Projeto Museu Clube da Esquina
Entrevistado por Tatiana Dias e Zé Santos
Depoimento de Luiz Carlos Pereira de Sá
Belo Horizonte, 18/04/2007
Realização Instituto Museu da Pessoa
Código da entrevista: MCE_CB064
Transcrito por Augusto César Mauricio Borges
Revisado por Ligia Furlan
P/1- Sá, boa tarde.
R- Boa tarde.
P/1- Obrigada por ter vindo.
R- Imagine, o prazer é meu.
P/1- Então vamos começar com você falando pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R- Luiz Carlos Pereira de Sá. Eu nasci em 15 de outubro de 1945, em Vila Isabel, Rio de Janeiro.
P/1- E o nome dos seus pais?
R- Sílvio Pereira de Sá e Zuleica Jambo da Costa Sá.
P/1- Sá, quando é que a música chega na sua infância?
R- Eu nasci no caldeirão da poção, né? Quer dizer, toda semana, todo o fim de semana meu pai reunia uns boêmios lá na varanda. A gente morava naqueles apartamentos antigos cheios de varandas, na Vila Isabel, em uma rua muito sossegada. O engraçado era que a rua inteira vinha ali para baixo da varanda pra ouvir o pessoal tocar e cantar. E eu já caí no “crime” direto, né? Tinha violão em casa, o meu pai tocava, cantava, e eu, com uns quinze, dezesseis anos assim, já estava fazendo as minhas primeiras músicas. Foi uma coisa muito natural, na realidade, eu ser músico. Eu não podia ser outra coisa, não tinha como, apesar de ter sido muitas coisas, nesse ínterim aí.
P/1- E nesse primeiro momento da adolescência, quais eram as suas influências musicais?
R- Bom, eu cresci ouvindo Jacob do Bandolim, Noel Rosa, e ainda assim, nos meus dez, onze anos em Vila Isabel eu comecei a comprar os primeiros discos de Little Richard, Elvis Presley, Bill Halley. Eu tinha uma guitarra de papelão que eu ia para as festinhas, e as meninas achavam aquilo o maior barato, eu fazer mímica de rock com guitarra de papelão. E paravam as festinhas e chamavam as mães: “Vem ver o Luiz Carlos fazer mímica com guitarra de papelão.” Eu me sacudia todo, me contorcia que nem o Elvis, e as mulheres achavam aquilo horroroso. Imagina, Vila Isabel na década de 50 e aquele depravado, ainda na primeira adolescência e mal saindo da infância, e já se contorcendo ali, daquela maneira. Então já comecei assim esse cruzamento de samba e de rock n’roll, e isso me acompanhou a vida inteira, eu comecei a querer misturar tudo, claro.
P/1- E quando é que a música surge e vislumbra já como uma profissão? Quando é que você resolve assumir essa composição?
R- Eu mudei para a Tijuca mais tarde, com dezoito anos, mais ou menos. Eu frequentava a garagem da Luhli. A Luhli, do ___________ até hoje. Luhli com “H”, hoje. E a Luhli, na realidade, foi o que se pode dizer, a minha guru de violão. Fiquei lá colando os acordes dela e coisa e tal. Ela era acho que só um ano mais velha que eu – desculpe Luhli, entreguei tudo (risos) –, mas sabia muito mais do que eu de violão. Não só eu, como uma série de outras pessoas ali, vivíamos em torno daquela garagem todo dia, toda noite tocando, cantando, e ali eu aprimorei a minha maneira de compor. Minhas primeiras músicas foram gravadas pela própria Luhli, em um disco que ela fez para a Philips, chamado ‘Luhli’, um disco arranjo do Guerra Peixe. Esse disco foi lançado em 1965, e aí eu vi as minhas primeiras músicas tocando no rádio. A Luhli gravou três músicas minhas. Em seguida, um amigo meu da Tijuca me levou para me apresentar ao Milton Miranda, que era o produtor artístico da Odeon, e o pai desse meu amigo era médico da Odeon, e a gente tinha um conjunto chamado ‘Meu Velho Vaga’, que tocava bailinhos... Enfim, eu, nessa época, era metido a tocar guitarra, mas eu tocava muito mal. Eu sabia tocar as minhas músicas