra, ele tem cheque, ele tem carro, ele tem barco, ele tem crédito, ele tem telefone, ele vai abrir o "camping" dele, o bar dele, e ele vai ganhar mais dinheiro que você, porque ele está mais inserido no contexto. Vocês vão ficar vendendo as terras de vocês para eles e depois vocês vão fazer o quê? Ser empregados deles.”. Essa questão da venda sempre foi o coração. O que a gente pode dizer? O almirante Ibsen, meu colega de SOS Mata Atlântica, que também deve dar o depoimento dele, ele vai dizer: “É, mas essas populações, eles caçam, eles desmatam, eles fazem isso, eles fazem aquilo”. Mas você vai comparar o dano de um Club Méditerranée, o dano ambiental de um Club Méditerranée? Sem querer citar nomes, podemos até dizer, você vai querer comparar a destruição de um ‘resort’, de um empreendimento desses, em relação à capacidade de destruição desse caiçara?
P/2 – Que luta pela sobrevivência.
R – Pois é. No caso da Praia do Sono, por exemplo, os moradores começaram a perceber isso, que se os caras de fora viessem construir, que eles iam tomar o lugar deles. Eles utilizaram a lei oportunamente para impedir isso. Porque é claro, em uma comunidade de 60 famílias, sempre tem aqueles que falam: “Eu sou de raiz, eu quero ficar aqui, eu nunca mais quero sair daqui, aqui é o meu lugar.” E tem aqueles que também querem sair, todo mundo tem direito, ninguém precisa ficar morando em lugares ermos a vida inteira, mas o destino dessa comunidade vai depender um pouco de como a comunidade vai lidar com isso. Então, em um determinado momento, algumas lideranças se convenceram de que não era interessante, e aí a própria população chamou a polícia, chamou o Governo do Estado, chamou o Ibama, chamou a Prefeitura, aí todo mundo vai lá demolir. Aí é fácil o poder público tomar essa atitude. Já no Saco do Mamanguá, por exemplo, é reserva ecológica do mesmo jeito e tem mansões sendo construídas, com ações demolitórias, e continuando a ser construídas, sentenças demolitórias e continuam em obras. Por quê? Porque a população dela não peita, porque o Governo do Estado do Rio de Janeiro ali não peita. Então essa questão da aplicabilidade da lei, ela é exatamente o reflexo do que quer a sociedade. Quando a sociedade quer, se a sociedade está organizada, se a sociedade está mobilizada, aí ela consegue fazer cumprir a lei, senão...
P/1 – A lei não tem validade real.
R – Não é que ela não tem validade, mas é muito difícil para um administrador de Unidade de Parque como eu já fui, você chegar lá e demolir uma casa. A lei te manda demolir a casa do caiçara, agora você vai lá demolir a casa do caiçara por quê? O cara estava lá antes de ser Parque. É muito difícil você ter o bom senso para o que você vai demolir, o que você vai realmente pegar. Eu tenho um colega que prendeu um cara, esse exemplo é bom (risos). Eu tenho um colega que foi diretor de um Parque e que prendeu o caiçara, um velho, porque ele matou um tucano para comer, não sei se chegou a mandar o cara para a cadeia, mas naquela época em que caça era crime inafiançável. Pegou o caiçara e mandou para a delegacia. Foi um fuá, porque o caiçara morava do outro lado de determinado lugar que eu não vou falar para não... Pois aí passou um tempo e esse mesmo cara, a gente estava andando de carro dentro desse mesmo parque e ele: “Pára, pára, pára!”, foi lá, pum, pegou uma lagartixa desse tamanho. “Nossa, eu estou procurando esse bicho há um tempão, porque esse bicho, porque é para minha pesquisa...” Eu falei: “Você tem licença de coleta do Ibama? A sua licença está em ordem?” Aí ele ficou um pouco assim. “Você tem projeto de pesquisa aprovado para estar coletando esse animal aqui?” Ele estava como diretor do Parque até, na época. Ficou aquele clima, por quê? Porque para ele o caiçara não podia pegar o tucano para comer, mas ele estava coletando, se um pesquisador ou uma autoridade qualquer pega um animal para fazer pesquisa e não tem a licença do Ibama, ele está incorrendo em um crime do mesmo jeito. Você tem que ter muito bom senso, porque quando que você vai aplicar a lei... E de que jeito? E muitas vezes se você não aplica, você dança, e se você aplica, você dança também.
P/1 – Adriana, você acha que ocorreram mudanças significativas na defesa do meio ambiente nesses últimos anos?
R – Com certeza.
P/1 – Conta umas para a gente, que tenham sido realmente importantes na defesa.
R – É tão difícil te dizer, porque eu me concentro muito no meu trabalho, então eu acho que o que interessa é a mudança na mentalidade das pessoas. É claro que isso não basta. Ontem saiu no jornal que tem duzentas e oitenta e seis mil ONGs no Brasil e há dez anos tinha sessenta mil. Então o que interessa é que as pessoas primeiro se mexam para fazer alguma coisa, e que elas tenham consciência da questão ambiental. Isso é uma coisa que claro, agora que o mundo está acabando, as pessoas começam a se ligar que elas não vão ter ar para respirar e nem água para beber na próxima geração. É uma pena, o mundo é assim. Todas essas campanhas, por exemplo, coleta seletiva, essas campanhas pela questão da água, a campanha pelos índios, a campanha por determinadas áreas, eu não sei, atualmente parece que essa coisa está meio morta, a moçada aí não está tão ligada nessa questão. Não sei como anda o movimento ambientalista nessa ala mais jovem, mas eu sinto... Porque outro dia eu fui em um lugar, no Atelier do Gervásio, um espaço na Vila Madalena, que está abrindo justamente oportunidades para discussão e apresentação de trabalhos de ONGs, você estava lá?
