Projeto Um Século de Desenvolvimento Industrial no Brasil
100 Anos da White Martins
Depoimento de Vera Regina Gaensly Cordeiro
Entrevistada por Maurício Rodrigues e Isla Nakano
São Paulo, 02 de dezembro de 2011
Realização Museu da Pessoa
Código: WM_HV068
Transcrito por Iara Gobbo/ MW Transcrições (Mariana Wolff)
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa, queria agradecer a sua vinda, sua participação nesse projeto dos cem anos da industrialização e da White Martins e, para gente começar, eu queria que você me dissesse o seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Tá. Local de nascimento?
P/1 – Isso.
R – Meu nome completo é Vera Regina Gaensly Cordeiro e eu nasci no Rio de Janeiro em 21 de julho de 1950.
P/1 – Certo. E você pode me dizer o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai é Horst Ewaldo Gaensly e o da minha mãe é Cordelia Carmem de Novaes Gaensly.
P/1 – E qual que é a origem da sua família?
R – Bem, minha mãe é bem carioca. A família nasceu no Rio de Janeiro e alguma parte no Nordeste do país e a família de origem do meu pai veio da Suíça, de Frauenfeld, perto de Zurich e eles se conheceram. Meu pai era curitibano, né, mas o avô dele falava alemão até cinco anos, dez anos de idade e se encontram no Brasil, no Rio de Janeiro e meu pai se casou com minha mãe. E essa mistura de carioca com alemão eu acho que é um pouco da história do que eu sou.
P/1 – Você pode contar um pouco como que foi a história de como se conheceram seus pais?
R – É, foi muito bonita a história. Meu pai, ele tinha feito naquela época mestrado, quer dizer, meu pai nasceu em 1920, morreu em 2002 e ele estudou nos Estados Unidos, fez mestrado. Ele é engenheiro e fez mestrado em indústria têxtil. Foi trabalhar na Fábrica Bangu que é uma fábrica de tecidos conhecida no Brasil, que hoje em dia virou shopping, porque tudo nesse mundo vira shopping, acaba em shopping, acaba em pizza, né? Mas meu pai trabalhava na época que tinha quatro mil empregados, a fábrica Bangu Tecidos. A Fábrica Bangu era conhecida do mundo e ele era o mandachuva, o diretor dessa... e acho que ele era a alma da fábrica, tanto é que, quando ele saiu, a fábrica foi vendida e acabou virando um shopping center. Bom, minha mãe foi um dia com a mãe dela comprar tecidos em Bangu e conheceu meu pai. Se apaixonaram imediatamente e aí eu nasci no Rio, né, na cidade do Rio de Janeiro, mas fui morar na Zona Oeste, bem pequenininha... bebê. Passei minha infância em Bangu. Acho que foi uma grande... eu acho que tudo que eu trago ainda de criança dentro de mim, de alegria, vem dessa infância em Bangu assim, soltando pipa, brincando com balão, sabe? Uma vida muito, muito simples, mas hoje em dia eu vejo muito rica.
P/1 – Você já começou a falar, queria que você falasse um pouco mais sobre esse lugar, da sua infância em Bangu e como que era a casa onde você morava.
R – Foi muito interessante. É como se meu destino tivesse traçado desde aquela época. Histórias incríveis, né? Porque eu vivia numa casa. Meu pai era um engenheiro, depois ele virou diretor da fábrica, depois ele virou diretor geral da fábrica, e eu morava numa casa que tinha um guarda que circundava a casa para tomar conta, tinha mangueiras e meu pai e minha mãe fizeram uma casinha de boneca para eu brincar, mas uma casinha real, que você entrava dentro, de... não era tijolo, era um outro material, mas tinha varanda a casinha, era cor-de-rosa, no meio de um quintal cheio de mangueiras. E essa história é importante porque eu me lembro que, quando eu ganhei a casinha, a expectativa era tão grande que eu passasse o dia inteiro na casinha e eu preferia, para falar a verdade, subir a mangueira e ficar brincando. Eu escrevia poesia, na mangueira, mas as pessoas queriam que eu brincasse naquela casa. Então eu limpava a casa toda, arrumava, botava plantas, trancava a casa e ia para mangueira escrever poesia, porque eu acho que eu ficava meio cansada do meio estereótipo que me colocaram. De querer ficar brincando. É claro que a casinha me fascinava, mas prometiam que iam trazer um fogão elétrico. O fogão nunca aparecia, então eu ficava decepcionada e, na realidade, eu acho que meus pais não tinham dinheiro para comprar brinquedos mobiliários para a casa. Naquela época, no início da carreira do papai, fizeram a casa, mas a sensação que eu tinha é... tinha até horta atrás da casinha, que era a horta da casinha... mas tinha uma mangueira de verdade naquela casa, então... Na casa real onde eu morava, né? E eu gostava muito de escrever. Então eu passava o dia em cima da minha mãe, ela falava: “Mas por que eu dei essa casa pra você?”. Que eu subia na mangueira e me mandavam comida numa cestinha, eu passava o dia na mangueira, escrevia textos de poesia e descia, ficava um bocadinho na casa que me deram de presente, fechava a casinha e ia dormir. Mas, assim... eu vivia circundada de muita pobreza. Vocês imaginem que em 1950 em Bangu, que era um subúrbio, apesar de todo mundo.... a vida da comunidade girar em torno da fábrica, eu era uma ilha. Vivia numa ilha, numa casa, tinha babá, cinco empregadas na casa e a minha empregada ficava furiosa comigo porque as minhas amigas, como tinham poucas pessoas da mesma classe social que eu, eram três engenheiros naquela época e as outras pessoas não tinham filhos, filhos de outras idades. Então pegavam pessoas simples que moravam em volta para brincar comigo e quando me dava conta de que eu tinha aquela quantidade de brinquedos enormes e as outras pessoas não tinham nada, eu começava a dar e a minha empregada que gostava de brincar com os meus brinquedos, a minha babá, um dia ficou desesperada. A minha mãe conta que ela disse “Então você quer dar, então vai dar tudo de uma vez” e espalhou meus brinquedos para todo mundo e mamãe disse que eu não tive reação, porque eu ganhava mais... não fazia sentido ter aqueles brinquedos inteiros e era assim. Minha mãe era preocupada com a qualidade de escola em Bangu e, nos anos cinquenta, ela foi para Suíça pesquisar como é que se ensinava, então ela trouxe para Bangu a vanguarda da Suíça. Então eu tive uma sorte incrível porque vieram professores que depois fundaram escolas modernas e de ponta, vanguarda na época, no Rio de Janeiro, mas que vieram ser meus professores. Por exemplo, a professora, a diretora do Colégio Souza Leão e depois a professora do Colégio Espaço Educação, que são colégios famosos no Rio, pegaram o trem e começaram a criar essa escola com moldes suíços em Bangu. Então era uma escola experimental que a gente não estava só focada num aprendizado, mas nos sentimentos. Então, a gente botava venda nos olhos, eu me lembro que começamos a sentir a textura do metal, de tecido, nós cantávamos cantigas de moda, cantigas de criança daquela época, nós fazíamos festas, bonecas de pano, costurávamos bonecas de pano, e fazíamos teatro. Eu me lembro que tinha “Pluft e Plaft, os Fantasminhas”, que “Pluft, o Fantasminha” da Maria Clara Machado, e como queriam duas crianças e eu queria ser Pluft e outra também queria, então criamos os “Pluft e Plaft, os Fantasminhas”. Então tinha uma riqueza. Eu tinha dois irmãos, tenho até hoje, dois irmãos homens e na época de São João a gente fazia balões, e não era proibido porque não tinha muitas casas, então não pegava fogo em nada. Então a gente fazia balão do tamanho dessa sala com lanterninhas, então a gente passava junho fazendo balão e meu irmão fazia, soltava pipa. O meu papel era quebrar lâmpadas para fazer cerol. Então passava o dia inteiro sapateando, quebrando lâmpada, para misturar com cola e passar numa linha porque uma pipa tinha que prender a outra e meu irmão falava, ele dizia assim: “Vou dibicar”, eu nunca esqueço, dibicar era soltar uma pipa para pegar uma pipa no ar e trazer a pipa. Eu achava um pouco selvagem para o meu gosto, mas ele mandava. Eu sou mais velha, mas ele dizia: “Você faz!”, então tudo bem e eu fazia. Era assim, uma vida cercada de natureza. Meus pais passaram assim, acho que quase um ano preparando essa casa, bendita casa cor-de-rosa que tinha uma arquitetura que agora vou voar no tempo. Quando eu fundei a Associação Saúde Criança, em 1991 – faz vinte anos agora –, em 1999, no parque, dentro do Parque Lage, fizeram uma casa que a arquitetura é igual à casa que eu tinha em Bangu. É cor-de-rosa, tem uma minivaranda, é exatamente a arquitetura da casa que eu tinha de boneca quando os meus pais me deram. E que fica dentro de um parque. A minha ficava dentro de um quintal e a sede da instituição fica dentro de um dos grandes parques do Rio de Janeiro que é o Parque Lage.
