Memórias do Comércio da Cidade do Rio de Janeiro
Depoimento de Jack London
Entrevistado por Paula Ribeiro e Carlos Kessel
Rio de Janeiro, 01/07/2003
Realização Museu da Pessoa
Código: MCRJ_HV030
Transcrito por: Eliana Almeida de Souza Rezende
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Oi, boa tarde, J...Continuar leitura
Memórias do Comércio da Cidade do Rio de Janeiro
Depoimento de Jack London
Entrevistado por Paula Ribeiro e Carlos Kessel
Rio de Janeiro, 01/07/2003
Realização Museu da Pessoa
Código: MCRJ_HV030
Transcrito por: Eliana Almeida de Souza Rezende
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Oi, boa tarde, Jack.
R – Boa tarde.
P/1 – Gostaria então de começar o teu depoimento pedindo que você nos forneça o seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Meu nome é Jack London. Eu nasci em Nilópolis, 16 de Fevereiro de 1949.
P/1 – Seus pais, nome completo.
R – Meu pai chamava-se Mojsza London, já falecido, e minha mãe Estera Elta London.
P/1 – E os avós, você se lembra deles? Conheceu? Lembra dos nomes?
R – Conheci e convivi muito com os avós maternos; paternos não, já tinham morrido quando eu nasci. Meus avós paternos... A minha avó chamava-se (Toba?) e meu avô chamava-se Manuel, em português. Ele era um artesão. Era uma coisa típica daqueles tempos, do final do século passado. Ele era produtor de guarda-chuvas. A empresa dele, o estoque, a distribuição, o setor financeiro-comercial ficava todo debaixo da cama dele e da minha avó. Os dois acordavam – eu me lembro muito bem – às quatro horas da manhã, tinha algumas vezes que eu dormia lá com eles, eles acordavam às quatro horas da manhã, puxavam debaixo da cama caixas com o material, e produziam ali o guarda-chuva completo. Dominavam todo o ciclo tecnológico de produção do guarda-chuva, e ele produzia dois, três, quatro guarda-chuvas por noite. Quando era mais ou menos sete horas da manhã, ele botava a produção debaixo do braço e saía para vender os guarda-chuvas. Depois voltava. E viveram a vida inteira disso, e viveram muito bem! Criaram os filhos e etc.
P/1 – Você conhece um pouquinho da história da família?
R – Eu guardei um dos tachos deles, que era o tacho onde ficavam as ponteiras dos guarda-chuvas. Eram tachos de cobre. Cada um tinha um elemento da produção; um tinha as varetas, o outro tinha aquela ponta do guarda-chuva, o outro tinha os cabos. E aquilo ficava tudo debaixo da cama, e a unidade produtiva era o quarto deles.
P/2 – Eles compravam de vários fornecedores?
R- É. Eles compravam a matéria-prima, guardavam e iam produzindo.
P/1 – Mas esse era um ramo de comércio trazido... Pois é, queria entender um pouco a história da sua família. Quer dizer, são imigrantes. Quando vieram, de onde vieram, se trouxeram uma profissão para o Brasil?
R – É. No caso do meu avô, trouxe, porque ele já tinha essa habilidade lá, né? No caso do meu pai, não. Vamos dizer, meu pai veio para o Brasil sem nenhuma profissão definida. Quer dizer...
P/1 – Veio de onde?
R – Veio da Polônia. Imigrou para cá no comecinho dos anos 1930. Final de 1928, 1929, 1930, por aí assim, porque a família toda veio para cá. E chegando aqui se dedicou ao comércio, a vida inteira também ele foi o chamado mascate, prestamista, que na época era muito comum, era um profissão muito, muito encontrada na colônia [judaica].
P/2 – O (cleantech?)
R – O chamado (cleantech?), exatamente. Como é que funcionava isso? Eu outro dia até brinquei que o que acabei fazendo na vida, não é nada mais do que o que ele fazia, apenas ele era o link entre a mercadoria e o consumidor, eu eu utilizo o link eletrônico,mas que no fundo o que ele fazia era isso. Quer dizer, o que ele fazia? Ele buscava a mercadorias e produtos no centro urbano. Naquele momento, no centro da cidade, na atual Saara, Rua da Alfândega, Rua Senhor dos Passos, onde havia atacadistas que municiavam essas pessoas de mercadoria. E ele ia vender a mercadoria num local inteiramente afastado do centro urbano, onde as pessoas não tinham acesso nem à compra, nem à produtos. Não havia estrutura de shopping, que temos hoje, supermercados ou de lojas, nada disso. Então meu pai trabalhava em Nova Iguaçú, a praça dele era Nova Iguaçú. Então a rotina dele era todo dia sair de casa, pegar o trem, ir até Nova Iguaçú; lá ele tinha um conjunto de clientes que ele visitava, que ele vendia. E todo o sistema de administração dele era umas fichinhas onde ele anotava o nome do cliente, aquilo que o cliente devia. Ele era o crédito, ele era o link, não é? Ele era o catálogo também, porque ele sabia a mercadoria. Enfim, era uma unidade também de trabalho completa, né? (risos)
P/1 – Você sabe qual mercadoria?
R – Tecidos.
P/1 – Tecidos.
R – Basicamente tecidos, basicamente tecidos. E ele gostava muito de trabalhar com tecidos para senhoras, ele sempre achou que esse mercado era um mercado melhor, então eram roupas coloridas, tecidos coloridos, e basicamente tecidos. Muitas vezes eu me lembro, é uma recordação que eu tenho muito forte, dele chegando em casa com três galinhas, dois patos... Porque as pessoas não tinham dinheiro para pagar e já estavam muito atrasadas com o pagamento, e ele aceitava o pagamento... Enfim. E minha mãe furiosa, né? Às vezes chegava em casa com uma sacola com... O que ela ia fazer com aqueles dois patos e tal. Mas isso era uma coisa comum. Laranjas, sacos de laranja. Ou seja, era a forma que ele tinha, naquele momento, de receber aquilo pela mercadoria que ele vendeu. E trabalhou a vida inteira nisso. Minha mãe já tem uma experiência completamente diferente. Ela também imigrante, veio da Polônia, mas lá na Polônia ela estudou. Ela saiu de lá adolescente, e era muito estudiosa, muito aplicada na escola, sempre gostou muito de estudar. E chegou aqui... Lá, inclusive, eu me lembro um episódio que ela conta, era ela muito boa aluna, tirava notas muito boas, estava sempre entre os primeiros da turma! Mas isso já era época de uma perseguição muito grande aos judeus, ela não aparecia nos boletins como estava entre os melhores da turma, porque não podia aparecer um judeu entre os melhores colocados na turma. Então ela nunca esqueceu isso. Ela veio para o Brasil... Casa-se com meu pai muito jovem, era o destino de todas as mulheres naquele período. Conheceu meu pai um pouco antes de casar e casou-se, e se dedicou à uma vida de dona-de-casa daí para frente. Ela teve quatro filhos, dos quatro, vivos, eu e meu irmão mais velho. Ela perdeu uma filha com sete para oito anos. E um irmão eu perdi também, com 21, 22 anos, mais ou menos, já adulto. Quando meu pai fez 65 anos, ele sofreu um acidente de casa, que de certa maneira o invalidou. Ele caiu em cima de um armário, quebrou a omoplata, quebrou a perna. Aí ele parou de trabalhar, e a partir daí a doença... Ele morreu de câncer. Começou a ter problemas nos ossos, enfim, nas articulações, e parou de trabalhar. Aí disse para ele: “Agora eu já criei os seus filhos, sua família está criada, agora eu vou cuidar da minha vida!”. E ela fez o artigo 99, fez o supletivo...
P/1 – Legal!
R – Fez vestibular, passou para a Faculdade de Direito com 64 anos. Fez Faculdade de Direito na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], se formou. Quando terminou o curso ela, não satisfeita, disse: “Não, eu quero aprender, conhecer um pouco... Eu quero fazer Ciências Sociais”. E aí fez vestibular para o IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais], veja só. Entrou no IFCS com 60 e tantos anos e saiu com 70 e... E o IFCS é o centro de agitação política, né? Eu lembro da formatura dela, são duas coisas que eu me lembro:
a formatura dela de Direito foi uma formatura tradicional, Com aquela beca, com aquele chapeuzinho. A formatura no IFCS...
P/1 – Das Ciências Sociais, né?
R – Que foi uma discurseira política de todos os partidos, cada um manifestando a sua posição política naquele momento. E no meio daquela gente toda, minha mãe ali, se formando.
P/1 – Que legal! (risos) Sensacional!
R – Então, esse é mais ou menos... Ela sempre teve uma atividade na colônia muito forte, ligada a movimento de mulheres na colônia, ela sempre teve esta atividade, mas que ela desabrochou mesmo nesse momento, quando se formou nas duas faculdades. Depois disso ela criou um Clube da Vovó, no CIB [Clube Israelita Brasileiro], que é um clube ali em Copacabana, onde durante muitos anos dirigiu esse clube, que tinha uma frequência enorme da terceira idade de Copacabana. De uns cinco anos para cá, seis anos para cá, ela achou que já estava muito duro, muito cansativo, e resolveu parar.
P/1 – Eu então queria recuperar um pouco suas memórias de infância de Nilópolis. Como é que era a sua casa, que rua você morava, como é que era o cotidiano de uma criança...
R – Deixa eu te dizer...
P/1 - A vida judaica da...
R – A minha memória de Nilópolis é muito mais de referências posteriores do que exatamente vividas, porque eu saí de lá muito novo. Saí de lá com três anos, então a memória forte de infância que eu tenho mesmo é no Méier, aonde nós viemos morar em 1952. Mas em Nilópolis nós morávamos numa rua chamada Mena Barreto, que era a rua, vamos dizer assim, principal de penetração do lado direito de Nilópolis, de quem está descendo em direção à cidade. A casa onde nós morávamos era uma casa que tinha duas frentes, ela dava frente para essa rua e para uma rua nos fundos, depois que nós mudamos para o Méier meu pai derrubou essa casa, construiu um conjunto de lojas, de sobrados que estão lá até hoje. São da família e estão lá no mesmo lugar, e, portanto, nós ainda temos um pezinho lá em Nilópolis, que são estes imóveis que ainda estão lá. A família tinha uma presença muito forte lá, né? Porque era uma família muito grande, na geração de meu pai eram cinco irmãos e uma irmã, e meus tios muito atuantes na cidade, com presença no Rotary, com presença nas entidades associativas locais, no comércio local, e ficaram lá durante muito tempo, até alguns anos atrás. Havia, ainda, lojas com o nome da família.
P/1 – Qual o ramo de comércio da família?
R – Móveis. Lá em Nilópolis, móveis. A maior loja de móveis em Nilópolis bem perto da estação era uma loja...
P/1 – Você lembra do nome?
R – Eu acho que era... Acho que tinha o nome da família, acho que era Móveis London mesmo. Não tenho certeza não, mas acho que era, e era um primo meu que cuidava, cuidou até bem pouco tempo atrás. Então, a família tinha uma presença muito forte lá, pelo tamanho. Para você ter uma ideia, na minha geração, somados os primos do lado do meu pai e do lado da minha mãe, eu tinha mais de 30 primos! Então a família cresceu muito. Agora é o momento inverso, quer dizer, a estrutura demográfica mudou muito. Mas era uma explosão... A família era muito grande, e tinha uma presença forte lá na cidade.
P/1 – E tinha uma vida judaica?
R – Tinha uma vida judaica muito intensa lá. Havia uma Sinagoga, que reunia... A Sinagoga era ao mesmo tempo Sinagoga e Colégio, portanto ela era o centro de organização dali da cidade. Havia um cemitério de Nilópolis, que ainda existe. Não é o cemitério principal, hoje, da colônia, o cemitério principal é o Vila Rosali, não é o de Nilópolis, mas é o mais antigo, ainda. O curioso dessa história é o seguinte: é que a família que deixou mais traços na história da cidade de Nilópolis é uma família chamada Berkowitz, que tem nome de ruas em Nilópolis, com o nome como Júlio Berkowitz, que é a família da minha mulher...
P/1 – Ah, que graça! (risos) Muito legal!
R – Porque eu não conhecia, só fui conhecer depois aqui, na zona sul. Então o meu casamento foi na verdade uma junção de duas famílias que tiveram uma presença muito forte lá em Nilópolis. A família Berkowitz acho que ainda tem algumas pessoas morando lá.
P/1 – E qual era o ramo de negócio dos Berkowitz? Você sabe?
R – Não, o meu... O avô da minha mulher chamava-se Henrique Berkowitz, era gráfico. Ele tinha uma encadernadora pequena lá em Nilópolis. Depois esta encadernadora veio aqui para o Rio. Chegou a ser uma grande empresa, chamava-se Encadernadora Berkowitz, e resistiu até, se não me engano, quatro ou cinco anos atrás, passando já de geração em geração, muito conhecida no mercado editorial aqui do Rio de Janeiro.
P/1 – E a transferência para o Méier, o quê que significava para você na década de 1950? Sair de Nilópolis no contexto da cidade e ir para o Méier, o que é que significava isso, uma certa ascensão social? Mais mercado para trabalhar? O que significava isso?
P/1 – Eu acho o seguinte, esse processo, como todos os processos pessoais, você... A tua vida é um microcosmo num processo social que se desenvolve e às vezes você nem percebe. Mas isso foi um processo. Num certo momento, essa colônia judaica lá em Nilópolis vicejou de 1925 até os anos 1950, até começo dos anos 1950. E de repente, houve um processo, não é? Já na segunda geração... A geração dos meus pais foi a geração que foi para lá. Já com a segunda geração – a minha geração –, da qual eu sou o mais novo, são todos mais velhos que eu, eu sou o mais novo da minha geração. Os meus primos em média tem todos 70 anos, mais ou menos. Então essa geração empurrou a família para, vamos dizer assim, a segunda parada dessa história, que na época era Méier e Madureira, esses dois bairros nos anos 1950, houve uma enorme –1940, 1950 – imigração de família judaica para esses dois bairros, e houve, por exemplo, o comércio de Madureira, que num certo momento Madureira foi a maior arrecadação de impostos do Rio de Janeiro na área comercial, com um comércio muito forte, era muito devido à presença da colônia lá, muito intensa, muito ativa ali.
P/1 – Você poderia citar os ramos de comércio, por exemplo, que a comunidade judaica trabalhava...
R – Olha, sempre assim, roupas, alfaiataria, móveis, esses eram os três maiores, eram os três setores em que você tinha maior interesse ou aptidão, ou, enfim, articulação. Até um primo meu foi presidente da Associação Comercial de Madureira, o Felipe (Morren?) Stern, nos anos 1980, já é outra geração. Então houve essa migração, essa migração significou uma mudança efetiva substancial, já era o segundo momento dessa história. Na verdade, a primeira geração que veio para cá, veio muito pobre, na sua grande maioria, fugindo não apenas da pobreza, mas também da perseguição. Portanto, o objetivo dela era sobreviver, sobreviver com a dignidade que fosse possível, com o esforço que fosse possível. A maioria não tinha educação formal e o sonho era, portanto, que os filhos tivessem uma educação formal. E isso aconteceu! Porque havia escolas e um esforço grande para isso. Esta geração, ela já queria que os seus filhos, portanto, a próxima geração, fosse uma geração de doutores, de médicos, de advogados, de engenheiros. O projeto que os meus pais tinham para minha geração era formar sucessores para os seus negócios. De fato, foi um pouco isso que aconteceu.
P/1 – Mas por exemplo, quando teu pai... Quando vocês se transferiram para o Méier, o teu pai continua trabalhando como ___________?
R – Continua da mesma maneira. Evidentemente complicou demais a vida dele, porque ele morava em Nilópolis e trabalhava em Nova Iguaçu, passou a ter que ir do Méier, mas continuou... Na verdade eu acho curioso, porque isso demonstra também a riqueza dos anos 1950 na história do Brasil. Foram anos de transição econômica, de crescimento econômico fascinante, nunca vimos igual.
P/2 – Cheio de oportunidades...
R – É, porque você... Veja só, em 1949 minha família estava em Nilópolis, em 1961 ela estava na Tijuca...
P/1 – Olha!
R – E esta passagem foi feita por milhares de pessoas; imigrantes, os mais diversos. Se você pegar, por exemplo, a colônia libanesa no Rio, o fenômeno é igual. Eu conheço muitas pessoas da colônia, tenho muitos amigos, e as histórias são semelhantes. Então o primeiro momento com o Getúlio, primeiros três, quatro anos, depois, especialmente com Juscelino, são anos de uma euforia econômica, de uma perspectiva de crescimento, de uma confiança em que as coisas vão dar certo e isso se manifesta nesse processo de ascensão social. Então nós mudamos para o Méier em 1952.
P/1 – Você foi morar aonde? Que rua?
R – Fui morar numa rua chamada Castro Alves. É uma rua também do lado direito do Méier, de quem vai para lá. Eu costumo brincar com meu pai, que ele sempre acertava no bilhete de loteria que não ganhava. (risos) Porque, por exemplo, Nilópolis, o lado que cresceu foi o lado esquerdo, que é o lado onde mora o Anísio Abraão, enfim, essas famílias que hoje controlam. Quando ele foi para Méier, ele também tinha dois lados. Tinha um lado que era o lado da Rua Dias da Cruz, então, o lado da Dias da Cruz foi o lado que se desenvolveu, que cresceu, que hoje é o coração do Méier.