e compor, mas músicas dos outros... Então resolvi me dedicar mais à carreira de crooner. Eu cantava e fazia muito baile. Eu ia atrás do grupo do Chiquinho do Acordeom né, porque o cantor dele, o Venilton Santos, não sabia cantar em inglês, aí me chamava para cantar o repertório de Ray Charles, de jazz, e coisa e tal. A minha canja vocal, na realidade, foi fazer isso, foi fazer baile ali pelo Rio de Janeiro, aqueles bailes de formatura que a gente deveria ir de ________, de smoking né, e eu lá, cantando. Subia, coisa e tal, e “(the songs? ___________?). As meninas adoravam, e eu, consequentemente, também. Mas eu estava contando a Odeon, fui apresentado ao Milton Miranda e o Milton fez com que a Rosa Maria, hoje a Rosa Marya Colin [no final dos anos 90 Rosa Marya Colin mudou seu nome para Rosa Marya Colyn; com “Y”], que estava gravando o primeiro disco, gravasse uma música minha chamada ‘Capoeira de Oxalá’, e o Peri Ribeiro gravasse um outro samba chamado de ‘Giramundo’, que esse sim foi um sucesso nacional, tocou em tudo que é rádio. Nessa época eu era bancário, trabalhava no Banco de Crédito Real de Minas Gerais. Isso já estamos em 1965, eu já com 20 anos. E eu tive... Eu fui posto ali naquele banco. Vou contar a minha historinha, como é que foi: a minha mãe estava apavorada com o óbvio, né, que estava acontecendo; eu, se músico... E eu estava fazendo faculdade de Direito, nessa época. Eu estava no segundo ano de Direito, mas é claro que eu vivia ali no “crime”, né; eu fazia baile, ganhava a minha própria grana, não tinha nada que dever para ninguém. Tinha uma boate do Sargentelli na Tijuca, que ele levava as pessoas que estavam surgindo [para] lá. Eu conheci Dori Caymmi, Paulinho Machado, Sérgio Mendes, o pessoal que ia dar “canja” ali no Pianinho do Sargentelli, numa boate lá no meio dos cafundós da Tijuca, e eu vivia naquela boate. Toda noite eu ia lá tomar uísque e ouvir os caras. Minha mãe olhou aquela vida e disse: “isso não é vida para o meu filho”, e me botou no Banco de Crédito Real de Minas Gerais. Tinha um amigo lá e eu fui convencido a trabalhar sob pena de ter o meu carro tirado de mim. Naquela época a gente obedecia aos pais né, era muito engraçado, tinha medo até dessas coisas acontecerem. Aí eu fui lá para o banco. Eu também estava a fim de ganhar mais grana, e uma grana mais certinha, né, vamos dizer as coisas ao bem na verdade. E no banco tinha um cara que trabalhava num aquário ali adiante, pertinho de mim, que ele às vezes vinha e às vezes não vinha. Eu perguntava pra ele: “Vem cá, por que é que esse cara não vem todo dia, que nem a gente?” “Não, mas ele é músico.” “Músico?” “Como é que é o nome dele?” “É Durval.” E eu fui lá conhecer o cara, e o cara era o Durval Ferreira. Quer dizer, minha mãe me levou ao crime um pouco mais profundamente. Eu conheci o Durval e o Durval me apresentou aos editores, estava tocando a música do Peri Ribeiro. O Durval me apresentou na editora Vitale, e chegou lá o Aloísio Vaca Brava para falar comigo, o Durval soprando para mim “pede 500, pede 500”, e eu pedi 500. Quinhentos eram, mais ou menos, uns 10 salários meus no Banco de Crédito Real. O Aloísio deu os 500 e eu saí do banco (risos). Quer dizer, a minha mãe queria ser a inocente da minha carreira musical e acabou sendo a culpada. Aí eu comecei, realmente, a viver de música durante um tempo. Você quer que eu continue a contar a minha biografia ou vocês têm outras perguntas?
P/2- Não, não. A gente vai pontuando, porque, por exemplo, em 1972 é que você lança o primeiro disco com o Sá Rodrix e Guarabyra, não é isso?
R- Isso, isso.
P/2- Mas você conheceu essa turma quando?
