Identificação Museu da Pessoa - Márcia, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, data e local de nascimento. Márcia - Márcia Pereira de Araújo, eu nasci em São Paulo, capital, na Maternidade São Paulo, no dia três de maio de 1970. Opção pela Medicina MP - Quando você fez a ...Continuar leitura
Identificação Museu da Pessoa -
Márcia, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, data e local de nascimento.
Márcia - Márcia Pereira de Araújo, eu nasci em São Paulo, capital, na Maternidade São Paulo, no dia três de maio de 1970.
Opção pela Medicina MP -
Quando você fez a Faculdade de Medicina?
Márcia -
Eu entrei na Faculdade em 1988, na Faculdade de Medicina da USP e cursei de1988 a 1994.
MP - Como foi a escolha do curso de Medicina?
Márcia -
Foi meio complexa, quando eu tinha sete anos falava que queria ser cientista. E na história dos meus estudos sempre gostei mais de Ciências Biológicas, Química e você vai tendo essa pressão no decorrer da tua vida estudantil "O que você vai ser quando crescer? O que você vai querer fazer?" E eu dizia que queria ser cientista a princípio e depois fui entendendo que cientista não é uma profissão muito bem remunerada no Brasil, nem tem muitas chances. Eu estudei em Colégio Estadual do primeiro ano primário até o segundo Colegial, minha família é de origem humilde. No segundo colegial eu ganhei uma bolsa de estudos para o Colégio Objetivo e estudei a metade do segundo e o terceiro colegial. No Objetivo eu tinha colegas que também queriam fazer Medicina e eu acabei resolvendo por Medicina porque era a área de biológicas que ia me dar maior amplitude de conhecimentos e o fato de lidar com pessoas, porque eu achava que jamais ia conseguir trabalhar com uma coisa em que ficasse isolada do contato humano
diário, por exemplo trabalhar o dia inteiro atrás do micro ou ser advogada e ficar o dia inteiro atrás de processos, e na época que eu entrei na Faculdade as profissões ainda eram bem definidas e as principais ainda eram, Engenharia, Direito, Medicina e estavam despontando Publicidade,
Jornalismo, mas a gente tinha poucas opções. E o melhor aluno sempre quer buscar o curso mais difícil, mais concorrido e como, graças a Deus, eu era uma das melhores alunas da minha turma, competia dentro dessa área
e quando foi para prestar vestibular não tive muita dúvida.
Resultado do vestibular MP - Você lembra da notícia de que passou no Vestibular?
Márcia -
Perfeitamente. Eu mantive amizade com as minhas colegas do Colégio Estadual e todas nós tínhamos um sonho de fazer Medicina ou um curso universitário, principalmente em
Faculdade Pública, porque não tínhamos condições de pagar. Era um sonho comum e eu estava prestando Medicina e a amiga que eu tinha mais contato, prestando Farmácia. Ela ligou
para a minha casa no dia que saiu o resultado da prova e disse: "Olha eu não sei onde você passou, mas meu pai olhou no jornal e viu seu nome e está no código de Medicina. Você passou, não sei onde, você tem que ir ver". Eu saí da minha casa voando, peguei o primeiro ônibus, o primeiro metrô e fui para o Objetivo. Quando cheguei lá tinha as listas, as classificações e na hora você não encontra o teu nome, eu fui olhando, quando eu vi meu nome escrito Medicina USP na frente, sabe quando você tem a sensação que está levitando, eu não estava acreditando, porque era um sonho, que foi realizadíssimo. Eu quase tive que amarrar meus pais no pé da mesa, para eles não flutuarem, foi muito lindo, foi a realização de um sonho que a princípio parecia impossível, porque eu estudei em escola estadual a vida toda. Quando eu estava na oitava série tinha um professor de uma matéria chamada EPT, Estudos para o Trabalho, e ele era uma pessoa muito consciente da realidade das pessoas que estudavam com a gente, então ele dizia: "Vocês vão terminar a oitava série e vão ter que fazer vestibulinho pra um colégio técnico, porque pelas estatísticas as pessoas que estudam em Escola Estadual, a maioria não chega à Faculdade, então se vocês não forem fazer um colégio técnico que lhes dê uma profissão com nível secundário vão ficar sem profissão e cair no mercado de trabalho desadaptados." Ele tinha razão dentro do contexto de onde ele estava falando, mas eu fui teimosa, eu falava: "Eu não quero colégio técnico, quero uma coisa melhor, quero ser médica." Acabei indo contra a maré do que ele ensinava, porque deu bons conselhos para o grupo. No Objetivo eu falava para um professor: "Eu tenho medo, vou prestar Escola Paulista como primeira opção, porque como ninguém presta Escola Paulista como primeira opção, daí talvez eu consiga entrar." Olha a minha cabeça, mas eu entrei na USP,
UNESP e na
Santa Casa.