P/1 – Você falou um pouco dos seus irmãos. Eles eram mais novos. Qual é o nome deles?
R – É Roberto, eu sou Vera, né? Então, Roberto veio dois anos depois, eu sou dois anos mais velha que ele. Ele mora em São Paulo agora. Renato, que mora no Rio, que é dez anos mais moço. Então Renato, ele me chamava de mãe pequena. Porque quando ele nasceu, diz minha mãe, foi a única época que eu larguei os estudos... que eu largava minha bolsa, tinha aquelas mochilas, né, que antigamente você usava pesada e com aqueles livros todos. Antigamente ainda tinham livros e eu largava aquilo e saía correndo para abraçar ele porque eu fiquei enlouquecida quando ele nasceu. Era uma espécie de mãe, aquela criança na minha casa foi tudo. Foi uma coisa assim, me lembro que minha mãe disse que a gente reclamava muito, eu e o Roberto: “Queremos mais uma criança”. E, quando o Renato chegou, a gente cantava a música, eu me lembro de uma música que era assim: “Mais uma criança na casa chegou, pois seja bem vida, foi Deus quem mandou, pois seja bem vinda, foi Deus quem mandou”. Então o nascimento do Renato foi um... dois irmãos, um de oito e outro de dez anos que veio uma criança muito sensível, muito inteligente, muito amado.
P/1 – Vera, como que você descreveria os seus pais?
R – Como que eu me descreveria?
P/1 – Como você descreveria os seus pais? Como era cada um deles?
R – Ahhhh... Era uma combinação poderosa. Meu pai era assim, um pai muito bondoso. Eu sentia por trás daquele, um homem lindo, fisicamente lindo. Descendente de alemão, que ele era alto, olhos azuis e muito... ele era muito bonito. Ele era muito bonito. Minha mãe era linda também. Os dois. Até falei: “Iihhh meu Deus, nasceu um patinho feio desses dois, cara”. Desse casal maravilhoso tinha que nascer sei lá, Audrey Hepburn, não sei bem o que eu devia ser, mas eles eram considerados pela cidade do Rio de Janeiro, naquela época, um casal que chamava atenção. Casaram no Outeiro da Glória no Rio de Janeiro. O casamento foi filmado. Então eu vejo minha mãe entrando como se fosse uma princesa. Então, eu sentia assim com muita responsabilidade. Ele levava, eu me lembro, ele ficava ouvindo um radinho e pensando. Ficava fazendo as contas como é que ele ia pagar os empregados. Chegou uma época que ele tinha quatro mil empregados. Meu pai era muito criterioso, empreendedor, então ele sabia que dependia do esforço dele. Ele acordava às quatro horas da manhã, saía às cinco horas com o apito da fábrica de tecido que depois virou música. Não sei se foi bem pela Bangu, acho que não. Mas virou música o apito. Tocava aquele som da fábrica de tecido, meu pai se levantava muito cedo. Eu me lembro dele comendo em pé e trabalhando muito. Mas quando ele chegava em casa, ele pegava a gente, chegava, trabalhava, ele ia a pé para fábrica, né? Voltava a pé e ele adorava pegar a gente, botava a gente nas árvores. Acho que eu ficava nas árvores porque ele regava a grama da casa e, quando ele chegava, botava os filhos nas árvores, sabe? E eu sentia que, apesar de ele não ser uma pessoa... isso nessa época, né? Infância. Depois teve toda uma outra história, mas ele era uma pessoa que eu via que trabalhava muito, mas que ele trabalhava porque ele queria o bem estar da comunidade e da família dele. E minha mãe muito voltada para os filhos, né? Muito empreendedora para o outro lado, para o lado de criar uma escola e ir para Suíça. Como papai foi a trabalho, ela foi lá, aproveitou para criar uma escola nova nos anos cinquenta, sessenta. Até que, nos anos sessenta, eu fui embora porque não dava mais para continuar a escola e acompanhar, então fui morar na casa de uma tia para poder estudar no Souza Leão, que a professora que tinha me dado aula era diretora da escola de ponta no Souza Leão. Então sinto assim que era um pai… depois, durante toda minha vida, esse pai veio a me acompanhar quando eu ia para Suíça fazer discurso sobre o Saúde Criança, porque eu não sabia escrever bem Inglês. Era ele que escrevia para mim porque tinha estudado em Londres no mestrado dele. Então ele escrevia em Inglês e dizia: “Meu Deus, a Vera...” , ele estava aposentado e dizia assim: “Eu fui diretor de uma fábrica, agora a Vera me faz de boy de uma associação que eu nem sei o que que vai dar isso”. E, com oitenta anos, ele ia me levar dirigindo. Isso aí eu vou chorar. Ele entrava no Parque Lage, ele dizia assim: (choro) “Minha filha, tão lindo isso que você faz”. Chamava-se Renascer, que nós trocamos o nome por causa da Igreja Renascer em Cristo... aí a gente virou Saúde Criança. A Igreja Renascer em Cristo foi uma igreja que é muito controvertida. Mas na época que o meu pai ainda estava vivo, em 2002, ele ia me levar e via as famílias saírem com pedaços de casa, pedaços de porta, cursos profissionalizantes, kits de profissionalização. As famílias transformadas, de regiões muito pobres do Rio de Janeiro. Ele me deixava na instituição e dizia: “Minha filha, se eu soubesse que o Saúde Criança, (risos), é Renascer, que o Renascer era isso, eu só tinha feito Renascer a minha vida inteira”. Eu disse: “Pai, alguém teria que ter trabalhado para eu virar médica, para trabalhar vinte anos dentro de um hospital público para depois eu acordar para criar essa organização e esse alguém foi você”. Foi muito, foi muito emocionante. Até hoje eu me lembro dele com muitas saudades, muita, porque eu acho assim, se existe algum valor no que eu faço, no que eu fiz, no grupo que a gente formou de cinquenta funcionários, mais de setecentos voluntários, vinte e três organizações que aplicaram o modelo Brasil afora, a raiz disso tudo é meu pai e minha mãe. (choro). Ela com a doçura e com a força do pensamento dela, lado Yin, né? O meu pai com esse lado alemão, mas com o coração desse tamanho, que queria transformar a comunidade dele de quatro mil empregados. Ele ia no BNDES pegar empréstimos, na época desesperado, né, quando na época, a fábrica, ele queria que os donos, porque ele era empregado, mas não era o dono da fábrica, mas o empregado mais graduado. Então ele queria que os donos investissem na fábrica e eles não investiam. Então essa Fábrica Bangu que tem a sua história, que espero que um dia o Museu da Pessoa faça a história da Fábrica Bangu, é, foi uma das forças motoras do Brasil naquela época. E meu pai era essa… Então eu trouxe dele... eu acho assim, vontade de empreender. Num outro patamar, mas só foi possível por causa desse pai e dessa mãe. (choro). Ai, eu tenho que parar um pouco, senão não vou parar de chorar. (choro)
P/1 – Se quiser beber um pouco de água, fique à vontade.