R- Pois, é. Com esse conhecimento meu com o Milton Miranda, na Odeon, eu gravei um demo [demonstração] na Odeon, e o Milton me achou meio verde, disse: “Vamos gravar mais músicas tuas.” Porque naquela época o trampo era esse, né? O compositor, cantor, gravava antes as músicas e depois aparecia para dizerem: “olha, esse é o disco do fulano, que fez isso, isso, isso, isso e aquilo”, né? Mas acontece que, nesse entretempo, eu gravava uma faixa de novela, gravei uma faixa de novela na ‘Minha Doce Namorada’, o Nelsinho Motta começou a me produzir e fez com que eu formasse um grupo com Paulinho machado chamado ‘A Charanga’, e a gente tocou no Festival Internacional. O Nelsinho também me botou no “crime” aí da propaganda. Abriu uma produtora com o Marcos e Paulo Sérgio Vale, e eu comecei a fazer gingo também com ele. E, mais ou menos, em 1969, por aí, eu estava em um grupo chamado ‘Grupo Mensagem’, que fez uma espécie de musical no Teatro Opinião, dirigido pelo Armando Costa, que se chamava ‘Samba Pede Passagem ’. Nesse grupo, estávamos eu, o Sidney Milller, a Soninha – que hoje é do Quarteto em Cy... Não sei se ainda é, acho que é –, o Marcos Antônio Menezes, que era um outro compositor, e o Paulo Tiago, que hoje é cineasta e que era parceiro do Sidney Miller. Esse grupo ‘Mensagem’ foi formado pelo Nelson Lins de Barros, que era um grande guru da época, um poeta mais velho e coisa e tal, que juntava em torno deles jovens compositores e lançavam. O Nelson Lins de Barros deu uma festa na casa dele e me apresentou a um jovem baiano que tinha chegado – isso em 1966 – da Bahia. Eu até brinquei: “Pô, Nelson, mais baiano? Isso aqui está cheio de baiano!” E aí eu conheci o Goldenberg (Guttemberg?) Guarabyra e nos transformamos num trio inseparável eu e ele e o Sidney Milller. A gente foi lançado não como um trio, mas, nas terças-feiras do Casagrande, pelo Sergio Cabral, no Teatro Casagrande, e cada um fazia o seu setezinho. Eu era cantor de protesto, pesava a barra, coisa e tal. Várias vezes eu tive que sair correndo porque tinha um general lá no meio do negócio e aquelas coisas de 1967 ainda, e em 1968 piorou um pouco. Quando piorou um pouco e eu comecei a ter músicas censuradas, eu fiquei chateado e resolvi largar a música, fui fazer Jornalismo, primeiro no ‘O Sol’, que até saiu um documentário há pouco que eu fiz parte, da Tetê Moraes sobre o jornal Cultural que o Reinaldo Jardim lançou junto com o Correio da Manhã, mais tarde com o Jornal dos Esportes e mais tarde no Correio da Manhã, quando eu editei um caderno de música e _________ chamado Plug. Trabalhavam comigo o Torquato Neto, Ari (Waly?) Salomão, a Mônica _________, um pessoal super legal. A minha fase jornalística foi maravilhosa. Fiz algumas músicas nessa época com o Torquato também, que permanecem inéditas até hoje, eu vou lançar agora, em disco solo.
P/2- Ah é?
R- É.
P/2- Que maravilha.
R- Até eu estive lendo a biografia dele, do Toninho Vaz ,e tem uns trechos também de uns dois depoimentos que eu dei para o Toninho; o Toninho não falou dessa música inédita, mas foi ele quem achou no baú do Torquato o resto da letra. Eles pesquisando para a biografia, ele achou o resto da letra. Eu falei pra ele: “Toninho, eu tenho uma música inédita como Torquato que eu só me lembro da primeira parte. Eu sei que tem uma segunda, vê se você não consegue lá com a Ana Maria – ex-mulher dele, viúva dele – essa parte.” Ele vasculhou o baú e achou a letra, o resto da letra, eu pude completar a letra quase 30 anos depois, mais de 30 anos depois, e eu vou gravar agora. Mas, enfim, eu estou __________. Aí conheci o Guarabyra e a gente teve essa parte, só viemos compor juntos, na realidade, em 1971. E também nessa época eu fui a um festival, fui ser júri num festival estudantil, com o Nelson Lins de Barros, me chamou: “pô, vamos ser júri de um festival estudantil” Tinha um jovem quarteto começando chamado ‘Momento Quatro’ que me impressionou muito. O ‘Momento Quatro’ era o Maurício Maestro, David Tyguel, Zé Rodrix e... Eu já ia dizer Cláudio _______, depois era o ‘Boca Livre’. David Tyguel, Maurício Maestro, Zé Rodrix e Lourenço Baeta. Cara, eu não consigo me lembrar do quarto [membro] do Momento Quatrista. Davi, Zé... Ah, e o Ricardo Vilas, claro, que depois foi preso, deportado, foi trocado pelo embaixador e foi fazer carreira na França, onde está até hoje, né? Bom; conheci o Zé, conheci o Guarabyra, mas nada disso era um grupo. O grupo se formou como? Quando eu me separei do meu primeiro casamento, eu saí de casa só com meu Bug Gurgel, uma cama comprida, de solteiro – que era extraordinariamente fina, o que prova que eu era extraordinariamente magro naquele tempo –, e sem saber o que fazer eu parei o carro na Praça da Paz e fiquei ali, sentado do lado do carro, dizendo: “E agora, o que é que eu faço?” Aí passa e o cara falando: “Sá, Sá!”, e quando eu olho era o Guarabyra. “O que houve, o