Museu da Pessoa

Fio condutor da emoção

autoria: Museu da Pessoa personagem: Célio Balona

Projeto Museu Clube da Esquina
Entrevista de Célio Balona
Entrevistado por Stela Tredice e Tatiana Dias
Belo Horizonte, 17 de setembro de 2005.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HV_026
Transcrição Léo Dias
Revisado por Bruna Ghirardello

P1 - Célio, eu queria que você começasse falando seu local e data de nascimento.

R – Meu nome é Célio Balona Passos, eu nasci em Visconde de Rio Branco, em 17 de Dezembro de 1938. Visconde de Rio Branco e na Zona da Mata de Minas Gerais.

P1 – E o nome dos seus pais?

R – Meu pai é Lourival Passos e minha mãe é Maria Balona Passos, também lá de Visconde do Rio Branco.

P1 – E qual era a ou é a ligação dos seus pais e avós com a música?

R – A ligação maior, no caso, é meu pai, que gostava de trabalhar com artes lá em Visconde do Rio Branco, ele escrevia peças para teatro, era poeta, mas não conseguia viver disso, então ele trabalhava em farmácia e depois se tornou um representante comercial e trabalhava com produtos farmacêuticos. E pelo lado da minha mãe, que a descendência dela é portuguesa, eu tinha um tio que gostava muito de música, nunca tinha estudado, mas era uma pessoa que era fascinada por música. Tem até uma coisa interessante, porque uma vez ele foi assistir a um filme naquela época e viu uma pessoa tocando violino e ficou apaixonado com o instrumento e como ele era um marceneiro excelente, ele fez um violino e na época, eu não sei se hoje ainda é assim, o arco tinha que ser com crina de cavalo, então tinha um cavalo na fazenda do meu tio, ele foi lá e cortou o rabo do cavalo para fazer o arco do violino, minha avó o deixou de castigo, ele era muito novo nesta época. Então acho que é por estes dois lados, meu pai que era um lado mais forte, porque sempre foi uma pessoa que gostou muito de música e depois já de casado, eu tinha uns oito anos, ele gostava muito de compor, tocava alguma coisinha de violão, não era um músico, mas teve oito músicas dele gravadas pelo Luiz Gonzaga, que se tornou um grande amigo dele. E escreveu dois livros, um chamado Quatro Caminhos e o outro, um livro de trovas, chamado Sol de Primavera.

P1 – E o que você ouvia, o que o seu pai ouvia? Rádio?

R – O meu pai, naquela época, gostava muito de música brasileira, ele gostava muito do Silvio Caldas, Orlando Silva e na parte de música internacional ele gostava muito de Tito Schipa, Beniamino Gigli, Caruzzo, eu me lembro de que, assim, lá em casa, na hora do almoço, tinha aqueles discos de setenta e oito rotações que não pode cair no chão, se não eles se quebravam. E eu me lembro de que ele colocava, tinha retrato do Tito Schipa, do Caruzzo na cristaleira lá de casa e toda noite, naquela época não tinha televisão e o que ele fazia? Reunia a família, somos cinco irmãos, tenho três irmãs e um irmão e a gente era muito pequenininho e ele colocava uns discos de ópera, a gente ficava sentado escutando ali depois do jantar e eu, desde cedo, me sentia muito bem com aquele universo ali criado por ele e pela minha mãe também. E na minha terra, tinha uma professora de canto Dona Dissinha Soares e eu queria, de qualquer jeito, fazer alguma coisa com música, eu já estava sentindo isso, então com sete anos eu fui estudar canto com ela. Depois viemos para Belo Horizonte, ficamos por dois anos e pouco, aí ele foi transferido para Juiz de Fora. Lá em Juiz de Fora nós fomos morar perto do Batalhão de Guarda, do 2.º Batalhão, lá em Santa Terezinha e pra mim foi uma coisa maravilhosa, porque pra mim tinham duas coisas que eu adorava uma era o campo de futebol pra gente jogar pelada em frente de casa e no fundo tinha o batalhão, onde a banda de música ensaiava todo dia, então aquilo ali pra mim era o paraíso e tinha um senhor que morava perto do campo de futebol que a gente jogava as nossas peladas lá todos os dias, ele a tarde tirava o acordeom e ficava tocando ali. Eu deixava de jogar futebol para ficar lá perto da casa dele escutando o acordeom que era um instrumento que eu sentia uma paixão muito grande. Aí meu pai foi transferido para Belo Horizonte, isso aí eu já vim pra cá com 11 anos e por sorte minha, fomos morar a duas quadras de uma academia de acordeom da Dona Zilá Guimarães e um dia eu passei e vi aquele barulho de gente tocando aí procurei saber, era uma academia de acordeom, eu morava ali na Rua Aimorés, perto da igreja da Boa Viagem e a Dona Zilá era na Bernardo Guimarães. E aí eu falei com meu pai, mas meu pai estava numa situação financeira meio difícil, estava difícil comprar um instrumento. Então eu comecei, a Dona Zilá me emprestava o acordeom e eu estudava, ela me passava o exercício e eu estudava, mas eu não tinha acordeom. E aí, eu acho que a vida te coloca frente a frente com uma série de situações que podem definir a sua vida e a minha vida foi definida numa coisa que aconteceu comigo: eu não tinha o dinheiro para comprar o acordeom, na época era caro, papai trabalhava muito e minha mãe tomando conta dos filhos, aí tinha um programa na Rádio Nacional do Rio de Janeiro chamado Gente que Brilha e esse programa era toda segunda feira às oito horas da noite e apresentava vários artistas da música brasileira e o apresentador chamado Paulo Roberto fazia uma pergunta no início do programa e se você prestasse atenção ele dava a resposta ali no meio do programa e a pergunta pra mim foi a seguinte: qual era o nome de Garoto? Um grande violonista, maravilhoso violonista brasileiro. Aí eu procurei saber, Antônio Augusto Sardinha. Nessa época, esse programa era patrocinado pela Bombril. Aí eu falei com mamãe: “mamãe, você me arruma seis votos de Bombril?” tinha que ser seis votos e eu escrevi a carta. Ai papai falou assim: “eu vou perder o dinheiro do selo, porque isso aí é o Brasil inteiro, é muito difícil, meu filho”, “mas põe no correio para mim”. E ele colocou uma única carta e o prêmio era o seguinte, naquela época eram dois prêmios, um acho que era, vamos colocar que hoje seria mil reais e o primeiro prêmio dois mil reais, ai papai pôs a carta no correio pra mim. Quando foi na outra segunda feira, eu estou lá colado no rádio e estavam apresentando cantores como Linda Batista, depois cantou Cauby Peixoto, Ângela Maria, aí ele falou: “agora nós vamos sortear. O segundo prêmio saiu para Teresina no Piauí e nós recebemos mais de 40 mil cartas”, ai papai olhou pra mim assim... “Agora o primeiro prêmio...” puxou a carta lá assim e falou: “vem de Minas Gerais, Belo Horizonte, Rua Aimorés 56, apartamento 2, Célio Balona Passos.” Então eu ganhei esse dinheiro, mamãe vendeu a máquina de costura que ela tinha e eu comprei o meu primeiro acordeom.