R – Gente, meu Deus. Pensei “não vou chorar”, mas a gente... Perguntas aparentemente simples, né? Nossa mãe... Ahhh.... Meu Deus...
P/2 – Quer parar um pouquinho?
R – Eu quero respirar. Tenho que dar uma paradinha.
[pausa]
P/1 – Tá. Então para gente retomar. Você já falou um pouco da experiência na escola. Dessa escola de vanguarda que a sua mãe teve a iniciativa. Foi a primeira escola em que você estudou ou você…?
R – Foi a primeira escola. Ela fez uma escola para os filhos, né? Para mim e para o Roberto. Que o Renato já foi, já mudamos para Copacabana, mas... a fase... Mamãe passou quinze anos em Bangu e eu passei dez, que os outros cinco eu fiquei morando na casa de uma tia que morava em Copacabana, para estudar no colégio onde a minha professora que vivia em Bangu é… não fundou mas era diretora, Dona Leda Pelegrino e aí eu fiz o final do Primário, o Ginásio naquela época, né? E depois fui para o Colégio André Maurois, também, que era um colégio público. Esse era um particular, esse era de vanguarda, Colégio André Maurois. André Rezende era meu colega de turma. Aquele que fez o Plano Real, o André enfim, tem vários, várias personagens que depois ficaram, a filha do Fernando Sabino também estudou lá. Tem pessoas assim da vanguarda carioca. Depois eu fui estudar no Miguel Couto com a irmã da Leila Diniz. Então os personagens da vida carioca estavam ao meu lado, aquela geração, né, que foi hippie dos anos setenta. Eu era completamente hippie nos anos setenta. E aí eu fui fazer, fiz Souza Leão, depois fiz Clássico no André Maurois que é uma escola pública de vanguarda e depois eu fui fazer Miguel Couto Bahiense, que eu resolvi que eu ia ser médica. Isto porque eu tinha um tio, esse tio que eu morei os cinco anos depois que eu saí de Bangu, que era muito amigo. Meu pai, minha mãe, meus dois, meu pai, minha mãe, meu tio, minha tia, eram dois casais íntimos. Eram duas irmãs que se gostavam muito e dois cunhados que se gostavam muito. Então eu e minha prima que somos da mesma idade, fomos ser médica por causa desse meu tio que era médico, mas antes de tudo, ele era um humanista. Ele era um filósofo, conviver com esse tio, minha tia escrevia novelas. “Dancin’ Days” com Gilberto Braga, Leonor Bassères. Ela era bem conhecida. Leonor Bassères e Gilberto Braga. O Gilberto disse que ele vive com outro homem, mas ele disse que o amor da vida dele, mulher, era a minha tia. Então eles escreveram “Dancin’ Days”, “O Dono do Mundo”. Então vivia num mundo na casa dos meus tios, meu pai assim mais alemão, minha mãe era criativa, mas depois fui para casa desses tios que se davam com Jô Soares, entravam milhares de artistas na minha casa, na casa da minha tia, então convivia com boêmios e com escritores e exilados políticos o tempo inteiro. Esses tios principalmente, meu tio e minha tia, eles eram acolhedores, então eles acolhiam exilados políticos. Todo mundo ia morar na casa deles. A casa deles era uma ONU e meu tio, ele quando ele voltava do trabalho, ele era um cientista, depois ele teve um laboratório, estudava Biofísica. Mas depois ele se aposentou e ele adorava conversar com as pessoas. Esse Museu da Pessoa, ele certamente iria ser voluntário a trabalhar aqui porque ele adorava história de vida das pessoas e eu fui fazer Medicina por influência dele, não que ele tenha pedido não, mas, por olhar a história dele, eu falei: “Ah, eu vou ser médica”. E Medicina, desde o início, eu falei: “Meu Deus! Onde que eu fui me meter, porque eu não quero cuidar do corpo das pessoas”. Quer dizer, eu tive que saber o que era a terceira bulha, a quarta bulha, como é que se auscultava o paciente e se o fígado estava a três dedos da reborda costal. Nada disso, eu tive que me formar e entre escolher a especialidade, o que mais, eu não queria ser psiquiátrica, não queria ser psicanalista, porque eu achava que eram igrejas formadas, corporativas, eu não queria. Quando eu estudei Psicossomática, eu falei: “Epa, é aí que eu quero”. Eu gosto dessa interface do corpo e da mente. Então eu tive o Júlio de Mello, o Abram Eksterman que eram os professores de Psicossomática. A Psicossomática estava começando no Brasil com Perestrello, que trouxe a Psicossomática. Falei: “É isso que eu vim fazer no mundo!”. Mas você não podia ser um especialista em Psicossomática naquela época, porque Psicossomática, hoje em dia, todo mundo sai na capa da Veja: “Psicossomática”. Mas, naquela época, Psicossomática era uma espécie de bruxaria. Apesar de escolas e nos hospitais-escola ensinarem Psicossomática para os médicos, era meio... “Você vai ser médico de Psicossomática?” Então eu tinha que ser uma outra coisa, então eu virei o que é mais perto do paciente, é o médico clínico generalista porque a ele cabe ouvir a história de vida. Ele não vai ser o especialista, mas vai ser o médico que vai ver o paciente como um todo. E como médica, como eu passei num concurso de clínica médica, fui trabalhar no Hospital da Lagoa e comecei atender trinta pacientes pela manhã, né, e era uma carga enorme, porque, trinta pacientes, você imagina. Quando eu começava a entender a história de um tinha que atender o segundo e eu comecei a enlouquecer, porque eu disse: “Eu não posso ficar com dez minutos”, sei lá o quê eu tinha para atender cada paciente, porque isto me enlouquece e eu sei que você não, tem várias oitavas de diagnóstico médico. Você pode dar uma oitava histopatológica do paciente, para fazer uma biópsia se o paciente tem úlcera ou gastrite, fazer uma endoscopia, isso é uma oitava de diagnóstico e será uma oitava de tratamento. Ele vai tomar um antiácido, ele vai tomar isso, isso e tal, vai ser encaminhado. Uma outra oitava, quem é esse paciente que tem gastrite? Onde ele mora? Quem são os pais? Ele está desempregado? Qual é a relação afetiva dele com a mulher? Quais são os obstáculos que a alma dele está enfrentando neste momento para ele fazer uma gastrite. Porque se você tratar a gastrite e mandar embora, é quase como se você tivesse dado um, colocado um Band-Aid na gastrite dele, mas a tensão, toda a situação biopsicossomática que levou ele a fazer a gastrite vai explodir num outro órgão. Então é como se você tivesse uma mangueira com vários buracos, você tampa um buraco da mangueira, vai sair água por aqui, não pelo local que você quer que saia, né? Daí você tampa um outro, ela explode aqui. Então é necessário interdiagnosticar quais são os furos que essa mangueira tem e nesse é possível tampar todos para que o jato, pode ser uma coronária esta mangueira, né? Onde essa coronária está entupida é só aqui ou em vários…. Ver onde esse sangue está bloqueado. E aí eu comecei a desenhar na minha cabeça como é que seria esse setor. E um dia, essa sincronicidade, que não existe acaso, eu fui morar em frente ao diretor do Hospital da Lagoa. Na época, ele era o chefe da clínica médica, ele me recebeu assim, quando eu fui contratada, fiz um concurso público, passei, fui contratada médica clínica, ele disse: “Doutora, onde a senhora mora?”