Vida de Estudante MP -
E como era a Faculdade de Medicina da USP?
Márcia - A USP tem duas unidades onde a gente cursa, as cadeiras básicas na Cidade Universitária, no CB 1 e 2 e as cadeiras clínicas na Avenida Dr. Arnaldo.
MP -
E a vida de estudante universitária, como era?
Márcia - Era maravilhosa, muito legal, porque quando você entra na Faculdade é um universo completamente novo, uma vida totalmente diferente, tem novas possibilidades, novas escolhas, você conhece novas pessoas, que são bem diferentes do convívio social que eu tinha até então. Pessoas riquíssimas, pessoas simples. Na minha turma tinha desde o filho do diretor da Faculdade até um
ex- menino de rua, que era meu colega, uma pessoa muito linda, que fez tudo por esforço próprio também. Ele contava que tomava banho no chafariz da Praça da Sé, se lembrava disso e foi ser Pediatra depois.
MP -
E como era um dia típico de estudante?
Márcia - Quando eu estudava, morava na zona leste, bem longe, na verdade. Então, eu lembro que acordava tão cedo, que não havia amanhecido ainda. Eram dias que eu via os céus mais bonitos, porque vê o céu metade escuro com estrelinhas e metade azul, quase rosa nascendo o sol. Pegava um ônibus para ir até o Metrô Tatuapé, porque ele não chegava até Artur Alvim na época, ia até a Praça da República e lá pegava o ônibus até a Cidade Universitária. Era um percurso super demorado, tinha que acordar quatro e meia da manhã, para chegar na Faculdade às oito, com o rush da manhã e tudo. As aulas, nos primeiros tempos de Faculdade, eram muito divertidas porque eram no ICB, Instituto de Ciências Biomédicas e no Instituto de Química, que a gente chamava de "queijinho", e era uma época muito gostosa, porque os seus colegas de turma são quase irmãos, são pessoas que você passa a amar porque a Faculdade é período integral e você fica o tempo inteiro com eles. Chega de manhã e vai para as aulas e só deixa essas pessoas no fim da tarde, quando acabam as aulas e vai para casa. E você quer mais, quer conviver, engolir o mundo, e acaba ficando na Faculdade depois do horário. É um período muito rico, a minha turma no início do curso era muito unida e ficamos unidos durante bastante tempo, tenho amizade até hoje. Ficamos muito unidos porque tinham pessoas muito ricas na minha turma e boa parte tinha carro, e de manhã estávamos na Cidade Universitária e à tarde na Dr. Arnaldo, então esse trajeto da USP para Dr. Arnaldo era sempre uma festa, porque os que tinham carro levavam a turma inteira, enchíamos os seus carros. Quando eu estava no segundo ano comecei a me envolver com o Centro Acadêmico também, que é uma outra situação muito boa na faculdade, o CA da Medicina é muito forte. Eu comecei a trabalhar como voluntária , mas com tanta alegria, porque você trabalha para os teus amigos, para você mesmo, e tem um centro de convivência muito grande lá. O prédio da Dr. Arnaldo, tem quatro andares, mas o subsolo foi dado em
comodato para o Centro Acadêmico, ou seja, é dos alunos, então a gente montou a lanchonete,
centro de convivência, sofá, cadeirinha, telão, vídeo, banheiros com chuveiro, piebolim,
livraria, venda de aventais, biblioteca, e você adota aquilo como tua casa. A gente morava lá, era o ponto de referência, você saia de uma aula ia lá descansar, estava cansado ia lá dormir na hora do almoço e todo mundo marcava de se encontrar lá para ir para outro lugar ou