P1 – Quantos anos você tinha Célio?

R – Tinha treze anos. Aí eu me lembro como se fosse hoje, era um acordeom verde claro, a marca era Elettra e os vizinhos ficavam desorientados porque eu estudava aquilo até as onze horas da noite todos os dias até alguém pedir para parar porque ninguém estava aguentando mais (risos). Então acho que, no fundo, Deus quis me mostrar que meu caminho era aquele através disso e foi a partir daí que eu comecei estudar e já com catorze anos entrei numa escola de formação musical e tive colegas como Nivaldo Ornelas, que estudou juntinho comigo lá, o Marcio Mallard Caldas, que é um grande violoncelista, Cleber Alves que é também um oboísta fantástico, o Cristiano, o Watson Clis, esses todos da sinfônica brasileira foram colegas nossos, era a meninada que estava a fim de se entregar mesmo de corpo e alma à música. Fiquei na Escola de Formação Musical, quando o maestro Delê, Delê e Castinho, eram duas grandes orquestras, orquestra para baile, era orquestra de trinta figuras, seção de figurino, corda, trombones, trompetes, uma orquestra enorme. Então eu fui chamado para tocar nesta orquestra, porque era o seguinte: a orquestra tocava uma música e enquanto se fazia a passagem para a próxima, pegando as partituras, eu, o pianista, o baterista e o baixista fazíamos uma música, então eu comecei a tocar nos bailes com catorze. Posso continuar falando mais coisa?

P1 – Está ótima, a nossa ideia é só fazer algumas intervenções, a gente pode até te ajudar com algumas perguntas, mas acho que você está fluindo tão bem que não precisa. Você começou a tocar profissionalmente aos catorze anos?

R – Sim, e fui preso pelo juizado de menores cinco vezes (risos). Porque acontecia o seguinte: como eu era menor, eu tocava na Churrascaria Camponesa das sete às dez da noite com meu acordeom, Seu Mário Vegas no contrabaixo e o Laerte Vaz de Melo que era um grande pianista, eu tocava com eles e como eu era menino, eles tinham um carinho muito grande comigo. Agora tinha um cara no juizado de menores, um cara baixinho, novinho, ele era invocado comigo, então dava no relógio dez e cinco, ele olhava no relógio e fazia um gesto pra descer do palanque e era assim, entendeu? Uma pressão danada. Muito bem, mas aí começaram a aparecer os convites para tocar em festas depois das dez horas, festas que começavam dez e meia e eu comecei a ir. A primeira, no DCE, na rua Gonçalves Dias, ele já chegou me viu e me pegou pra ir pro juizado e assim foram cinco vezes, até que, quando eu estava com dezesseis anos eles prenderam outra vez lá no DCE às duas da manhã.

P1 – O que é DCE?

R – É o Diretório Central dos Estudantes, que eram as festas mais concorridas e tudo, porque a rapaziada daquela época não tinha as baladas de hoje, então era a forma de os rapazes e as moças se encontrarem, então era ali. E eu lá entusiasmado tocando duas horas da manhã na orquestra do Castilho: “Desce”. – aí desci e fui e eles ligaram pro meu pai às duas e meia da manhã. Meu pai falou comigo assim: “vou te fazer uma pergunta: você quer ser músico mesmo?”, “quero”. “Então vou te emancipar amanhã” e emancipou aos 16 anos. Aí depois, o cara me chegava só fazia assim, e mostrava o documento, foi o meu troco, a primeira vez que ele veio... O juizado vinha correndo para tirar menores das festas, mas eu estava trabalhando, não estava bebendo nem nada não, aí ele chegou a primeira vez e eu falei: “nunca mais você me procure, olha isso aqui ó” aí acabou, nunca mais tive problema. Isso também me trouxe uma responsabilidade muito grande, porque eu defini a minha vida com dezesseis anos. Aí comecei a tocar com todo mundo, nos encontrávamos no ponto dos músicos, que era ali na Afonso Pena, em frente à Sapataria Americana e ali a gente ficava. E as pessoas, os maestros que tinham as festas na mão, Delê, Castilho, Djalma Pimenta, todo mundo ia ao ponto dos músicos para contratar os músicos e eram os conjuntos surpresa porque um chegava para o outro: “Vai tocar aonde” “No Minas Tênis, de terno e tudo”, “Uai, mas você também?”. Não tinha ensaio, não tinha nada, chegava assim e “Vamos tocar”, aí tinha um baterista, um baixista, eu fazia acordeon, o Chiquito Braga de guitarra e a gente ia e começava a tocar, “Que música que vai?”, “é isso, é aquilo, é aquilo outro” e vamos embora...