. “Eu moro da Rua Peri…”, não me lembro, “…Peri 299”. “Meu Deus, em frente a minha casa não!”, porque eu disse assim: “Olha, Doutor Luiz Carlos, eu quero ser, porque eu sou clínica geral, mas eu quero fundar um setor de Medicina Psicossomática”. “Não, não, a senhora é muito jovem.” Eu tinha vinte e sete anos na época? É, porque eu trabalhei primeiro na perícia no Méier, me formei com vinte e cinco, depois eu fui trabalhar no Plano de Ação Familiar, era um Plano de Ação Conjunta, de um plano do governo, depois eu fui trabalhar no Hospital da Lagoa, em 1977, 78. Que loucura, para mim foi ontem, entrei ontem, 1978 eu fui trabalhar no Hospital da Lagoa. O tempo passa tão rápido, 1978 eu fui trabalhar no Hospital da Lagoa. Em 1979 eu escrevi o projeto de fundação do Hospital da Lagoa e fiquei enlouquecendo todos os casos que o chefe da clínica, que eu morava em frente. Eu morava no apartamento, ele em frente, o Tom Jobim morava do lado. Então era amigo do Tom, eu também era e aí eu ficava: “Doutor Luiz Carlos, eu preciso fundar…”. “Não, você vai ralar no ambulatório lá.” Um dia minha vizinha ficava: “Doutor Luiz Carlos, funda o setor que a Vera quer”. Ela gritava de um lado para o outro da rua. Um dia, ele quando se virou, diretor do hospital, disse: “Vem jantar aqui em casa”. Ele mantinha distância, né? Eu era uma médica recém-formada, ele era o diretor. “Vera, escreve um projeto e vem me mostrar.” Aí eu escrevi um projeto e o que eu descrevia, por exemplo, um paciente que ia fazer orquiectomia, tirar o testículo do paciente sem avisar antes. Porque o residente dizia que ele era um pouco, tinha um QI baixo e ele não ia perceber. Isso, eu assistia a isso. Disse: “Como? Vocês não vão avisar o paciente, tem a família”. Então eu escrevi, outro caso, um paciente que tinha hipospadia, que o ureter não era colocado na criança, não era colocado. Na sua má-formação ureter tinha que fazer várias cirurgias, no pênis da criança, né, para poder o ureter ficar bem implantado. Naquela época, a mãe não podia ficar perto da criança. Então a criança era amarrada na cama para não gritar e era engessado o pênis da criança e a mãe não podia ficar na pediatria. E aí falou: “Não não não, não precisa de mãe aqui não, porque essa criança, quando a mãe chega, ela chora muito. O problema é a mãe porque, quando a mãe sai, ela fica calada”. Eu comecei a chorar. E aí eu escrevi esses dois casos e escrevi o que seria o setor. O setor formado por médicos, psicólogos e assistentes sociais que iam compreender a doença em outras dimensões. Essa criança nunca mais estaria sozinha quando ela precisasse operar o pênis dela, né, porque isso ia ter um trauma para o resto da vida dela. E essa mãe precisava estar junto da criança. E também porque eu atendia a mãe da criança, porque ela tinha cefaleia, dor de cabeça no ambulatório e eu dizia assim: “Mas por que a senhora está com cefaleia?”. E descartava todas as doenças de tumor cerebral, etc, e aí ela me dizia: “Meu filho está internado no hospital e eu não posso acompanhar”. Então a cefaleia é porque o filho estava internado no hospital. Então escrevi esse histórico, e descrevi como que o setor ia atuar em várias áreas para conscientização dos médicos, para fazer a história da pessoa, da criança e do familiar. O Doutor Luiz Carlos, quando foi diretor, assinou um decreto e eu fui a chefe do setor e, com isso, vinte pessoas faziam os grupos Balint, que era um grupo. O Balint, o Michael Balint era um médico que lá na Inglaterra, ele começou a discutir com clínicos gerais por volta de trinta anos que era mais ou menos a idade que eu já estava na época, é, a história de vida das pessoas para ajudar o médico a fazer outros níveis de diagnósticos. E, com isso, eu implantei esse setor que às vezes tinha, eu lembro que a gente convidava o Artur da Távola para falar sobre amor, que a gente começou a entender que muitos pacientes adoeciam, infartavam por falta de amor. Então a gente discutia desde tuberculose à falta de amor, a infância, a gente chamava a psicanalista, eu chamava terapeutas, músicos e a gente começou a fazer uma revolução em termos de o que era Medicina na época. Mas eu nunca pensei em fundar, já chega o setor de Psicossomática, para mim já estava satisfeita. E também porque nasceram minhas duas filhas. Eu casei, casei com um engenheiro que trabalha na IBM, muito parecido com meu pai, né? Freud explica. E aí esse engenheiro chama-se Paulo Roberto Ayala Cordeiro, eu fiquei casada dois anos sem filho, a gente morava em Fina Perini, Jardim Botânico, em frente ao Doutor Luiz Carlos e foi uma época maravilhosa da minha vida, porque eu não tinha assim, trabalhava mas o resto era para mim mesma. Viajava, ia para o Nordeste, foi assim uma época sem responsabilidades. Se você dissesse assim que época foi fácil na sua vida, que época rolou fácil na sua vida, foi essa época, porque eu estava muito apaixonada e muito feliz então, e também podia viver, trabalhava, ele trabalhava e a gente não tinha que cuidar de filho, não tinha que cuidar de pai, era uma época de, eu que sempre fui uma cuidadora, eu estava de férias, passei dois anos, tempo sabático sem cuidar de ninguém. Quer dizer, cuidar dos pacientes, mas era café pequeno depois do que veio pela frente, né? E aí nasceu minha primeira filha. Quando nasceu minha primeira filha, eu fiquei enlouquecida. Falei que depois… Marina, né, essa que mora em São Paulo, que tem trinta e três anos agora e a Laura, que mora em Washington, tem trinta anos. As duas são casadas, são advogadas, uma trabalha em mudança climática, a outra trabalha no Wald Advogados em São Paulo. Mas, na época, eu fiquei encantada com a maternidade, então… e à medida, e não tinha coragem de entrar, trabalhar com Psicossomática com criança doente, porque criança adoece muito em casa, né? Então pensei, doença em casa, doença no hospital, era insuportável. Quando elas entraram na adolescência, eu falei, teve uma mudança política dentro do hospital e eu, como chefe do setor de Psicossomática, fui trabalhar na pediatria e aí começou, eu comecei a enlouquecer, porque aí começou o desenho do que vinha o Saúde Criança que é a associação que eu ia fundar. Eu, por exemplo, um dos meus papéis como, trabalhando como médica, trabalhando na Psicossomática, tinha uma criança que vinha do que a gente chama de trambiclínica de subúrbio no Rio, e ela tinha feito uma, ela tinha tomado uma, acho que colocado um soro e esse soro foi mal colocado e ela necrosou a mão. Era um garoto de três anos. Foi para o Hospital da Lagoa para amputar a mão. A mãe chama-se Pedrina. E eu tinha que ajudar, eu falei no TED lá no Rio, no TED São Paulo Vila Madá sobre o Saúde Criança. Falei em dezoito minutos, eu conto esses casos porque as pessoas falam: “Você fundou o Saúde Criança?”. Então a Pedrina vinha com o filho para amputar a mão e eu, da Psicossomática, era a pessoa que ia ajudar a mãe a aceitar que a criança ia amputar a mão e, à criança de três anos, eu tinha que explicar que ela ia ficar sem mão. E pouco tempo atrás, como meu marido tinha recursos, ele trabalhava na IBM, eu tinha que esquiar de férias em Lake Tahoe com as minhas duas filhas que tinham acabado de entrar na adolescência. A Laura com dez, dez para onze e a Marina com treze. E eu voltava. Então eu vivia a vida Belíndia que eu vivia em Bangu, né? Uma casa com guarda, cinco empregadas, cercada de miséria. Eu dormia na Barra da Tijuca, eu mudei do Jardim Botânico para Barra e eu dormia na parte Bélgica do Brasil, mas trabalhava na parte Índia, né? Então eu tinha, na parte Índia sofrida, porque a Índia está se desenvolvendo bastante, né? Mas na miséria que tem no Brasil é na Índia. Então eu vivia lidando com a miséria e dormia na parte Bélgica. Então repeti a minha infância, né? Princesa-camponesa e daí dentro de uma forma enlouquecedora, acho que Deus foi botando uma oitava cada vez mais difícil, mas “agora lida com isso vamos, seu desafio agora é esse”. Então a Pedrina vinha e dizia: “Doutora Vera…”, e eu percebi que não tinha nem força interna em tudo o que eu tinha estudado. Fiz uns cursos com Michael Balint, não com Balint, o Balint já tinha morrido. Na clínica Tavistock em Londres, morei em Londres uma época e toda uma formação psicossomática que eu tinha feito não me habilitavam a lidar com tanta dor. E ela dizia assim, e eu percebia que ela era mais forte do que eu, quer dizer, até por todas as provações que ela passou na vida. Ela dizia assim: “Porque você sabe que fazer parte da classe média alta enfraquece muito em vários sentidos a gente, né? Quem é um sobrevivente de comunidades muito pobres muitas vezes tem uma força interior muito maior que a gente que é…é certa forma afastado muitas vezes da realidade da vida”. A Pedrina uma vez falou: “Eu já entendi que ele tem que amputar para sobreviver, só que vou sair daqui pra rua, a senhora tem um emprego pra me arrumar? Vou pedir esmola, minha patroa me mandou embora”. No dia seguinte, tinha um garoto com câncer que eu era chamada para ajudar. O Harold dizia: “Doutora Vera, vem ajudar ele aceitar o câncer porque vai cair o cabelo e você tem que explicar quais são os efeitos da quimioterapia para ele”. E a mãe tinha onze filhos e ela dizia assim: “Eu já entendi que vai cair o cabelo e eu já tô preparada, já passei por bons pedaços, um trator matou um dos meus filhos. Então eu já entendi como é a vida, doutora Vera. Eu só não tenho dinheiro pra passagem, pra vir. Eu tô na casa de uma cunhada em São João do Meriti e dá pra senhora me dar dinheiro para a passagem?”