que você está fazendo aí?” O cenário era dantesco: eu e o meu bug com aquele cama horizontal cravada no banco de trás. Disse: “Cara, saí de casa, briguei com a mulher, separei, e estou aqui, sem saber para onde vou.” Ele disse “Olha, vai pra minha casa.” Ele morava na Nascimento Silva, junto com o jornalista Toninho Neves e com o Zé Trajano, também jornalista, que é hoje da... Band? Não, ele tem um programa nessa SportTV, o Zé Trajano. E aí eu fui morar com o Guarabyra, eu com a minha cama fininha no quarto dele – porque só tinham três quartos, o apartamento – e com o bug lá estacionado na calçada, porque a gente não tinha dinheiro pra botar... Ele tinha um Fusca e eu um bug, mas nenhum dos dois tinha dinheiro pra botar em qualquer... O dia que a gente teve dinheiro para botar gasolina, o meu bug não pegou, eu saí com o carro dele e bati. Dei um “prejú” pro Guarabyra (risos). Em compensação, depois eu dei lucro para ele também. Vamos e venhamos; empatou. E a gente vivia naquele apartamento. O apartamento era assim, uma “zorra”, uma “zorra” total mesmo. Uma vez eu cheguei de uma balada qualquer, eram quatro horas da manhã e estava todo mundo jogando futebol pelado no vãozinho do apartamento, os convidados da festa lá do Toninho e do Guarabyra. Bom; acontece o seguinte: nessa época eu comecei a fazer muita música junto com o Zé Rodrix, que morava na Prudente Moraes, que era quase porta a porta com a gente. O Zé vivia lá, porque a gente fazia as músicas, ensaiava, e o Guti fazia um vocal: fazia um triozinho. Nessa época, o Zé estourou com ‘Casa no Campo’, e eu também participei do meu primeiro festival de Juiz de Fora, que foi onde eu conheci “o grosso” do Clube da Esquina. Quer dizer, não um grosso do Clube da Esquina, o total; o pessoal. Conheci Toninho Horta nesse festival... Já tinha conhecido Nelsinho Ângelo, vivia com Nelsinho Ângelo, [que] nesse tempo era casado com a Joyce, para baixo e para cima também. Conheci quem mais? Conheci o Lô, o Beto, o Marcinho, tudo isso em Juiz de Fora. O Marcinho não, o Marcinho eu conheci antes, em uma casa que ele morava em Santa Tereza, que eu sempre tinha “grilo” de ir naquela casa, porque, é claro, chegava lá conforme o diabo gostava e tinha a impressão que a casa ia cair lá embaixo (risos). Eu visitei muito pouco o Marcinho por causa disso, eu sempre achei que a casa dele ia cair. Felizmente não caiu, e acho que está lá até hoje, na Almirante Alexandre. Mas nessa época foi que eu realmente me expus, conheci o Milton, me expus à música mineira e achei aquilo uma absoluta novidade. Aquilo, as músicas do Lô, do Milton e do Beto caíram como uma ficha, uma gigantesca ficha telefônica na minha cabeça. E acho mesmo que, apesar de já ter uma personalidade forte – musicalmente –formada nessa época, quando a gente fez o Sá Rodrix e Guarabyra, o Zé vinha do ‘Sol Imaginário’ e a gente vivia ali em Juiz de Fora; e vinha muito aqui em Belo Horizonte. Naturalmente, nós pendemos para Minas, para gravar essa pendência mineira. O Guarabyra é do Vale de São Francisco, que não é mineiro e nem baiano. Ele é baiano de certidão, mas na realidade o São Francisco é um grande rio mineiro, mais mineiro do que tudo, ou “baianineiro”, se quiserem falar assim. Porque tem uma personalidade própria ali no Vale, desde a Serra da Canastra as coisas começam mudar. Pirapora eu acho parecidíssimo com a Bahia, e chega na Bahia, você acha parecidíssimo com Pirapora. É uma confusão infernal, e a gente chega à conclusão de que o estado de São Francisco existe e a capital é Montes Claros. E cheguei... Onde é que eu estava? No São Francisco. Quando eu cheguei e o Guarabyra me levou para subir o rio, para descer o rio... Aliás né, com ele, de Pirapora em diante, fomos até depois de Bom Jesus da Lapa um pouco. Não cheguei até ali, a Barra do Rio Grande, onde ele realmente nasceu, mas ele tinha sido criado em Bom Jesus da Lapa, os pais dele moravam lá e a gente todo ano ia lá por terra, por mar, pelo ar, pelo rio: do jeito que dava. Eu me lembro, por exemplo, a minha primeira viagem foi com esse bugzinho Gurgel. A gente fez Rio, Juiz de Fora, paramos na casa da Sueli Costa, ficamos lá uns dias, aí Belo Horizonte paramos aqui na casa de uns amigos e ficamos aqui uns dias. Montes Claros, a gente parava em Montes Claros e ficava lá uns dias e vinha. Janaúba, Porteirinha, Monte Azul, Mato Verde, Espinosa, aí entrava na Bahia: Caetité, Riacho de Santana, Bom Jesus da Lapa – que é uma cidade que é um tapa na cabeça, até hoje, de quem vai. Você chega lá, tem um rio enorme, o São Francisco; muito lago ali, um morro de lava de cem metros de altura e uma gruta e uma romaria de 60 mil pessoas, entende? E aquelas pessoas cantando pelas ruas com as velas acesas assim, eu fiquei assim, “absurdado” com aquilo. Eu disse: “Cara, o Brasil existe não é no Rio.” Porque o carioca tem essa mania né, acha que tudo é no Rio e para ali.