P/2 – Não, já recebi vários convites.
R – É, então, ali estavam umas meninas, de vinte e cinco anos, assim, uma delas era o projeto Bagagem não sei das quantas, que era levar pessoas para conhecer projetos de eco, visitar, fazer ecoturismo junto à comunidades tradicionais lá na Amazônia, e o outro é o projeto Vaga-lume, que leva bibliotecas para as comunidades isoladas. Você percebe que o movimento social, a questão de cunho social, ela ainda é, de certa forma, predominante na preocupação. Quando você lê no jornal que você tem quarenta e cinco milhões de crianças abaixo da linha de pobreza no Brasil, você fala: “Puxa, eu vou lá me preocupar com passarinho, com viadinho?” É uma coisa que realmente predomina essa questão social. A questão socioambiental é o grande barato. Quando você começa a ir à escola e falar de lixo, coleta seletiva, a falta da água que você bebe, isso tudo eu acho que funciona talvez melhor. Uma questão que eu sempre coloco, é assim, “você não defende o que você não ama”. Quando eu iniciei a implantação do Núcleo Picinguaba do Parque da Serra do Mar, que é uma área onde eu trabalhei mais de dez anos, e ali fiz um alojamento para estudantes, que é uma coisa muito simples, isso foi feito com essa ideia de que as pessoas vão visitar a Mata Atlântica, vão visitar lá as comunidades tradicionais da Amazônia, vão visitar não sei o que, para as pessoas sentirem a vontade de defender essas coisas e isso é muito importante. Eu não vou dizer para você se o movimento ambientalista está tendo sucesso ou está deixando de ter, eu acho que ele sempre tem sucesso no momento em que você está mobilizando. A mobilização social é o que interessa, porque qualquer luta pela melhoria da qualidade de vida ela vai estar... Claro, muitas vezes a luta é para asfaltar todas as ruas e iluminar todas as ruas, mas também tem a luta pelo saneamento básico, a luta pela educação. Eu trabalho com o meio ambiente, eu trabalho com verde, com parque, trabalho com biodiversidade, isso sem dúvida é uma coisa fundamental, que tem um monte de gente trabalhando. Agora, se você não levar as pessoas que moram na cidade para o campo e se você não der oportunidade das pessoas que moram no campo de se informarem também, para poderem defender o seu modo de vida e o seu espaço, não adianta você ter lei, você pode ter todas as leis do mundo. Tem uma coisa que acontece um pouco, é assim, o movimento ambientalista ele é bastante urbano, de uma certa forma, você tem bastante coisa acontecendo no plano do urbano. Mas você tem muita coisa acontecendo também fora do urbano, mas justamente essa população que mora nas Unidades, que mora na Mata Atlântica, ela ainda é muito desassistida. Então, a tendência dela vai ser cortar palmito, porque se o cara cortando palmito ganha muito mais do que plantando feijão, ele vai cortar palmito. O nosso grande desafio é promover que esse cara possa continuar sendo o caiçara, ou quilombola, ou índio, ou caboclo, e ele possa, dentro da cultura dele, se desenvolver e trazer riqueza a partir do modo de vida dele. Isso é um baita de um desafio, o desafio é esse. Eu não sei pontuar para você, tal grupo que teve sucesso ou tal que grupo não teve, acho que todos têm. Só por existirem eles já têm sucesso, porque eles estão suscitando a consciência, estão aprimorando a consciência, então você falou: “O que seus pais achavam do que você fazia?” Qualquer pessoa que está envolvida em uma luta para salvar o gatinho do quarteirão está fazendo a cabeça dos pais já também, isso é muito importante.
P/1 – Agora, entrando na questão da Fundação SOS Mata Atlântica, especificamente, Adriana. Em vários pontos no depoimento você já deu alguns lances de como isso se deu, mas agora, para realmente focar no assunto, como se deu sua entrada na Fundação, no caso na criação da Fundação SOS Mata Atlântica?
R – Foi essa época, em 1986. Eu trabalhava já no Governo do Estado de São Paulo, na Sudelpa, trabalhando com esse negócio de conflito de terra, e com a implantação já do Núcleo Picinguaba. Tinha um grupo de, digamos, notáveis, que era o Klabin, o Fábio, o José Pedro, o Rodrigo, era uma turma, acho que eles quatro assim eram pessoas que cada um a seu modo estava lutando pela questão ambiental, e acho que eles resolveram fundar a SOS e me chamaram, como chamaram outras pessoas. Então foi um pouco isso, eu participava de um trabalho que apesar de estar dentro do governo era um trabalho considerado importante para poder compor ali aquele grupo. Aquele primeiro grupo tinha o padre João XXX, que atuava muito com o movimento social também no Vale do Ribeira, em Cananéia, nessa região, o Antônio Teleginski que é um advogado que trabalha com questão de defesa de posseiros e essas questões até hoje, o Randau, jornalista, o Mauro Vítor, que era do Instituto Florestal, o Capobianco era da Associação Pró-Juréia na época. Foi um grupo que acho que cada um estava ligado a algum tipo de entidade ou atuação que foi considerada na época importante para compor aquele Conselho, o primeiro Conselho Administrativo da Fundação SOS Mata Atlântica, então eu participava dele. O Conselho na verdade sempre foi o doutor Paulo Nogueira, o almirante Ibsen, todos eles de uma estatura muito relevante. Na verdade eu estava lá meio de gaiata no navio, mas também estou aí, tenho meu trabalho. O Mário Mantovani trabalhava na Secretaria do Meio Ambiente também, saiu da Secretaria para ir para a SOS e foi justamente no fim de semana em que a gente se reuniu na Ilha do Cardoso para criar a SOS. Porque o governador Montoro estava indo assinar um convênio com o governo do Paraná, para fazer gestões conjuntas naquela região ali do Lagamar, e na volta ele parou para nos visitar na Ilha do Cardoso e desceu. A gente falou algumas coisas, pegou o gancho e falou: “Governador, aproveitando que o senhor está aqui, a gente está fundando a SOS também, a gente queria pedir para o senhor que criasse uma Secretaria do Meio Ambiente em São Paulo”.