P1 - E o que vocês tocavam nesta época?

R – Nesta época a gente tocava muita música americana, os standards americanos Blue Moon, World Rainbow, Tenderly, Stardust e das músicas brasileiras, estava começando a transição daquela música mais de paixão para aquela coisa da Bossa Nova com o Johnny Alves fazendo coisa já em 1959, aquela coisa toda e a gente ligado nisso. Eu tinha um amigo, a gente tocou muito tempo junto, o Paulo Horta, irmão do Toninho Horta, a gente ia pra casa do Paulinho pra escutar as coisas que ele recebia dos Estados Unidos, ele tinha um pessoal amigo lá e a gente tocava algumas músicas que na época era uma novidade com esse negócio de orquestra, era um repertório mais pesado, as orquestras tocavam muita coisa da orquestra Tabajara, Severino Araújo e a gente começaram com esse negócio de grupos menores. Fui tocar com o Paulinho Horta em uma Boate chamada Holiday que ficava ali na Avenida Amazonas, perto do colégio Pio XII no grupo do Rui Carneiro, era eu no acordeom e vibrafone, Rui Carneiro no piano, Bié Prata na bateria, Paulinho Carvalho no contrabaixo, Osvaldo na guitarra.

P2 – Célio, você falou que não tinha ensaio, mas tinha essa coisa de conhecer músicas novas e compartilhar com os outros músicos para tocar?

R – Sim claro, por exemplo, quando a gente se encontrava na casa de alguém, a gente escutava aquilo ali o tempo todo, ou então alguém sentava e já começava a tirar a harmonia, ou eu levava o acordeom pra gente começar a tirar pra no Sábado já estar tocando esta música.

P2 – Mas no Ponto dos Músicos também havia essa... Qual era a conversa lá?

R – Tinha um grupo dos mais jovens que a conversa era esta, o que estava rolando em termos de jazz, entendeu? Porque a gente já estava ligado naquele som, a gente estava ligado no som do Miles Davis, estávamos ligados no Stan Getz, John Coltrane, entendeu? Dos grandes pianistas Dave Brubeck, Ed Garland, então a gente estava ligado nessa onda. Os músicos mais velhos não tinham uma ligação tão forte com esse tipo de música porque eram músicos de orquestra, chegavam ali tocavam e tudo certo, mas tinham alguns músicos de orquestra que também nos influenciaram muito, vários deles, excelentes músicos. Então a gente tinha muita sede de informação e queria saber mais e ter mais notícia do que estava rolando lá fora. Como veio uma orquestra, como veio o Dizzy Gillespie e o Woody Herman aqui no Cine Brasil, foi uma coisa pra gente! Chegar lá e ver aquela banda tocando e mandando ver ali, a gente saia levitando e era o que a gente queria na época, até quando começou realmente o lance da Bossa Nova, que aí a gente achou um caminho mesmo.

P1 – Você estava me dizendo antes da entrevista que você achava que Belo Horizonte era diferente, aqui fervilhava, tinham muitas casas de baile, realmente existia trabalho para tantos bons músicos.

R – Normalmente os clubes faziam festas quinta, sexta, sábado e domingo. Até a missa dançante no Minas, que era concorridíssima das dez à uma, ficava assim. Era no horário da missa, nove, dez, onze a gente ia. Aí criaram aquela época, foi até um bafafá danado porque puseram o nome de missa dançante, de manhã, das dez à uma e ficava lotado de gente mais jovem. Quero dizer, tocávamos quinta feira em hora dançante, sexta festa, sábado baile, domingo, essa missa e domingo a noite ainda tinha a Colônia Portuguesa que fazia a hora dançante, o Clube Belo Horizonte que também fazia e fora que todos os barzinhos tinham uma música ao vivo, alguém tocando, aquela coisa toda. Nessa época também, eu conheci um grande amigo, um irmão pra mim que foi o Marilton Borges ele morava ali no edifício Levy, isso antes de eu tocar junto com o Marilton mesmo. É um cara assim, muito musical, Marilton é um craque, harmoniza muito, muito bem, tem um bom gosto danado. Então a gente se identificou muito, e a gente era muito amigo meu mesmo, o Márcio, o Lô, o Lô era pequenininho, eu freqüentava muito a casa do senhor. Salomão e da dona Maricota, são pessoas a quem tenho um carinho muito grande e nessa época, a gente trocava muita informação a respeito de música até o dia em que eu conheci o Milton Nascimento, foi através do Pacífico Mascarenhas. Nessa época, eu já tinha o meu conjunto, 1960, 1961, eu tinha um programa na TV Itacolomi no domingo a tarde. Nesse grupo participavam o Nivaldo Ornelas, o Affonso Maluf, o Ildeu Soares, Celinho do Trompete, Helvius Vilela, que é outro campeão, depois entrou o Wagner. E o Pacífico falou assim comigo: “Olha, tem um cara cantando lá no Maleta, num bar chamado Oxalá, vamos dar um pulo lá pra você ver. Eu cheguei lá era o Milton com o violão, magrinho, ele acabou de tocar, veio na nossa mesa, o Pacífico apresentou e já no outro domingo, ele estava cantando com a gente na televisão, aí trabalhamos juntos por dois anos, ele era o crooner do nosso conjunto. O Wagner veio depois e o Milton foi embora na época do Festival Internacional da Canção, mas a gente trabalhou esse tempo, que foi um tempo muito bom porque todos nós estávamos interessados em fazer música e com o lance da Bossa Nova, foi interessante, porque a gente achou o caminho que eram grupos pequenos, não tinham grandes orquestras, então você tinha a oportunidade de tocar em vários lugares aqui em Belo Horizonte, tinha Uma Noite de Bossa Nova no iate. Tinha os Festivais de Jazz e Bossa Nova no Instituto de Educação e na Secretaria de Saúde e Assistência, onde hoje é o Minascentro, ficava lotado. Vinham músicos do Rio pra cá pra tocar com a gente, foi uma época de efervescência musical assim que eu nunca vi, isso no começo dos anos 1960. Isso pra mim foi uma época de ouro, porque eu convivi, toquei com esse pessoal todo, Helvius Vilela, Nivaldo Ornelas, Wagner Tiso, Milton, Pascoal Meirelles, Paulinho Braga, Chiquito Braga, que é o pai destes guitarristas todos no Brasil pra mim, um cara que já fazia harmonias fantásticas em 1958, Chiquito está lá no Rio. Então, são tantas pessoas que passaram assim na minha vida e que me influenciaram, que me ajudaram a ser um músico, então estas influências foram maravilhosas na minha vida.