P/1- Sá, desculpa te interromper.
R- Claro.
P/1- Mas assim, essa história dessa grande ficha da música mineira que caiu sobre você, qual era aquela inovação? O que aquela música trazia de diferente?
R- A mágica, antes de mais nada. Era muito mágico você ver o Milton cantar: “trabalhando o sal, a vida e o suor que me...”, desde aí até as profundidades, até Beto Guedes, Tavito. Tavito, por exemplo, eu acredito até hoje que o violão que eu toco é herança do Tavito. Eu ficava assim: “_________________________”, aquele swing feroz... Eu disse assim: “Pô, eu quero tocar que nem você.” Sabe como é que é? Espero que hoje em dia eu esteja tocando parecido com ele, porque era muito forte o violão do Tavito, é muito forte, ainda. E via aquelas músicas malucas do Nelsinho, né? No primeiro disco de Sá e Guarabyra os arranjadores eram Rogério Duprat, Nelsinho Ângelo, e o Eduardinho Souto Neto. Mas essa ficha que caiu foi essa mágica da música mineira, essa cara de uma coisa presa entre montanhas misteriosas, meio que fechada atrás de uma porta, meio que com certo desespero, sabe como é que é? Porque o carioca não tinha... O carioca é leve, relax, isso e aquilo, e Minas tem um mistério, tem um “entre montes”, o beira de rio, aquela coisa “hum, humm”, acordes misteriosos com “________” umas sextas, e coisa e tal. Aquilo tudo me fascinou. Eu me lembro até hoje de eu ali nos camarins do Teatro Central de Juiz de Fora ouvindo música e música e depois de música, mais música... Sabe como é que é? Era a noite inteira até a gente entrar pra fazer o festival, e até fazer o ensaio era Tavito, Nelsinho, Beto, o Lô, todo mundo ali, tocando, ouvindo e trocando ideias. E acho que, até por proximidade geográfica... Apesar de eu ter conhecido Caetano, Gil e Tom Zé, todo mundo em início de carreira no Rio, e a gente tinha sido contratado do escritório do Guilherme Araújo, junto com eles para fazer um programa lá em São Paulo – que depois não vingou –, eu pendia mais para Minas. Eu acho que a Bahia já não era mais tanta novidade pra mim, porque eu tinha o elemento negro, eu nasci em Vila Isabel, na beira do morro. Eu sou “pé-de-morro” legítimo, e samba, coisa e tal. Então o baiano, apesar de achar lindíssimas as músicas do Caetano e do Gil, não era tão misterioso pra mim, não me atraía tanto quanto essas músicas mineiras, que para mim eram profundas e tinham umas dores que eu não conhecia, entende? E realidade é isso. O primeiro dia que eu fui na casa do Bituca, lá em Três Pontas, que eu entrei no porão e eu não sei quem começou a me contar uma história de que um raio tinha caído naquele porão e tinha uma pedra de raio. Uma pedra se formava sempre onde um raio tinha caído. Aquilo, pra mim, foi um mistério absoluto. Eu saí de Três Pontas e fiz uma música chamada ‘Pedra de Raio’ que eu nunca gravei, não sei por que. Acho que eu nunca gravei porque ela é tão mineira que eu fiquei com medo: “O cara está imitando o Bituca.” Não gravei de medo, eu acho. A realidade é essa. Porque é: “Pedra de raio segura na mão/ noite tranquila...” As aranhas mineiras estavam todas ali. Eu, na realidade... Foi feita em lócus, feita em Três Pontas e por Três Pontas, e por causa de Três Pontas acabou que eu não gravei, porque eu disse: “Vão dizer que eu estava imitando o Milton”.
P/2- Sá, durante toda a sua carreira você teve músicas que o pessoal do Clube gravou e você gravou músicas do pessoal do Clube. Vamos falar de algumas dessas músicas?