. No dia seguinte, uma mãe me disse: “Doutora Vera, a senhora leva meu filho pra casa porque ele precisa de um leite Alfaré”, que custava uns quarenta numa moeda da época, como se fosse uns cem reais hoje em dia, “eu não tenho, a senhora cria?”. E a enfermeira disse assim: “A senhora é irmã de caridade, a senhora foi clínica, trabalha com Psicossomática, agora a senhora fica lidando com pobreza. O que a senhora veio fazer aqui doutora?”. Isso eu não tenho, agora eu perdi a noção. Eu só sei que nós temos que conceber uma outra instituição que dê conta do ato médico. O que a gente faz aqui, muitas vezes não faz sentido. Porque eu via assim uma criança assim com pneumonia, a gente tratava, gastava um dinheirão, mesmo depois ela reinternava num círculo vicioso, miséria, internação, reinternação e morte. E nós tínhamos que conceber uma instituição que quebrasse esse círculo vicioso para que o ato médico tivesse sentido. Foi aí que eu comecei assim: “Eu preciso sair dos muros do hospital, entender o que eu vou fazer”, porque eu não tinha a menor ideia do que eu ia fazer, para o que a gente faz aqui faz sentido, faça sentido, porque a gente reunia assim como se estivéssemos nós três no posto de enfermagem, na hora de prescrever, você olhava para a mãe e você via que ela era alcoólatra, que era analfabeta, que ela não entendia e que ela não tinha dinheiro para passagem, para voltar para casa. E tudo que era feito para tratar da pneumonia era inútil. Então todo ato médico é assim no Hospital da Lagoa, que é um hospital de ponta, ótimo, excelente no Rio, que é pago com o imposto do contribuinte e é assim Brasil afora e mundo afora. Com a maior parte dos pacientes. Então como é que você completa o ato médico? Isso eu vou falar para vocês depois.
[pausa]
P/1 – Vera, então para continuar, você estava falando justamente desse momento e que você se depara nessa dificuldade de qual que era o sentido do seu trabalho como médica. E aí eu gostaria que você continuasse a partir desse ponto.
R – E aí nós começamos numa estrebaria dentro do Parque Lage onde ficavam os cavalos da Besanzoni Lage, que era a antiga dona do Parque Lage há mais de cem anos e tem uma escola de arte onde ficavam os cavalos da Besanzoni Lage. Numa estrebaria nós nascemos e aí ficamos funcionando lá e ouvindo, eu dava alta para o paciente no hospital e mandava para estrebaria. Mesmo porque, Parque Lage ficava perto do Hospital da Lagoa e ficava entendendo, como é, criando uma metodologia. Quero entender a sua história de vida, como é que eu vou te ajudar com remédio, comida e moradia, renda e cidadania. E começamos a fazer um plano de ação familiar pensando como é que você vai, quais são os seus talentos, como que eu vou ajudar você a se profissionalizar. Como é que eu vou dar comida e remédio e foi quando a Ashoka, bem no início do Saúde Criança, descobriu que eu estava fazendo este trabalho e eu fui eleita a fellow da Ashoka e comecei a perceber que eu não estava sozinha. Que eu queria mudar o mundo, acabar com a miséria no mundo, transformar através das famílias mais vulneráveis, começando num hospital público, indo para todos os hospitais públicos do mundo. E a Ashoka me trouxe a McKinsey. A McKinsey deu cinco mil horas de consultoria. Nós criamos toda uma metodologia social e diversos atores, empresários, instituições, começaram a aparecer, vamos dizer, é que a metodologia se viabilizasse. Então, a metodologia do Saúde Criança, que é uma poderosa metodologia de inclusão dos mais pobres não foi criada por mim. Foi criada por mais de setecentos voluntários que passaram pela organização, por inúmeras empresas como a Ashoka, McKinsey, Avina, Schwab, a Skoll, a White Martins, a Unimed, entre vários outros patrocinadores, sendo a principal patrocinadora, hoje em dia, a White Martins, é que viabilizaram o trabalho do Saúde Criança. Então, passados vinte anos, este trabalho inspirou a criação de mais de vinte e três instituições que fazem o plano de ação familiar que é um plano complexo, mas que empodera, leva dois anos ajudando a melhorar a vida profissional, botando todos os irmãos da criança doente. A criança doente é triada e todos os irmãos são encaminhados para a escola, ajudando a melhorar a moradia, refazer a moradia, ajudando a cidadania e ajudando na saúde. Então brincavam: “Parece programa de governo!”. Dizia assim: “O governo da sociedade civil”. Eu quero a sociedade civil olhando a pobreza, porque nós somos auditados, temos mais de vinte prêmios hoje em dia e as contas são todas transparentes. Então eu quero a sociedade civil, a parte deste país tão tragicamente dividido como o nosso, as partes do… as pessoas que têm recursos monetários olhando para as pessoas que não têm recursos. Às vezes, nem monetariamente falando, mas é uma rua de mão dupla. Então, as pessoas não são voluntárias lá porque são bonzinhos. Eles aprendem profundamente a viver, e mudam seus valores, então é uma rua de mão dupla. Eles ajudam os que não têm dinheiro e o testemunho heróico daquela mãe que sobrevive transforma o valor dos voluntários. Tem cinquenta funcionários hoje em dia e se espalhou perto, a metodologia está em vinte e três instituições que foram criadas em vinte e três, perto de vinte e três hospitais públicos no Brasil. Então tem o Saúde Criança Lagoa, o Saúde Criança Florianópolis, Saúde Criança São Paulo, Saúde Criança São José dos Campos e vários Saúde Criança em São Paulo. Então, é uma franquia social. Nós somos a matriz e você, por exemplo, se quiser fundar um Saúde Criança, você vai ter que ser capacitada e ter o DNA do Saúde Criança para você fazer, leva dois anos para você incluir socialmente, transformar a vida de uma família que teve um filho doente oriundo de um hospital público no Brasil. Então esse trabalho trouxe enorme alegria para milhares de, como eu falei, de voluntários no Brasil afora, cinquenta funcionários só na matriz e a gente caiu as reinternações em sessenta por cento, que nós provamos que as reinternações com o ato médico e mais com a complementação que a gente não quer substituir o Estado, que o Saúde Criança faz junto às famílias caem sessenta por cento as reinternações. Aumento em trinta e cinco por cento a renda e todos da família se beneficiam, porque a gente começa pela criança doente, mas ajuda a família a integrar. Uma vez um patrocinador, a Avina disse: “Um projeto tão redondo como é que não vira política pública?”. Nós passamos quatro anos indo para Belo Horizonte, hoje em dia o programa BH, a família cidadã BH sem miséria, que funciona nos centros de referência de assistência social, usam o plano de ação familiar. O nosso sonho para ganhar escala é ganhar escala através de franquias sociais, um hospital público, um Saúde Criança, pelo aumento da alta da família que fica presa nesse círculo vicioso miséria-internação-reinternação e morte. Então a gente está ganhando escala através da franquia social e a gente está ganhando escala através de influenciar governos como a gente fez com BH, que cria, que criem políticas públicas. São cinco mil municípios, mais de cinco mil municípios neste país, se todos fizerem o plano de ação familiar, este país, que é um país tão injusto, da noite para o dia vai se transformar num país igual, aí sim um país rico. A gente não pode medir, eu acho muito, gosto muito da definição de felicidade do Butão, eles têm Felicidade Interna Bruta. Daí vai ser um país, não dá para ser feliz num país tão injusto, né, as almas estão todas interligadas e você dizer que um país, que nós somos quase a quinta economia do mundo, mas, se não tiver justiça social, não tem nada. Então, o nome da nossa instituição é Saúde Criança, Saúde é Inclusão Social. A gente tem essa visão é, vamos dizer, integrada de saúde.