P/1 – Vocês foram para o outro...
R – É o lado, você indo daqui para lá em direção ao Méier, do lado direito, onde tinha o Jardim do Méier. Portanto, eu fui criança no Méier.
P/1 – Quais são suas lembranças? Você brincava na rua...
R – Eu tenho... As minhas primeiras lembranças mesmo, memórias minhas, são duas, porque acho que são muito fortes, que me marcam muito, e eu até hoje sonho com elas e elas têm um papel na minha vida. A primeira delas, que é a imagem mais antiga que eu tenho na minha memória – porque não me foi contatada por terceiros – foi o dia que entrou a televisão na minha casa.
P/1 – Ah, que bárbaro! Qual é? Conta então como é que foi esse...
R – Foi em algum momento, poucos meses depois de mudarmos. Eu devia ter entre três e quatro anos. Era uma televisão Zenith, de madeira, daquelas... E eu me lembro daquelas pessoas entrando na minha casa, trazendo uma caixa enorme, tirando da caixa e de repente abrindo aquele objeto, e daquele objeto sai uma imagem de um índio, que era uma efígie do caramuru. Não sei se vocês se lembram.
P/2 – Da TV Tupi, né?
R – A TV Tupi, que hoje vocês chamam de bartola, que é aquela barra... Não tinha barra de cores. Quando a TV entrava no ar, ela tinha uma imagem que era um índio e um tracejado em volta assim, e ficava tocando uma música (em looping?), que era o Guarani de Carlos Gomes. E como a televisão só ia ao ar, se não me engano de duas horas da tarde, das duas às oito... Das duas às dez, não era mais do que isso, a manhã inteira, a televisão... Eu ligava a televisão para ver e ficava sentado em frente à televisão vendo o caramuru e ouvindo o Guarani. E aquela música até hoje toca na minha cabeça. A segunda imagem que eu tenho é uma imagem... É que é assim, logo depois da entrada da televisão, portanto ela deve ter chegado em março, abril... Nós morávamos em um prédio, ainda está lá também, até hoje, na Rua Castro Alves, um prédio de quatro andares, e ele tinha umas varandinhas. A gente tem a porta de entrada, não tinha varanda. Então as varandas faziam... Eram ressaltadas no prédio. E um dia eu estava na varanda... E a minha varanda, o meu apartamento, onde a gente morava, era exatamente encostado nessa parte central do prédio. Um dia cai um balão enorme, maravilhoso, colorido, lindo! Esse balão encosta no prédio e lentamente vem descendo pela parede do prédio. O vento empurrou ele, foi e encostou, e aí se juntaram na rua centenas de pessoas, aos pulos, dançando, dizendo: “Olha que lindo!”. Uma imagem de festa, né? O balão vai descendo, vai descendo, quando ele encosta no chão, os que estão mais perto, os meninos dali da rua e tal correm para agarrar o balão, e aí começa um tumulto, e as pessoas destroem o balão! Isto acontece com todo balão que cai.
P/2 – Tascam o balão!
R – Exatamente. Chamam tascam o balão! E o balão é destruído e começa um tumulto, uma briga no meio da rua, e as pessoas saem aborrecidas, irritadas. Vem a polícia... Então aquilo me impressionou muito. Me impressionou, como é que uma festa se transforma num momento de tristeza, de depressão e de angústia rapidamente, né? E como é que balão, aquela coisa maravilhosa, vira lixo! Vira um... Então essas são as duas imagens que eu tenho mais.
P/2 – Você chegou a soltar balão também?
R – Se eu cheguei? Cheguei! E o mais curioso dessa história do balão é que depois de adulto, casado, eu morei aqui na rua Silveira Martins...
P/1 – Catete.
R – Aqui no Catete. Eu morava numa cobertura, e um dia eu estava, fim de semana eu estava fora. Quando eu chego em casa, embaixo do meu prédio tem bombeiro, polícia, escada Magirus, e quando eu cheguei o porteiro disse: “O senhor não pode subir, o senhor não pode subir de jeito nenhum! Caiu um balão na sua casa!”.
P/1 – Ah!
R – É uma coisa estranhíssima, porque a parte da cobertura livre, né? Era muito pequena, dava, sei lá, quatro por seis. Um balão gigantesco!
P/1 – Pega fogo?
R – E a boca do balão caiu exatamente ali, ela encaixou ali!
P/1 – Nossa, que... (risos)
R – E esses balões são acompanhados por uma equipe, né?
P/1 – É.
P/2 – É.
R – Os baloeiros chegaram
no prédio, o porteiro não quis deixar eles entrarem, eles invadiram o prédio, subiram até a casa de máquinas, arrombaram uma porta da casa de máquinas... Isto com o porteiro chamando a polícia. Vieram pelo telhado para apagar e tirar o balão. Senão, tinha pegado fogo na minha casa.
P/1 – Que loucura! (risos)
R – O balão tem... O balão reapareceu na minha vida, né?
P/2 – É.
P/1 – Tinha uma pergunta assim, me veio à cabeça: essa coisa, por exemplo, da tua infância no Méier, como é que era a relação, por exemplo, de você um jovem, um menino da comunidade judaica, com os não-judeus do bairro? Havia essa inteiração? Quer dizer, como é que era isso num bairro do Méier?
R – Olha...
P/1 – Se brincava junto?
R – Brincava junto. Como é que era essa vida lá? Havia um colégio...
P/1 – Judaico?
R – Judaico. Quer...
P/1 – Você lembra o nome?
R – Lembro. Chamava-se Colégio Bialik , o prédio ainda está lá, até hoje. Hoje é uma repartição pública, acho que é uma agência do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social]. É um prédio já muito bonito, um prédio grande, e eu estudei a minha infância toda... O primário eu estudei nesse colégio.
P/1 – A língua em casa qual era? Português ou iídiche, como é que era?
R – Não, entre meus pais, iídiche a vida toda, mas comigo, português.
P/1 – Português.
R – Português. Acho que já era uma coisa da minha geração, com meu irmão mais velho eles ainda falavam iídiche, mas comigo, português.
P/1 – Mas você entendia o iídiche?
R – Entendia e entendo até hoje. Não falo habitualmente porque eu não tenho o hábito e porque não tenho com quem falar, mas compreendo bem. Então, na verdade, a gente tinha ali duas... Eu tinha duas turmas: você tinha a escola, e aí você tinha uma escola judaica, só com alunos judeus, e você tinha ali um envolvimento com aquelas pessoas. Todos, praticamente, moravam na... Porque a escola era no final da rua onde nós morávamos, então o meu caminho para a escola era seguir a minha rua até o colégio, voltar... E nessa rua moravam mais alguns meninos da minha turma, e do lado do colégio era uma... Acho que num raio de um quilômetro, moravam todos os alunos. Mas eu tinha outro ambiente que era a casa da minha avó. A minha avó morava nesta mesma rua, numa vila, numa casa que eu até costumo visitar, eu já fui lá várias vezes.
P/1 – Ah é?
R – Muitas vezes tenho...
P/1 – Você é ligado nisso? Nessa coisa da história, de voltar?
R – Muito, muito! E eu era um pouco o neto... Eu sempre fui meio...
P/1 – Preferido.
R – É, exatamente. Eu carrego essa...
P/1 – Xodó.
R – Essa pena de ter sido um pouco o xodó da minha avó e da minha mãe também. No caso da minha avó, ela morava numa vila, numa casa mícara! Hoje, olhando para ela, eu fico impressionado. E vivia muito bem, enfim. Nessa vila, ela era a única judia nessa vila. Era uns 100, 150 metros depois da casa da minha mãe, e essa vila era uma vila de soltadores de pipa, jogadores de bola de gude e de peladeiros, então eu tinha uma turma ali. Ali a integração era absoluta, e foi uma infância de menino de subúrbio mesmo! Soltar pipa o dia inteiro, correr atrás de pipa, fazer cerol, jogar bola no final do dia. Era uma vida muito saudável, muito sadia. Meu avô, no verão, dormia na vila, do lado de fora, numa cadeira de balanço, com a porta aberta.
P/1 – Que bárbaro!
P/2 – Por causa do calor...
R – É.
P/1 – Mas ele, por exemplo, ainda era comerciante? É esse que era o comerciante de guarda-chuva?
R – É, é.
P/1 – Ele trouxe essa atividade para o bairro do Méier?
R – Trouxe! E viveu a vida inteira fazendo isso.
P/1 – Você se lembra um pouco do comércio do Méier na sua infância? Assim, pontualmente? Quer dizer, alguma loja que sua mãe sempre comprava, ou alguma...
R – Lembro, lembro. Ali você tinha uma loja que o nome me impressionava muito, que se chamava Sedofeita, que eu não sei o que houve com ela, mas era cadeia grande naquele momento.
P/1 – “Sedofeita”?
R – Sedofeita. Eram coisas feitas de seda, então o nome da loja era Sedofeita, que foi uma cadeia grande, não sei onde ela foi parar. Você tinha a José Silva, que era uma loja muito conhecida...
P/1 – De roupas de homem, né?
R – De roupas de homem, que também já não existe mais, não é? Tinha... Meu pai comprava coisas lá, gostava muito de comprar coisas lá. E você tinha o comércio da rua. Portanto, essa rua onde eu morava tinha assim: o carvoeiro, que era um personagem da rua e todos compravam carvão, que a lenha era muita... A utilização de carvão, então o carvoeiro era um comércio vital.
P/2 – Gelo se vendia também? As pessoas tinham geladeira já?
R – Não, o gelo eu não me lembro. Me lembro bem, na minha memória de criança, o carvoeiro. Segundo, o leiteiro, que ainda era um burro carregando, no começo, depois...
P/1 – Que década você está falando?
R - 1950.
P/1 – 1950. Começo...
R – 1952, 1953, 1954. Logo depois veio o caminhão, mas era um burrico com o tonel atrás, e as pessoas levavam com aquele vidro, ele abria a torneira, as pessoas compravam o litro de leite e levavam para casa.
P/1 – Tinha empregados na sua casa?
R – Tinha, tinha! Eu acho que do Méier para... Um certo momento do Méier para frente, assim... Na Tijuca sim, teve empregada doméstica até certo momento, até o momento em que eu casei e saí de casa, depois minha mãe abriu mão disso, ela mesma cuidava da casa. E nessa mesma rua, no Méier, por exemplo, para mim, como menino, o comércio mais importante que tinha era o comércio na esquina da rua da minha avó. Vou explicar a vocês por quê. Por que é que eu brinquei com essa coisa do xodó? Eu era o único neto que morava a essa distância da casa dela, e segundo a tradição judaica, você só se torna efetivamente temente a Deus, e obrigado a seguir os trâmites religiosos depois dos 13 anos, depois do Bar Mitzvá, que é uma cerimônia religiosa. Até aí você está liberado das restrições, e meus avós eram muito religiosos, muito, extremamente! Eram, enfim... Isso implicava dizer o seguinte, por exemplo, sábado toda a família ia almoçar na casa da minha avó, todos os filhos, netos, todo mundo. E ela começava a cozinhar o almoço na sexta-feira à tarde. Mas ela não podia apagar o fogo depois de cinco horas da tarde, depois que aparecesse a primeira estrela no céu, nem podia acender a luz. Eu saía de casa, ia na casa da minha avó para apagar o fogo e para acender a luz da casa. Aí voltava para casa. No outro dia de manhã eu voltava cedinho para acender o fogo para esquentar a comida e para apagar as luzes da casa. Então eu era aí uma espécie de apêndice da casa da minha avó, e em função disso... E ela tinha, nessa vila, ao lado da vila tinha um armarinho, que a impressão que eu tenho é a seguinte: naquele momento, esse comércio de bairro tinha duas entidades fundamentais, uma era o armarinho e a outra era a padaria. São as duas entidades que eu me lembro que... Muita gente, muitos clientes. Esse armarinho era uma senhora, já muito velhinha, que eu me lembro que era a dona Lica, que era muito amiga da minha avó. E em frente à padaria tinha um jornaleiro, que ainda era daqueles que usavam uniforme e que carregava rede. Numa certa hora do dia ele fechava a banca, era uma banca muito pequeninha, e ele saía com os jornais e as revistas nas costas, entregando, vendendo de porta em porta. Eu me lembro, inclusive, que o material dele ficava dentro do sistema, que antigamente chamava “calandra” nas gráficas, que era uma chapa, no começo de metal e depois foi para um material plástico ou alguma coisa assim. Então ele tinha uma calandra daquelas que ele botava tudo nas costas, saía carregando um peso brutal. Eu rapidamente estabeleci relações de extrema amizade e cordialidade com a Dona Lica e com o seu Manoel, o jornaleiro. O jornaleiro eu tinha um acordo com ele, que era o seguinte: eu podia ler tantas revistas em quadrinho, quantas eu pudesse, desde que não arranhasse, nem dobrasse, nem rasurasse nenhuma revista. Como eu tinha que chegar na casa da minha avó às sete horas da manhã para desligar a luz e o resto da família só chegava na hora do almoço, eu passava a manhã inteira lendo. (risos) Lendo, eu lia... Eu li todos os gibis, todas as histórias do Bolinha, da Luluzinha, do Pato Donald, da Disney, do começo dos anos 1950 e do meio dos anos 1950. Porque não me escapava nenhuma, eu começava às sete e terminava, voltava correndo, entregava para o seu Manoel, ele me dava outra e eu lia. E quando terminava de ler as revistas, a dona Lica me dava uma pipa, e dizia: “Se você não estragar a pipa, você pode me devolver depois; se estragar vai ter que pagar, vou cobrar da sua avó”. Soltava pipa com um cuidado danado. Então eram meus fornecedores de (insumo?), que eu nunca esqueci. Mas era uma vida muito interessante, a comunidade tinha uma...
P/1 – E a Bar Mitzvá?
R – Bar Mitzva foi na Tijuca.
P/1 – Na Tijuca.
R – Já estava, eu já estava...
P/1 – Vocês ficam no Méier até quando?
R – Até 1961, aí mudamos para a Tijuca .
P/1 – Até 1961 o seu pai trabalhava com prestamista?
R – Prestamista a vida toda.
P/1 – E o mercado dele, a clientela ficou sendo qual? Em que bairros da cidade?
R – Nova Iguaçu.
P/1 – Continuou sendo Nova Iguaçu.
R – E os anos 1950 foi o grande momento de ascensão dele! Foi nos anos 1950 que ele comprou o apartamento no Méier, comprou o apartamento da Tijuca...
P/1 – Com o dinheiro da...
R – Com o dinheiro...
P/1 – Do comércio.
R - E construiu essas lojas, esses sobrados lá em Nilópolis, na antiga casa. Você veja, dos anos 1960 para cá, vieram o processo de envelhecimento dele, mas também um corte na economia. É quando a gente começa a ouvir falar em crise na economia brasileira de tempos em tempos, e de lá para cá ele não acrescentou nada ao patrimônio ou àquilo que ele tinha feito.
P/2 – Mas essa coisa de construir patrimônio não com facilidade, com dificuldade sim, mas de uma maneira que hoje em dia a gente acha muito característica para essa época...
R – É verdade! Eram extremamente ciosos de qualquer despesa, todas as despesas eram muito contidas, né?
P/1 – Não, o que é legal é que como é que fez o patrimônio com esse tipo de comércio, que é um comércio à prestação, como prestamista, durante 30 anos. Quer dizer, ele fez um patrimônio...
R – Assim, até os dez, doze anos eu nunca comprei uma roupa feita. Minha mãe costurava!
P/1 – Costurava...
R – Minha mãe costurava, era tudo... Não se comia fora, só comia em casa. A diversão era muito contida, muito assim, especial. Me lembro, nessa fase aí, o grande lazer era – e eu tenho recordações disso fantásticas –, era vir à Cinelândia.
P/1 – Ah, que legal!
R – Era uma epopéia, né? Meu pai andava de terno e gravata o tempo todo, mesmo para ir para Nova Iguaçu, nos anos 1960, 1970, ele ia de terno e gravata. Eu me lembro, eu tenho até estas fotos, eu devo ter até hoje. Então a família se engalanava, pegava o bonde, saltávamos ali na Senador Dantas, íamos ao cinema..
P/1 – Ah que legal!
R - E depois íamos comer coalhada, sorvete numa leiteria ali na Rua Senador Dantas, que eu acho que existe até hoje, um hotel chamado Flórida ali, se eu não me engano. Não me lembro se era Flórida ou Ambassador.
P/2 – Ambassador.
P/1 – Ambassador. Flórida é no Catete, na Oliveira Viana.
R – Do lado do Hotel Ambassador tinha uma leiteria, não sei se ainda está lá.
P/2 – Acho que não.
R – Era um programa fantástico: íamos ao Cinema Palácio...
P/1 – Que cinema? Que filme?
R – Pois é, o primeiro filme que eu me lembro de ter visto foi “Marcelino, pão e vinho”. Também uma coisa que marcou minha vida foi aquele filme que era a história de um menino pobrinho...
P/2 – Italiano...
P/1 – Super pobrinho...
R – É, eu me lembro perfeitamente do filme, cena por cena, até hoje. Foi o primeiro filme que eu vi.
P/1 – Como é que você se vestia, como jovem?
R – Nessa fase?
P/1 – É.
R – Terno... Digo, nesse passeio?
P/1 – Nesse passeio.
R – No passeio à cidade? Terno, gravata e boininha (risos). Era uma coisa assim, e com a gravatinha borboleta colorida.