P1 -

E você estudou música?

R – Eu sou autodidata. Eu sempre gostei demais, eu comecei com o acordeom, depois passei para o vibrafone que eu achei lá na boate que a gente tocava, tinha lá no sótão da boate um vibrafone parado, desci, arrumei ele todo, peguei, me senti muito à vontade com o instrumento e comecei a tocar, depois disso o Rui Carneiro faltou e eu sentei no piano, toquei e aí comecei e fui embora, depois peguei flauta. Mas na verdade, por eu ter entrado muito cedo na música, a coisa foi atropelando de uma forma, mas eu gostaria de ter estudado. Pra sobreviver, ajudava minha família também, eu não tinha muito tempo não porque eu tocava na Camponesa, da Camponesa eu ia pra Boate, tocava até quatro horas da manhã, a gente descia a Avenida Amazonas à pé, eu pegava o bonde ali perto da praça Sete, ia embora para Santa Efigênia e chegava em casa cinco e meia, seis horas da manhã, dormia até mais ou menos duas horas da tarde, acordava, almoçava e sete horas estava tocando outra vez. Então foi uma época de muita música, mas tinha um bocado de cansaço também.

P2 – Célio, não sei se estou certa, mas chega uma certa época em que os músicos começam a sair daqui e ir pro Rio, como é isso?

R – Em 1964 e 1965 foi uma debandada geral, os únicos que ficaram foram eu e Marilton, não deixávamos apagar a luz do aeroporto (risos), porque Helvius foi embora, Milton foi embora, Wagner foi embora, Pascoal Meirelles foi embora, Paulinho Braga foi embora, Tibério Gaspar foi embora, praticamente todos, ficamos eu e Marilton aqui, ficamos resistindo. Aí o Marilton foi, cantou lá em um conjunto chamado a Turma da Pilantragem do Nonato Buzar e Marilton fez um trabalho no Rio legal, mas depois aconteceu com o Marilton o que aconteceu comigo duas vezes já: Belo Horizonte para mim é um lugar mágico. Eu fui pro Rio e fique no Rio um ano e pouco e voltei, voltei porque eu gostava demais disso aqui, voltei porque eu estava com família aqui e tudo. E depois, em 1992, eu fui pro Rio a convite de um amigo meu que trabalha em um estúdio lá, pra fazer trilhas para comerciais, então fui pra lá. Fiquei no Rio dois anos e tive um convite para ir para Florianópolis, fazer a trilha de um filme que estava sendo realizado lá em Santa Catarina, contando a vida da Madre Paulina, a primeira santa brasileira. Fui pra lá e me apaixonei pela cidade, Florianópolis era o Rio dos anos 1950. Pequenininho, mas um lugar lindo, maravilhoso e a partir deste trabalho apareceram outros, e eu fui ficando, quando olhei eram dez anos que estava lá. A saudade de Belo Horizonte era imensa, eu sempre vinha aqui pra fazer um show, pra tocar e quando foi em 2003 essa coisa de querer voltar ficou muito forte. Em 2003 eu me apresentei aqui doze vezes e no último dia em que eu me apresentei, eu fui para Ouro Preto, falei: “não, meu lugar é aqui”. Resolvi minha vida em Florianópolis e voltei, não me arrependo um segundo de ter feito isso porque foi aqui que eu consegui praticamente tudo na minha vida, foi aqui que as coisas começaram e eu acredito que é aqui que elas vão acabar.

P1 – Queria voltar um pouco na época do Edifício Levy, dos encontros com Marilton, suas visitas à casa dos Borges. Você passou a freqüentar porque você passou a ser amigo do Marilton...

R – É, porque o Marilton, por ser meu amigo, eu morava em Santa Efigênia e ele em Santa Teresa, não era tão longe, então a gente se encontrava, ou eu encontrava com ele na casa dele e aquela casa pra mim é uma das casas mais musicais do planeta, impressionante. Essa família Borges é impressionante, todo mundo mexe com artes, mexe com música, mexe com arte, o pai e a mãe do Marilton, que pessoas fantásticas! Então é uma família muito bonita. Eu freqüentava assim, mas não fazia parte do Clube da Esquina, eu era amigo deles, mas tinha um trabalho diferente desse trabalho que eles estavam começando, desse movimento que marcou tanto, que hoje não é um Clube da Esquina, é o Clube da Esquina de todos os lugares do mundo, não tem lugar definido, não é em Santa Tereza, pode ser em Nova York, pode ser em Tóquio, pode ser em Osaka, Estocolmo, pode ser em qualquer lugar, porque a música que foi feita naquela época ficou e ficou mesmo. Então, a minha amizade com o Marilton foi quem me proporcionou isso, de conhecer o resto do pessoal da família, de conhecer o Lô pequeno ainda, de conhecer o Telo, de conhecer o Marcinho, de conhecer a turma toda. Eu sabia o que eles estavam fazendo, eu conhecia o trabalho deles, mas tanto eu, quanto o Marilton tínhamos um trabalho diferente, a gente tocava na noite e os meninos não, eles tocavam mais pra eles ali mesmo e mais tarde é que começaram a fazer shows, essas coisas todas. Eu e Marilton já estávamos participando de uma outra parada que era de tocar em bar, em baile, fazer estas coisas todas.