P/1 – Você falou um pouco, fez um balanço desses vinte anos, eu queria que você falasse, do início, quais foram as principais dificuldades.
R – A principal dificuldade foi a sede, porque você sabe que sede... desde o início, eu sabia que ia ser um centro de referência para replicar. Nós estávamos nas cavalarias, então para ficar nesta sede, na realidade, era uma reprodução da minha casinha da infância, a associação de moradores impetrou, né, que se fala? Mandado de segurança contra a gente, para tirar a gente do parque. Les Misérables, não queriam pobres dentro de um parque rico, cercado de ricos dentro do Rio de Janeiro. Eu tive que ir no Presidente Fernando Henrique para ele assinar um decreto. Doutora Ruth Cardoso dizia: “Tudo que uma comunidade solidária sonha e pretende para este país está aqui realizado neste projeto Saúde Criança”. Então, quando a doutora Ruth Cardoso foi lá inaugurar a sede depois de vários embargos, eu fiquei extremamente emocionada porque a sensação, ficamos num trailer toda a instituição uma época porque fomos expulsos do parque. A Justiça nos expulsou. Nós ganhamos na Justiça depois de um mandado que nós enfim, uma guerra judicial e finalmente o Fernando Henrique, o Presidente Fernando Henrique assinou um decreto, falou: “Vera, agora é lei. Eu fui ao Palácio do Planalto, agora é lei. Você não vai ser tirada do parque”. Esse foi um grande desafio. Outro foi captação de recursos porque a gente crescia e se multiplicava e a gente tinha que ajudar as franqueadas a se fortalecerem, porque foi muito difícil. E o terceiro grande desafio foi quando eu percebi que trabalho em rede era bom. Foi bom durante a criação das vinte e três organizações, mas que tinha que mudar o modelo de governança. Que franquia é a mais firme. Franquia social. E nós vimos vários nomes Renascer, Reagir, Recomeçar, Renovar, era um tiro em termos de branding. Mas cada um já tinha assim, orgulho do nome que tinha, então eu tinha que convencer ou nos unirmos ou então nos despedaçávamos. Pegamos onze que a gente identificou como maduras para virar Saúde Criança, virou Saúde Criança. Esses foram os grandes desafios. E patrocínio, a busca, eu tive muito mais sucesso, digamos, porque “Você é médica?”, “Não, eu sou mendiga internacional, international beggar”. Porque o Brasil não tinha, com todos os planos, ganhamos quatro prêmios beneficentes: Stephen Kanitz; Global Development Award, que eu fui para o Cairo ganhar um prêmio competindo com quatrocentas organizações no mundo inteiro, nós ganhamos em primeiro lugar; o Skoll, outro que eu ganhei do, eu não, né, a instituição ganhou. Eu fui lá representando a instituição, mais de setecentos voluntários, cinquenta funcionários fizeram esse trabalho que eu fui lá ganhar o prêmio em 2006 do Robert Redford, chiquérrimo o Robert Redford e o Ben Kingsley estavam lá e o Jeff Skoll, o fundador da Skoll Foundation. Então, com todos esses prêmios que reforçaram a metodologia, o grande desafio é você conseguir a sustentabilidade não só da instituição como das franqueadas. Isto é para sempre. Nós fizemos o fundo patrimonial. Ninguém acreditava em fundo patrimonial. O Armínio Fraga é do nosso conselho. Falei “Armínio você vai ser presidente do fundo, nós vamos fazer um fundo”, o Eike Batista deu cinco milhões. Já fizemos um fundo patrimonial, agora um dos primeiros fundos patrimoniais do Brasil. E isso tudo só foi possível, vou começar a falar da White Martins. Que bem no início, a White Martins foi o primeiro patrocinador. Depois eu perdi a White Martins de vista, até que eu vim falar, incrível, em São Paulo, na FIESP [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] e numa, era um fórum que tinham milhões de empresários, todo mundo de preto e eu era a única, poucas mulheres, né, mas falando do ProÁlcool, milhões de dólares. Falei: “Meu Deus, eu vim falar de projeto madrinha, arrumar casa, pra um grupo de....”, quase que eu fugi da FIESP, foi me dando um medo, sabe? Mas graças a Deus eu não fugi, porque eu olhei, estava o filho do Presidente Fernando Henrique. Falei: “Isso é um sinal”. Doutora Ruth fez, a Ruth fez tanto pela gente, “Eu vou falar da doutora Ruth, da constituição desta organização” e falei. O presidente da organização, acho que era o Ricardo Malfitano da Praxair lá de Nova Iorque, eu não tenho certeza, mas o presidente da White Martins estava lá. Disse: “Vera, me procura”. Então a White Martins que tinha sido a primeira patrocinadora reapareceu na minha vida e isso depois do ano 2000. A White Martins veio visitar e o patrocínio começou em 2003. Eles estão há oito anos patrocinando a gente e a White Martins é o maior patrocinador e teve uma série de situações que tornaram a White Martins e, vamos dizer, o pilar da instituição. Eu posso enumerar algumas delas como, por exemplo, a White Martins em termos de dinheiro, recursos, é a maior patrocinadora. Até agora mais de dois milhões de dólares foram repassados para gente, para várias ações para o fortalecimento da matriz, numa época para compra de medicamentos para as famílias, para fortalecer as franqueadas e a White Martins sempre foi, ela casou num casamento daqueles que dão certo, sabe?, que na alegria e na tristeza, na vida até a morte, porque a sensação que eu tenho é que eles entendem, eles estão tão lá dentro, né, o Saulo Areas que é conselheiro da White Martins. O Saulo, hoje em dia, ele faz parte do comitê de apoio e gestão. Então todo mês ele está lá dentro da instituição entendendo todas as fraquezas e todas as grandezas. O parceiro melhor, às vezes para certos patrocinadores, eles querem uma relação distante. Um parceiro que te abraça e diz “eu quero entender profundamente”, é conselheiro da instituição, “eu quero entender todas”, vamos dizer, “todas as fortalezas e as dificuldades de vocês”, esse é o parceiro ideal. E ele só, vamos dizer, eles a cada desafio que a gente enfrentava como, por exemplo, dinheiro para fortalecer a matriz para que a matriz contrate novos funcionários da área de comunicação, para que se comunicando melhor a gente possa expandir e fortalecer as franqueadas. Dinheiro para pagar salário que é algo que normalmente o patrocinador quer dar atividade-fim, né? Patrocinador quer dar o leite, o quimioterápico da criança, enfim, o remédio e não a atividade-meio. É difícil patrocinador entender que tem que pagar profissional para que a instituição seja forte internamente e à White Martins não precisou explicar muito. Ela não só dava recursos e dá recursos para pagar funcionários de dentro da instituição como para pagar funcionários, eu me lembro que uma vez eu tinha doze funcionários das organizações que nós, inspiradas no Saúde Criança, franqueadas, tudo pagos pela White Martins. Foi o grande salto da instituição que é a gente foi para outros estados, para seis estados no Brasil. E assim, eu tenho a sensação que, a cada novo desafio que a gente tem, a White Martins compra o desafio com a gente. Nós somos parceiros nisso. Além disso, por exemplo, se a gente está com uma determinada empresa, com dificuldade, essa empresa, a White Martins é parceira, ou de alguma forma é parceira, ela vai junto com a reunião sobre o Saúde Criança para que a empresa olhe com outros olhos o Saúde Criança. Sabe, ela transfere a força e o poder que uma instituição como a White Martins ou a Praxair tem no mundo para quem olhe como que se assim: Nós vemos o Saúde Criança como nós vemos a White Martins. Eles não falam isso literalmente, mas a presença nas reuniões com outros parceiros que, às vezes, por um motivo ou por outro, o processo está lento, faz com que o processo se acelere e só a presença deles já faz toda a diferença. A Cristina [Fernandes] e a Carolina [Werneck] da White Martins estão presentes em cada momento. Na venda de produtos – a gente faz produtos Saúde Criança e vende em quiosques. Então é essa parceria de casamento e de ser o maior patrocinador é que eleva a instituição e concretiza o sonho.