P/2 – Todo mundo usava chapéu, né?
R – Usava chapéu. Meu pai usou chapéu a vida toda, e para ir à cidade era um terninho com bermuda, uma calcinha assim, três quartos. Mas ficava elegantérrimo!
P/1 – Mas assim, por exemplo, a tua família, a tua mãe, vocês se abasteciam e viviam do bairro, Méier? Por exemplo, o que precisava comprar e não tinha no Méier...
R – Não, não.
P/2 – Você ia ao centro para fazer compra?
P/1 – É, para comprar?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não, compras de mantimentos não. Tinha um mercadinho, chamado Mercado... Não era Mercado São Sebastião não, tinha um mercado bem perto de casa, logo atrás de casa, quase em frente ao Jardim do Méier, que era um mercado público, tipo Mercado de São Sebastião que tem aqui em Laranjeiras. E ali se comprava... Os alimentos eram todos comprados ali. Então isso era o básico, o restante, roupas a minha mãe
costurava; sapatos comprávamos no comércio do Méier, havia lojas, havia sapataria ali, o comércio era um comércio muito atuante ali. Havia um conjunto de ruas ali no Sírio Lago, um conjunto de luxo que tinha um comércio muito ativo, muito forte, e ali você tinha oferta de tudo! Eu não me lembro de ir à cidade fazer compras, não me lembro!
P/2 – E tinha praia? Você se lembra? Você ia à praia, assim?
R – Ah, ia! Ia muito. Essa também é outra lembrança muito interessante: a minha mãe tinha duas irmãs: uma já morreu e outra ainda esta viva; e nós éramos oito primos, só de parte de mãe. Você tem, antes, somando as duas... Todo o verão, elas se juntavam com a minha avó e alugavam um táxi de um motorista. O táxi era um Ford 1939, que eles chamavam de jardineira, porque era um carro que tinha atrás um banco para frente e um banco para trás, e o motorista chamava-se seu Alaor.
P/1 – Nossa, que memória boa! (Risos)
R – E nós íamos à praia sabe aonde? Na Ilha do Governador! Se você olhar hoje o que era o lugar, você não acredita a degeneração também ecológica da cidade. Quando você para por na praia que... O viaduto que você vai para a Ilha, você vai para o aeroporto...
P/2 – Sei.
R - Ali embaixo tinha uma praia, onde hoje é um lodo, um charco, uma coisa... Enfim, completamente deteriorada. Ali tinha uma praia, e milhares de pessoas... A praia, a areia tinha Tatuí, tinha caranguejo, sinal de vida marinha ali, biológica, muito intensa. Então nós pegávamos o táxi do seu Alaor, íamos até a Ilha do Governador, passávamos o dia lá e voltávamos: a família toda ali dentro daquela... Ensanduichado ali dentro, e cantando invariavelmente. Tinha uma música de carnaval muito famosa, né? Alalaôo Ôôô Ôôô, mas que calor ôôô ôôô...
P/1 – O motorista... (risos)
R -...Atravessei o deserto... (cantarola)
P/1 – O motorista é Alaor, aí pronto, é um prato cheio!
R – Não havia outra coisa, era invariável!
P/1 – Carnaval, por exemplo, vocês brincavam no Méier?
R – Não, no Méier não me lembro não! Não, não. Aí já era uma coisa mais... Não me lembro de brincar carnaval...
P/1 – Se fantasiar em época de carnaval...
R – Não, isto só adolescente, mas criança não, não me lembro não!
P/2 – Na adolescência você estava na Tijuca, né?
R – Na Tijuca.
P/1 – Então conta um pouquinho: você foi morar em que rua? Quais são suas lembranças do bairro?
R – Então, é o seguinte, nesse processo de imigração, a maior preocupação da família sempre era estar num ponto onde estivesse próximo de um colégio judaico, e geralmente os colégios eram Sinagogas. Portanto, ali era o ponto de reunião. E aí foi criado um colégio na Tijuca, chamado Colégio Hebreu Brasileiro, na rua chamada Desembargador Isidro, que é uma rua que sai da Praça Saenz Peña, bem perto da Praça Saenz Peña. E aí meu pai compra um apartamento no prédio ao lado do colégio, exatamente aqui... O colégio aqui e esse prédio... E vamos morar lá. E aí dá-se a seguinte história: para que eu fosse estudar no colégio, o objetivo fundamental era esse, né? Era o colégio. E eu saí de férias, fui para uma colônia de férias. Quando voltei dessa colônia de férias – eu estava fazendo a Admissão, antiga quinta série. O último ano do... Hoje Primeiro Grau, do primário. E a minha mãe disse assim para mim: “Olha, eu resolvi matricular você, te inscrever para você fazer concurso para o Colégio Pedro II, e o exame é na semana que vem!”. “Como é que você fez isso? Eu não estudei, eu não me preparei”. Havia outras pessoas nessa escola que estavam se preparando para isso. Eu disse: “Olha, não vou passar!”. O Pedro II, naquele momento, era uma instituição. Ela disse: “Ah, não faz mal. Faz a prova!”. Tudo bem. Aí tinha uma menina que morava na... Chamava-se Sheila (Dain?) − que é uma família conhecida −, que se preparou, estudou, era a melhor aluna da turma, era muito aplicada. Eu fui lá, e a primeira prova era Português. E eu tinha muita facilidade, quer dizer, eu li muito na minha infância, passei lendo. Passei lendo, além desse episódio dos gibis, dos cinco aos nove anos, todo dia que eu voltava da escola, a minha mãe parava numa Biblioteca que tinha no Méier, e eu lia duas horas por dia. Li tudo! Li todos os livros que tinha naquela Biblioteca! Então isso foi uma coisa que marcou muito a minha vida. Mas a gramática e tal... Enfim, isto tudo eu não tinha... Eu era um aluno mediano, muito agitado, com uma liderança forte na turma, era sempre o que estava à frente das agitações na turma e tal, era um menino muito grande, e isso me permitia certa ascendência sobre o restante, mas era um aluno médio, sem muito interesse para as aplicações dos estudos. Aí eu pego com essa moça, essa Sheila, um livro de Português, que era um livro Nova Gramática Portuguesa. Cheguei em casa com aquele livro – um calhamaço – “O que é que eu vou fazer? Não tem como estudar isso tudo!”. E eu fiz o seguinte: peguei o livro, fechei e abri o livro numa página. E estes livros eram assim, tinha um texto, e sobre esse texto tinha todos os exercícios gramaticais feitos em cima desse texto. Uma análise do texto você tinha que fazer os exercícios daquele texto. Eu abri num texto chamado A Arte e a Instrução, e eu passei dois ou três dias só com esse texto, estudando esse texto, estudando, olhando... Eu já sabia de cor o texto! Aí vou para a prova... E outra coisa, outra característica minha é a seguinte: eu fazia as coisas muito rápido, e isso incomodava muito a minha mãe. Então, na hora que eu entrei para fazer a prova, ela me deu um lápis, daqueles lápis John Faber, onde ela escreveu com gilete a seguinte frase: “A pressa é inimiga da perfeição”.
P/1 – Ah, que coisa! (risos)
R – Eu devia ter guardado esse lápis...
P/1 – Isso é bárbaro!
R – Quando ela me entregou o lápis, botou assim par eu ver: “Lê!”. “A pressa é inimiga da perfeição”. Ela escreveu em um dos lados do lápis. Eu peguei o lápis, coloquei no bolso e entrei. Sentei na prova. Aí vem o inspetor, põe as provas de cabeça para baixo e aí diz: “Podem começar!”. Quando eu viro a folha, qual é o texto? A Arte no Ensino.
P/1 – Nossa!
R – Tirei dez! (risos) Tirei dez, tirei dez em Português. Fiz a prova em 15 minutos. Peguei a prova, olhei, “A Arte e a Instrução”, balancei a cabeça, digo: “Não é possível! A Arte e a Instrução?”. É, aí “tchutchutchu”.
P/1 – A Sheila passou?
R – A Sheila passou. (risos)
P/1 – Poxa, ainda bem né? (risos)
R – Eu entregue a prova em quinze minutos, o inspetor disse: “Tem certeza, menino? O que é, você não sabe nada?”. “Não, eu sei tudo!” (risos) E entreguei a prova. Quando saí, ali no Pedro II - Centro, na Marechal Floriano − as provas eram lá, depois estudei na Tijuca −, aquelas mães todas esperando...
P/1 – Dona Ester...
R – Quando a minha mãe me viu, evidentemente...
P/2 – Ficou indignada.
R – Olha, indignada? Ela só faltava me matar. “E o lápis que eu te dei?”. E eu dizia: “Mãe, eu tirei dez”. “Não pode ser! Você está sempre inventando história”. Pois vê, passei, e aí, enfim... E essa coisa foi uma coisa que também marcou a minha vida.
P/1 – Sensacional!
R – Tenho uns episódios na minha vida...
P/2 – Sorte.
R – É, é.
P/1 – O que é que significava estudar no Pedro II naquela época, em termos de expectativa profissional, no fundo, do seu pai e da sua mãe, de te dar este tipo de educação?
R – O sonho da minha mãe era, até um certo momento, que eu fosse diplomata. Ela achava que eu tinha vocação para isso, e o sonho da vida dela era ter um filho diplomata. E ela achava que no Pedro II isso ia acontecer. Depois, no meio do caminho ela já começou a achar que o bom mesmo era ser advogado, então ela queria muito que eu fosse advogado. E o Pedro II era um colégio... Certamente, naquele momento, junto com os colégios católicos, tipo São Vicente, os melhores colégios da cidade. Os professores eram excepcionais!
P/1 – Algum que tenha te marcado?
R – Ah, vários! Vários.
P/1 – Pode citar algum?
R – Não sei se você lembra de um poeta chamado J. G. de Araújo Jorge, muito famoso, que tinha livro... Os livros dele não eram grande coisa, mas era um excelente professor.
P/1 – Português, literatura...
R – Excelente. Havia um professor de inglês, chamado Nilton... Não! Newlands, era o sobrenome dele, que marcou época no ensino de inglês aqui no Rio de Janeiro. E era um figura, porque era um senhor de barba, sempre com um cachimbo na mão, se vestia impecavelmente como inglês. E ele tinha dores nas costas terríveis, ele gemia durante as aulas, e era um professor implacável! Mas eram figuras! O colégio tinha... Tinha uma professora de história que chamava-se Vera – não me lembro mais o sobrenome dela – que também marcou muito. Enfim, a escola foi um marco na minha vida.
P/1 – Qual foi a época que você ficou no Pedro II, em termos de data?
R – Eu estudei no Pedro II na Tijuca de 1961 até terminar o Ginásio, porque os Pedro segundos regionais tinha um na Zona Norte, o Tijuca, depois teve um na Zona Sul, só tinham o Ginásio. Depois fiz o Segundo Grau no centro, aí optei por fazer Clássico, em vez de fazer Científico. Na época você tinha essa opção, então quem queria seguir humanas fazia Clássico, e quem queria seguir a área mais... Que eles chamavam de ciências, na época fazia o Científico. Eu fiz Clássico, que foi outra coisa também que marcou a minha existência.
P/1 – Mas isso foi uma opção tua?
R – Foi uma opção minha, fui eu que escolhi.
P/1 – Mas qual a área que...
R – Aí eu já estava autônomo.
P/1 – Sei.
R – Eu me... A influência dos meus pais sobre a minha vida é uma coisa muito curiosa. Quer dizer, meu pai é... Havia uma distância geracional. Aí estamos falando de anos 1960, estamos falando de revolução cultural dos anos de 1960, muito fortemente. Então meu pai era... Eu gostava muito dele, tinha carinho por ele, tive a vida inteira, mas tínhamos uma distância muito grande. A minha mãe já era um pouco diferente, dado esse vezo dela, interesse pela cultura e tal. Mas eu me tornei independente, autônomo, muito cedo, muito rápido mesmo. Eu, com 14 para 15 anos eu já tinha uma autonomia pessoal de... Isso também aconteceu um pouco pela participação na política. Como no Pedro II da Tijuca a turma mais velha era a quarta série do Ginasial, quem estava na quarta série... E naquele momento os grêmios estudantis tinham uma presença muito forte e muito ativa, e o grêmio do Pedro II, do Pedro II sede, era fortíssimo! Certamente gerações e gerações de liderança política do Rio de Janeiro vieram do Pedro II, depois teve outros colégios, ________, Aplicação e tal, e também participaram dessa história. Então eu, na quarta série, fui presidente do grêmio da Tijuca, e fui da comissão de formatura, fui orador da turma daquele ano. Talvez eu tenha até o convite, que era um documento interessante. Tem algumas fotos.
P/1 – Esse é bacana, né? Marca uma época, uma geração.
R – É isso, a participação, quer dizer, eu era muito menino, tinha 14 para 15 anos, mas você começa a conviver com os mais velhos, com o grêmio da cidade. Quer dizer, havia, enfim, toda uma junção de todas essas coisas, e isso deslanchou numa participação política desde essa adolescência, desde os 15 anos. Nós estamos falando de 1964, nós estamos falando, portanto, do começo do Regime Militar, estamos falando de uma resistência aí na área dos estudantes, e eu me lembro perfeitamente, quando houve o Golpe de 1964 eu estava... Eu era presidente do grêmio do Pedro II, menino, tinha compreensão daquilo para... E num determinado dia estava eu no antigo Calabouço, que foi aquele restaurante que depois foi destruído, onde aguardava ordens para resistir ao Golpe Militar.
P/1 – Ai, que legal!
R – E minha mãe, se soubesse disso! Porque, enfim, vieram pessoas, trouxeram, levaram os alunos que estavam ali, ativos na política dos outros colégios, fomos para lá. Meia hora depois não havia ordens para resistir ao Golpe Militar. Fui para casa soltar pipa, que era o que me restava, né? (risos) E aí fui para a cidade, e na cidade era outra vida, era uma vida cultural muito intensa no Pedro II da cidade, uma participação política muito forte, e o Clássico... Quer dizer, eu estudei grego e latim, o que hoje parece coisa do século, sei lá XVII, XVIII. Então foram matérias regulares do meu curso de Clássico.
P/1 – Mas quer dizer, fazia movimento estudantil e estudava...
R – Fazia movimento estudantil e estudava, é. E era um bom aluno, porque reduzia as minhas diferenças e divergências com a matemática, com a química, com a física, próximo de zero. Então o meu _________ era português, literatura, filosofia, sociologia, grego, latim, geografia, história, eram todas matérias pelas quais eu tinha muito interesse e muita atração. O Pedro II na cidade foi uma época muito boa, eu gostava muito da escola, tinha...
P/1 – Mas, por exemplo, houve algum envolvimento do ponto de vista partidário? Você começou fazer parte de algum partido clandestino, alguma coisa dessas, assim?
R – É, eu militava... Militava na política... Fui militante de partido muitos anos e tal, e isso comecei muito cedo, com 15 anos. Então foi uma militância muito precoce, e o Pedro II foi uma escola de aprendizado político, e depois continuei na Universidade.
P/2 – Mas no seu caso, isso não veio dos seus pais. Porque tem uma tradição de militância política na comunidade judaica, de uma certa época...
R – Não, não.
P/1 – Da esquerda...
R – Não, ao contrário! Quer dizer, a minha mãe tinha pânico daquilo! E meu pai, coitadinho, sofreu muito com isso! Depois em alguns episódios... Mas isso vinha um pouco da minha... Eu acho que, quando eu tinha 16 anos, eu estava no Pedro II, eu me encantei muito com o gosto pela arte, pela cultura, especialmente naquela época pelo teatro. Então eu montei um grupo de teatro. Aliás, montei dois: um dentro do Pedro II e um fora, na colônia. E eu fazia teatro dentro do Pedro II, ainda bem que a primeira peça que nós montamos chama-se “Pedro, pedreiro”.
P/1 – Ah!
R – Que era a música do Chico que tinha acabado de sair, e nós fizemos uma montagem da música. Então a música se transformou num espetáculo, e na colônia fiz o grupo, porque vivia em... Eu repeti a experiência do Méier na Tijuca, porque o que é que aconteceu? Eu morava do lado do Hebreu Brasileiro, meus pais foram para lá para eu estudar no Hebreu, e eu nunca estudei no Hebreu. Mas as gerações que estudaram no Hebreu, alguns acham até hoje que eu estudava no Hebreu, porque eu ia lá jogar bola, eu ia lá, enfim. As pessoas da minha idade do Hebreu eram meus amigos, então eu tinha uma turma de amigos na colônia, e que eram todos estudantes do Hebreu, e que a minha casa era uma espécie de caverna para se esconder. O pessoal matava aula, saía, pegava o elevador e ia para minha casa bater papo, conversar. A minha casa era um apêndice do colégio, e minha mãe deu aula no Hebreu.
P/1 – Olha só que legal!
R – Ela deu aula de iídiche durante uns três, quatro anos ela deu aula no colégio, enquanto existiu a cadeira, depois a cadeira foi extinta. Então eu tinha essa turma do Hebreu e tinha a turma do Pedro II. Com essa turma do Hebreu, primeiro nós montamos um espetáculo, que era musical e que era só um conjunto de músicas que aos poucos foi se desenvolvendo para textos com música, e isso depois desembocou num grupo de teatro, chamado Grupo dos Nove. Nesse momento, começou trabalhando no Monte Sinai, que era o clube da Tijuca, mas num certo momento a gente sentiu que não havia espaço para isso. E a gente acabou indo fazer teatro na ASA [Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação], que era um clube que ainda existe até hoje aqui em Botafogo, que era um clube da esquerda judaica do Rio de Janeiro, Associação (Scholem Aleichem?) né? Então eu cheguei na ASA com 16 anos, um diretor cultural da ASA era tio da minha mulher.