P1 – Mas do que você via acontecendo deste movimento, como você mesmo disse, qual era sua impressão na época? Você que já era um músico formado.

R – Eu gostava muito, principalmente das coisas do Lô. O Lô, o que eu vou falar aqui não é uma comparação, mas eu acho o Lô, o Paul McCartney do Clube da Esquina, é o cara que tem o coração, a música dele é muito forte, muito bonita, muito bem feita, tanto é que você vê, o Jobim era apaixonado com as coisas do Lô e olha que o Jobim é o maior de todos, Jobim é o maior compositor do planeta neste século que está aí e vai ser, ninguém vai chegar junto, um dos maiores. Ontem mesmo eu estava vendo a entrevista do Edu Lobo, o Edu falou exatamente isto, que Jobim é um compositor que vai ser dificílimo alguém chegar perto, e olha, então pro Jobim gostar das coisas que o Lô fazia é porque o Lô tocou fundo no coração e na sensibilidade dele. Então eu gostava, não, eu gosto imensamente das coisas que o Lô faz, lógico que nós temos o Beto, esse pessoal todo do Clube que sempre fizeram coisa de muita qualidade e deram uma mudada na página da música popular brasileira, mudou como a Bossa Nova mudou, como as letras da Bossa Nova mudaram, não eram mais aquelas coisas do cara ficar bêbado no bar lembrando da mulher amada, era uma coisa mais leve, mais fina, mais sofisticada e as letras também do Márcio Borges, do pessoal todo que participou do Clube, são letras também com um conteúdo fantástico. Então o Clube pra mim tem um valor muito grande nesse sentido. É outra coisa que a música brasileira fez, ali ó pá (som de palma), desse país que é o país mais criativo do mundo, desse país que tem a melhor música do mundo e que, às vezes, o próprio brasileiro renega, tem vergonha da própria cultura.

P1 – Mas Quando você fala “virou a página”, como músico, porque a gente tem um público de vários músicos querendo ouvir esta informação. Como músico, o que foi essa mudança que trouxe essa inovação?

R – Eu acho que a transformação foi melódica, harmônica e literária, feita por meninos, porque eles eram meninos. Então a ótica e a forma eles estavam enxergando por um prisma, uma visão totalmente diferente. Tinha a coisa da Jovem Guarda e tudo, mas a sofisticação das letras, das melodias e das harmonias que os integrantes do Clube da Esquina estavam

praticando estava levando a música para um outro caminho e influenciando outros músicos que estavam começando naquela época a seguir um caminho mais elaborado e não seguir uma coisinha qualquer que eles chamavam de yê yê yê, nada disso. Então, eu como músico acho que a harmonia, a melodia... você quer ver um exemplo disso? Por exemplo, o Trem Azul do Lô, Clube da Esquina II. Pega os discos daquela época e compara o que foi feito também nesta mesma hora, as vezes por outros artistas, você vai ver a diferença brutal de qualidade. Nesse ponto, o que eles fizeram? Foi uma contribuição de melhora da música brasileira cada vez mais, e pra mim a alegria maior sem nenhum bairrismo, é saber que isso aconteceu aqui em Belo Horizonte, que aconteceu em Minas Gerais (risos), sem nenhum bairrismo. Estou aberto a toda e qualquer tendência musical, adoro Lenine.

P2 – Você falou que você e Marilton chegaram a sair do Brasil. Como foi isso?

R – É o seguinte: a prefeitura de Nice, na França, fez uma semana de música brasileira, de cultura brasileira em 1984 na França, lá em Nice e vários artistas participaram, o Milton participou, o Gil, Alceu Valença, Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara, Teca Calazans e o único grupo de música instrumental que foi, foi o meu, o Marilton foi comigo, ele fazia o outro teclado e a gente se apresentou não só em Nice, mas em Marbella, Espanha e depois quando voltamos fomos para Nova York, fizemos lá em Nova York duas semanas, lá em Nova York, o Marilton foi comigo também. Nós tínhamos um trabalho de dois teclados, baixo, bateria e foi esta a oportunidade que eu tive de tocar com o Marilton fora do Brasil, foi essa oportunidade.

P2 – E vocês costumavam a tocar alguma coisa do Clube da Esquina?

R – Na verdade o Marilton trazia as músicas, então, do Clube da Esquina a gente tocava um monte de coisa, mas misturado com Bossa Nova, porque lá fora, quando a gente se apresentou lá no Via Brasil, lá em Nova York, até a Astrud Gilberto estava lá e o Freddy Cole, irmão do Nat King Cole estava lá também, então a gente tocou Bossa Nova, tocou Trem Azul, eu não lembro o repertório que a gente tocou, mas de uma forma ou de outra, a gente sempre estava fazendo alguma coisa, dos compositores aqui de Belo Horizonte, aqui de Minas.

P1 – Você estava me falando que trabalhou muito tempo, teve uma grande parceria com o Paulo Horta, que é o irmão mais velho do Toninho. Queria que você contasse um pouco sobre esta parceria, volta e meia, vocês viam o Toninho?