P/1 – Tem algo em especial nessa parceria com a White Martins que você destacaria?
R – Eu quero dizer que é confiança, porque eu acho que tudo começa com confiança na vida, tudo é relação e eu valorizo muito confiança. Eu tenho anos de relação, são muitos anos de relação. E a confiança foi se estreitando mais através da Cristina e da Carol que são da área de Responsabilidade Social da instituição e depois de um diretor, o Saulo Areas, que é do Conselho do Saúde Criança. Então a confiança se dá nas pequenas coisas. Num telefone que você dá, você olha, “Estamos pensando em criar este projeto, nós estamos juntos”. A White Martins: “Olha, normalmente nós não financiamos isso, mas nós acreditamos tanto em vocês, nós acreditamos no pensamento estratégico de vocês, nós estamos juntos”. Apostar no futuro da instituição é algo que, é embarcar na visão da instituição e não só na missão. Embarcar na visão é algo assim que nos dá alegria, para o grupo comitê executivo que dirige a instituição, que sou eu e mais três, e para os outros conselheiros é mais do que um fundo patrimonial. É um fundo real, é um pisar sólido. E eu acredito que, do outro lado também, eles sabem quando a gente tem um problema em determinada área, você sabe que todas as instituições têm fraquezas, né? E, de repente, uma das áreas da instituição fica fragilizada, a gente imediatamente, como uma vez por mês o Saulo está lá, a gente comunica para eles: “Olha, nós estamos vivendo esse problema e agora?”. Esse tipo de patrocinador que ao mesmo tempo é conselheiro, que ao mesmo tempo faz parte do comitê de apoio eu não conheço.
P/1 – Vera, a gente já está encaminhando para parte final da entrevista, queria que você dissesse, esse trabalho que você desenvolve hoje, trabalho voltado a projetos sociais. O que ele promoveu de transformações na sua vida?
R – Posso pensar um pouquinho? (longa pausa). Eu acho que eu sei o que eu vou dizer. Primeiro, quando eu fundei o Saúde Criança, as pessoas perguntavam: “Você tinha ideia do sucesso que vai fazer?”. Eu vou dizer com toda franqueza, eu tinha certeza do sucesso. Não era ideia não, era certeza de sucesso. Sabe quando você fala assim numa linguagem médica meio trivial? “Peguei na veia do paciente!” Eu me lembro quando a gente começou, era um grupo de vinte voluntários, as pessoas se comunicavam sábado, domingo, segunda. As pessoas não paravam de falar no assunto. Então você sentia que isso comovia as pessoas. A missão é bastante, a causa é muito forte. Então eu comecei a perceber, eu comecei a rifar objetos da minha própria casa. As crianças trancavam. A Marina ia lá e trancava: “Minha boneca japonesa não”. Eu ficava convertendo: “Um tênis Reebok dá duas latas de leite Alfaré”. E meu marido chegava e: “Cadê o relógio de parede?”. “Virou quimioterápico.” Meus amigos fugiam de mim porque sabiam que eu ia querer alguma coisa. Eu comecei a perceber que eu saí fora do status quo, que eu estava completamente drogada, enlouquecida. Eu tinha ido para um patamar que não tinha volta. E não tinha volta não é por um ano, não tinha volta para sempre. Isso, ao mesmo tempo que me fascinava, quando você cruza uma ponte, e aquela ponte depois é desativada, você não vai voltar. Mais que desativada, aquele continente sumiu do mapa. Você está numa outra terra. Então isso me trouxe uma transformação pessoal muito grande. Primeiro, assim em termos de, eu me lembro que minha filha pequena de dez anos chorava: “Eu odeio o Saúde Criança que roubou você de mim”. E, hoje em dia, ela é minha grande companheira. Ela trabalha em mudança climática, mas ela está sempre me dando consultoria, porque ela diz: “Mamãe, tudo o que eu tenho na vida, os valores vieram de você”. Então, e minha filha Marina fala da mesma maneira, com a mesma profundidade sobre o trabalho. Agora eu vejo assim que eu como pessoa, eu me transformei, no sentido de que eu teria que fazer uma profunda volta para tentar entender quem sou eu. É porque a gente quando tem um trabalho público, quanto maior o trabalho público, maior tem que ser a força interior, senão você quebra. E um dos perigos onde você pode cair é numa ego trip, por mais que eu saiba que não fui que criei esse trabalho, que foram setecentos voluntários, a White Martins, cinco mil horas de consultoria da McKinsey, enfim, vários stakeholders, eu sei que eu inspirei e que eu estou à frente vinte anos desse trabalho. Então, quando eu falo eu, eu já há muito tempo, eu já percebi, o ego é muito cansativo. Eu na verdade sou vocês, eu sou atemporal, eu sou vocês, eu fico me sentindo muito mais forte e muito mais verdadeira, porque o ego Vera é extremamente frágil, cheio de impurezas, cheio de fragilidades, então eu tenho que estar sempre me lembrando por sua vez se eu sou o nada, como dizem os budistas, se eu sou um ser, uma outra oitava, um ser com letra maiúscula, como dizem os hinduístas, se eu tenho uma centelha divina, como os católicos pensam, e eu tenho algo que transcende esse corpo, eu tenho que fazer meditação, eu tenho que me recolher muito para que tudo que seja dado, seja dado com alegria, tudo que seja transformado, as relações pessoais tenham muita alegria. Porque tem uma poesia que eu acho assim, que me deram. Foi o David Bornstein que me deu esta poesia que é uma poesia, que escreveu “How to change the world”, “Como mudar o mundo”, que o Saúde Criança é um dos capítulos e que diz mais ou menos eu não sei ao certo, mas que: “Numa longa jornada é muito importante que você pare a cada momento e celebre, porque as celebrações são muito importantes, e o descanso é muito importante”. As celebrações, porque sempre vai ter muito o que fazer, né? A vida inteira vai ter muito o que fazer. Agora, essa celebração conjunta de você ter noção de que foi um trabalho de várias pessoas, de um grupo e não de uma pessoa, são rituais que renovam as energias para mais um passo. E depois, quando você olha para trás, se você vai celebrando, celebrando pequenos passos, um passo enorme, um caminho enorme foi trilhado. Tem muito a ser trilhado? Tem, mas esse caminho já existe, já foi trilhado. E parece assim, pequeno. Quando você olha a dimensão da injustiça social que este mundo tem, o Saúde Criança é uma gota d´água. Mas é uma gota d’água que dá enxergar o oceano, entende? Dá para enxergar que o oceano é possível e é um oceano de almas, é um oceano de espíritos, é um oceano de pessoas, é inesgotável, mas é que eu dei a minha vida. Posso dizer para vocês que eu fundei, eu tinha quarenta e um anos, eu joguei a minha vida no Saúde Criança, eu tive um suporte enorme dos meus pais, do meu marido, das minhas filhas, que tiveram que lidar com essa pessoa enlouquecida, que se jogou mundo afora. Eu fazia nove viagens internacionais por ano e agora o dinheiro está em São Paulo, graças a Deus. Basta