R- Sá e Guarabyra, ou Sá Rodrix e Guarabyra, gravavam muito pouca gente de fora. A gente tinha muita música pra botar, e era muito difícil. Mas, no quarto, a gente gravou do Toninho Horta e do Fernando Brant o ‘Falso Inglês’, que eu achei primorosa, aquele letra.
P/2- Maravilhoso, né?
R- E é a minha cara, porque quando eu fazia aquelas mímicas de rock, né, _______________________________” e coisa e tal, e assim mesmo, era exatamente isso que eu fazia. “Vamos gravar o ‘Falso Inglês’”, e gravamos. Tirei o Toninho daqui. O Toninho: “Bom; eu não vou ter tempo.” “Você não vai ter tempo de que, cara? Amanhã você está aqui em São Paulo”. Ele chegou lá, gravamos o ‘Falso Inglês’, e ficou ótima a gravação, até hoje eu ouço com muito prazer. Cansei de fazer música com o Flavinho. Eu acho que sou um dos primeiros parceiros do Flavinho. Começamos com ‘Criaturas da Noite’ – que foi um hit –, com ‘Um Terço’. Flavinho, é muito engraçada a história, posso contar? A gente ligou para o Bituca, e quando o trio Zé Rodrix saiu e começamos com a dupla, com o Sá e Guarabyra, faltava um tecladista. Aí ligamos pro Bituca e dissemos: “pô, não é possível que Belo Horizonte, que é uma cidade onde você chuta músico no meio da rua, literalmente, você não tem aí um tecladista para mandar pra gente.” “Não, claro que tenho, me dá uns dias aí.” Uns três dias depois liga o Bituca de volta, e disse: “Olha vou te mandar um rapaz que se chama Flavio Venturini, um cara novo que está começando e que vocês vão adorar”. O Guti era casado com a Guairá _____________, que morava ali, porque os pais dela moravam na Vieira Solto, na esquina da Fagner Bueno, e a gente combinou com o Flávio na esquina da Vieira Solto com a Fagner Bueno achando que ele ia ficar na casa de alguém, e isso e aquilo. Estamos lá de noite, esperando o Flávio chegar, olhando o mar, aquele cenário “horroroso” e: “O cara não veio. Já são nove horas da noite, o cara não veio.” Olhamos assim e tinha um poste, e tinha um cara parado com uma mala e um saco de plástico. Uma mala numa mão e um saco de plástico na outra, olhando para o mar. Eu disse: “Guti, aquele cara é mineiro.” Ele entendeu a esquina mesmo, né?” Aí ficamos olhando e o cara estava lá já há uma meia hora, parado lá. Vai pra cá, vai pra lá e olha pro mar. A gente assoviou, chamou, ele olhou para cima: “Flavio?” Ele disse: “É.” (risos). Subiu, tocou quinze minutos de piano e a gente caiu de costas. Disse: “É você e coisa e tal?” E levamos ele para São Paulo, junto com o resto da banda. O resto da banda era justamente o Sérgio Hinds, era o que tinha sobrado do ‘OTerço’, que tinha desmanchado. Sergio Hinds, Luiz Moreno, Sérgio Magrão – que hoje está no 14 BIS, começou tocando com a gente também no Rio. E um belo dia a banda chegou pra gente e disse: “Olha, a gente vai fazer solo” “Vamos refazer o ‘ OTerço’.” A gente ficou horrorizado: “Perdemos a nossa banda.” Mas perdemos para o bem, porque foi o terço do Terço que nasceu o 14 BIS, que está aí até hoje.
P/2- Mas então (foram?) o que? O ‘Falso Inglês’, ‘Eu, Caçador de Mim’?
R- O ‘Eu, Caçador de Mim’ é uma música que eu fiz com o Sérgio Magrão, o baixista do 14 BIS, que também tem uma história esotérica a pampa.
P/2- Ah, é?
R- Eu tinha um estúdio em São Paulo. Nessa época, o Magrão estava com ‘O Terço’, ainda era ‘O Terço’. E o Magrão, que nunca compunha e que eu nunca tinha ouvido falar que ele estivesse compondo, um belo dia ele chegou pra mim e disse: “Poxa, eu tenho uma música que eu queria que você botasse uma letra.” Eu disse: “Que legal Magrão, você está compondo agora. Beleza, mostra aí”, meio paternalista, com aquela cara de compositor veterano e o Magro mostrou a melodia do ‘Eu Caçador de Mim’. Eu fiquei apaixonado pela simplicidade e como a música fluía. Isso aqui eu disse: “Cara, que maravilha!” A gente estava no meu estúdio. Eu subi, abri a minha gaveta de letras – eu tinha um monte de letras lá –, e vi uma letra que eu tinha começado chamada “Caçador de Mim”. Essa letra, a divisão da letra, caía certinho na música do Magrão. O Magrão olhava para mim e dizia: “Ah, você está de sacanagem. Não é possível!” É isso mesmo, ‘Eu Caçador de Mim’... Essa letra eu tinha lido um livro chamado ‘The Catcher in the Rye’, do J.D. Salinger.