R - O Paulinho tem uma coisa assim especial, ele trabalhava na UBC, União Brasileira de Compositores, e o Paulinho além do baixo, a primeira vez em que a gente tocou, ele gostava de tocar bateria com vassourinha, ficava ali puxando alguma coisa de música americana e o Paulinho depois começou a estudar contrabaixo mesmo e começou a tocar contrabaixo acústico e a gente chegou a fazer várias apresentações, fazendo Jam Session mesmo com o Paulinho fazendo o baixo acústico. Eu frequentava a casa do Paulinho porque ele era um grande amigo e a gente via o Toninho pequeno ainda. O Toninho ficava de antena ligada quando a gente estava reunida ali, eu levava o acordeom, o Paulinho fazendo baixo, o Chiquito Braga na guitarra e o Toninho de antena ligada na gente ali. Ele cresceu dentro deste mundo de música. O Paulinho foi um dos grandes músicos com quem eu tive a oportunidade de tocar aqui em Belo Horizonte. Ele era um incentivador de festivais de Bossa Nova, de tudo o que acontecia aqui, o Paulinho sempre estava à frente destas coisas todas e foi realmente assim um amigo querido que eu tenho assim até hoje. Ele foi para outra dimensão, mas estamos aí, firmes aí. A última vez em que eu encontrei com o Toninho, eu estava tocando e ele deu uma canja, então eu falei assim: “essa aqui nós vamos tocar em homenagem ao Paulinho”, que é uma música que ele gostava demais (silêncio), é isso aí.

P1 – Você então teve a oportunidade de conhecer eles meninos, não é? O Lô, o Toninho...

R – Conheci o Lô menino. O Marcinho já era mais velho. O Telo Borges também, menino. Quero dizer, é gratificante você ver essa meninada crescer e fazer música de tanta qualidade, como é a música que eles fazem.

P1 – Célio, voltando um pouquinho no ponto dos músicos, eu queria que você falasse mais como era esta máfia (risos), como você mesmo diz, e como era, se entrava mulheres, como era?

R – No Ponto dos Músicos, os músicos eram iguais a pardal no fim de tarde, quatro e meia não tinha ninguém em frente a Sapataria Americana, mas cinco horas vinha aquela revoada e descia igual pardal e lotava, o pessoal tinha que passar no meio da rua, porque não cabia em cima do passeio, de tanto músico que tinha (risos). Parece passarinho do pantanal, aquela coisa lotada de músico ali. E na verdade, os cantores daquela época, que cantavam, a gente chamava de canário, então os canários tinham que estar ali junto para ver que tipo de música que a gente ia cantar. Tinha um baterista chamado Violão, uma figura folclórica aqui de Belo Horizonte que falava assim com os cantores: “Segue cão, segue canário, vai aprender a tocar algum instrumento pra você vir falar comigo” (risos). Mas não, a gente sempre teve um respeito muito grande pelos cantores, que são músicos também e quantos deles são maravilhosos. Mulheres, tinham mulheres que participavam de orquestras de conjuntos. A Clara Nunes eu cheguei a tocar com ela, ela tocava na orquestra do Castilho, Maria Marta que era uma grande cantora também, Helena Ribeiro, outra grande cantora, mulher do Figo Seco que era um trompetista maravilhoso que também já não está mais aí e as mulheres que cantavam naquela época era realmente grandes cantoras. Olha pra você ver: a Clara Nunes cantou na rádio Inconfidência, cantou em orquestra, cantou em baile e depois virou essa maravilhosa sambista que o Brasil teve. Mas existia um respeito muito grande e acho que elas abriram o caminho para que outras mulheres pudessem fazer isso, porque naquela época existia um pouquinho de machismo sim, aquela coisa de “mulher não vai subir em palco para ficar cantando em orquestra de baile”. Então elas foram precursoras para acabar com a onda dos porcos chauvinistas aí, a mulher tem direito de fazer o que quiser.

P1 – Mas elas frequentavam o Ponto dos Músicos? Você via mulheres lá no meio?

R – Elas iam de vez em quando, não todo dia, mas de vez em quando sim, mais no fim de semana, por exemplo, na quinta e sexta-feira, aí sim, você podia ver algumas delas lá, mas não era uma coisa de toda semana não, de vez em quando ia pra ver: “Vai ser com quem? Podemos passar alguma coisa antes, assim e pronto”. Aí a gente marcava o lugar que ia encontrar e pronto, “a Clara Nunes vai cantar, ou a Maria Marta vai?”, entendeu? A gente já tinha uma cantora junto.

P2 – Só pra entender Célio, não tinha sapataria ali na época, tinha?

R – Tinha a Sapataria Americana, já era a Sapataria Americana.

P2 – Não havia um bar, alguma coisa perto?

R – Não. Não tinha nem um bar naquele lugar (risos), se quisesse beber alguma coisa tinha que ir do outro lado, no Rei do Sanduíche, mas ninguém ia para o lado de lá, todo mundo ficava do lado de cá, em pé, na calçada de cinco até as sete horas da noite.

P2 – E passava gente para saber onde iam ser as festas?

R – Não, a gente não tinha contato com quem ia dançar não. E ali era assim, até as pessoas ficavam incomodadas, porque o passeio ficava tão lotado que as pessoas tinham que passar pelo meio da rua.

P2 – Quando você começou a frequentar lá já existia, quem instituiu isso?

R – Já existia, eu não sei quem foi o criador do Ponto. Eu sei que teve um outro lugar que teve o Ponto, mas não deu certo, aí voltaram para a Avenida Afonso Pena outra vez. Eu não sei realmente que é que determinou: “aqui que os músicos tem que se encontrar”. Eu acho que algum jaburu veio e pousou e o resto veio atrás (risos).