P/1 – Interessante.
R – Ele criou, e o primeiro secretário foi o José Pedro, que era membro do Conselho da SOS.
P/1 – E como era a atuação da SOS nesse nascimento dela? A SOS já nasceu com um plano?
R – Acho que provavelmente a primeira coisa que a gente fez foi fazer um plano de ação, mas basicamente era divulgar a SOS, divulgar a Mata Atlântica, “SOS Pró-Mata Atlântica”, “A Mata Atlântica está morrendo”. A primeira campanha foi colocar a Mata Atlântica no ar. Você trabalha por um ecossistema, tem associações de defesas dos manguezais, hoje em dia você tem movimentos de defesa de ecossistemas, mas eu acho que foi interessante esse recorte, Fundação SOS Mata Atlântica. Ela partiu mesmo desse princípio, “vamos colocar a Mata Atlântica no mapa, e vamos colocar o conceito de Mata Atlântica na cabeça das pessoas”. Então ela começou divulgando isso, ela tinha como área núcleo, área meta, a região do Lagamar da região de Cananéia, da Ilha do Cardoso. Ela teve alguns projetos lá, hoje em dia ela tem uma base avançada, que é a sede de Iguape. Mas aí ela acabou atuando a nível nacional e a nível muito de políticas públicas, porque ela tinha essa interlocução com o meio político, o meio executivo, que é uma coisa muito importante. Não adianta você ficar trabalhando só ali na praia, fazendo passeata para siri (risos), você tem que fazer essa passeata para quem te ouve, você tem que incomodar, é lá. Eu me lembro de uma imagem dessa época, até eu não fui, mas tinha o movimento das baleias. Esse movimento das baleias foi um movimento legal também, o Tamar agora está clareando um pouco as ideias. O Tamar também começou como uma pequena ONG, hoje em dia ele já está bem dentro do Ibama, tem uma característica já bem semi-governamental. Mas eles levaram uma baleia do tamanho do mundo, inflável, e pegaram aquela oca do Congresso e botaram a baleia lá. Essa época era legal, os caras vinham com um monte de peixe, lembra? Teve uma vez que os caras trouxeram peixe podre da represa, jogaram na beira da Assembléia, essa época foi uma época divertida, hoje em dia tem menos coisa assim.
P/2 – Menos criativo (risos).
R – Menos criativo. A atuação da SOS foi essa, ela trabalhou nessa questão do mapeamento, acho que foi a questão mais importante.
P/1 – E publicamente, como que ela era vista na época da formação, pelo público em geral?
R – Estava começando a ver, as pessoas viram. Tanto que fizeram uma pesquisa recentemente, não sei se foi em um meio especializado, mas foi em um meio pelo menos de estudantes, perguntando qual instituição mais aplicava dinheiro na defesa da biodiversidade no Brasil. Deu SOS Mata Atlântica. Embora a SOS não tenha tantos projetos pontuais e locais, como foi o projeto que eu coordenei pela SOS, mas ela criou uma imagem muito importante de seriedade em relação à conservação da Mata Atlântica como um todo. Então, se tem um meio científico que muitas vezes critica a SOS porque ela não vai tão profundamente, porque ela não atua tão profundamente em cada questão, tem a opinião pública que vê na SOS uma entidade idônea, uma entidade séria, e que é muito importante. Porque com isso o que ela está fazendo? Ela está catalisando projetos, fazendo trabalho com ONGs menores e conseguindo levantar grandes montantes de recurso para apoiar as iniciativas locais. Mas não ela, iniciativas locais, o que é um caminho muito interessante, apoiar pequenas ONGs que estão justamente trabalhando...
P/2 – Na base.
R – Na base. É um trabalho importante. Na verdade, hoje em dia ela tem esses projetos das RPPNs [Reserva Particular do Patrimônio Natural] que não é exatamente isso, mas é assim: apoiar pequenos projetos. Não é ela ir fazer, é ela apoiar e articular, porque ela tem esse canal de articulação, isso é muito importante.
P/1 – Você disse que você atuou em um projeto específico. Conta para a gente qual era esse projeto, como foi essa experiência, em que ano ele aconteceu.