vir a São Paulo, o dinheiro está aqui dentro, pertinho do Rio. Eu ia tão longe para captar recursos, mas eu acho assim, quando você olha para trás e vê que esse caminho foi real, tudo o que foi feito, todas as horas, toda essa vida desbalanceada que eu vivi, eu acho que valeu a pena. Eu sempre digo para minha terapeuta Julia, digo para ela: “Olha, se eu morrer amanhã, era o que eu queria fazer”. Eu acho que a expressão daquela menina que estava na mangueira e que vivia naquela casinha que depois se materializou no Parque Lage e a sincronicidade que aconteceu bem no início no Parque Lage, tinha um adolescente que me deu uma poesia: “Vera, detesto criança pobre, eu não quero ser voluntário, não tenho dinheiro. Eu tenho uma poesia do gueto pra te dar”, e essa poesia do gueto diz que, quando você se põe em movimento, uma série de coincidências acontecem. Uma série de encontros que você jamais podia imaginar acontecem porque a coragem contencia a força, o poder e as magias. Quando eu li essa poesia, disse: “Menino, por que você me deu essa poesia? Preciso tudo que você não pode me dar”. Quando eu li a poesia vi que a poesia era profética para os próximos vinte anos. Então essa sincronicidade que foi acontecendo, ganhamos o nosso primeiro computador. Chegou uma mulher com uma capa preta, chovendo no Parque Lage. “Eu sou analista de sistemas. Eu sirvo pra alguma coisa?” Falei: “Senta.” Quer dizer, foram acontecendo processos que não dá, eu poderia passar anos falando para vocês. Eu só posso dizer que, um que eu quero terminar, que esse foi incrível. Quando a obra foi embargada, que a engenheira falou: “Vera, está embargado. A gente talvez tenha que desistir do Parque Lage. E eu sabia que eu tinha que ficar ali porque, um local central, perto do Hospital da Lagoa, para disseminar a metodologia. E eu comecei a brigar com Deus. Falei: “Olha Deus, eu quero saber o job...”, eu fui dirigindo o carro, chorando, né? E gosto muito de I Ching, filosofia oriental. Disse: “Olha, eu não quero nem chegar em casa para consultar o I Ching, para saber se eu continuo neste trabalho. Eu quero saber o job description de Deus. Qual é o trabalho de Deus. Porque se o Senhor não ajuda crianças com hidrocefalia, HIV positivo, Deus faz o quê? Me diz. Eu não quero mais nem esperar o carro chegar em casa. Eu quero uma prova. “Eu cansei Deus, estou cansada, exausta. Eu estou num trailer, voluntários com quarenta graus com ventilador de pilha, filas de gente. O Senhor quer ver expulsos? A gente expulsos do parque? É isso que o Senhor quer ver? Eu quero uma resposta já! Como é que se faz, eu continuo neste trabalho?” E, na época, a gente distribuía, não tinha dinheiro para distribuir, plásticos com o nome antigo da instituição e eram uns cem plásticos distribuídos no Rio de Janeiro inteiro. E a pessoa botava atrás do plástico. Eu estou dirigindo e brigando com Deus, cruza um plástico com o nome da instituição. Eu parei de chorar e falei: “Entendi!”. E aí essa história eu conto onde eu vou porque foi uma história verídica e tem a ver com a sincronicidade e com tudo. Eu queria, só para terminar, dizer assim que a Margaret Mead que é uma antropóloga americana que já morreu, ela fala uma frase que acho que vocês já conhecem. Muita gente já deve ter falado essa frase, mas se não conhecem... Eu acho que é o lema que eu acredito assim. É porque, você já viu aqueles gansos que voam assim em “v”? Eu adoro ver esses gansos quando eu estou olhando nuvens e descansando, contemplando, meditando. Eu fico olhando os gansos. Meu pai adorava ver esses gansos. Isso me emociona porque parece que eu estou me comunicando com o meu pai. E os gansos voam assim e, peraí... ah, me lembrei, e quando o ganso da frente cansa ele vai para trás e o outro vem e retoma, né? Enfim, mostra a importância do trabalho em grupo. E a Margaret Mead, que já morreu que é uma antropóloga americana, ela diz o seguinte: “Nunca duvide de um grupo muito comprometido de pessoas porque eles podem mudar o mundo. Aliás, só eles podem mudar o mundo”. Então vocês sabem porque vocês são do Museu da Pessoa, que vocês podem mudar o mundo. Aliás, só grupos assim podem. A gente, esses grupos de pessoas daqui, eu acredito, daqui a cem anos, vão ter pessoas do Museu da Pessoa, assim como vão ter pessoas no Saúde Criança e eu agradeço a entrevista e a possibilidade de dividir.
P/1 – Última pergunta… Queria saber o que você achou de participar desse projeto que envolve os cem anos da White Martins e quais são as suas perspectivas para o futuro da parceria.
R – Olha, eu prefiro primeiro pensar que eu vou ficar velhinha, com cem anos, ainda com mais quase quarenta anos pela frente, usufruindo dessa parceria que já foi tão proveitosa, vendo todos os frutos, desdobramentos do que isso vai acontecer. E eu gostei extremamente de participar. É mais um presente que a White Martins dá. A gente comemora vinte, ela comemora cem anos e, então, eu vejo assim um gigante que dá a mão, eu não vejo a gente como anão não. Eu vejo um gigante dando a mão para outro gigante, porque eu acho que esse trabalho vai perdurar, e eu acho assim, que a White Martins, ela tem o espírito de carinho, de perceber que, por mais que esse gigante não está sendo visto ainda como gigante pelas pessoas. E ela está sendo vista como gigante. Ela quer dar a mão, quer ajudar esse gigante a ser visto como gigante. Que, por enquanto, só temos a semente de gigante, se você comparar com a White Martins, eles apostam nessa semente. Então é mais uma caminhada gostosa que eu sinto com a Cristina, com a Carol e com o Saulo, que são os três que eu interajo na White Martins, que eu estou em família no sentido mais assim aconchegante, porque tem família que, às vezes, a gente está numa situação chata, mas no sentido daquela família que você escolhe. Com amigos você celebra, você chora, com amigos você está inteiro e, com a White Martins, o que eu mais posso dessa experiência de poder partilhar essa história que vai chegar a eles. Eu posso dizer que eu estive no Museu da Pessoa inteira com eles, num total, continuando essa história de total confiança e que eu, do fundo do meu ser, eu agradeço profundamente a eles e quero agradecer, completando, ao Museu da Pessoa. Eu quero agradecer vocês dois e eu quero agradecer a Karen que eu já conheço há muitos anos, que é fellow da Ashoka, por ter tido a criatividade, a humildade, a força, porque não é fácil levar um projeto social adiante no Brasil. De juntar vocês todos e mudar esse mundo, fazer, vocês não sabem, apesar de vocês serem Museu da Pessoa, acho que vocês sabem muito mais do que ninguém contar histórias, mas, às vezes, o dia a dia é tão desgastante, que vocês talvez não tenham a dimensão de que vocês estão transformando o mundo e eu quero que vocês tenham essa dimensão.