P2 – então quando você começou a frequentar ele já existia?

R - Já, existia do jeito que era. Hoje não tem mais nada, mas era uma coisa maravilhosa, porque a gente ia para conversar, ver os amigos, pegar um serviço e também, na época, ver as mulheres bonitas que passavam ali em frente (risos). Servia de paquera também. Apesar de que, naquela época as meninas não olhavam para músico não, porque músico era meio discriminado e uma coisa que eu acho legal é que na época em que a gente fez o nosso grupo, era uma meninada nova dezenove, vinte anos e tal, o conjunto Célio Balona, que era só uma rapaziada nova, aí nessa época sim, as meninas davam uma olhadinha pra gente, dava até para conversar um pouquinho na hora do descanso, mas antes não, antes “neguinho” tocando lá em cima na orquestra, não podia chegar perto não. Ninguém vinha, depois a coisa foi melhorando.



P1 – Mas até como vocês estavam conversando, músico era categoria profissional, se conseguia viver disso.

R – Existia certa coisa que achava que o músico era um cara que vivia na noite, que o músico era vagabundo, que gostava de ficar em boteco tomando cerveja e não era nada disso, o músico é igual a qualquer um outro profissional, só que o músico tem aquela coisa de poder passar a emoção dele para outras pessoas, o músico é o fio condutor da emoção, ou seja, quando você toca uma música, se você toca ela com sentimento, quem está ouvindo, uma ou duas pessoas vão receber aquilo que você mandou e vão mandar de volta esta emoção, disso vive o músico, dessa troca de emoções. Então eu acredito que o músico, nesse sentido, é um ser privilegiado, porque ele consegue passar para outras pessoas um tipo de emoção a ponto de você tocar uma música e a pessoa chorar, porque ela vai lembrar alguma coisa na vida dela, algum fato importante, alguma coisa assim. Ou simplesmente a música vai emocionar essa pessoa, me aconteceu isso há pouco tempo, já aconteceu outras vezes, mas há pouco tempo foi muito forte: eu fiz um especial para a Rede Minas, vinte anos da Rede Minas de Televisão e eu toquei uma música que eu gosto imensamente chamada Beatriz, do Edu e do Chico, então eu fiz de acordeom, o Clóvis Aguiar de piano e o Milton Ramos de baixo acústico. Esse show foi gravado no teatro da Fundação de Educação Artística e tinha uma menina lá em cima que começou a chorar copiosamente, depois ela veio me falar que aquela música entrou assim como se fosse uma faca, uma coisa forte. Então eu acho que o mérito do músico é o de você ser o porta voz da emoção.

P1 – E quando você vê alguém chorando, qual é o seu sentimento? Porque você disse que tem uma volta, não é?

R – Eu acho que a gente sente assim: eu estou cumprindo a minha parte nessa encarnação, eu estou conseguindo fazer alguém feliz, eu estou conseguindo mexer com a alma daquela pessoa, eu acredito nisto, uma da funções do músico é esta, de ser o condutor disso e é gratificante, por mais que a vida de músico seja muito difícil, porque as vezes as pessoas acham que é muito fácil: “ah, esse aí leva a vida na flauta”. Tocar, fazer show é uma coisa mágica, mas o dia a dia do músico, o quanto você tem que se dedicar. Eu casei com a música, desde os dezesseis anos, eu sou casado, desde os dezesseis não, desde que eu me entendo como músico, eu casei com a música, a música anda de braço dado comigo o tempo todo. Então as mulheres que eu amei na minha vida, que eu amo, entendem isso, que o músico casa com a música, o músico que realmente quer viver de música, que querem fazer daquilo a sua vida ele, tem que abraçar e ficar.

P1 – Não existe meio termo não é? Tem que...

R – Ou é ou não é. Igual quando você encontra uma mulher que entende isso e que participa disso, aí é maravilhoso.

P1 – E você é casado?

R – Eu já tive dois casamentos, tenho dois filhos no meu primeiro casamento, um que já tocou bateria e hoje mexe com consultoria de marketing e um outro que trabalha com internet. E no meu segundo casamento eu tenho uma filha de dezessete anos que mora em Florianópolis e atualmente eu estou vivendo uma experiência nova, muito bonita.

P1 – Você acredita que esses jovens do Clube da Esquina que já rodaram o mundo todo, fizeram a música com esse sentimento que você falou?

R – Eu acho que sim, porque música não tem meias verdades e a música que fica é aquela que é cheia de verdades e a músicas dos meninos permanecem até hoje. Quantas músicas de mentira já foram empurradas goela abaixo de todos nós? Um monte. Você pode enganar poucos por pouco tempo, mas a muitos por muito tempo ninguém faz. Quando você faz uma coisa que é verdadeira, você pode ter certeza que ela vai ficar para o resto da vida, é igual marcar boi a ferro, fica. O Clube da Esquina é a Bossa Nova, é a música brasileira é, as mentiras que foram feitas dentro deste universo de música estão todas no lixo, todas. Tantos pseudo-cantores, pseudo-compositores que a mídia tentou jogar na nossa cara, tentou enfiar na nossa goela e hoje estão lá apodrecendo, é porque não tem conteúdo. O que tem conteúdo fica, o que não tem vai pra lata de lixo mais cedo ou mais tarde.

P1 – E você acha que o Clube da Esquina pode ser considerado um movimento musical?