P/1 – Como era o nome dele?
R – Pedro Must. E aí eu fui lá um dia, não conhecia ninguém, fui lá com mais um amigo, que era meu parceiro nessas coisas, disse: “Olha, nós queremos montar uma peça aqui, assim, assim, assado”. E ele disse: “Está bem, pode fazer.” E criamos raízes lá. Para mim, até raízes familiar, porque conheci minha mulher lá, começamos namorar ali e depois casamos.
P/2 – Ela também era do grupo de teatro ou você a conheceu lá?
R – Ela já era da ASA, a família dela era da ASA, ou seja, a família dela tinha um histórico de participação política de esquerda e tal.
P/1 – Qual é o nome dela, completo?
R – O nome dela é Valéria, hoje é Valéria London, o nome de solteira Munk. Mas a família dela de... Munk é o sobrenome do meu sogro. A mãe dela, de solteira, era Berkowitz.
P/1 – Ah! Nilópolis.
R – Essa família de Nilópolis. Ela tinha... Uma tia dela, uma das tias, acho que a tia mais velha... É, a mais velha, já morreu... Não sei se vocês lembram que naquela Passeata dos Cem Mil, tem muito registro sobre isso, teve uma mãe que falou, representando as mães...
P/2 – Era ela!
R – Era a tia dela. Era Irene, tia dela. Então a família tinha uma participação política muito forte e tal. Mas a minha participação foi diante disso: eu os conheci lá na ASA, e aí comecei a montar peças. Montei várias peças do Brecht na ASA, complicadíssima, sofisticadíssima! Talvez a gente entendesse um terço do que a gente estava ali, mas era ótima (risos). E dali saíram algumas coisas, por exemplo, quem tocava piano e fazia parte do coro numa posição terciária no grupo era o Arnaldo Cohen.
P/1 – Ah!
R – Vê que coisa engraçada.
P/1 – Ah, que graça! Eu queria recuperar o sobrenome de solteira da sua mãe.
R – O nome de solteira era (Kestembal?), o nome do meu avô, o nome da família do meu avô. Ela teve... Ela tem duas irmãs, teve duas irmãs, uma já faleceu. Uma chama-se Sabina, outra chamava-se Sheiva. A Sabina já morreu, e a Sheiva está viva, mora aqui no Rio. Ambas tiveram famílias e filhos, netos e já bisnetos.
P/1 – Elas são imigrantes?
R – Todas imigrantes, chegaram...
P/1 – Em que ano, você sabe?
R – Eu acho que chegaram aqui, se eu não me engano, em 1926, se eu não me engano, não tenho certeza não, mas acho que 1925, 1926. Foram morar no Méier, a minha mãe só foi para Nilópolis quando casou com meu pai. Meu avô veio para morar no Méier.
P/1 – E casaram em que ano, Jack?
R – Agora você me pegou! Mas meu irmão mais velho está com 63 anos, eles devem ter casado há 65 anos atrás, mais ou menos. Isso dá 98... Dá 50...
P/2 – 48.
R – Não, 48 menos 60.
P/1 – Dá 38.
R – Dá 38, 1938, por aí.
P/1 – Tá. Então vamos voltar um pouco da tua formação educacional, tá?
R – Vamos embora!
P/1 – Você se forma em que ano no Pedro II? E assim, como é que foi essa opção por ir fazer, cursar a Universidade de Economia?
R – Foi o seguinte, eu faço vestibular em 1967 e, atendendo ao desejo da senhora minha mãe, vou fazer o vestibular em Direito.
P/1 – Ainda queria Diplomacia? Não, ela mudou para Direito, é!
R – Não, não, ela queria que eu fosse... O sonho da vida dela era ter um advogado na família. Como ela não conseguiu que eu fosse, ela mesma foi à cata do diploma!
P/1 – Inteligente, pelo menos!
R – Realizou o sonho... Naquele momento eu já estava militando na política, fortemente, e depois de um mês do vestibular de Direito, um mês e meio, eu cheguei à conclusão que eu não salvaria o mundo me formando em Direito, mas salvaria o mundo sendo Economista, porque a Economia tinha muito mais razão de ser como ferramenta para transformar o mundo do que o Direito, aí comuniquei a ela que não seria mais advogado, que ia estudar Economia. Uma nova crise doméstica, evidentemente, mas ela compreendeu, e eu mudei no meio do caminho, mudei de um vestibular para outro. Em dois meses de vestibular eu passei para Economia, fiz prova para Economia e fui estudar na Faculdade Cândido Mendes. Estudei na Cândido Mendes...
P/2 – Ali no centro?
R – No centro, no prédio antigo da dona Maria, a Louca. Nessa época já com uma militância bastante intensa, muito forte. Primeiro ano da Faculdade foi logo 1968, portanto era...
P/1 – Era o ano!
R – É, exatamente. Aí, já em 1968... 1968? 1969, se eu não me engano, me elejo Presidente do Diretório da Economia da Cândido Mendes, depois fui Presidente do Diretório Central das Escolas Independentes, que eram: a Gama Filho... Naquele tempo não havia tantas quantas há hoje. As escolas particulares tinham um DCE [Diretório Central dos Estudantes], como a Federal tinha, hoje não tem mais isso, acho que acabou, né? Então uma militância política muito forte na Universidade, e essa militância vai ampliando. É uma coisa curiosa, porque cada momento desse da minha vida me permitiu frequentar e ampliar horizontes em áreas diferentes. Por exemplo, essa minha passagem pelo teatro, logo adolescente, eu conheci vários críticos de teatro, pessoas do meio teatral, pessoas que até hoje fazem parte, um pouco, do meu universo. Na Universidade, na política universitária... Porque a política universitária era um passaporte para conexões e para conhecimentos em todas as áreas, na área da Economia, na área cultural, enfim, você tinha uma militância que se juntava, isso permite uma... São conexões que você faz para a vida toda, então foram anos muito intensos. É... Duas prisões curtas... O meu pai, coitado, uma vez foram me procurar na casa dele, e a minha sorte é que eu já tinha casado, tinha casado há um mês, e tentaram sequestrar ele, ameaçaram ele de morte, uma coisa horrorosa. Ele sofreu muito, muito, muito com isso, a vida toda. Que o deixou marcado... Enfim, uma vida de um jovem dos anos 1960 estudando Economia, e com a cabeça dividida entre a contra-cultura dos anos 1960, e a política de esquerda dos anos 1960. Eu fui um jovem típico daquela época. Tinha uma barba que vinha aqui, um cabelo que vinha aqui (risos). E de novo essa coisa que eu digo a você às vezes, da sorte na minha vida, que é uma coisa muito estranha assim... 1960, 1969, eu estava no Grêmio, e eu lembro muito bem, como se fosse hoje, estava sentado em cima de um balcão. O Grêmio tinha um balcão no diretório, tinha um balcão e era tarde da noite, eu estudava à noite. Eu estava sentado em cima do balcão conversando com algumas pessoas de dentro do diretório, e entrou um cidadão... E você identificava claramente os alunos mais velhos e os mais novos, os mais novos já iam de sandália, enfim, de tênis, de sapato – aliás, a sandália merece depois uma referência especial –... Aí entrou uma pessoa de terno, gravata e tal. Era já um estudante da quarta série, já estava se formando, que eu nunca tinha visto na minha vida, um sujeito chamado Sérgio Stefan, aquele soldado a vida toda, não sei, não tenho a menor ideia do que ele faz da vida. Entrou no diretório, olhou e disse: “Você esteve na minha turma falando lá, né?”. Eu digo: “Devo ter dito”. Passava o dia inteiro fazendo agitação, “devo ter estado na sua turma”. Ele disse: “Quer um emprego?”. Eu disse: “Quero!”. Ele disse: “Mas não é um emprego qualquer não!”. Aí ele disse: “Eu estou deixando meu emprego porque eu estou me formando e vou partir para outra coisa, e eu sou Subgerente de uma área da General Electric, e eu quero dar esse emprego para você!”. Ele me levou no outro dia, eu botei uma roupinha mais arrumadinha, fui na General Electric, fiz um teste, uma prova lá, passei. Na semana seguinte estava trabalhando na General Electric, ganhando um salário inacreditável para os padrões da época, e até para os padrões de hoje!
P/1 – Como estudante de Economia.
R – Com estudante de Economia, ainda.
P/1 – Teu primeiro emprego?
R – Não, não foi meu primeiro emprego.
P/1 – Ah, então...
R – Meu primeiro emprego?
P/1 – É. Vamos voltar?
R – Vou voltar um pouquinho. Esse foi o emprego que me permitiu tomar a decisão de casar e me tornar independente muito rapidamente. O meu primeiro emprego foi uma coisa curiosíssima! Quando eu resolvi estudar Economia e não Direito, isto deu uma crise familiar, e aí, enfim, minha mãe me fez algumas ameaças: “Eu não vou te dar mais mesada, você vai ter que...”. Eu digo: “Está bem, não tem problema, não precisa dar mesada, eu vou trabalhar!”. Com 17 anos. Peguei o jornal, tinha um anúncio no jornal: “Precisa-se de office-boy”. Eu cortei e fui lá, Rua Marquês de Olinda. Cheguei lá, me apresentei, tinha lá meia dúzia de pessoas, dez pessoas...
P/2 – Botafogo mesmo?
R – Botafogo, aqui na Marquês de Olinda. Cheio de meninos lá, atrás do emprego. Eu preenchi a ficha, tinha que saber bater à máquina. Eu nunca tinha visto uma máquina de escrever antes. “Você sabe escrever à máquina?”. “Sei”. Aí o Gerente do pessoal, que é também um sujeito que eu nunca mais vou esquecer: “Escreve à máquina aí guri! Em que escola você aprendeu?”. “Não me lembro bem”. (risos) Ele começou a rir: “Tá bom, vai!”. Aí me escolheu para a vaga, e eu fui Office-boy da José Olympio Editora com 17 anos. Não, mas espera aí, olha que história engraçada: aí ganhei um salário, meio salário mínimo, sei lá o que, fiquei lá três ou quatro meses...
P/1 – A José Olympio era ali na Marquês de Olinda, né?
R – Na
Marquês de Olinda, naquele prédio ali da Marquês de Olinda era a sede da José Olympio. O tempo suficiente para a minha mãe perceber que eu podia ter um emprego, que eu podia me sustentar e que eu queria era ser Economista, não é? Aí eu ficava lá, distribuindo caneta. Tomava conta do almoxarifado, ficava no buraco, lá embaixo, no subsolo. O telefone tocava: “Tem que levar um bloco para o doutor Fulano”. Eu levava. Sete anos depois disso eu volto para a José Olympio como Diretor da Empresa. Então muitas vezes eu brincava lá: “Eu comecei aqui como boy”.
P/1 – Como boy... (risos) Que legal!
R – Agora, a história da sandália, que eu estava dizendo, essa coisa da tradição dos anos 1960, né? Porque a escola era nitidamente rachada, metade ia de terno e gravata e a outra metade já influenciada pelos anos 1960 e tal. Enfim, ia como ia. E eu usava sandália, eu gostava muito de usar sandália, usava sandália. E a escola era o seguinte, o Reitor da escola era o Cândido Mendes, como é até hoje, que é meu amigo, temos uma relação...
P/2 – Esse Cândido Mendes que é ainda o...
R – É. O Cândido era muito jovem, e eu infernizei a vida dele enlouquecidamente, coitado! São histórias inacreditáveis! E ele tem um irmão chamado Luiz Antônio Mendes de Almeida, que é Diretor da Escola, tem uma Escola de Comércio. Naquele prédio tem uma Faculdade e uma Escola de Comércio, que antigamente era uma coisa muito forte e agora perdeu... Formava contadores, era um Ensino Médio, que foi forte nos anos 1920, 1930 e havia ali um certo conflito entre o Cândido e o irmão. O Cândido com uma posição política mais avançada, o irmão bem mais conservador, especialmente nos anos 1960. Então a escola tinha uma tensão interna entre até onde o Cândido ia e uma certa repressão interna, até na estrutura dentro da própria instituição que o Antônio Luiz capitaneava, enfim, aí eram 200 episódios. Mas o mais interessante era que ele, depois, agora, há dez anos, quinze anos atrás, escreve um livro de memórias dele, ele agora é escritor, tem vários livros publicados o Antônio Mendes. Aliás, a gente se dá bem, depois a anistia veio para todos. E nesse livro ele cria um personagem que sou eu mesmo, e ele tem quatro páginas do livro falando sobre a minha sandália (risos). Ele não dormia, porque aquele cidadão entrava no prédio onde morou a Dona Maria, a Louca, de sandália, e que ele tinha vontade de me prender porque eu estava de sandália. Quer dizer, era uma coisa tão emblemática...
P/1 – O que é que significava aquilo, naquela época, né?
R – Então eu estudei na Cândido Mendes. Meu primeiro emprego foi esse na José Olympio, depois tive alguns empregos já como, enfim, estagiário de Economia. Trabalhei na antiga Telerj, trabalhei na CAPEMI [Caixa de Pecúlios, Pensões e Montepios Beneficente], que era uma empresa de...
P/2 – Montepio.
R - Pecúlio, montepios, e tal.
P/2 – Militar, né?
R – Militar, é, exatamente. E aí fui para a G&E [General Electric?], apareceu esse emprego.
P/1 – Que ano é isso, Jack?
R – Isso é 1969.
P/2 – E era uma coisa administrativa?
R – Não, era o seguinte, a G&E aqui do Rio era uma fábrica de lâmpadas. Há outras fábricas da G&E pelo Brasil, mas aqui cuidava só de lâmpadas. E eu fui cuidar da área de... Chamava-se Lâmpadas Especiais, que tinha uma presença importantíssima na vida do Brasil, por exemplo, lembra de uma coisa chamada aquela luz que pisca, em boate?
P/2 – Luz estroboscópica?
R – Então, fomos nós que trouxemos para o Brasil, naquele ano. Então havia um conjunto de lâmpadas especiais, uma coisa que o povo passou a chamar de silibim. O silibim é aquele farol de milha de carro, que era sealed
beam.
P/1 – Ótimo! Silibim!
R – Na linguagem popular, igual Volkswagen virou Fusca. Então esse setor chamava-se Lâmpadas Especiais, e eu gerenciava esse setor. O meu trabalho era, enfim... Comecei efetivamente a trabalhar com Economia, a importar lâmpada, encontrar mercado para isso, colocar isso no mercado. Aí eu resolvo casar. O salário era tão bom! Mas ao mesmo tempo que eu resolvo casar, a vida política se intensifica. É nesse ano que houve essa ameaça lá com meu pai, aí eu tive que ficar um tempo afastado. E eu caso, mas também...
P/1 – Como é que foi o teu casamento?
R – Meu casamento foi... Também como tudo da minha vida, uma coisa assim... Nós fizemos dois casamentos distintos e absolutamente divergentes. Eu fiz um casamento tradicional, na Sinagoga, casei aqui área, aqui em Botafogo, com o rabino Lemmer. Era um casamento, enfim, uma pressão muito grande da minha mãe, porque tinha que fazer o casamento e eu não queria ir de terno. E ela quase morreu porque eu não ia ao casamento de terno! Eu comprei o terno... Não! Eu não comprei o terno, eu usei um terno velho do meu irmão para casar, porque minha mulher casou de... A saia dela, de noiva, era minissaia.
P/1 – Ai, que legal!
R - De minissaia. Mas casamos no casamento religioso direitinho. Foi uma coisa que eu considero muito... A fala do Lemmer eu lembro até hoje, foi uma coisa...
P/1 – Ele comentou sobre essa coisa da sua modernidade, dessa coisa...
R – Falou um pouquinho sobre isso. Foi muito interessante. E no dia seguinte nós fizemos outro casamento, para os nossos amigos.
P/1 – Para a turma!
R – Para a turma!
P/2 – Nossa!
P/1 – Que foi aonde e como?
R – Foi no terraço do prédio onde moravam os meus sogros, em Copacabana, onde morava a minha mulher. E que eu não sei por que, as pessoas fizeram um cartazinho dizendo que ia ter uma festa no meu casamento, e na época eu era Presidente de Diretório, conhecia gente nas Faculdades todas do Rio, e isso foi pregado pelas Faculdades do Rio. Então estiveram lá mais de 600 pessoas! Foi uma confusão! Porque aquilo começou a voar prato para cima, e... Enfim, foi uma festa ontológica, durou até as seis horas da manhã. É, e foi isso! Eu casei duas vezes: casei no religioso e casei nessa festa. Nosso convite de casamento no religioso − às vezes esse documento eu também tenho, posso________ − é uma coisa fantástica, porque eu não fiz aquele convite, fiz um convite completamente diferente, que até hoje é motivo de espanto das pessoas. Era um convite num papel marrom... Não, era um papel branco; não tinha nada escrito a não ser dois anúncios classificados, inventados, criados, com textos inventados. Era um texto sobre a minha mulher, ela procurando um marido porque já estava ficando muito passada. Ela tinha 17 anos (risos), e um texto meu... Eram dois blocos de texto... Um convite muito original, muito interessante , que eu também tenho guardado até hoje. É isso: casamos, e um mês depois que eu casei, saí da G&E, porque eu já não havia condições...