R – Há muito tempo, desde o começo, desde a época de 90, desde a época da Eco-92, eu propus para a SOS um projeto que era ali na região de Paraty, na APA de Cairuçu, que pega uma terça parte ao sul do município de Paraty, pega todas as ilhas de Paraty e pega toda uma área lá de Paraty, que envolve a Trindade, que envolve o Sono, Paraty-Mirim, Saco do Mamanguá, toda essa região. E aí, depois de muitos anos, a gente acabou fazendo um convênio com o condomínio Laranjeiras, que justamente foi aquele que eu briguei lá para não existir. Fizemos o convênio com o condomínio Laranjeiras, com o Ibama, com o Instituto Estadual de Florestas do Rio de Janeiro e com a Prefeitura de Paraty, para fazer o Plano de Manejo dessa Unidade de Conservação, da APA do Cairuçu. Foi um processo difícil, foi um processo dolorido, penoso, desgastante, mas foi um processo muito legal, porque a gente resolveu fazer esse Plano de Manejo de uma forma bastante participativa, e para conseguir a participação das pessoas a gente trabalhou uma série de propostas de mobilização. Chegava para o cara e falava: “Escuta, vamos fazer uma reunião de Plano de Manejo”. “O que é isso”? Até você explicar já... Então a gente trabalhou com capacitação de professores, trabalhou com coleta seletiva de lixo, trabalhou com capacitação de monitores de ecoturismo, trabalhou com oficinas de ervas medicinais para fazer remédios, capacitação de lideranças, monitoramento da qualidade da água. A gente trabalhou com professores, com ONGs, com lideranças, com os governantes, a gente fez um trabalho contínuo de mobilização, para poder ter uma participação maior no trabalho de planejamento. E a gente começou em 1999 a trabalhar em campo. Entregamos o plano de manejo em 2002 e aí o Ibama demorou muito para analisar e para opinar, mas agora a gente está entregando a versão final, antes do fim do ano, se Deus quiser. E foi um trabalho muito gratificante, porque mexeu lá com a cabeça do povo e junto com outras iniciativas que também estavam acontecendo, que estão continuando a acontecer em Paraty. Você percebe que aos poucos você vai vendendo a ideia de que o desenvolvimento sustentável é mais vantajoso. É difícil, é bem difícil. A proposta é sempre essa, porque mesmo o planejamento, você ter mais uma lei, mais um não sei quê, a parte do processo de fazer isso tudo é muito importante. O melhor resultado que a gente teve nesse trabalho foi que o próprio condomínio Laranjeiras, que tinha uma relação muito difícil com as comunidades do entorno, passou a dar importância, porque eles perceberam que se eles não se ligassem na questão ambiental e socioambiental no entorno, eles iam acabar sendo engolidos por todos os problemas que pudessem ocorrer em volta deles. Então eles se envolveram no projeto sim, participaram, depois eles chegaram à conclusão de que eles é que queriam tocar essa proposta de trabalhar com as comunidades, de incentivar e estimular o desenvolvimento sustentável. a conscientização das populações, a organização do turismo, uma série de coisas, e criaram uma ONG com esse objetivo, que é a Associação Cairuçu. No final do processo a gente montou um Centro de Informações ali na entrada da estrada que vai para Trindade e Laranjeiras, e esse Centro de Informações passou a ser a sede da ONG, que agora continua com financiamento contínuo dos moradores de Laranjeiras. Cada um dá uma quantidade por mês, como dava para nós, para a SOS, depois eles chegaram à conclusão que eles queriam ter a ONG deles para fazer isso. E isso é um processo muito importante, porque é um grupo de pessoas com nível socioeconômico alto, que tem dinheiro, e eles estão brigando. Tudo bem, eles estão brigando pela qualidade ambiental, pela tranquilidade deles, mas com isso eles estão assumindo uma responsabilidade social de trabalhar as comunidades do entorno. Então, digamos que o empreendimento que teve um histórico de ocupação terrível e que até hoje paga por isso, porque é até difícil, as pessoas sempre associam muito essa questão de Laranjeiras como uma questão: “Ah, vão querer comprar minha terra e tudo”. Mas aos poucos eles estão trabalhando e se eles trabalharem direito, por bastante tempo, eles vão mudar essa visão. Mas isso eu acho que é o modelo para ser seguido, você pega um empreendimento como esse empreendimento do Sauípe, que é um negócio absurdo, e o que eles fizeram? Os caras estão jogando todo o esgoto no mangue onde pescam os caiçaras, fecharam a praia. Isso são notícias que eu tenho, nunca fui lá, mas tem que inverter isso, tem que mudar. “Está bom, você vai instalar um empreendimento?” Hoje em dia não sou contra, não dá para você ser contra a geração de emprego e o empreendimento você tem condição de controlar mais. Mas você pega a Trindade hoje em dia, retalharam muitos terrenos. Tem áreas ali, os mais tradicionais, os caiçaras de mais fibra não venderam os seus terrenos, mas muitos foram picando, e quando você começa a picar estraga a qualidade ambiental e urbana de qualquer lugar, não há lugar que resista. Nesse ponto você tem que ter um equilíbrio, se você vai fazer algum tipo de empreendimento de turismo ou qualquer coisa dessas hoje em dia, é até propaganda para esse empreendimento, você tem que se associar, é muito correto. Você cria uma fundação, você cria uma associação para trabalhar a questão ambiental junto. Inclusive hoje em dia esses empreendimentos em volta de São Paulo que são loteamentos, condomínios, ele monta isso e ao mesmo tempo ele monta uma associação de moradores já com o viés ambiental e organiza isso. Aí esse povo que vai morar, que tem uma condição socioeconômica, que pode gastar um pouquinho de dinheiro, quer dizer, se cada um der um pouquinho de dinheiro por mês, você cria um fundo de caixa para você manter a qualidade ambiental, para você fazer a capacitação. São modelos que vão se criando, de alternativas de gestão ambiental, porque, infelizmente, o governo sozinho, ele não consegue resolver. Nós da Secretaria do Meio Ambiente temos oitocentos mil hectares de Unidades de Conservação, temos um efetivo em torno de mil e duzentos funcionários que não consegue fiscalizar, não consegue garantir a integridade física dessa terra. É claro que a gente tem uma polícia ambiental para apoiar, mas assim, para você cuidar de oitocentos mil hectares você precisa de um exército de gente e esse exército de gente não está mais disponível, o governo não disponibiliza mais. Então se você não tiver ONGs, parcerias, empresas, universidades, se não tiver gente trabalhando, você tem que montar um esquema. É um tripezinho ali, governo, ONG, iniciativa privada, tem que trabalhar em conjunto. Então a gente tem até que se livrar dos preconceitos, tanto em relação à iniciativa privada quanto em relação ao governo, quanto às próprias ONGs também não terem preconceito de buscar recurso, tem que usar todos os recursos disponíveis para garantir um bom projeto, então...