R – Eu acho que o primeiro Clube da Esquina é um ato de rebeldia, daquela meninada não aceitar a música que estava ouvindo, e isso é maravilhoso, tem que contestar, você não pode acostumar, você não pode se contentar com as coisas, tem que contestar, tem que ter outras pessoas criando, se não fosse assim, nós estaríamos até hoje com a roda de pedra. Outras pessoas sonharam, outras pessoas criaram, então é exatamente isso que o Marcinho falou no livro dele: “Os Sonhos Não Envelhecem”, você tem que criar sempre, você tem que sonhar sempre, tem que estar sempre atento ao que está rolando. Este movimento deles foi exatamente isso, mostrar que tinha uma outra coisa por aí a ser feita com a música, e mostraram com uma capacidade fantástica. Está aí, ela está aí até hoje e não vai acabar nunca, porque músicas vão ser gravadas eternamente, esse movimento ficou marcado mesmo. A música brasileira tem uma série de coisas, tem a Tropicália, tem a Bossa Nova, uma série de coisas e o Clube da Esquina é uma marca forte que a música brasileira tem junto com a Bossa Nova na minha modesta opinião.

P2 – Célio, você acompanhou o Bituca sozinho e você viu o Lô criança sozinho despertando sozinho, como é que foi esse encontro dos dois assim? Você acompanhou? Quando o Bituca percebeu o Lô tocando, você estava perto?

R – Não, eu não estava perto nesta época, eu fui tomar conhecimento disso depois com aquele primeiro disco que eles gravaram. O Marilton quem me mostrou. É impressionante isto, eu falei: “Marilton, esses caras são danados de levados, olha o que esses caras estão fazendo” e dali foi uma reação em cadeia, quando saiu o disco pááá, acabou. Você viu que tanto o Lô, quanto o Beto Guedes, por exemplo, o Lô, eu acredito que em todos os shows que ele vá fazer, ele vai ter que cantar aquelas músicas sempre, porque fica, então, os caras quando fizeram, fizeram muito bem feito, eles mandaram muito bem, sabiam o que estavam fazendo. Tanto é que você vê como foi a junção do Milton com isso tudo aí, com essa meninada. E o Lô, moleque, menino, fazendo aquelas coisas, aí é de parar e pensar um pouquinho não é?

P1 – Tem alguma outra história ou fato interessante que você gostaria de colocar que a gente não tenha abordado, dentro desse período que remete ao Clube da Esquina?

R – Bom, daquela época, mais mesmo era quando não estava tocando ir para a casa de um ou de outro fazer alguma coisa diferente. Eu depois perdi o contato com o pessoal todo, porque eu também fui embora. O Lô há pouco tempo eu vi, a gente se viu. Estou até feliz, quero ver o que ele vai achar depois, eu tenho um projeto, estou trabalhando em dois projetos, posso falar sobre isto? Um é um projeto chamado Brasil de Antônia Zechetti, dois pianos e um baixo acústico e acordeom que eu faço também, porque a gente está revisitando a obra de muitos compositores, inclusive tem coisa do Beto, tem coisa do Lô, isso é com o Clóvis Aguiar e com o Milton Ramos. E tem um projeto que é a menina dos olhos para mim, que é um que eu já estou dentro já faz algum tempo, que se chama BR Groove, é uma banda de música eletrônica que eu comecei a fazer em Florianópolis, o embrião foi feito em Florianópolis e depois que voltei para Belo Horizonte eu fiz, quero dizer, hoje eu tenho essa banda, nós vamos fazer um show no Palácio das Artes dia 19 e 20 agora, na sala João Ceschiatti. É um projeto chamado música independente, no Palácio das Artes, da Rádio Inconfidência, TV Minas e Secretaria Estadual de Cultura. São músicos jovens que estão tocando comigo, o DJ tem vinte e três anos. É um DJ, um guitarrista, um tecladista, um baixista, eu e alguns convidados. Nesse lance eu coloco música eletrônica e também instrumentos acústicos, tem viola caipira de dez cordas, tem acordeom, tem percussão e a gente fez um arranjo pro Trem Azul do Lô em Drum Bass, ele vai gostar disso, eu até vou ligar pra ele e perguntar, vamos ver.

P1 – Ah Legal. Pra gente encerrar então, eu queria saber o que você acha deste projeto do Museu Clube da Esquina?

R – Olha, esse projeto é um projeto que já nasceu campeão. Eu acredito que no Brasil deveriam ser feitas mais coisas em relação à música brasileira, como esse projeto que vocês estão fazendo do Museu do Clube da Esquina, porque isso vai preservar esta memória, para as futuras gerações que não viveram esta época, que não sabiam o que era feito na música brasileira, saber como esses meninos mudaram essa conversa toda. Então eu acho da maior validade, da maior grandeza, alguém como vocês estarem se preocupando com isso. Quem dera se tivessem mais pessoas como vocês fazendo isso, um abraço assim, forte! Eu gostaria que estivessem fazendo isso em outras áreas também, eu há pouco tempo vi um show da Velha Guarda da Mangueira que eu chorei, o pessoal com setenta, oitenta anos ali no palco de bengala mostrando o que era o samba, o que é a coisa brasileira, que vai se perdendo, que vai sumindo, porque na verdade nós não temos muita memória não. Então esse projeto, principalmente porque ele está sendo feito para internet, quero dizer, você vai ter a oportunidade de ter aquilo ali sempre, um guia de informação, você tem disponível ali tudo o que você precisa de informação. Quantas coisas boas da música brasileira foram perdidas ao longo do tempo porque ninguém teve o cuidado de pegar e preservar e falar: “Não, isso aqui sumir, isso é um tesouro”, a gente não sabe quantas gerações vão aproveitar, então só posso parabenizar, só posso elogiar, bater palmas, tomara que esse exemplo de vocês sirva para muito mais gente fazer mais coisa. Só isso, um beijo grande por tudo o que vocês estão fazendo.

P1 - Obrigado pelo seu delicioso depoimento.

[Fim da entrevista]