P/1 – Você foi morar onde, Jack?
R – Eu fui morar em Botafogo. Engraçado, eu sempre morei por aqui. É uma síndrome curiosa! Eu fui morar na Rua General Severiano, que era um apartamento que tinha meia sala, um quarto e uma janela! Ali na General Severiano, em frente ao Pinel, do outro lado da rua. Morei ali durante um ano, foi o período mais difícil de repressão política. Aí foi 1971, 1972, foi...
P/1 – Você foi preso?
R – Eu fui preso em 1968, logo depois do AI-5, e depois em 1969, de novo. Uma vez fiquei um dia e outra vez fiquei dois dias. E saí. É, esse foi um ano muito duro, muito difícil, porque eu, enfim, abandonei a G&E, e a política muito intensa. Quer dizer, naquele momento muitas pessoas optando pela guerrilha, pela luta armada... Não era o meu caso. Quer dizer, eu permaneci ligado ao partido comunista, PCB [Partido Comunista Brasileiro], mas tinha outros amigos... Então inevitavelmente aquilo acabava... De alguma maneira você está envolvido por ajudar alguém, por fazer um favor, por, enfim, de alguma coisa, mesma geração, eram as mesmas pessoas.
P/1 – A Valéria era ligada a isso também?
R – Também, também! E os primos dela todos, eles eram militantes desses outros grupos. Então a história também seguiu seu curso aí. Quando chega mais ou menos no meio dos anos 70, 1970 aí efetivamente começa a minha carreira profissional, e o envolvimento que eu acho que eu mantenho até hoje. Porque apesar de haver uma... Várias histórias na minha vida, minha vida tem um fio condutor daí para frente. Existia no Rio uma empresa chamada Índice Banco de Dados, que aliás, para vocês do Museu, agora eu quero te dar uma... Puxa vida! Vocês deviam fazer um trabalho, alguém devia recuperar a história dessa empresa e dessas pessoas, que é uma história maravilhosas! A história é o seguinte: havia um jornalista dos anos 1950, chamado Gentil Noronha. Este homem era muito nacionalista, participou da Campanha do Petróleo ativamente, criação da Petrobrás e tal. E ele tinha um sonho, que era nada mais nada menos do que o sonho moderno da Bloomberg, do GNT ou da Globo News. Então o Gentil começou uma empresa em 1966, 1967 – por aí assim, ou até um pouco antes –, que era o seguinte: ele acordava meia-noite, ele com a mulher, corria as redações dos jornais, pegava ainda as matérias sendo redigidas, nem prontas, recolhia tudo, ia para um escritoriozinho, fazia um boletim, chamado Índice Banco de Dados, que trazia o resumo das principais matérias, dos principais jornais do Rio de Janeiro, e às vezes de até jornais de fora do Rio de Janeiro.
Esse boletim era impresso em mimeógrafo.
P/2 – Mimeógrafo?
R – Mimeógrafo. E às sete horas da manhã saía uma equipe de boys entregando esse jornal na mesa de executivos, políticos, empresários, de pessoas que faziam a assinatura daquele boletim. Era a internet! Era comunicação moderníssima com os meios que existiam naquele momento. Essa empresa em 1970 recebe um forte apoio de um grupo de pessoas daqui do Rio de Janeiro, de um empresário chamado Eurico Amado, que era um empresário da área têxtil. A indústria têxtil era uma indústria fortemente nacionalista, e com uma tradição. E de um jornalista, Artur da Távola, nosso ex-senador, e mais um ex-deputado chamado Ciro Curtis, que foi Deputado em 1966, ele era cassado. Então o Eurico, o Ciro e o Paulo Alberto entram para sócios dessa empresa e passam a dividir a direção da empresa com o Gentil, que era bem mais velho.
P/1 – Continuava o nome Index?
R – Índice.
P/1 – Índice.
R – Índice Banco de Dados. E a empresa começou a crescer, crescer muito, muito, muito, e aí, num certo momento, eles resolvem, eles chamaram duas pessoas mais jovens para tocar o dia-a-dia da empresa. Era um jornalista chamado Marcos Alencar, um excelente jornalista que já morreu, morreu do coração, que foi cuidar do boletim de publicações especiais, e eu! Eu tinha aí 23 anos... Não, 21 anos! 21 anos. E eles me deram a direção de um setor novo na empresa. Eu cheguei... Era um Banco de Dados.
P/1 – Mas como é que você chegou nisso? Como é que foi esse convite?
R – Relações da política, porque eram pessoas que eu já conhecia, que já me conheciam da Faculdade. O Artur da Távola, nessa época, era Deputado Estadual, foi Deputado... Acho que a primeira vez que ele se elegeu foi em 1962, ele já tinha tido... Foi cassado, aí ele virou... Ele era Paulo Alberto, virou Artur da Távola, virou crítico de televisão, depois fez o retorno, voltou à política. Nesse período, ele era um jornalista que escrevia sobre televisão e tinha essa empresa, era dono dessa empresa. Então eu fui trabalhar lá e o projeto que nós criamos lá, olha que coisa interessante, é internet pura! Este projeto é a Bloomberg completa, que era o seguinte: eu propus a eles utilizar na empresa um bicho chamado computador, que ninguém conhecia, não sabiam o que era, não tinha a menor ideia do que era.
P/1 – Você sabia?
R – Eu já sabia! Pois é. Isto foi em 1970, portanto tem 33 anos. Então eu propus a eles o seguinte: vamos criar uma coisa chamada Matriz Econômica Brasileira, existia na época uma coisa chamada Matriz Econômica, que são os insumos básicos da economia. Mas eu propus o seguinte: vamos criar no computador uma série de 300 índices sobre a economia e manter esses índices atualizados permanentemente, e isso cria um segundo produto para a empresa: primeiro o Boletim com a notícia do dia, e o segundo era um serviço que os usuários iam receber folhas de computador, recebiam um movelzinho com aquelas... Naquele tempo era folha de formulário contínuo, com aqueles buraquinhos com 400 folhas, como por exemplo, número de quilômetros de estradas asfaltadas no Brasil, inflação, exportação de produtos, o café, produção siderúrgica. Era uma matriz econômica! Índices de consumo de energia... Só tinha isso a Fundação Getúlio Vargas, assim mesmo fechada, e mais índices econômicos. A gente ia por dentro da produção.
P/2 – Vocês iam pegar esses dados aonde? IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]?
R – As fontes... Então, criamos isso, foi um sucesso! Eu tinha uma equipe de jovens que trabalhavam comigo, uma equipe grande. É, e fiz isso durante três anos, durante quase quatro anos, que era, na verdade, um serviço de informação econômica, baseada em informática. E era assim: nós usávamos o birô, que era o único birô do Rio, da Datamec, que foi uma empresa criada em 1966 pelo filho do Carlos Lacerda, Sérgio Lacerda. A empresa era dele, era ali na Rua do Bispo, ali na Rua da Estrela, no Rio Comprido. Todo dia que tinha alteração de índices, eu ia para lá e ficava o dia inteiro esperando perfurarem os cartões. Eram milhares de cartões! Rodar aquilo, e voltava para o escritório com um cacho de folhas de computador, e aquilo era então encartado e mandado para as pessoas. Então foi a primeira experiência eletrônica de divulgação de informação no Brasil, foi a Matriz Econômica do Índice.
P/1 – Quem era teu cliente?
R – Empresas, as mais variadas; economistas, bancos. Eu me lembro que na época os clientes... O que aconteceu com esse serviço? Começaram a aparecer solicitações de pesquisas mais aprofundadas, e isso virou um departamento de pesquisa de economia. Por exemplo, empresas que... Tenho uma que eu me lembro até hoje: um belo dia apareceu um grupo de japoneses lá que queriam instalar uma fábrica de giz no Brasil, queriam saber o tamanho do mercado de giz no Brasil. E o giz tem dois mercados básicos: as escolas e as sinucas.
P/1 – Ah é!
R – Então eu tive que fazer estes estudos econômicos...
P/1 – Que ótimo!
R - Fizemos vários, e eu me lembro que, na época, um dos clientes mais importantes que nós tínhamos era o (Banco Haliche?)
P/2 – (Haliche?)
R – Vocês lembram desse banco? Depois quebrou, e tal. Foi um cliente muito forte. Então aquilo era... O que era aquilo? Aquilo era comunicação, informação e tecnologia, não é?
P/2 – E daí você voltou para o José Olympio?
R – Exatamente. Mas aí aconteceu uma coisa muito curiosa, que era o seguinte: qual momento nós vivíamos ali? Nós vivíamos um momento dos primeiros rudimentos de abertura, mas com muita dificuldade. Então todos os economistas que estavam exilados – a maioria no Chile , alguns nos Estados Unidos –, começando a tentar voltar para o Brasil. Mas eles não tinham onde trabalhar, porque estavam completamente fora do... Não tinham como. E todos os economistas que voltaram para o Rio de Janeiro foram trabalhar no Índice.
P/1 – Ah, que legal!
R – Porque era o único lugar que tinha alguma coisa para se fazer e que tinha algum salário para ser recebido. E um sem número deles trabalhou comigo, eu era o chefe deles. Especialmente, por exemplo, o Carlos Lessa, o presidente do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], Inácio Rangel, que foi diretor do BNDES nos anos 1960, um Economista muito famoso, mas especialmente um economista brasileiro chamado Jesus Soares Pereira, que eu acho que é outro que a memória brasileira está devendo muito a ele, muito, porque a meu ver é... Foi o brasileiro, vivo, que mais me emocionou. O Jesus é um pouco meu pai emocional , e é um economista, uma pessoa fantástica! Um cearense, autodidata...
P/1 – É vivo?
R – Não, já morreu. O Jesus foi simplesmente quem escreveu a Lei 2004, que criou a Petrobrás. Só, mais nada! E a história deixou ele de lado. Hoje eu acho isso uma coisa tão absurda! O Jesus era uma pessoa de uma carga de humanidade, de generosidade com as pessoas, inacreditável. Então ele foi chefe da Assessoria Econômica do Getúlio. A história dele vale um livro, vale um filme, é uma história que precisa ser resgatada!
P/1 – E de que forma ele se inseriu nessa ideia?
R – Ele veio para o Índice, era o meu assessor. Era muito engraçado, porque eu, durante três anos, o Jesus sentado... Era assim: eu era o chefe do setor, o Jesus era o meu assessor, e um bando de meninos que faziam aquele trabalho. E o Jesus me chamava de chefe. Ele entrava, me cumprimentava, “bom dia, chefe”, e dizia assim para mim: “Não faz assim não, isto está errado! Depois eu te conto, no almoço, como é isso”. Eu passei três anos ouvindo lições de economia. Era o sujeito que mais conhecia o Brasil, ele sabia a posição de cada usina, de cada linha de transmissão do Brasil de energia de cabeça! Ele pegava o papel, o guardanapo no almoço, desenhava e dizia: “Uma linha que sai de não sei aonde... Paulo Afonso... Não sei aonde... Vem para cá. Isto precisa ser mudado, tem que ir não sei para onde. Nessa região não tem...”. Uma história fabulosa! Eu vivi então com essas pessoas todas no Índice. Conceição, Maria da Conceição Tavares, enfim, um sem número de economistas que fizeram trabalhos ali no Índice, e que tinham no Índice um... Assim como em São Paulo o CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], para onde o Fernando Henrique foi, foi o ponto de aglomeração dessas pessoas: o Serra, Fernando Henrique. No Rio foi o Índice.
P/1 – Que interessante!
R – E aí foi quando o meu filho nasceu, em 1973, aí eu recebo um convite para ir trabalhar na José Olympio.
P/2 – De novo...
R – De novo. Aí eu saí do Índice e fui para a José Olympio, não é? E o que é que eu fui fazer na José Olympio? A José Olympio, na época, tinha criado duas novas empresas, que não a própria José Olympio. Era uma empresa chamada Didacta Sistemas Educacionais, e era uma outra coisa chamada Ensine Audiovisual, que eram empresas voltadas à produção de bens culturais e informação que não escrita. Ou seja, novamente a internet com os meios da época. Então para a Didacta, ela fazia o seguinte, tinha alguns produtos, ela tinha por exemplo, uma coisa chamada Museu de Arte Didacta, foi a única experiência existente no Brasil, maravilhosa! O embaixador chamado Vladimir Alves de Souza, que foi embaixador do brasileiro na França muitos anos, ligado à família José Olympio, que montou... Que era o seguinte, um kit com 60 reproduções das principais obras, pintura, e 20 esculturas. Era Rodin, era não sei quem, brasileiros inclusive! Aquilo era vendido para escolas. Nós fazíamos uma montagem de painéis, e a escola passava a ter um museu lá dentro. Com manuais, com suporte, que eram três livros, com slides sobre a história da cultura ocidental, a história da arte ocidental. Uma qualidade fantástica!
P/2 – Isto produzido em papel?
R – O quê?
P/2 – Essas obras de arte?
R – Eram produzidas em papel, eram reproduções em papel, painéis. Além disso, por exemplo, representavam o que na época era a tecnologia mais sofisticada de comunicação, que era o super oito. Então nós tínhamos, representados no Brasil, uma empresa chamada Tecnicolor, essa de cinema que tinha uma maquininha de super oito, que ao invés de ser aquele aparelho clássico, projetor, era um aparelho pequeninho − já era um avanço tecnológico − que tinha um ___________, que encaixava e o filme passava em looping. E tinha inclusive uma pastinha que parecia uma pastinha do James Bond, que foi o primeiro computador que se viu no mundo nesse sentido, pelo seguinte: era uma pastinha que você botava em cima da mesa, abria. Quando abria, corria uma tela para frente e encaixava, e atrás tinha um espelho. Você encaixava esse __________ , esse cartucho, e o filme aparecia na tela.
P/1 – Que barato!
P/2 – Era um projetor.
R – Era um projetor numa malinha! Chama-se showcase. E nós passamos a fazer cinema educativo, treinamento, treinamento de vendas, treinamento, enfim, dos mais variados. E Cine era a produtora dos meios audiovisuais. Então eu passei vários anos da minha vida cuidando dessas duas empresas, uma coisa deliciosa!
P/1 – Pois é. Aliava...
R – E no fundo, pois é, se você olhar o que tem a ver com a... Tem tudo a ver! Era a mesma história e a mesma linha de atividade. E aí eu desenvolvo, por exemplo, no caso da Didacta, eu tinha a desagradável missão de, duas vezes por ano, ir à Paris, ficar uma semana no hotelzinho de frente ao Louvre...
P/1 – Coitado!
R -... Para selecionar as gravuras e as estatuetas, esperar a produção, e analisar com uma senhora que era a responsável... Isso era feito na Louvre!A gente ia comprar lá e trazia para a coleção. E na Ensine passei a fazer projetos, e olha só, veja como são as coisas, o maior... Os dois maiores projetos que nós fizemos na Ensine... E na Ensine eu montei uma equipe muito interessante, por exemplo, o redator dos textos da Ensine era um rapaz chamado Nei Lopes, que é compositor.
P/1 – É!
R – Não é? O Nei trabalhava comigo.
P/1 – Escrevendo.
R – Nei era o redator-chefe! A produtora era a Maria Carmem Barbosa, que hoje trabalha na Globo, é escritora da Globo e faz texto junto com o Falabella, não é? Então era uma equipe ótima. O Nei era o redator, um redator fantástico! Uma pessoa ótima. E aí, na Ensine, os dois projetos que nós fizemos foram: um, naquele momento estava nascendo no Brasil uma política de proteção, reserva de mercado de computadores, o que é discutido até hoje, se foi válido ou não, se retardou ou não o nosso desenvolvimento nessa área. É uma grande discussão que a gente tem.
P/1 – Que ano é esse? Só para a gente acompanhar...
R – 1974, 1975, por aí. Foi criada uma instituição que foi a primeira instituição a cuidar de informática _______ chamada CAPRI ,Comissão de Aperfeiçoamento Profissional... Uma coisa assim. Eu sei que a sigla era CAPRI, eu não me lembro mais. E por um acaso eu tinha uns amigos nessa CAPRI, e a CAPRI contrata a Ensine para fazer um pacote de filmes, audiovisuais, textos, animações, para treinar pessoas na área de tecnologia no Brasil inteiro. E esse pacote foi usado durante 15 anos! Até pouco tempo atrás, em algumas escolas de informática ainda se usava esse pacote. Então eu conduzi, junto com essa equipe da CAPRI, essa construção desse conjunto enorme de textos, então a minha relação com a informática...
P/1 – Vem daí!
R – Vem lá de trás. Agora, por exemplo, no Governo Lula, um dos integrantes dessa equipe se não me engano é a pessoa que está responsável pela política de informática do Governo. Então é muito... Porque essa turma toda ficou aí na história da tecnologia no Brasil. E o outro projeto que eu fiz com muito carinho, com muito prazer, foi o seguinte: eu criei um projeto que era o projeto de biografias de grandes escritores brasileiros. Era um perfil da literatura brasileira, e isto tinha tudo a ver com a José Olympio, a maioria dos autores eram autores da José Olympio. Filmes, não documentários, mas versões livres da vida desses autores feitos por grandes cineastas. Então eu chamei Nelson Pereira, Cacá, Joaquim Pedro, para dirigirem esses documentários. A empresa não tinha dinheiro, corria atrás de dinheiro. O Sérgio Lacerda foi um dos que financiou esse projeto.