almoçar, era o ponto. O C.A sempre foi muito legal por isso, a gente se reuniu mais com um grupo de pessoas mais intelectualizadas, porque na Medicina tem vários grupos: têm as pessoas que estão muito interessadas em terminar o curso e seguir a carreira do pai ou começar a ganhar dinheiro, fazer currículo e têm as interessadas na convivência, que se dividem basicamente no grupo do Centro Acadêmico e no grupo da Atlética, porque tem um Clube no complexo HC que é dos alunos também. O C.A da Medicina sempre foi conhecido na USP como o CA rico, tinha muito espaço e dinheiro, porque os aluguéis dessas lojas rendiam dinheiro para o Centro Acadêmico. A gente tinha uma capacidade de trabalho altruísta muito legal, fazíamos tudo e jamais nenhum de nós teve lucro pessoal com isso,
se a gente organizava grandes festas o dinheiro era pra forrar o sofá, comprar cadeiras novas, nada pra gente, tanto que
uma das maiores festas que a USP já viu foi organizada pela gente. Foi uma festa chamada "Antígena de Corpo", que nós fizemos no vão livre da FEA, foi muito grande e bem organizada porque na época a gente acabou se associando a outros centros acadêmicos que tinham a mesma visão que a gente, que eram os C.As, meio discriminados dentro da USP, mas unidos entre si, que eram o Medicina, FEA, Poli e Direito. Por ter campus fora, a Medicina e o Direito sofriam essa discriminação e a FEA eram os boyzinhos da USP e a POLI os "politécnicos", então a gente acabou se unindo no G4 que fazia esse tipo de organização. Acabamos nos envolvendo na política estudantil, porque era uma conseqüência e ganhávamos todas as eleições, era muito legal. Essa festa foi especial porque foi um evento para mais de cinco mil pessoal dentro da USP, pelas nossas contas e pela nossa postura dentro dos CAs tínhamos muita credibilidade, os diretores das faculdades quando sabiam que éramos nós que estávamos envolvidos, eles acreditavam porque a gente não fazia bagunça, não depredava os prédios. Porque na época os CAs eram muito envolvidos com política partidária e a gente sempre foi meio contra, achávamos que o CA estava lá para favorecer os interesses dos alunos e não para fazer política partidária dentro da universidade. Partido era uma escolha individual. A gente recusou isso, mesmo porque muitos partidos se aproveitaram muito da ingenuidade dos CAs e usavam por exemplo a gráfica que alguns CAs tinham, para fazer panfleto político. Achávamos que tinha que usar para fazer xerox pros alunos, mas não para pessoas externas.
MP -
E até quando você fica no Centro Acadêmico?
Márcia -
Eu fiquei até o quinto ano do curso.
Curso de Medicina MP -
Quantos anos de curso Márcia?
Márcia - A Medicina tem seis anos de curso, mas eu fiz seis anos e meio porque eu consegui repetir numa matéria por falta, passei por nota e repeti por falta. Dormia e não chegava na aula. É muito curioso até, porque era uma aula do curso de obstetrícia, que é o que me formei. Nessa época eu estava no quarto para o quinto ano e fazia plantão voluntário, numa maternidade chamada Amparo Maternal, é uma coisa que a gente acaba fazendo para melhorar sua especialização. Esse plantão era super puxado porque como aluno, todo o serviço sujo e pesado era para gente. Trabalhava muito e esse plantão era na quarta à noite e a aula de obstetrícia, na quinta de manhã. Ia direto do plantão para a aula que era dividida em duas partes: teórica e prática. A teórica conseguia assistir porque eu estava no "pós plantão paradoxal", é assim que a gente chama. Você ainda está ligada, o intervalo entre a parte teórica e a prática, era de uma hora e pouco.