P/2- ‘O Apanhador no Campo de Centeio’.
R- E não sei por que, eu lia o livro e ouvia “caçador de mim”. O cara se procurando e tentando achar a personalidade dele e eu “caçador de mim”, “caçador de mim”, “caçador de mim”. Fiz a letra e pouquíssimas coisas, a segunda parte eu acho que eu fiz depois de ouvir a música do Magro, o resto estava tudo ali já. Achamos lindo, maravilhoso, mas como ‘O Terço’ ia gravar... Era ‘O Terço’ ou o 14 BIS? Era o 14 BIS, né? Era 1981, já era o 14 BIS. Como o 14 BIS ia gravar e como a gente tinha muita música junto, eu com o Flavinho, eu com o Vermelho, O Guti com o Vermelho, o Guti com o Flávio, a gente procurava combinar: “Não, você grava essa, eu gravo aquela; eu gravo essa e você grava aquela”. Por isso a gente só gravou o ‘Eu Caçador de Mim’ acho que uns dois ou três [meses] depois, num disco ao vivo. Não. Gravamos ao vivo no mesmo ano, mas depois do 14 BIS. Primeiro o 14 BIS, depois o Milton gravou. O Milton escondeu de mim, porque o Bituca é sacana, ele escondeu de mim e mandou o Magro dizer: “Não fala que eu vou gravar a música dele.” O Magro todo dia chegava para mim felicíssimo e eu nada. Um belo dia, eu passo numa loja de disco e está o Long Play lá preto ‘Eu Caçador de Mim’. Eu digo: “Pô, que sacanagem. O Bituca botou o nome da música aí?” Porque eu não achei que ele tivesse gravado. Aí virei e estava lá o ‘Eu Caçador de Mim’, aí eu caí de costas. Liguei para ele ao mesmo tempo em que... Emocionado, muito puto também, dizendo: “Você é um sacana!” ____________. “Mas a música é minha” – ele dizia –, “é a minha cara, essa música é minha, todo mundo vai dizer que é minha” (risos).
P/1- Sá, você falou como é que a música mineira tocou para você. Qual você acha que foi a grande contribuição do Clube da Esquina para a música, para o mundo?
R- Inestimável, inestimável! Houve uma época em que o Brasil se dividiu entre baianos e mineiros, né? Nós, os cariocas, ficamos absolutamente... Os cariocas e os paulistas estavam ali no final do chão. “Vem cá, você é dos mineiros ou é dos baianos?” Eu digo “Não, eu sou carioca.” “Humm, carioca; humm, paulista.” Era a mesma coisa de você não ser músico. Pra minha sorte, eu estava agarrado em um baiano e em um cara que tinha saído do Som Imaginário, que era praticamente mineiro, que era o Zé Rodrix. E é tão engraçado que você me perguntou... O que eu vou dizer o que eu acho? Imagina se não tivesse havido o Clube da Esquina? É mais fácil, né, você imaginar que a música... É a mesma coisa de você imaginar que a música popular brasileira hoje em dia é uma música capenga. Ela só ia ter um lado, porque o outro lado todo quem fez foram os mineiros. Você tem um lado que tem uma parte negra, percussiva né, que é o lado baiano, que depois foi urbanizada e levada, vamos dizer, nordestino – vamos generalizar mais porque tem os pernambucanos também: o Lenine, os paraibanos, o Chico César. Enfim, essa música do nordeste e o outro lado que você tem, que é uma música popular que nasceu dos mineiros, das harmonias do Milton, até dessa simplicidade melódica que encaixa dentro de uma harmonia extremamente sofisticada que o mineiro tem. Ou, às vezes, a complicação melódica que está atada numa harmonia básica, e os mineiros também fazem isso. E muita... Quer dizer, você não vê, por exemplo, a raiz carioca, a Bossa Nova e o Samba, nem na Bahia, que tem uma samba muito diferente e que você não pode... Não tem nada a ver com o samba do Rio, o samba da Bahia. O samba da Bahia veio dar um axé, e o samba do Rio veio dar outro (sentido?) numa evolução da Bossa Nova, que era a música mais de terra que veio a dar aquela música de protesto e coisa e tal. E os mineiros naquele núcleo próprio, né? Eu acho estranho, por exemplo, não vejo hoje que... Deveria ver o que está acontecendo com a Bossa Nova no Rio de Janeiro, deveria estar acontecendo com a música que o Clube da Esquina fez aqui. Cadê os “novos mineiros”? (risos) Entende? Claro que hoje é muito mais difícil, você não pode dizer, por exemplo, que o Skank são “os novos