P/1 – Mas era um projeto educativo?
R – Educativo, era!
P/1 – Para as escolas?
R – Para as escolas, sempre...
P/1 – Que nível bárbaro, né?
R – Chegamos a produzir quatro, nem sei onde estão, não tenho a menor... Nunca foram comercializados, porque logo depois a José Olympio entrou em dificuldades. O BNDES interviu na empresa e todo esse processo se interrompeu. Então você vê, esses dois projetos me abriram uma ponte para o setor de cinema e para essa área de informática de uma maneira muito sólida, e com amizades que ficaram a vida inteira. Assim que a José Olympio entra em dificuldades e o BNDES encampa, foi uma confusão! Foi um momento político difícil, uma atuação desastrada do Governo, que obrigou a José Olympio a comprar uma editora lá em São Paulo, que depois não aguentaram, enfim, uma história complicada! Eles, o BNDES, se desinteressou por essas duas empresas. Aí eu fiz a ele uma proposta de comprar as empresas. E comprei as empresas, especialmente a Ensine. Então eu passei de executivo para dono da Ensine, e fiquei com ela alguns anos, dando continuidade a esse mesmo trabalho que eu descrevi a vocês. Quando vem 1976, mais ou menos 1976, 1977, é criada a Embrafilme, e no Governo Geisel há uma articulação dos cineastas brasileiros que indicam o diretor da Embrafilme, foi a única gestão onde foi um cineasta mesmo, que foi o Roberto Farias. Foi a famosa gestão onde os cineastas... E aí eles vão me fazer uma visita lá na Ensine, um conjunto de cineastas e me convidam, insistem comigo para largar aquilo e ir para a Embrafilme. Aí eu passei a empresa para o meu sócio, e fui para a Embrafilme como Diretor Comercial da empresa. Fiquei alguns anos lá. Nunca me dei muito bem com o serviço público lato senso.
P/1 – É porque é uma empresa pública, né?
R – É um pouco... Mas foi uma experiência maravilhosa, com gente muito boa.
P/1 – Você fazia muito cinema brasileiro naquela época, né?
R – Muito cinema brasileiro, foi a grande época do cinema brasileiro. E era ali, ainda estavam todos vivos. Glauber, vivíssimo. O Glauber invadiu um dia a minha sala na José Olympio, sentou em cima da mesa e a empresa toda olhando, o doutor, o seu José olhando, porque a minha sala tinha uma coisa de vidro, e ele ficou ali sentado em cima da mesa fazendo discurso sobre o guarani, história fantástica! Logo em seguida há uma oportunidade de ouro na economia do cinema, que é a possibilidade do cineasta brasileiro, porque o problema sempre do cinema é a exibição, né? A gente sempre teve um sistema ativo de produção, distribuição também, mas a exibição sempre foi parca. E num golpe também de sorte, um conjunto de cineastas se reúne, cria uma entidade chamada Cooperativa Brasileira de Cinema, cujo o presidente era Nelson Pereira dos Santos, eram 50 cineastas, praticamente todos, é complicado...
P/1 – É, imagina!
R – E essa entidade eu vou para lá como Diretor Executivo! Na verdade era uma continuidade do trabalho na Embrafilme, e essa empresa compra uma cadeia de cinemas. Não sei se você se lembra, tinha uma empresa mexicana chamada Telmex? Trazia os filmes do Cantinflas.
P/2 – É.
R – E essa empresa tinha uma cadeia de cinemas no Brasil. E nós conseguimos uma articulação e compramos essa cadeia de cinemas. Então da noite para o dia o cinema brasileiro tinha 12, 13 salas de cinema administradas pelos cineastas. E eu estava na Embrafilme, tinha acabado a gestão do Roberto, e aí não houve entendimento. E o governo indica um Diretor Geral, que o próprio governo indica para Embrafilme: Celso Amorim, que é agora Ministro das Relações Exteriores. Celso teve uma passagem, ele foi presidente da Embrafilme.
P/2 – Diplomata, né?
R – Diplomata. Foi a gestão diplomata. O Samuel Pinheiro Guimarães, que é o Secretário Geral do Ministério, era o diretor Administrativo, e eu estava lá. Aí eu disse para eles: “Olha, eu vou sair”. “Não, queria que você ficasse, fica, por favor, fica”. “É uma experiência nova...”. Eu saí e fui para a Cooperativa. Fiquei na Cooperativa durante muitos anos, quando, em 1982... Deixa eu ver se eu não pulei alguma coisa nessa história... Não, acho que não! A história está seguindo o seu caminho...
P/2 – Está.
R – É, eu recebo um convite: o prefeito de Petrópolis... Quer dizer, no tempo da José Olympio, apesar de eu não estar na produção de livros, o meu contato com editores era muito intenso. Quando eu entrei na José Olympio, no mesmo dia entramos eu e o Paulo Rocco, que é hoje o presidente do sindicato. O Paulo era Gerente de uma empresa chamada Editora Sabiá, que foi criada pelo Fernando Sabino e pelo Rubem Braga no começo dos anos 1960. Essa editora teve um momento de muito prestígio, depois ela não se aguentou e a José Olympio absorveu.
P/1 – Interessante os braços da José Olympio também, né?
R – É outra história maravilhosa!
P/1 – Não é uma livraria qualquer, é uma história bárbara!
R – Aquela casa...
P/1 – Nesse ramo, né? Nível de editora, de livrarias, é sensacional!
R – É a maior história. E ela era o seguinte: é uma coisa que as pessoas não compreendem, que é o seguinte, o peso político que tem hoje a Rede Globo – eu vivi muito essa história e eu conheço vários depoimentos que são muito interessantes –, naquele tempo, quem tinha o peso político era a José Olympio, o editor, porque o livro era o principal veículo de comunicação, a televisão não tinha a expressão que tem hoje. A sala do seu José, como a gente chamava ele, o Golbery não saía de lá, vivia lá dentro. Todos os livros do Golbery foram editados lá dentro. E eu vi várias vezes durante anos difíceis da política, dentro da sala da José Olympio, Golbery, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, ou seja, a esquerda...
P/1 – Ele editava, o José Olympio é que tinha esses autores...
R – Todos os autores brasileiros! A José Olympio editava Drummond, todos os autores brasileiros que você possa imaginar, menos Jorge Amado!
P/1 – Guimarães Rosa.
R – Guimarães Rosa, Drummond, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, enfim, todos, sem exceção! Cassiano Ricardo, Clarice Lispector, é... Como é? A Rachel...
P/2 – Rachel de Queiroz.
P/1 – Rachel de Queiroz.
R – Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, todos os autores brasileiros eram da José Olympio, sem exceção. E a sala do seu José era uma sala com portas abertas, uma sala enorme. Ele, o trabalho dele... Ele ficava sentado num enorme sofá escuro, assim, vermelho, sentado. Era um senhor baixinho, muito gordo, muito educado, uma pessoa... Ele ficava o dia inteiro sentado, e as pessoas iam entrando na sala e conversando com ele. Eu me cansei de ver lá dois, três generais conversando com o políticos ou expressões da esquerda: Ferreira Goulart, que era o grande líder da esquerda, da cultura do Brasil. E era uma casa fantástica! Eu aprendi muito lá, tive muito contato com os editores e aprendi muito com o seu José também, com o Geraldo, o filho dele, que até hoje continua editando e tal. Para mim foi uma casa de muita, muita experiência. Quando saí de lá, recebi o convite para ser... Não, espera aí! Saí de lá fui para a Ensine, para Embrafilme, para Cooperativa...
P/1 – A Revan...
R – Pois é, eu já vou chegar!
P/1 – Ah, você vai chegar!
R – Aí, em 1982 é eleito para prefeito de Petrópolis um político chamado Paulo Rattes, que eu conhecia de Petrópolis, de passar férias lá. E um belo dia ele liga para minha casa e diz: “Vem para cá ser Secretário de Cultura aqui, quero fazer uma coisa nova aqui, diferente e tal”. Eu virei para minha mulher e disse: “Eu estou sendo convidado para ser Secretário de Cultura”. “Mas como?”. Fomos, pronto! Vendi o apartamento que eu tinha aqui e fui para Petrópolis, comprei uma casa lá. Em dois meses estava morando em Petrópolis e fui secretário de Cultura lá da prefeitura. E foi outra experiência também maravilhosa. No começo muito difícil, porque é uma cidade de muita tradição, tem um lado muito conservador da sociedade da cidade. Essa coisa que você falou do Pedro II, lá tinha também, um certo... Uma certa sociedade germanófila lá. No começo eu sofri uma rejeição muito grande, uma rejeição política também, mas o Paulo não se preocupou muito com isso, e agente foi ficando lá. E fizemos um trabalho lá muito bom, muito bom mesmo! Era um trabalho muito, muito interessante. Nesse período eu fiquei lá três para quatro anos com várias atividades na área cultural, tivemos vários movimentos na cidade, Betinho vivia lá, porque a gente criou um conselho, chamava Conselho da Utopia.
P/1 – Ah, que bárbaro!
R – Com discussões sobre Utopia. Todo ano tinha um Ciclo da Utopia, e o Betinho coordenava. O Betinho, o Afonso Santana, enfim, um conjunto de pessoas, e eu cuidava da cultura! Não me envolvia muito com a política, quer dizer, tinha lá as confusões, partido para cá, PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], enfim, essas coisas. Num certo momento começa a se criar, naquele momento, um movimento de prefeituras, de prefeitos progressistas, com a ideia de orçamento participativo, essas coisas que acabaram dando num pedaço do programa do PT [Partido dos Trabalhadores] hoje. Minha experiência de prefeitura com orçamento participativo foi em Joinvile com Luiz Henrique, que agora é Governador agora lá de...
P/2 – Santa Catarina.
R – Santa Catarina. Isso eu estou falando de 1981, 1982. E aí a prefeitura de Petrópolis se envolve nisso, e havia um organismo aqui no Rio chamado CEBRAD, Centro Brasil Democrático, que era presidido por Oscar Niemayer. E na verdade era um organismo de luta pela democracia e tal. O conselho do CEBRAD era o Oscar, o
Moacir Félix, Nelson Werneck Sodré, Chico Buarque, Betinho. Eu não me lembro mais dos outros... Ferreira Goulart, enfim, era um conjunto de pessoas, todas envolvidos com um projeto de... Aquele show, o Show do 1º de Maio, o famoso...
P/1 – É o famoso...
P/2 – Por eles...
R – Era promovido pelo CEBRAD.
P/1 – 1981, né?
R – E eu me aproximo do CEBRAD, passei a fazer parte desse conselho do CEBRAD, fiz parte do conselho do CEBRAD, e eles me pedem para coordenar esse trabalho, esse trabalho nos Municípios. Aí criamos lá um organismo que fez três, quatro, cinco congressos de Municípios discutindo um novo olhar sobre a cidade, novas práticas e tal. Esse trabalho eu fiz em paralelo enquanto estava na prefeitura de Petrópolis, então esse trabalho me... Criei grandes amizades com o pessoal do CEBRAD, e fui criando amizades ali. O Secretário Executivo do CEBRAD era um jornalista chamado Renato Guimarães, que eu já conhecia, porque o irmão dele trabalhou comigo lá atrás, no Índice. Era um jornalista que já tinha morrido, morreu muito jovem, chamado Fausto Cupertino, muito capaz, morreu muito jovem. Então eu estabeleci uma boa relação com o Renato. Quando vai terminando o mandato lá em Petrópolis, eu também já estava cansado, era uma vida muito... Descia muito para o Rio, porque o resto da família estava aqui. Meus filhos não se adaptaram muito, meus filhos estavam pequenos, enfim. Aí eu quis voltar para o Rio, voltei para cá. Quando voltei para cá, o Saturnino Braga tinha acabado de ser eleito prefeito, e o Jó Resende era o vice dele. O Jó estava muito ligado a esse trabalho das prefeituras...
P/2 – Ele veio da Famerg, né?
R – Da Famerg, exatamente. Aí o Jó me convida para vir para o Governo. Eu disse: “Ah, mas o meu negócio era cultural, que é o que eu quero”. Nessa área não tinha espaço, mas ele queria que eu ficasse ali, próximo, e eu acabei presidente da Rio Urbe, empresa de urbanização da cidade, que tinha acabado de ser criado. Passei um ano lá, um ano e pouco, mas de novo não é exatamente o meu... Minha praia. E sempre querendo voltar para a coisa do livro. É aí que o Renato Guimarães, esse que era do CEBRAD, cria uma editora chamada Revan.
P/2 – Isto é uma sigla, não? Esse nome?
R – Não, é Renato e Vanda, que é o nome da mulher dele.
P/1 – Ah! (risos)
R – “Revan” é Renato e Vanda. E aí eu fui lá trabalhar com ele, de uma maneira muito informal, como uma espécie de consultor, como um assessor. O que eu fazia lá? Eu fazia contato com autores...
P/1 – Mas a Revan era o quê? Uma editora, uma livraria?
R – Uma editora, uma editora. Continua até hoje! É uma boa editora, tem um catálogo muito bom. É, e eu passo a trabalhar na Revan como um consultor, quer dizer, eu opinava sobre os livros, fazia leitura de livros, opinava sobre livros a imprimir ou não, fazia tradução final... Não é bem tradução final, mas adaptação final para o português das traduções, fiz isso com alguns livros. E eu escrevi um romance, eu tenho um romance editado chamado “O Grande Pã Morreu”, que é um romance que tem a tecnologia, que tem o computador como papel principal do livro, é uma coisa engraçada.
P/2 – “Pã” é o deus Pã?
R – É, o Pã é o deus Pã. É, exatamente.
P/1 – Quando é que você teve o seu primeiro computador?
R – Deixa eu te... O primeiro computador que eu tive, eu comprei para o meu filho, em Petrópolis.
P/1 – Nessa época...
R – Nessa época lá de Petrópolis, porque assim, não existia era uma coisa chamada... Eu não me lembro mais o nome...
P/2 – MSX, não?
R – Antes do MSX. Era uma coisinha preta, só tinha o teclado, você tinha que conectar ele no monitor da televisão.
P/2 – Gravava em fita K7?
R – Gravava em fita, exatamente. Como era o nome daquilo? Eu já não lembro!
P/2 – TK alguma coisa...
R – TK, isso mesmo! Exatamente. TK 80, TK 40, é isso mesmo! Exatamente, é. Eu comprei para o meu filho, ele tinha oito anos, e dali para cá sempre tive essa máquina. Então na Revan eu tinha várias funções, mas eram sempre de conexão com o processo de produção dos livros, discussão com os autores, ou palpites sobre que livros produzir, e lançamentos de livros.
P/1 – Você pode, então... Nessa época, quais eram outras livrarias e editoras no contexto da cidade, importantes?
R – É o seguinte: depois da queda da José Olympio, que foi a grande editora do mercado nos anos 1950, 60 e 70, o Rio de Janeiro teve quatro grandes editoras que são reverenciadas, nem todos reconhecem, independentes dos novos, como Paulo Rocco, ele se destaca, e tem mais alguns. Mas grandes nomes da edição do Rio de Janeiro: o primeiro deles é o José Olympio, incontestável, sem similar, porque publicou o primeiro livro de uma editora regular no Brasil em 1932, livro com ideia de reproduzir, de multiplicar e tal. O segundo grande editor foi Alfredo Machado, pai de Sérgio Machado, criador da Record. A Record era uma pequena editora que tinha basicamente no seu catálogo dois grandes trunfos: o Jorge Amado, que era deles e continua sendo, e best-sellers americanos, tipo John Grisham, aqueles...
P/2 – Sidney Sheldon...
R – Sidney Sheldon.
P/1 – Mas você está falando ainda década de 1950, 1960? Mais para cá?
R – Não, já estou falando desse período.
P/1 – Tá.
R – Você está me perguntando quais são os editores...
P/1 – É, quando você entrou nessa ramo de livros.
R – Depois da queda da José Olympio há três fenômenos editorias no Rio de Janeiro: um, Alfredo Machado, com a Record, que morre e é sucedido pelo filho, pelo Sérgio que está hoje à frente e é indubitavelmente a maior editora brasileira, mais expressiva, mais profissional, com um catálogo excepcional e que vem cumprindo um papel histórico muito importante, que eu já vou chegar lá e vou dizer qual é. O segundo fenômeno que acontece no Rio de Janeiro, muito forte em termos de edição, ou melhor, o terceiro, já falei do José Olympio e falei do Alfredo, é a Editora Civilização Brasileira, com o Ênio Silveira, que corresponde ao momento da ebulição política dos anos 1960, 1970, que é quando o Ênio tem o seu grande momento, que tem ali, com a Civilização, um momento muito expressivo. O Ênio irrompe, tem uma presença forte e depois começa a cair. Com o final do governo militar começa a enfrentar dificuldades, a editora já começa a ter um catálogo que já não está mais tão atualizado em relação ao restante do mundo mesmo. Ela era muito vinculada ao marxismo, quer dizer, à teoria marxista e tal.
P/1 – Tem aquela coleção Civilização Brasileira, que marcou uma época também.
R – Exatamente. Aí, então, ele entra em dificuldade. O papel que o Sérgio Machado tem nessa história é o seguinte: o Sérgio Machado é hoje dono... A Record é dona da José Olympio, da Civilização Brasileira e da Bertrand, que era outra editora que era da Civilização. A Bertrand Brasil é um selo que foi aberto pelo Ênio. Então a Record recolheu esse catálogo dessas editoras, e o catálogo dessas editoras é hoje todo da Record.