A gente descia para os sofás e eu dormia... Quando acordava já tinha acabado a aula prática. Acordava assustada. A aula prática era muito ruim, porque era de uma pessoa que não tinha muita formação acadêmica, uma pós-graduanda. Ela sentava a gente no anfiteatro e ficava repetindo tudo o que tinha sido dito na aula teórica. Perder o conteúdo eu não perdia, tanto que passei com nota alta nesse curso, principalmente porque era o que eu queria, mas não passei por faltas. Hoje eu dou aulas, e aviso o aluno que ele precisa tomar cuidado com faltas, porque você quer o bem do aluno, mas essa pessoa devia ser recalcada - coitada -, e era um curso extenso de seis meses, quando chegou no fim do semestre ela disse que eu havia repetido por faltas. E foi uma situação ruim, como eu era do CA, lutei por uma coisa chamada "panela por afinidade". Que é o que?
Quando chega no quinto ano a gente se divide em grupos menores, a minha turma tinha 180 alunos, duas turmas de 90, que eram divididas em grupos de 10 a 12 alunos para passar pelas mesmas clínicas, cadeiras hospitalares, isso a gente chamava de "panela" e durante toda a vida, a Faculdade tentou impor panelas por ordem alfabética e
sempre foi por afinidade. Chega no final do quarto ano os alunos entregam para o diretor uma lista onde já estão divididos em panelas de 10 a 12, com pessoas que se gostam e são amigas, que sabem que trabalham bem entre si. E a vida inteira a faculdade tentou impor que isso fosse por ordem alfabética porque era mais prático para eles, a panela por afinidade tem mais força,
e todo ano tem uma panela lixão, que é o grupo que nunca se entrosou muito bem com ninguém e sobraram, mas todo grupo acaba tendo os excluídos e os escolhidos. Eu sempre lutei muito pela panela por afinidade e ao conseguir essa vitória no meu ano eu não pude usufruir, porque a panela ia começar em janeiro e eu não passei no quarto ano, porque era pré requisito, então não podia fazer o quinto e a minha panela foi sem mim e fiquei seis meses fazendo só obstetrícia.
Primeiro contato com propagandista MP -
E quando começa o contato com a indústria farmacêutica e os propagandistas?
Márcia -
Na verdade o contato começa nos congressos médicos universitários desde que você entra na Faculdade. Mas a gente não se liga muito, começa a perceber isso quando chega no quinto, sexto ano e começa a lidar com paciente,
prescrição, nome de medicação e quando eles começam a te adular. Eles vêm nos congressos e te dão canetas, bloquinhos, bolsas do congresso, que geralmente são patrocinadas por uma indústria farmacêutica. Aí você começa a perceber que eles existem de uma forma mais importante, toma mais consciência disso.
MP -
Mas você sente que elas são importantes na formação do estudante?
Márcia -
Não. Acho que a única coisa importante é que o estudante entenda de realidade, porque na faculdade se vive num mundo de fantasia, num mundo de ciência. Você vai estudar a filosofia científica, fisiologia, clínica, então você está preocupado em entender como o organismo funciona, não está preocupado com a realidade da pessoa por trás daquele organismo. Você só vai entender isso, quando vai praticar a clínica, a Medicina, aí você entende onde entra a indústria farmacêutica, vem o problema do preço do medicamento, qual a importância de saber o medicamento mais acessível porque você lida com pacientes de nível sócio econômico baixo, que não tem dinheiro para comprar o medicamento, então você acaba selecionando suas prescrições pelo que tem disponível na farmácia pública do hospital. Tudo acaba contando depois que começa a praticar.
Opção pela Ginecologia e Obstetrícia MP -
A tua prática começou ainda
como estudante?
Márcia - Sim, na verdade minha prática começou muito precoce, no segundo ano da Faculdade existe uma coisa chamada Liga de Combate à Sífilis e Doenças Venéreas, que é um outro trabalho voluntário para comunidade, dentro do prédio dos ambulatório do Hospital das Clínicas. A gente atende pacientes com todo tipo de doença venérea. Na época não tinha Aids. Atendia muito, feridas, corrimentos e infecções venéreas e sífilis, de pessoas que eram mandada por uma triagem dentro do hospital. Você sabe, aluno é super meticuloso, eles querem saber tudo, então a gente fazia uma anamnese detalhada. Nessa liga trabalham alunos de primeiro, segundo, e terceiro ano; no primeiro ano você faz
um treinamento tipo enfermagem, colhia material para análise. O cara do terceiro ano já era "pós-graduando em doença venérea", então eles auxiliavam os outros e tinha um professor do Departamento de Dermatologia. Os horários de funcionamento da Liga, eram fora do horário de aula, às quatro ou cinco da tarde e ficava até sete da noite. Ia para lá com o professor e a gente conversava com os pacientes, colhia os materiais e o professor coordenava, discutia os casos fazia a gente entender a fisiopatologia da doença
e ensinava
a prescrever a medicação. O responsável técnico era sempre o professor, mas a gente fazia o trabalho mecânico então multiplicava o poder de ação, era muito interessante, eu comecei a fazer isso no primeiro ano.