P/1 – E Adriana, a Fundação SOS Mata Atlântica, como você mesmo disse, ela teve e tem um foco muito grande na questão de, não é marketing, mas de conscientizar a população através da mídia disponível.
R – Perfeito.
P/1 – Dessas campanhas, que foram várias, e uma mais chamativa que a outra, qual a que mais te marcou? Na sua opinião, qual que mais te impactou? Teve uma, você ainda lembra dela?
R – A primeira, “Estão tirando o verde da nossa terra”.
P/1 – Essa foi a mais forte para você?
R – Andou tendo na televisão algumas coisas bem interessantes. Mas é que essa campanha foi o começo, foi um ‘jingle’, “Estão tirando o verde da nossa terra”, muito forte e muito bom, eu acho que foi o que mais marcou.
P/1 – E dos projetos da SOS, além claro do que você está inserida, qual outro, ou outros projetos, que você sempre usa como referência quando vai falar sobre a Mata Atlântica ou então lembra da SOS?
R – É o Atlas. Porque o Atlas é o monitoramento da Mata Atlântica, então embora tenha mil discussões sobre a metodologia, se é mais para cá, mais para lá, é uma informação que é abrangente e que tem um efeito sobre todo tipo de público, sobre o governante, sobre cientistas e sobre o público em geral. É o Atlas, com certeza.
P/1 – O Atlas é uma coisa abrangente?
R – Eu acho que é o projeto mais marcante. Agora tem esse projeto do Núcleo Tietê, que é um projeto interessante de educação ambiental, de um monte de coisas que também é bem marcante. A questão da água e a metodologia de análise, de monitoramento da água, que é uma coisa muito grande, todos os trabalhos... Esse trabalho do voluntariado também é uma coisa importante. Eu acho que é muito importante que a SOS tenha algum trabalho em algum lugar específico. Então, esse período que a gente teve esse trabalho lá em Paraty foi muito interessante, porque a gente pôde trazer recursos da SOS como um todo e aplicar lá. E como a SOS tem uma entrada, ela é uma ONG conhecida, as pessoas também gostam de se sentir participando de um projeto, as pessoas que moram na Mata Atlântica, entendeu? Então assim, eu acho que a SOS está muito voltada para o público urbano, ela está totalmente dirigida para o público urbano, que é um segmento importante, porque o público urbano que manda no Brasil, digamos, que está lá nos canais. O que a gente fazia nos nossos projetos lá embaixo, nossas campanhas todas? A gente distribuía camiseta para as pessoas que estavam participando do projeto. Então era: “Vamos plantar muda?” Então quem plantava muda, muitas pessoas ganhavam camiseta. Coleta seletiva de lixo, os monitores ganhavam camiseta. Pessoas que ajudavam só, a gente nunca deu uma camiseta: “Ah, toma”. A gente dava camiseta só para quem trabalhava com a gente ou para quem realmente contribuía. Quando chegou em 2002, no fim do ano, Paraty é uma cidade pequena, tem trinta mil habitantes, toda a hora você via alguém passando com uma camiseta da SOS, e a gente, na frente era SOS e atrás era o projeto. Era curso de guias, era plantio de mudas, era coleta seletiva, era muito legal. Uma pessoa que vai para lá na época do projeto: “Fui lá, vi um monte de gente com camiseta”. É uma coisa que é “marketing”? É “marketing”, mas é um negócio que o cara se reconhece, ele está com a camiseta. E você saber que não distribuiu camiseta que nem em época de eleição, que você só distribuiu para quem participou de alguma forma, e de repente você vê as pessoas passando na rua com a camiseta, para mim era extremamente gratificante. E para a pessoa também, ela se orgulha de estar vestindo aquela camiseta, é muito mais importante para uma pessoa que está lá na ponta saber que ela está conectada com uma ONG de projeção nacional. Muitas pessoas têm orgulho de estar participando de uma ação da SOS. Sempre tem aquelas que vão falar: “Nhe, nhe, nhe, vocês estão fazendo propaganda em cima de mim”. Sempre tem os chatos, mas tem aquelas pessoas que têm esse orgulho. Hoje em dia, por que a igreja evangélica tem tanto sucesso? Porque as pessoas vão lá, berram, gritam, elas dão uma contribuição e elas são reconhecidas conforme o tamanho da contribuição, parece que elas ganham um envelope, tem um monte de coisa que é assim. É o reconhecimento social da pessoa dentro da igreja, então ela vai lá e se sente parte de uma coisa, e se ela vai contribuindo, vai aumentando a contribuição... O pessoal fala muito isso, que essas igrejas chamam muito para o desenvolvimento material da vida da pessoa e talvez menos para o espiritual, mas o fato é que a pessoa começa a se sentir importante. Às vezes você está no meio da roça, no meio do mato, e vê um cara de terno impecável, de camisa branca de punho, com uma calça azul marinho, impecável, indo para a missa. Eu não vou questionar, a questão aqui não é questionar se o pastor ganha dinheiro, se a igreja é rica, o quanto que vai para onde, mas esse cara está ali se sentindo um cidadão e um membro de uma comunidade. Essa parte da cidadania é muito importante. E para você não jogar um papel no chão, para você não jogar uma bituca, para você não comprar um animal de um traficante de animais, você precisa ter essa sensação de