P/2 – Manteve os selos, né?
R – Manteve os selos! Continuam funcionando com linhas editoriais. Então a Record é o grande nome dessa área editorial aqui no Rio de Janeiro.
P/1 – E a Revan, qual era a expectativa, a aspiração dela?
R – A aspiração dela, uma editora... O Renato é um homem de esquerda, um marxista, continua até hoje, e a aspiração dele era uma editora que publicasse livros de qualidade, de discussão política, mas, ao mesmo tempo, romances. Publicou muitos romances de jovens autores, um pouco apostar em jovens autores. No ano de 1994 eu lancei esse meu livro, e em 1995 acontecem duas coisas: começam a aparecer no mercado um objeto chamado CD-ROM. A gente recebe lá na Revan alguns CD-ROM que empresas americanas mandaram para a gente, eram livros infantis maravilhosos. Começamos a discutir se esse CD-ROM era uma coisa importante, era, não era, se valia à pena entrar naquilo. Aí eu vou aos Estados Unidos para avaliar um pouco essa história de CD-ROM, para ver um pouco, conversar com as editoras, que era uma coisa que eu fiz um pouco por mim e um pouco pela Revan, mas já foi uma atitude minha de investigar esse mercado. Evidentemente que se houvesse coisas boas para serem feitas, isso eu ia recomendar à Revan ou à outra editora, porque eu tinha muitos amigos nesses anos todos que eu fiz na área. Quando eu chego lá, vou numa editora para ver um desses CD-ROM e um rapaz que estava sentado numa mesa lá mostra o CD-ROM e diz assim: “Esse CD-ROM nós já estamos vendendo pela internet”. No dia seguinte voltei lá, e em vez de conversar com o gerente, fui lá e chamei o rapaz, e disse: “O que é vender CD-ROM pela internet?”. Aí ele abriu a Amazon, a Amazon tinha um mês fundada, um mês! Eu olhei aquilo e fiquei fascinado! Porque conhecia as dificuldades da indústria do livro no Brasil, o mercado livreiro no Brasil, ser livreiro no Brasil é um ato de heroísmo. Cada livreiro no Brasil é um herói! Dimensão continental, dificuldade de distribuição, muita coisa.
P/1 – Esse teu momento do teu primeiro contato com a Amazon, essa coisa de venda pela internet...
R – O rapaz no dia seguinte me mostra o que é...
P/1 – Isso no Brasil não existia aqui!
R – Nada, zero! O que existia no Brasil?
P/2 – BBS [Bulletin Board System].
R – Pois é, exatamente. O que é que existia no Brasil? Na época existia uma coisa chamada BBS.
P/1 – O que é BBS?
R – Era mais ou menos como se você imaginasse hoje uma redução tecnológica. Era um clube de pessoas que tinham acesso fechado, não era como a internet, aberto, você tinha que estar inscrito num determinado Bulletin Board System, você tinha que estar inscrito naquele grupo, e aí você tinha acesso a um determinado conjunto de informações. O BBS era uma coisa não gráfica, só linguagem, era só texto, não tinha imagem. Então, por exemplo, já tinha duas ou três pessoas vendendo livros em BBS. Tinha, mas era uma coisa muito... Alguém botava uma lista de livros na tela e dizia: “Olha, eu tenho aqui esses livros, vocês não querem comprar?”. Então quem fazia parte daquele BBS e podia entrar ali e dizer: “Eu quero esse livro!”. Aí o sujeito mandava... Tanto que alguns desses, o maior que vendia, acabou vindo trabalhar comigo na Book Net. Então eu peguei o avião, fui lá e vi como funcionava.
P/1 – O que é a Amazon?
R – Era um galpão gigantesco, com umas 100 pessoas. Quem me atendeu lá foi uma mulher, não me lembro mais o nome dela, que me mostrou tudo “ah, claro, não tem problema...”, e era um... Parecia um grande galpão, um galpão do cais do porto, com livros espalhados por tudo quanto é canto, mesas de Ping Pong, e pessoas pegando livros, embrulhando, empacotando, botando em caixas e mandando embora. Era isso, o que eu vi foi isso. E a mulher me explicou todo o sistema, que era basicamente a ideia de não ter estoque, portanto, ter a maior empresa do mundo sem ter estoque!
P/1 – Era uma venda de livros pela internet?
R – Pela internet, era isso.
P/2 – Eles encomendavam das editoras a partir do pedido.
R – Exatamente. E foi o que me levou a criar a Book Net. Vivi esse drama como editor, eu via o que os livreiros sofriam.
P/1 – O livro de papel.
R – Bom, coincidência extrema, quando volto, a Revan lança um livro de um rapaz que tinha 18 anos na época, 19, muito jovem, um jornalista chamado Pedro Dória, que é um rapaz que hoje continua escrevendo sobre tecnologias, escreve naquele No Mínimo. O Pedro tinha ido estudar nos Estados Unidos, acho que na UCLA [Universidade da Califórnia em Los Angeles], uma Universidade Americana de ponta, não me lembro qual era, e lá teve contato com a internet, ainda nos seus rudimentos, ali no seu comecinho mesmo, e escreveu um livro, que era uma espécie de diário dele nos Estados Unidos, ao mesmo tempo um contato dele com a tecnologia. O livro chamado “Eu e a Internet”, que foi o primeiro livro publicado no Brasil sobre o assunto. O livro vai e acaba na Revan. O Renato disse: “Olha, não tenho a menor ideia do que é isso, faz esse lançamento”. Não sei nem quem é, enfim, me passou essa questão do livro do Pedro Dória. O livro caiu na minha mão e eu fiquei responsável por lançar o livro. Aí o que é que eu fiz? Deixa eu ver o que é que tem já de internet no Brasil. Não tinha nada! A única coisa que tinha no Rio de Janeiro... Era o primeiro provedor que tinha no Rio de Janeiro, que por coincidência era de quem? Do Betinho! Olha como a história dá voltas fantásticas.
P/1 – Dá voltas...
P/2 – O Ibase tinha...
R – O Ibase tinha um provedor chamado Alternex, que foi o primeiro provedor de internet no Rio de Janeiro. Então eu procurei a Alternex e disse: “Olha, nós vamos lançar um livro sobre internet. Vamos lançar isso juntos? Fazendo noite de autógrafos aqui, divulgar entre os clientes de vocês?”. Esse era o meu trabalho, um trabalho de articulação, de marketing, de abertura de mercado. E __________ e fizemos o lançamento do livro do Pedro Dória na Alternex, que era na casa do Ibase, aqui em Botafogo. Não lembro o nome daquela ruazinha ali perto da Bambina, ali. Esse contato se ampliou em contatos pessoais e conversas com as pessoas que estavam à frente da Alternex naquela época. E uma dessas pessoas que estavam à frente, o principal executivo era um sujeito chamado Carlos Afonso, que agora está no PT e é o responsável pelo __________, internet desse Governo, que é uma pessoa ótima, uma pessoa muito capaz. Mas tinha um rapaz chamado Nepomuceno, que era o executivo dele, era a pessoa que tocava isso. E eu me aproximei muito desse rapaz, Nepomuceno. Aí eu chamei ele para almoçar e disse assim: “Olha, eu estou querendo... Eu acho que esse negócio tem futuro no Brasil, enorme! Muito grande, porque somos um país continental, temos 5.900 Municípios, dos quais só 300 tem livraria. Os livros não chegam, as livrarias não têm capacidade de absorver o número de livros editados, pelo problema que nós temos: nós temos mais editores do que livreiros no Brasil”. Temos mais! Mais editores ativos do que livreiros ativos, em número. Ele disse: “Vamos fazer!”. Falei com o Renato, o Renato... “Quer ser meu sócio?”. “Não, não quero! Não vejo futuro nisso, não vai acontecer!”. Falei com mais duas ou três pessoas da área, por exemplo, o meu amigo que tinha me trazido lá atrás na história da CAPRI, eu disse para ele: “Olha aqui” – que é um analista – “vamos fazer isso. Vem fazer comigo?”. Porque eu conhecia o mercado livreiro, mas na área de tecnologia eu tinha muitas dúvidas. Não quiseram. Aí chamei o Nepomuceno e disse: “Vamos fazer?”. “Vamos!”. Eu ofereci sociedade para ele, ele não quis, quis fazer recebendo pelo trabalho dele. Insisti, insisti, insisti e ele não quis! Aí começamos a construir o site. Entrou um terceiro parceiro na história que foi o provedor, tinha acabado de abrir o provedor, em janeiro de 1995, chamado ISM, foi também um dos primeiros daqui do Rio. Um mês desse provedor de existência eu conversei com o pessoal da ISM, eles toparam o projeto, então a Book Net foi uma concepção minha, executada do ponto de vista de sistemas pelo Nepomuceno, e hospedada, abrigada e desenvolvida fisicamente pela ISM. Quando o projeto começou, eu me entusiasmei muito por aquilo, deixei as outras coisas que fazia como consultor, enfim, nessa área, e resolvi jogar todas as fichas e todos os recursos que eu tinha naquela história. Fiz uma primeira reunião com dez editores, eu me lembro bem, como se fosse hoje! Lá na ISM. E vieram esses editores, vieram porque eram meus amigos. Sentaram à mesa e eu expliquei a ideia. Termina que dos dez, um só já conhecia bem internet, era familiar com a história da internet, que era o Eduardo Salomão, que é da Imago, uma editora aqui do Rio. O resto não tinha, ninguém tinha mesmo, nesse momento... O Alternex acho que no Rio de Janeiro tinha ao todo 25.000 usuários de internet, isso era tudo!
P/1 – 1994, que você está falando?
R – 1995.
P/1 – 1995.
R – 1994 foi quando eu fui lá, 1995 já é o ano de construção disso. E usei todos... Eu disse para eles: “Olha, eu só preciso de vocês de uma coisa”. Aí um deles brincando: “Se é dinheiro, não tenho!”. Eu disse: “Não, não é isso. É porque o livreiro compra do editor livros em bloco, sai um livro e você compra 20, 30, 40 para o estoque da livraria. Eu não vou comprar assim. Eu vou chegar na tua editora e vou pedir um livro desse, um daquele.” – Isso é uma coisa complicada para o editor, não é fácil, porque tem uma mão-de-obra envolvida nisso... Complicado. – “Então eu quero a ajuda de vocês para aceitar que os meus pedidos...” – Porque as editoras têm pedido mínimo – “Vai ter dia que eu vou pedir um livro para vocês. A única coisa que eu peço a vocês é isso, mais nada! E eu vou ser uma nova livraria para vocês, o investimento é meu e vocês vão ter um novo canal de distribuição que eu vou montar para vocês”.
Todos toparam, aí assinamos contratos de distribuição desses livros. Então eu comecei, acho que com 18 editores, com seis ou sete mil livros, uma coisa assim.
P/1 – Qual era a linha dos livros vendidos? Era romance, era didático, o que era que você vendia?
R – No começo?
P/1 – No começo.
R – Era Ciências Sociais e romances, essas duas coisas. Fizemos um lançamento que foi ontológico, que foi uma coisa maravilhosa na Biblioteca Nacional. Eu fiz uma festa na Biblioteca Nacional, isso foi em maio, junho, já não me lembro mais, por aí assim, e que eu fiz o seguinte: instalei na Biblioteca Nacional seis computadores. Uma complicação! Linha, cabo, não era o que é hoje, né? E convidei os editores todos, e lançamos uma coisa chamada Autógrafo Virtual.
P/1 – Que bárbaro!
R – E a cada editor eu pedi que levasse dois autores. Um sucesso! Os autores, os escritores ficaram... Ninguém nunca tinha visto aquilo. Então o lançamento da Book Net era assim: eram mesinhas no foyer da Biblioteca Nacional, na época Affonso Romano de Sant’ Ana que era o presidente. Em cada mesinha, autores de uma editora. Então estava lá João Ubaldo, Rubem Fonseca estava lá, enfim, estava todo mundo lá. E a gente botou o site no ar e durante o período daquela festa, que foi das cinco horas da tarde até às dez horas da noite. Se você comprasse um livro daqueles autores, você recebia autografado em qualquer lugar do Brasil. E a gente divulgou isso, teve matérias em jornal, era outro momento, era o seguinte: era a única empresa que tinha. Então qualquer coisa que a gente fazia eram páginas e páginas e páginas no jornal. Depois isso virou uma coisa... Mas como era o primeiro, foi uma coisa fabulosa. Porque o sujeito que morava no Amapá... Eu me lembro, tinha um sujeito do Amapá que comprou um livro de cada autor, e tinha esse livros ali, cada editora levou um pacote de livros. O João Ubaldo, lembro dele rindo: “Eu estou autografando para alguém no Amapá?”. “Está, esse cara é do Amapá”. Ele fez uma dedicatória engraçadíssima, e a gente embrulhava o livro. Tinha um posto de correio instalado ali, que eu quis mostrar como é que funcionava esse sistema todo. Os livros eram expedidos ali. Eu botei os meninos com motocicleta para fazer o delivery da entrega e tal..
Enfim, aquilo foi um sucesso! Foi uma coisa que teve uma repercussão muito grande. E começamos o projeto, a empresa começou, quando eu comecei nós começamos num galpão, que era a minha memória lá do Amazon. O Santo Cristo! Havia uma empresa lá de entrega chamada Capital Services, existe até hoje.
P/2 – Existe.
R – Ainda existe. É, foi um erro de concepção minha e deles, porque nós fizemos um acordo: eu usei o prédio deles e eles fariam as entregas. Parecia um casamento perfeito. Só que a Capital Service é uma empresa que entrega um produto para muitos.
P/1 – Ai nesse caso...
R – Meu produto era muitos para um, era o contrário! Eles entregam, por exemplo, talão de cheque, eles entregam cartão de crédito, entregam coisas desse tipo.
P/2 – Distribuição de revista também, né?
R – Isso. E aí não deu certo, porque era uma interferência na vida deles. Tinha que entregar um livro para alguém em Vaz Lobo, o outro em Niterói, o outro em Caxias, não é?
P/1 – Qual era o perfil desse seu cliente, no começo? Quem é que começou a comprar?
P/2 – Quem tinha internet?
P/1 – É. Quem tinha internet, né?
R – Pois é, por exemplo, o primeiro cliente da internet, o primeiro cliente da Book Net foi o empresário do Chico Buarque, o Vinícius... Não é Vinícius Cantuária não, eu não lembro o sobrenome dele. Era Vinicius... Foi o primeiro usuário da internet. Ele entrou, fez o pedido, e depois mandou um e-mail dizendo o seguinte: “Olha, eu fiz o pedido para experimentar. Não acredito que funcione!”.
P/1 – Ah, que graça!
R – Nós mandamos o livro e eu mandei um e-mail para ele. Aí tinha uma coisa que assim, durante dois anos eu respondi todos os e-mails que a Book Net recebia! Isto talvez tenha sido uma das coisas que permitiu... Não era ninguém. Essa era a minha tarefa! Eu acordava seis horas da manhã. Teve dia de responder 500 e-mails, 800 e-mails, 1000 e-mails, e eu respondia à todos! E respondia com uma linguagem de um livreiro interessado em conquistar aquele cliente, não era resposta automática.
P/2 – Ainda não existia Spam.
R – Ainda não existia Spam, não era... Então, por exemplo, vinha uma reclamação ou uma sugestão, imediatamente eu respondia. Eu ficava de seis e 15, seis e 20 da manhã até às dez horas respondendo e-mail. Respondia todos, sem exceção! Isso foi criando um relacionamento com o usuários, com as pessoas do outro lado, foi criando uma confiança, foi criando um conjunto de pessoas que, quando começou a comprar de novo...
P/1 – Funcionava? Os livros chegavam?
R – Chegava, chegavam. Teve um momento, que o seguinte: os primeiros dois meses foram muito poucos. Eu fiquei um pouco assustado, eu disse: “Será que o Renato tinha razão? Será que esse negócio não vai funcionar?”. Fiquei muito preocupado, apreensivo com o investimento feito. No terceiro mês a curva fez assim. Foi quando houve um momento de... Teve um gargalo enorme! Eu tive rapidamente que correr atrás de contratar mais gente, botar uma pessoa nova à frente da expedição. Teve um momento de gargalo ali. Depois a gente já aprendeu como era, era uma coisa modular, acaba “x” pedidos a mais, a gente botava mais uma pessoa. Então você criou uma equação matemática ali, e aquilo foi, foi, foi...
P/2 – Deixa eu só te fazer uma pergunta. Quando você refletiu sobre essa questão, quer dizer, da onde vem esses produtos, das editoras que você já conhecia, como é que eu vou mandar? Tem uma estrutura do correio, ou da capital... E como você refletiu sobre a questão de como é que as pessoas vão pagar? Quer dizer, que tipo de pagamento...
R – Naquele momento a maioria dos pagamentos era por depósito bancário, que era outro nicho enorme. Até hoje, né? Mas eu resolvi confiar nas pessoas, quer dizer, o conceito era o seguinte: quem está comprando um livro não vai querer me pagar sem fundo, se fosse um comércio de outro tipo, talvez não tivesse dado certo, e a inadimplência que eu tinha era próxima à zero.
P/1 – Quer dizer, a mercadoria livro, para você, criava certa confiabilidade de que quem compra um livro não vai dar calote?
R – Exatamente. Então durante um ano e meio a gente só recebia por depósito bancário.