Curso de Medicina MP -
E depois de formada Márcia?
Márcia - Depois que você se forma tem muitos destinos possíveis. Eu fui fazer residência médica porque a faculdade de Medicina tem seis anos, mas você sai um medico generalista, na melhor das hipóteses e daí você vai escolher sua área de especialização. Eu escolhi Ginecologia e Obstetrícia, voltando para o Departamento que me reprovou, mas foi tudo tranqüilo. Essa história do Departamento ter me reprovado foi muito curiosa, como eu era do Conselho Universitário, conhecia os diretores e as regras da universidade e fui até o Titular da Cadeira, para solicitar revisão da minha avaliação, porque se eu passei por nota significa que aproveitei os conteúdos da matéria, mesmo sem ter comparecido às aulas. Têm muitos autodidatas que são bons estudantes. Na Europa a maioria das faculdades não exige presença nas aulas e a gente até costumava falar, que só exige presença quem não tem competência pra dar aula. Eu fui argumentar que tinha direito a uma nova avaliação, segundo a regulamentação da faculdade, porque eu tinha passado com nota alta e não queria perder minha panela. O chefe do Departamento falou pra mim: "Você pode realmente solicitar uma avaliação e provavelmente você vai passar...", porque o Conselho da Medicina, ia verificar, ver que estava tudo certo e iam me passar, "Mas você sabe que vai passar aqui no Departamento no quinto e no sexto ano, e que eu sempre posso encontrar um rodapé de página que você não saiba..." Acabou me ameaçando se eu afrontasse a autoridade dele, como titular, conhecido como uma pessoa que não abre exceções. E se eu fosse uma exceção ia afrontar a fama dele e podia pagar por isso. Como eu queria fazer Ginecologia e Obstetrícia, optei pela mediocridade e disse "Tudo bem.", fui reprovada, e quando eu fui passar na residência, ele nem lembrou do acontecido.
Propagandista na residência médica MP - E na residência já tinha um contato maior com propagandista, indústria farmacêutica, literatura?
Márcia - Sim, na residência a gente tem no HC, toda quarta feira uma reunião clínica onde se discute casos, temas atuais para atualizar todo mundo do Departamento e nessas reuniões os laboratórios sempre comparecem, ao final ou patrocinando um coquetel ou oferecendo amostras de medicamentos e lançamentos. No HC antigamente eles ficavam num corredorzinho entre os ambulatórios da Ginecologia e da Obstetrícia abordando e conversando, dando amostra e
mostrando os medicamentos novos.
MP -
E como é essa relação?
Márcia - É muito individual a relação do médico com o propagandista, nesse primeiro momento que ele é residente. Tem pessoas mais sociáveis, como eu por exemplo:
o propagandista lhe traz muito subsídio, tem muita coisa que você acaba conhecendo através deles hoje em dia, então eu conversava muito, eu via nos propagandistas uns amigos, mas tinha colegas que não, que os evitavam, passavam por eles rapidinho, considerando-os um atraso na situação. Mas isso foi mudando quando eles foram descobrindo que os mesmos propagandistas e laboratórios farmacêuticos, patrocinavam Congressos para eles, e a gente quer assistir os congressos, que são caros e muitos laboratórios oferecem para alguns médicos, e claro que acabam oferecendo para os médicos que dão abertura para eles conversarem.
Diferencial do Aché MP -
Você lembra do propagandista do Aché em especial?