cidadania muito grande. A campanha que a gente fez de coleta seletiva lá em Trindade, que é um lugar que recebe dez mil pessoas em um feriado, a gente fez essa campanha com lixeira junto com os comerciantes, com os alunos, com as crianças, com todo mundo. Se você está sentado tomando a sua cervejinha e você vê um cara lá na beira do mar andar até a lixeira para jogar uma bituca, isso é uma coisa que pode não parecer tão importante, mas aí você está vendo o reflexo, o resultado do seu trabalho. Porque se a pessoa encontra o lugar limpo, ela mantém o lugar limpo, e a noção de defesa do meio ambiente, ela tem que começar no cotidiano. Se você só vê o macaco e a Mata Atlântica lá longe, você não incorpora isso no seu dia-a-dia. Então, quando a gente buscou trabalhar com as comunidades a questão do lixo e a questão da água, da análise, foi porque a gente precisa trazer esse conceito de meio ambiente, que meio ambiente não é lá, meio ambiente é aqui, é agora. Então eu acho que é importante esse trabalho de comunicação de massa, é fundamental, é importante você trabalhar com o público urbano, mas é muito importante trabalhar com o cara local, porque é ele que está lá no dia-a-dia, é ele que está lá, e ele que vai te levar se você for visitar o lugar, e ele vai te levar pra caçar, ou ele vai te levar para ver um bicho pulando de galho em galho. E para ele entender que o bicho pulando de galho em galho vale muito mais do que o bicho caçado, precisa ter um trabalho e ele precisa estar gratificado.
P/1 – E, aproveitando esse gancho, Adriana, você acha que existem alguns pontos, além desse que você falou, que necessitam de uma reformulação dentro da SOS?
R – Bom, eu acho que a SOS devia trabalhar mais com projetos mesmo. Então ela tem um monte de projetos, ela tem vários projetos, acontece que – eu acho que vocês vão ouvir mais pessoas falando isso – o potencial, o capital moral que a SOS tem, o nível de credibilidade que a SOS tem, ela deveria atuar com dez vezes o orçamento, com dez vezes mais gente, com dez vezes mais capacidade operacional do que ela opera, porque ela tem esse capital. Então não adianta ela ter só esse capital, ela tem que usar esse capital para alguma coisa. O capital dela é vender a Mata Atlântica, a importância da preservação da Mata Atlântica, tudo bem, isso ela já fez, isso ela mantém, mas agora tem que transformar esse capital na capacidade dela de captar recurso e de apoiar pequenas ONGs. Esse é um projeto que eu, lá embaixo, lá atrás, no começo da gestão da SOS, está lá formatadinho pela Adriana Matoso, “apoio à pequenas ONGs”, e ela de uma certa forma tem feito isso. Então, um exemplo interessante é esse da Aliança da Conservação, onde eles conseguiram uma quantidade grande de recursos para as RPPNs. É legal porque estão repassando recursos. Agora, eu que trabalho para o Estado de São Paulo na Secretaria do Meio Ambiente, me ressinto muito do pouco envolvimento que a SOS tem com as Unidades de Conservação e com a gestão das Unidades de Conservação como um todo, porque quando você fala: “Ai, a Mata Atlântica, a Mata Atlântica, a Mata Atlântica!” Vem alguém e fala: “Bom, mas você tem um ‘x’ de área protegida, você tem ‘x’ por cento da Mata Atlântica protegida por Parques e Reservas”. Só que esses Parques e Reservas não estão protegidos e eles só vão ser mais protegidos, eles só vão ter mais recurso do governo se houver alguém gritando por elas, por essas Unidades de Conservação. E hoje em dia não tem ninguém gritando pelas Unidades, só nós berrando. Então no momento a SOS, com toda a capacidade que ela tem de mobilização, ela precisava trabalhar mais conosco no sentido de ter um canal mais fluente mesmo, entre a sociedade e as Unidades de Conservação, ter um trabalho mais... Agora, é um bom momento, porque quem está na direção do Instituto Florestal é uma pessoa que já foi da SOS, eu também já, quer dizer, a gente tem que fazer. Claro que é muito mais difícil você trabalhar com projetos, os resultados, quer dizer, você põe uma campanha na mídia, essa campanha foi na mídia, quantas pessoas ela atingiu? “Ah, dez milhões, cinco milhões, mil milhões”. E o “clickarvore”, por exemplo, que é um projeto muito legal, muito interessante, e teve uma divulgação absurda. Você fala com as pessoas, durante muito tempo ela esteve nas páginas da Veja, tinha lá, “clickarvore”, não sei o quê, não sei o quê, você sabe o que você fala para a pessoa: “Você já ouviu falar do “clickarvore”?” “Não.” Então, embora tenha sido uma campanha maciça – agora lembrei dessa campanha, o “clickarvore” – uma campanha maciça de mídia, ela não não conseguiu subir à tona como a campanha de defesa pela Juréia, como a campanha de defesa por algum lugar e tal. Claro, o campo de “marketing” de comunicação de massa é enorme, continue fazendo isso, porém eu acho que a SOS tem que usar o capital dela para multiplicar por dez ou por cem o orçamento dela, a equipe dela. Por que o poder de fogo dela é muito grande, mas está com muito pouca perna em campo.
P/1 – E Adriana, para você, quais são os principais problemas enfrentados especificamente pela Mata Atlântica hoje?