mineiros”, ou o Pato Fu. Eles têm raízes mais seguras, vamos dizer, num rock e coisa e tal. Não vão ficar aborrecidos comigo, a Fernanda Takai nem o Samuel Rosa, se eu ficar dizendo isso, mas, pra quem está de fora, é isso que a gente vê. Muito embora eles tenham crescido ouvindo o Clube da Esquina, isso não transparece na música deles de maneira direta, você está entendendo? Acredito que, com o tempo, na medida em que essas pessoas vão ficando mais velhas, elas vão querendo tirar mais do fundo, como está acontecendo hoje com a Bossa Nova no Rio. Os mais jovens não estão naquela raiz de Bossa Nova, e tem um outro ramal, que é o ‘Pedro Luís e Parede’, e tal. Outra parada. Mas os caras que estão com trinta e tantos ou 40 anos, estão querendo sugar aquela Bossa Nova do fundo e transformar aquilo em outra coisa. Então eu acho que essa música do Clube da Esquina ainda está pra ser transformada em outra coisa. Eu não diria reciclada porque isso não é uma reciclagem, mas uma transformação mesmo, uma filtragem que os anos fazem com as músicas. E continuamos esperando os novos mineiros. Vim morar aqui em Belo Horizonte, eu estou morando aqui há quase dois anos já, não só porque estou casado com uma mineira de Montes Claros, como também vim [porque] queria música, sabe como é que é? Queria ouvir essa música em cada esquina e em cada bar como eu ouvia na década de 80 e 90 aqui, que você ia pra qualquer barzinho com música ao vivo e chegava, sentava um cara com violão e “acabava” com o baile ali. Eu estou sentindo falta disso, estou achando Belo Horizonte muito roqueira, ainda. Que tudo bem, eu adoro rock n’ roll, vivo ouvindo os meus Red Hot Chili Peppers e coisa e tal, mas estou sentindo falta dessa nova... Acho que essa parte, por exemplo, do Museu do Clube da Esquina, é importantíssima pra perpetuar isso e pra mostrar que Minas tem sempre uma presença marcante na música brasileira, tem que estar sempre na linha de frente. E como mineiro é muito tímido e o baiano é muito atirado, você vê mais baiano na linha de frente do que mineiro. Não é uma briguinha bairrista e nem nada, é simplesmente a vontade de uma pessoa de ouvir de novo, em cada esquina de Belo Horizonte, música de altíssima qualidade, e de altíssima profundidade também.
P/2 - E Sá, a gente queria combinar com você de depois fazer uma segunda rodada, porque você é um grande contador de história, e cada música tem uma história maravilhosa por trás.
R- Vamos fazer, pô. Obrigado pelo o “grande contador de história”.
P/2 – Não, mas é.
R- Vou até começar a pensar em um programa de televisão (risos).
P/2 - E a gente agradece aí.
R- Ah, beleza, foi um prazer estar aqui, e já começo a não dormir esperando a segunda rodada.
P/2- (risos).
P/1- Beleza; bacana. Nossa!
Título: Caçador de Mim
Biografia
Carioca, nasceu no dia 15 de outubro de 1945. Aos quinze anos de idade, já praticava música, sozinho, no violão do pai. Aprimorou seus conhecimentos com sua colega, Luhdi, e viu suas primeiras composições tocarem nas rádios pela primeira vez através da voz da amiga. Estava no segundo ano do curso de Direito e trabalhando no Banco de Crédito Real de Minas Gerais quando a carreira musical deslanchou e, através de pessoas que conheceu, traçou seus rumos artísticos como compositor. Compôs músicas para novela, para Milton Nascimento e fez uma série de parcerias com artistas brasileiros de destaque.
Sinopse
Da infância no bairro da Vila Isabel, Luiz se recorda da boemia que acontecia embaixo de sua varanda. Performava Elvis Presley com uma guitarra de papelão, mas foi com a música mineira que se deslumbrou.
Trabalhou como cantor em bailes para ganhar dinheiro, mas a mãe, preocupada, tentou contrariá-lo, e o pôs para trabalhar como bancário ao tempo em que cursava Direito. No banco, por feliz coincidência, conheceu o produtor Durval Ferreira, que conduziu ao cenário musical. Daquele momento em diante, pôde ouvir suas composições nas rádios sob a voz de artistas consagrados, além das inúmeras parcerias e shows ao longo da carreira.