Márcia - Eles são muitos (risos), eu não lembro do Aché em específico na época de residência, lembro dos que me visitam hoje no consultório. Mas são em quantidade, eu lembro que naquele corredor da morte que eles faziam para gente tinha todos os laboratórios, mas do Aché nunca era um, eram quatro ou cinco, porque eles dividem a linha, então têm vários e para linha de Ginecologia tinha uns três, quatro, até hoje é assim.
Trajetória profissional MP - O passo seguinte depois da residência, qual foi Márcia?
Márcia - A vida prática. Eu saí da residência já tinha emprego, porque no quarto ano da Faculdade eu tomei a decisão de sair da casa dos meus pais, eu não estava mais agüentando o trajeto de três horas para ir e quase três horas para voltar. Eu achei que estava perdendo muito tempo e isso me angustiava muito e desde os 13 anos trabalhava, procurava ganhar um dinheiro para comprar minhas coisas. Com 13 anos eu fazia crochê para vender, com 15/16 eu dava aula, estava no colegial e dava aulas de reforço para crianças de primeira à quarta série, então eu conseguia sustentar os meus caprichos de menina. Na Faculdade eu dava aula num local chamado Federação de Obras Sociais, que é um grupo de esclarecimento populacional em prevenção de Aids e DST, prevenção em drogas, fumo, alcoolismo. Eu tive muitas experiências nesse grupo, porque eles fazem um trabalho institucional, existe nas empresas uma semana interna de prevenção de acidentes SIPAT, toda empresa tem obrigatoriedade de fazer essa semana. E prevenção de acidente interno no primeiro ano eles fazem, no segundo fazem e fica tudo igual e à medida que os anos vão se passando eles têm necessidade de mudar os temas e a gente entrava esclarecendo, dando aulas sobre esses temas. Acabei virando depois de um tempo coordenadora do grupo de sexualidade e DST dessa Federação.
Propagandista no consultório MP -
Formada você foi trabalhar em consultório ou hospital?
Márcia -
Nos dois.
MP -
Como passa a ser a rotina de contato com os propagandistas?
Márcia - Muda, porque você tem um contato dúbio. Mais superficial no hospital, porque você não tem muito tempo, são furtivos, é corredor, porta de ambulatório ou alguma reunião, então é rápido. No consultório o contato é melhor e mais próximo, a qualidade é melhor.
MP -
Os mesmos propagandistas vão para o consultório?
Márcia - Não eles normalmente são alocados em locais. Tem os do serviço hospitalar e tem o propagandista do consultório, que trabalham por regiões. Eu tenho consultório no Tatuapé, e os propagandistas são da região do Tatuapé.
MP -
E como você organiza as visitas dos propagandistas?
Márcia - Não organizo, é uma bagunça. Tem colegas que colocam restrições, tem dia e horário para atende-los, é meio rígido. Como minha relação com eles é mais aberta, de amizade,
eu os respeito e eles me respeitam, então quando eles chegam e está muito cheio o consultório e eu estou atrasada nos horários, eles vão embora e voltam outro dia, e quando eu estou mais tranqüila, eles vêm a gente fica conversando, meia hora.
MP -
E como surge a relação de amizade?
Márcia - Porque o propagandista normalmente é uma pessoa que tem bons relacionamentos
pessoais, tem uma boa conversa, ele interage bem com as pessoas e médico, em geral é difícil, a maioria fechados. O propagandista tem que quebrar o gelo, vencer a barreira, ser simpático e tentar pescar na conversa o que interessa para poder entrar naquela seara e fazer a
propaganda do produto deles. Eu fiquei amiga porque eles vêm conversar sobre um produto x, eu estou interessada, eles estão me esclarecendo
sobre o medicamento, sobre o lançamento,
coisas novas, eles são
dicionários de especialidades farmacêuticas e eles te contam tudo, porque também são obrigados a estudar, então muitas
vezes eles te trazem a informação digerida e te economiza muito tempo. Tem que estudar o princípio ativo do medicamento, as reações
diversas, os efeitos colaterais, as formas de aplicação, os possíveis usos para poder falar de igual para igual com o médico, senão eles são massacrados se chegarem falando bobagem para o médico, então estudam muito. Você ouve, faz os seus filtros de acordo com sua experiência pessoal, mas muitas vezes enriquecem.