R – É a expansão urbana. A expansão urbana, porque a expansão agropecuária, ela foi lá para a Amazônia, está um pouco para lá. Então nós temos... pelo menos aqui na nossa região o grande problema é a expansão urbana, em cima do mangue, em cima da restinga, em cima da franja da serra, esse é o principal problema, sem dúvida, hoje.
P/1 – Enfrentado pela Mata Atlântica hoje, né?
R – Outra questão séria é a questão do palmito, o corte de palmito Jussara, o palmito nativo da Mata Atlântica, é muito intenso e a gente não consegue combater, e ele é cada vez mais profissional. Eu não sei nem como que tem palmito ainda para cortar no mato, porque realmente a atuação dos palmiteiros é muito intensa. Então é um problema grave, porque o palmiteiro está no mato, ele está caçando também. Nós fizemos uma avaliação da efetividade de manejo das Unidades de Conservação de São Paulo da região da Mata Atlântica e pena que eu não estou com esse número agora, mas realmente essas questões ligadas à abertura de estradas, expansão urbana, ocupação do solo, com atividades não compatíveis...
P/1 – Quais são as perspectivas a médio e longo prazo para a Mata Atlântica, em sua opinião?
R – Eu acho que a única forma de a gente conseguir manter a Mata Atlântica é você trabalhar a questão do desenvolvimento sustentável. Quer dizer, você trabalhar com atividades no entorno das Unidades de Conservação, que formem uma faixa de proteção. Se você tem lá um parque, o que você prefere ter na beira do seu parque, uma cidade, uma fazenda de gado ou um hotel de turismo, um empreendimento sustentável de turismo? Você pode ter também um sítio de lazer, muitas vezes porque as pessoas estão indo agora comprar terra muitas vezes com essa mentalidade de preservar. Não é todo mundo, tem gente que vai para comprar uma terra e quer ter um gado, então derruba lá a Mata Atlântica para pôr lá três cabecinhas de gado, porém muita gente compra para proteger, mas vai lá e constrói em cima de um lugar que não pode, quer dizer, faz uma estrada e abre caminho para os palmiteiros, para os caçadores. Então, por um lado você tem que, de preferência ter a propriedade da terra em volta dos parques, na mão de pessoas que não vão destruir, segurar a expansão urbana. Mas você precisa criar um cinturão ali de atividades sustentáveis, que sejam o plantio de palmito, o plantio de pupunha, cultivo de plantas ornamentais, cultivo de plantas que sejam compatíveis com a Mata Atlântica. Você tem que ter atividades de turismo, de ecoturismo, de pesquisa, de treinamento, de capacitação para a Mata Atlântica. Essas atividades são as atividades compatíveis, entendeu? Quando você tem um bairro se expandindo, quer dizer, no caso do Parque da Serra do Mar, a beirada dele, que está voltada para o litoral, ela está sujeita à expansão urbana mesmo, porque a terra na faixa litorânea vai ficando mais cara, os caras vão invadindo. Você pega essa região de São Sebastião, é uma das regiões que está sendo mais pressionada, porque o cara vai trabalhar em uma obra de uma mansão, encontra emprego e chama a família. Isso tem a Vila Baiana, a Vila Pernambuco, tem a Vila não sei o quê, que são pessoas que vieram para trabalhar na Rio-Santos, na construção dos primeiros condomínios, e foram chamando a família para vir trabalhar aqui, agora essas pessoas, onde é que elas vão morar? Elas vão invadir uma areazinha na beira da serra, no pé da serra, para construir e aí elas vão entrando. E conforme elas vão entrando já vem um turista doidão, malucão, durão, comprar a posse dela: “Ah, comprei um sítio lá, só chega à pé!” Então esse cara, que inicialmente abriu a posse para morar, ele já percebe que ele abre posse aqui, ali, daqui a pouco ele vai estar vendendo para um cara que vai fazer turismo, então aí você gera um mecanismo. Então estou falando, o turismo é bom, claro, se o cara tem uma propriedade grande em volta do parque que ele mantém, ele tem lá uma casa, um hotel, uma pousadinha, mas ele tem uma área grande. Agora, quando você começa a picar as áreas da mata para poder ter sítios de lazer que vão se transformando em casas na beira da mata, aí é um pouco mais complicado.
P/1 – Como você enxerga a fundação SOS Mata Atlântica hoje, Adriana?