Diferencial do Aché MP - Você consegue notar diferenças entre os propagandistas do Aché e dos outros laboratórios?
Márcia - Tem diferenças, os do Aché tem um perfil mais preocupados, eles estudam bastante, porque eu não acredito muito e questiono e a gente acaba conversando bastante, eles gostam. Eu dou retorno sobre um produto novo, testo na minha prática clínica e se encontro alguma coisa que não condiz com o que eles contam, eu falo "Não é assim, não dá para ser desse jeito, muda tua abordagem.", então a gente tem uma troca. Porque tem muitos propagandistas que não conhecem nada do medicamento, nada de clínica, e você ouve e
não tem muito o que conversar.
MP - Você lembra alguma campanha ou lançamento do Aché que tenha chamado
a tua
atenção em especial?
Márcia -
Sim, aquela campanha linda que eles fizeram "Quem valoriza o médico valoriza a vida", foi o momento em que o Aché se tornou um laboratório bonito aos meus olhos. Porque uma das coisas que sinto na prática diária, é que o médico é muito desvalorizado. A gente faz um trabalho para ganhar dinheiro porque ninguém trabalha de graça, mas trabalha nisso, porque a gente gosta, é o que eu costumo dizer, com a capacidade intelectual que eu tenho, a quantidade de estudo que precisei para fazer seis anos de Faculdade, passar nas matérias, passar na residência médica, tirar o título de especialista, cada um desses é uma prova é um novo vestibular; teria seguido tranqüilamente qualquer carreira que escolhesse. Eu podia ser uma promotora, juíza e ter um salário de oito a dez mil por mês, podia ser
técnica em informática, diretora de Banco, podia ter feito um MBA com a minha idade e com o que eu já estudei e eu sou uma médica que tenho pós graduação
e só. Quem faz Medicina é porque ama, pois não é uma profissão que te dá uma remuneração tão alta quanto as pessoas fantasiam que dá. O profissional acaba sendo desvalorizado, isso entristece, quero respeito como profissional.
MP -
E como foi essa campanha?
Márcia -
Foi muito legal, eles fizeram uns adesivos; na TV teve comerciais institucionais com essa temática, foi lindo, foi o maior carinho para os médicos que já teve, tanto que teve esse "Quem valoriza o médico..." Cartazes enormes com fotos de médicos e pacientes. Depois teve um outro assim "Quem pode escolher melhor alguma coisa para você que uma pessoa que te conhece por dentro" e mostra o cirurgião operando uma pessoas. Mas foi muito bonito, eu tenho um adesivo no meu carro, tinha cartazes espalhados por todos hospitais do país foi uma atenção bonita.
MP -
Brindes e literatura você lembra de alguma coisa especial do Aché?
Márcia - Brindes a gente sempre ganha, mas não lembro de nada muito especial, o que mais marcou mesmo foi essa campanha.
Prescrição do remédio MP - Você lembra
de algum produto na área que trouxe uma novidade e você passou a prescrever?
Márcia - O Aché trabalha com produtos gerais, na minha área tem contraceptivos hormonais, antiinflamatórios, analgésicos, antibióticos, todos medicamentos que a gente usa. Como cartela de medicação quase tudo que eles tem são de uso corrente, comum, coisas que a gente usa há algum tempo. Por exemplo, anticoncepcionais de baixa dosagem, as dosagens vão caindo e eles trazem cada vez anticoncepcionais de dosagem mais baixa, eles têm de tudo um pouco.
MP -
Na hora de prescrever o que é que conta? Como o médico decide o medicamento que ele vai prescrever?
Márcia -
É uma escolha complexa,
porque a partir do momento que você fez o diagnóstico
e decidiu o tratamento para aquele caso, tem que optar por uma droga e às vezes por uma marca. Agora com a situação do genérico, muitas vezes você se vê até por demanda do paciente prescrevendo o princípio ativo puro e o paciente vai à busca, e é complicado do ponto de vista de qualidade, de haverem muitas falsificações, muitos "BOs". O
paciente às vezes vai numa coisa mais barata e não tem muita noção que a eficácia do tratamento dele está comprometida, então, quando o paciente demanda a gente prescreve o genérico. Em geral eu acabo fazendo uma prescrição dupla, prescrevo o nome do medicamento que eu desejo que ele use e acabo escrevendo o genérico em baixo para que ele tenha opções. Você escolhe o medicamento de acordo com o
que conhece de mercado, de condição social do paciente, preço e às vezes o que está na memória imediata. Os propagandistas do Aché sempre primaram por uma farta distribuição de amostras, que acaba servindo como memorização imediata e para ajudar muitas pessoas. Tem muita gente que chega ao consultório particular mas não tem a condição de comprar o medicamento que você quer prescrever para ele, então você junta um monte de amostra e faz um tratamento completo e
presenteia paciente para ajudá-lo. Muitas vezes você olha no seu armário e tem o antiinflamatório do Aché e você prescreve aquele por ser o lembrado no momento dentro do que você precisa. Porque existem muitas marcas e muitas coisas semelhantes e o que vai fazer você lembrar às vezes são pequenos detalhes; você olha para o armário e vê aquele nome comercial, ou o propagandista acabou de sair da tua sala e falar do medicamento e você prescreve.
Propagandista no consultório MP -
Das visitas dos propagandistas você lembra de alguma situação que tenha sido marcante?
Márcia -
(Risos) Lembro. Porque os propagandistas são supervisionados por gerentes e como eu disse a minha relação com os propagandistas sempre foi de amizade, então eles sempre vem sozinhos nas visitas e também sou amiga de ex-propagandistas, amiga íntima até e eles me contam a realidade da vida deles e eu sei que os gerentes fiscalizam porque o propagandista é um free-lancer, ele
tem o carro cheio de amostras e a cartela de médicos os quais ele tem que visitar, pode não aparecer no consultório. Então de vez em quando vem acompanhados do gerente que quer ver se o médico conhece o propagandista, se a visita está sendo feita. Um dia chegou o propagandista do Aché com o seu gerente, eu percebi que estava um pouco tenso e normalmente é uma pessoa tranqüila, solta. Fez a propaganda e eu o recebi como se já conhecesse há uns dez anos, "Tudo bom..." Mas ficou tudo bem, eu ofereci café para os dois e ela ficou tranqüilo. Na outra semana voltou e disse: "Ah Dra. obrigado Aquele gerente é um carrasco" Porque o gerente quer ver se a propaganda está bem feita, se o medicamento está sendo usado.
MP -
Estamos no final, eu quero te perguntar: hoje mudou muita coisa na tua relação com os propagandistas e com a indústria farmacêutica de quando você começou a atuar?
Márcia -
Foi melhorando a relação, porque eu tenho consultório há sete anos, desde que me formei trabalho em consultório, então tem propagandistas que estão comigo há anos e a gente vai ficando amigo é aquela pessoa que vira parte da tua realidade, do dia a dia.
Dia-a-dia de trabalho MP -
E como é o teu dia a dia de trabalho?
Márcia - Eu tenho um dia de três
períodos normalmente, de manhã vou para o hospital Pérola Byington, das sete às 11. Faço cirurgia ginecológica e atendo pacientes pré e pós-cirúrgias. Saio do hospital e vou para o Posto de Saúde, das 11 às 15 onde, faço atendimento de colposcopia, diagnóstico de câncer ginecológico, minha especialização mais importante e das 15 até a hora que Deus manda fico no consultório, normalmente saio oito, nove, às vezes dez, depende da paciente. Porque como vocês podem notar, eu falo bastante e no consultório eu também sou assim, e se a paciente chega com muitas questões eu não tenho coragem de não responder ou não conversar, e aí os 30 minutos da consulta se estendem e quando eu vou ver já são dez horas da noite.
MP -
E o que você achou de contar um pouco da sua história?
Márcia - Muito bom porque o começo da carreira está longe, mas ainda perto, na memória. E é uma época muito bonita na vida, a Faculdade, você está muito puro, aberto a tudo, sem preconceitos, você é uma esponjinha de conhecimentos e experiências novas, está lá para aprender e para viver, é muito bom, não tem contas pra pagar, não tem dívida, a única preocupação é viver o dia e fazer as coisas direito.
MP -
Muito obrigada pela participação
Márcia -
De nada.Recolher