R – Eu estou até um pouco ignorante, mas eu sei que tem um projeto grande, que é a questão da qualidade das águas, que é esse projeto, eu não sei se ainda é o Núcleo Pró-Tietê, mas é um projeto importantíssimo, trabalhando com bairros de periferia em volta da Billings também, isso é muito importante. Tem o Atlas, que espero que continue, que é muito importante. Tem esse projeto que está sendo desenvolvido lá na região do Guarujá, com o condomínio, que é uma coisa que é um modelo, que eu acho que a SOS tem que manter esse trabalho. Essas parcerias com os condomínios, com empreendimentos de lazer na Mata Atlântica, que se associem e que busquem ter um trabalho de responsabilidade social, de investimento no seu entorno. Não estou dizendo que eu sou a favor: “Então vamos encher de ‘resorts’, vamos encher de empreendimento, porque eles vão investir na responsabilidade social”, mas é um binômio interessante você ter uma atividade econômica que você tem que ter, se essa atividade econômica resulta em um trabalho de responsabilidade social, mobilização, isso é muito importante. Tem a base de Iguape, que faz um trabalho de educação ambiental, que tem lá um centro de informações e tal, que eu acho que é muito importante. Não sei muito bem exatamente tudo que eles fazem, mas é um trabalho que, quando você recebe aluno para falar da Mata Atlântica, lá tem uma série de maquetes para fazer campanhas, isso é muito importante. Tem os viveiros, tem um projeto de palmito que a SOS está iniciando, de plantar palmito no Vale do Ribeira, de apoiar essa questão do palmito, de pagar o cara para ele plantar palmito e viver disso. Então, em vez dele viver de tirar palmito, você consegue recurso para dar um salário mínimo para ele por mês, para ele plantar palmito. Mesmo que ele continue tirando palmito, ele vai desenvolver uma consciência e ele vai plantar, pelo menos ele vai estar repondo o que está tirando. É fundamental a questão do palmito. Para quem não sabe, o palmito alimenta setenta e uma espécies de animais da Mata Atlântica, desde o jacu até a cotia, os roedores, os pássaros, eles se utilizam da semente do palmito para comer e é fundamental, é uma fruta importante e que tinha com muita abundância. Se você vai lá ao Parque Nacional da Serra dos Órgãos, em Teresópolis, ou mesmo em Itatiaia, bem próximo à sede, muito próximo à sede, você vê como a densidade do palmito na Mata Atlântica é altíssima. Então, hoje a gente vai andar e não vê, como a gente não vê muito bicho também, por quê? Porque é muito caçado, então se você for fazer uma propaganda agora: se você vai no Parque Estadual da Cantareira aqui em São Paulo, você vê mais animais silvestres do que se você passar uma semana andando na Mata Atlântica em São Paulo, porque aqui está mais protegido. Então, se você tiver um amigo que quer ver um macaco, garantido, você vai lá porque, lá ele está menos ameaçado, no miolo do Parque. Agora você pergunta: “Qual é o maior problema do Parque Estadual da Cantareira, que tem oito mil hectares?” É a expansão urbana, mas mesmo assim, quando você tem um trabalho de fato, de proteção de uma área, aí você consegue ver bicho, coisa que na Mata Atlântica em geral você não vê. Você vê um Tiê Sangue, você ouve, você não vê bicho, você só vê bicho quando a área realmente é protegida, aí você vê. Tem parques onde você vai, Parque do Morro do Diabo, por exemplo, que é uma área bastante protegida, aí você vê fauna. Nós, digamos que como público normal, a gente só vê bicho na estrada, muitas vezes atropelado.
P/1 – Exato!
R – Mas vê, ainda vê, quer dizer, você vê tamanduá, você vê preguiça e...
P/1 – Por aí vai.
R - ...por aí vai.
P/1 – E como você enxerga a Fundação SOS Mata Atlântica daqui a dez anos?
R – Eu espero que ela tenha centuplicado o orçamento dela, que ela tenha uma filial em cada estado do Brasil. Não que eu ache que a SOS deve se dominar, mas a questão é essa, quando você vai buscar um financiamento, eu ouvi uma pessoa falando assim, quando a gente estava fazendo um projeto: “Vocês não querem ajudar a gente financeiramente, vocês querem pôr dinheiro no nosso projeto?” Ela virou para mim e falou assim: “Bom, pôr dinheiro na SOS Mata Atlântica é como colocar dinheiro no Bank Of América”. Porque é um – eu não posso falar de qualquer banco, tem aí! – mas então o que a pessoa quis dizer com isso? Ela quis dizer que colocar dinheiro em um projeto da Mata Atlântica é ganhar esse dinheiro, eu não vou perder, é garantia. Então muitas vezes uma ONG pequena, pouco estruturada, com um projeto muito bom, não consegue um financiamento, não consegue um apoio financeiro, e nem tem estrutura administrativa, não sabe, não consegue preencher uma nota fiscal. Os problemas contábeis e administrativos que se tem para tocar um projeto, as pessoas que estão lá fazendo e defendendo o sapo cururu, não sabem fazer isso. Então eu acho que seria muito importante que a SOS tivesse uma linha muito ampla de fomento, como ela está fazendo com as RPPNs, captar um recurso grande para apoiar pequenas ONGs.
P/1 – Para finalizar, Adriana, eu queria que você dissesse o que significa a Fundação SOS Mata Atlântica para você? É uma coisa mais de realmente significação pessoal?
R – Claro. Eu estou muito ligada à SOS Mata Atlântica, a SOS Mata Atlântica faz parte da minha vida. Eu estou, embora agora, por exemplo, estou terminando um trabalho para a SOS, eu não sou mais do Conselho, mas em Paraty as pessoas me vêem como SOS Mata Atlântica. A SOS Mata Atlântica marca, ela realmente marca. É uma boa marca e ela marca a vida das pessoas que fazem parte da SOS e acho que ela marca também as pessoas que se envolvem com os projetos que ela faz, que ela está envolvida.
P/1 – Adriana, tem alguma coisa que nós não tenhamos perguntado que você gostaria de deixar registrado? Algum ponto que a gente não tenha levantado, que não tenha abordado de uma maneira mais pontual e que você gostaria de falar?
R – A SOS está naquele dilema do capitalismo, ou ela cresce ou ela morre. Ela tem que crescer mais, muito mais e ela não pode desperdiçar esse capital que ela tem, seria um pecado, ela não pode encolher, ela só pode crescer e muito. Porque ela tem uma importância histórica, social, ambiental, muito grande, ela não pode perder essa. às vezes a gente, quando está lá dentro, a gente está trabalhando e fazendo as coisas, não percebe às vezes que ela tem que assumir uma dimensão maior, não tem como explicar isso, como isso se daria, mas ela tem que crescer muito.
P/2 – Está bom.
P/1 – Então, Adriana, muito obrigado pelo seu depoimento.
R – Falou (risos).Recolher