P/2 – Você esperava o depósito?
R – No começo eu esperava. Teve um momento que eu tomei a decisão e disse: “Pode mandar os livros!”. A pessoa que estava responsável pelo financeiro: “Mas você está louco! Nós vamos quebrar”. E é o que eu estou te dizendo, era menos de meio por cento a inadimplência. E aí um trabalho difícil de consolidação, de... Bancária, de descobrir o depósito...
P/2 – Comparar extrato.
R -... De quem e tal. Depois de um ano e meio, aí os cartões de crédito entraram no mercado, e as vendas começaram a serem
feitas por cartão, aí já ficou mais fácil.
P/1 – Você fazia assim, propaganda na net?
R – Sabe por que que não precisava?
P/1 – Na imprensa de mídia, ou no jornal...
R – Nós tínhamos... Na verdade é o seguinte: a repercussão do lançamento foi tão grande, por exemplo, vou te citar um evento. Um ano depois, começo de 1997, eu recebo, ainda estava lá no... Não, acho que era 1996 ainda, ainda estava lá no Santo Cristo. Recebo uma jornalista da Folha de São Paulo, jornalista de economia da Folha. Aparece lá, bate, sobe. Disse: “Olha, eu sou da Folha de São Paulo, me mandaram vir aqui ao Rio fazer uma matéria sobre esse negócio que você está fazendo”. Sentou: “Mas o que é que é?”. Não tinha ainda ouvido falar em internet, nunca, na vida dela. Ela ficou o dia inteiro lá, fascinada. Ela não queria ir embora, e eu mostrando a ela as possibilidades. E era fascinante mesmo! Quando a gente atendia cidade que nunca tinha chegado um livro! Iconha, já ouviu falar em Iconha? Eu tinha dois clientes em Iconha.
P/1 – Que Estado é esse?
R – É Santa Catarina, lá embaixo, lá no... Tem Iconha... Fui mostrando essas coisas para ela e ela ficou fascinada. Foi-se embora. No domingo seguinte eu abro a Folha de São Paulo, a primeira página da Folha de São Paulo está ali em cima, era Fernando Henrique alguma coisa, tinha acabado de ser eleito, alguma coisa, e na parte de baixo uma foto com a marca da Book Net.
P/1 – Que era qual?
R - Foto colorida, era uma marca muito bonita. E a marca da Amazon, na primeira página, deste tamanho. E dentro do jornal, as duas páginas centrais de economia da Folha de São Paulo só sobre a Book Net e a Amazon. Aquilo repercutiu de uma maneira, não pode imaginar! Uma empresa ganhar duas páginas da Folha de São Paulo, aquilo não existia. E essa comparação imediata com a Amazon, que já estava naquela curva de aceso... Então, se você olhar a nossa repercussão na imprensa, eu tinha uma assessora chamada Jane Duarte, não sei se vocês conhecem, é uma jornalista, que me ajudou muito nesse projeto. Ela ficava enlouquecida, porque: “Eu nunca vi isso na vida!”. Eu tenho isso guardado, são pilhas de matéria de jornal, pilhas! Jornais que eu nunca vi na vida, o Brasil inteiro! A centimetragem quadrada que a gente ganhava de divulgação era uma coisa astro... Ela fazia aquelas curvinhas que assessor de imprensa faz.
P/1 – Faz quantos...
R - Quantos centímetros? Era uma fortuna! Eram milhões de reais abertas pelos jornais. Então isso era um rastilho de pólvora. E paralelo a isso aconteceu uma coisa que é o seguinte: começou um processo de eu ser muito chamado para falar sobre a experiência da Book Net, e logo em seguida para falar de internet. Eu passei três, quatro anos da minha vida, depois que a Book Net se consolidou, mas mais especialmente logo depois da ________, um pouco depois da (venda?), onde o meu trabalho principal era falar. Faço hoje palestras, dou aulas, enfim. No ano de 2000 eu fiz 90 palestras, fiz 130 viagens de avião para os públicos mais diversos. E fui trabalhando nessa área. Fui aprendendo, fui desenvolvendo todo um arcabouço teórico para isso. E que acabou em, quer dizer, um pouco virei uma referência da área de internet no Brasil, uma espécie de formulador de ideias, de conceitos nessa área. E desde a Escola Superior de Guerra, já falei duas vezes, todos os Foros que você pode imaginar: de empresários, de estudantes, de economistas, de tecnologia, eu tenho falado. Isso também facilitou muito. Por exemplo, a gente tinha um editor lá que era assim: eu ia falar em Brasília, o pessoal media no dia seguinte quanto aumentava a venda em Brasília. Aumentava barbaramente.
P/1 – O teu mercado maior era qual Estado, quando você começa a Book Net?
R – No Rio de Janeiro.
P/1 – Rio.
R – E até o final da história dela, nos últimos meses, São Paulo ultrapassou, mas era uma relação absolutamente diferente da relação econômica de outros setores, porque o Rio identificava a empresa como empresa do Rio, e a venda do Rio era muito expressiva. Foi líder durante muito tempo, e mesmo quando São Paulo passou, não é a relação normal de São Paulo com Rio, era São Paulo aqui e Rio logo aqui. Então o número de pedidos era muito forte. Terceiro era Brasília e quarto era Bahia, que tinha também um consumo muito grande.
P/2 – E o que os livreiros acharam?
R – Para o meu conforto e alegria, no primeiro momento todos eles eram unânimes em dizer que aquilo era uma bobagem, que aquilo não tinha futuro, que aquilo era apenas uma brincadeira e que o futuro dos livros são as lojas físicas, e tal. Eu me lembro de um debate que eu participei na Bienal do Livro, acho que em 1996 com o pessoal da Saraiva na mesa comigo. Tinha o diretor executivo da Saraiva, que é meu amigo: “Essa brincadeira do Jack London, isso não serve para nada. Isso é uma brincadeira, daqui a pouco passa!”. Foi graças a isso que eu fiquei sozinho no mercado três anos! (risos) E aprendi uma lição: às vezes você tem que ter cuidado, cuidar dos projetos que você está fazendo, que é uma coisa que hoje eu faço com muita atenção. Às vezes, divulgar o projeto na sua essência talvez não seja um comportamento adequado num primeiro momento. Então eles não acreditavam. A Siciliano, então, não queria nem ouvir falar!
P/2 – Todos eles hoje estão na internet. Saraiva...
R – Não, não é que estão na internet. Se eu entrar agora no site da Saraiva... Porque a Saraiva é uma empresa de capital aberto, então ela é obrigada a ter aquelas demonstrações financeiras e demonstrações texto para os acionistas. Você sabe quanto por cento, hoje, da venda da Saraiva é via internet?
P/2 – Quanto?
R – 13 por cento.
P/2 – 13 por cento.
R – Hoje, quatro anos de operação. A Saraiva tem 115 anos de loja. Treze por cento! Aí eu vou te fazer uma pergunta: qual é o lucro que as lojas da Saraiva tiveram no último trimestre? Nenhum!
P/2 – Nenhum?
R – Zero, está no prejuízo. Está no prejuízo nos últimos três semestres. Internet: lucro, geração de caixa.
P/2 – Só uma outra questão: quer dizer, a Amazon era uma grande ideia que se transformou num grande negócio, mas até se transformar, exigiu aporte ________________ de dinheiro. No teu caso, acho que foi uma grande ideia que se tornou logo um grande negócio, quer dizer, a maturação foi mais rápida.
R – É, mas teve um ponto de consolidação dela, que é outra coisa também que hoje virou uma coisa completamente moderna, que foi o seguinte: qual foi o momento da crise mais profunda da Amazon? A Amazon começou conforme eu descrevi a vocês: estoque zero! Era
just in time. Você fazia o pedido... Era exatamente o que eu fiz aqui. Chegou um momento que eles cresceram tanto que tomaram a decisão de: “Não dá mais para ser assim, temos que ter estoques”. Então em 1999 a Amazon construiu um armazém gigantescos e passou a carregar estoques, como a gente chama. Foi aquele momento de risco total, porque um grande investimento foi feito. O grande prejuízo que ela teve foi a construção dessa estrutura de distribuição. Portanto, eles, para continuar sendo virtuais na relação com o usuário, mas deixaram de ser virtuais na relação com a produção. A preocupação é funcionar como qualquer outra livraria. Esse dilema começou a se a apresentar um pouco para mim, mais ou menos na mesma época, mas eu continuei insistindo no projeto virtual. Cheguei a ter uma frota de Kombis aqui no Rio. Era um sistema que tinha que funcionar à perfeição, porque tinha seis, oito, dez Kombis com motoristas, radinho, recebiam por radinho os pedidos, passavam nas editoras, tinham os circuitos, eles iam passando. Eles nem sabiam os livros que iam tirar. Chegavam na editora, diziam: “Book Net”, aí tinha lá um pacote, ele metia na Kombi, levava para o centro de distribuição, o centro de distribuição recebia, montava o pedido e os correios e levava.
P/1 – Quanto tempo demorava para chegar um livro na mão do cliente final?
R – No final?
P/1 – É.
R - No momento que a gente estava completamente organizado, no Rio 24 horas e fora do Rio 48 horas. À exceção de praças muito longe, que eram 72 horas. Aí aconteceram duas coisas que consolidaram e me permitiram ser uma empresa rentável e lucrativa já naquele momento. O primeiro deles: quando esse problema do estoque começou a ficar crítico, deu-se o seguinte: em 1999 não! Em 1997 eu sou procurado pela primeira vez por uma empresa interessada em se associar, ou comprar, o que seja, que foi uma editora chamada Ediouro, que é uma das grandes editoras do Rio de Janeiro. E o principal executivo, seu principal acionista que era o Jorge Carneiro, pessoa que eu gosto muito, eu tenho amizade com todos os editores, e mantenho elas até hoje, é um setor onde eu me sinto muito bem, muito confortável. Aí o Jorge vem me procurar: “Que negócio é esse de Book Net?”. Conversa daqui, conversa dali, ele começa a discutir comigo a possibilidade de ser sócio da empresa. A Ediouro tinha uma cadeia de livrarias, chamada Curió.
P/2 – É.
R – Eram 20 e tantas lojas no Rio, São Paulo, Belo Horizonte e não sei aonde. Essa conversa vai andando e aí estudos, projetos, advogados, não sei o que, a coisa estava andando, ia ser meu sócio. Quando, de repente, um dia o Jorge me liga e diz assim ó: “Olha Jack, infelizmente nós contratamos uma auditoria aqui, e uma consultoria nova, americana, que chegou a conclusão de que a empresa tem que ter foco, e o nosso foco é a edição! Então nós vamos sair do mercado livreiro”.
P/2 – Fecharam as lojas, né?
R – É. “Então eu não vou ser livreiro, e eu não posso mais ser seu sócio. Obrigado e tal”. Desligou o telefone. Naquele dia eu fui dormir pensando naquilo. No outro dia de manhã peguei o telefone e liguei para o Jorge: “Vou dar um pulo aí, conversar com você!”. Ele mora lá em Bonsucesso, perto lá da Nova Holanda, num lugar complicado. Fui lá. Ele disse: “Olha, vamos fazer o seguinte: eu já conheço...” – Porque nessa conversa, ele já conhecia toda a economia e eu também já conhecia a economia das lojas dele para saber o quanto ele faturava, o quanto ele teve que abrir informação para negociar. – “Então vamos fazer o seguinte: vamos inverter. Eu compro as tuas lojas” “Mas como?” “Eu compro! Não vou comprar todas, mas eu quero prioridade para comprar aquelas que eu quiser, e compro já!”. Porque ele tinha uma decisão de vender imediatamente. Era para sair do mercado imediatamente. Conclusão: de comprador, de vendedor de uma empresa, passei a comprador. E num prazo de um mês, no máximo, de negociação, eu comprei sete lojas dele.
P/1 – Comprar sete lojas significava loja, livros, estoque, ponto...
R – Tudo, tudo!
P/1 – O nome?
R – Não, a única coisa que eu não quis foi o nome, porque eu tinha o meu nome. Então, o que é que aconteceu? Foi uma compra extremamente vantajosa, em boas condições, porque eles queriam se ver livres daquele negócio muito rapidamente, e foi uma decisão acertada, porque de lá para cá eles melhoraram muito! E da noite para o dia eu passei a ser um livreiro físico, já com uma cadeia estruturada. Eu não fiz uma lojinha, uma livrariazinha, eu comprei sete lojas importantes.
P/2 – Com esse nome Book Net?
R – E pus o nome Book Net e obedeci a diagramação das lojas: modernas, com outra cara. O que aconteceu com isso? Primeiro, meu faturamento subiu barbaramente. Segundo, a visibilidade da empresa cresceu também muito, mas o mais importante disso é o seguinte: eu resolvi o problema do estoque sem ter estoque. O meu estoque era o das livrarias. Eu não tinha muita preocupação da livraria vender muito, e vendia! Tinha loja na... A loja na Fashion Maura é excepcional. A loja do Plaza Shopping em Niterói era uma loja muito boa. Mas eu passei a ter um estoque, que era um estoque que estava em contato com o público, nas condições de contato com o público, e não nas condições de almoxarifado. Quando o pedido entrava, eu tinha todo o controle do que tem nas lojas. Eu primeiro pegava livros nas lojas, o que não tivesse nas lojas é que eu pegava nas editoras. Isso agilizou minha entrega, agilizou tudo, e aí a empresa se consolidou. A compra das lojas foi uma consolidação muito forte, muito forte, a marca ficou muito visível. E o segundo fato que consolidou muito é a entrada num... – E aí só a informática poderia permitir mesmo – a entrada no mercado, que era um mercado – pouca gente conhece –, que é o mercado de venda de livros para instituições. Em 1998 houve uma enorme concorrência de compra de livros, só livros universitários, livros científicos, técnicos, feita pela Fapesp – que é a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo – para abastecer todas as universidades de São Paulo. Eles compravam e abasteciam as bibliotecas das universidades. Só livros importados, só livros em inglês, francês, em alemão, uma loucura! Eram 96 mil livros que eles estavam comprando, num orçamento total de, se não me falha a memória, quatro milhões de dólares, total que eles compraram. Uma verba que eles receberam do Governo de São Paulo. Eu vi aquele edital no jornal, e isto para mim é um dos fatos que mais me impressiona na minha vida como empresário. Eu não conheço ninguém na Fapesp, nunca falei com ninguém na Fapesp, então no anúncio do jornal dizia o seguinte: “Interessado retirar disquete com a lista dos livros e com o ISBN [International Standard Book Number] na portaria da Fapesp”. Eu mandei uma pessoa à São Paulo, eu tinha o funcionário lá. Pegou o disquete, me cadastrei na Fapesp... Eu já era cadastrado, mas me cadastrei como fornecedor pela internet. Peguei aquele disquete, botei no bolso, fui para o Galeão, peguei um avião, fui para Cleveland. Naquela época eu tinha um acordo, a Book Net vendia livros estrangeiros, e vendia muito bem, e meu acordo não era com a Amazon, porque a Amazon não quis fazer acordo com a gente, era com uma empresa chamada Book Stacks, que era uma livraria americana, antecedeu, inclusive, a Amazon, começou antes que a Amazon, mas não teve o sucesso comercial que Amazon teve. Era uma livraria virtual que... Ali numa cidade, Cleveland, nos Estados Unidos. Peguei o avião, fui para Nova York, agora peguei outro aviãozinho e fui para Cleveland. Cheguei lá, bati na porta, o dono me atendeu, o John Stacks, era um rapaz também, enfim... Eu falei para ele: “Eu vim aqui”. Ele tomou um susto, um frio danado, aquele lugar lá faz um frio infernal! Eu digo: “Olha, a questão é essa: tenho aqui 96 mil livros que a gente pode vender para o Brasil”. “Mas como? O que é isso?”. Eu digo: “Está aqui o disquete, eu quero que você faça o seguinte: dentro do teu estoque, entra no teu sistema com estes 96 mil ISBN, que é o registro do livro, e vê o que é que você tem, vê qual é o preço que você tem para esses livros e eu vou esperar você me devolver este disquete, ou outro. Amanhã de manhã eu vou-me embora para o Brasil”. No dia seguinte ele me devolveu aquilo. Dos 96 mil ele tinha 50 e tantos mil disponível. Eu peguei o disquete, botei no bolso e voltei para o Brasil. Cheguei aqui, peguei aquele preço, botei uma margem, que era a nossa margem para importado, não sei o quê, reproduzi aquele disquete com aquele preço em cima e mandei o mesmo rapaz entregar na Fapesp. E desses livros eu ganhei 20 e tantos mil livros, quase um milhão de dólares! E foram importados direitinho, que eu entreguei à Fapesp. É inacreditável! (risos) Num país onde você fala de Governo, incompetência, corrupção e mal...
P/1 – Funcionou...
R – Eu não conheço ninguém, nunca vi ninguém na Fapesp. Mentira: fui uma vez lá, para assinar o contrato. Para assinar o contrato eu tive que ir lá. Numa rua alta lá em São Paulo. Uma pessoa me atendeu com o contrato e eu assinei. É inacreditável isso, né?
P/2 – Incrível.
R – E aí eu concorri com os tradicionais vendedores de livros técnicos, científicos.
P/2 – Tradicionais.
R – Tradicionais, tipo ao Livro Técnico...
P/1 – Ah é!
R – Fundo de Cultura... Não sei o que... E quando eles viram a minha proposta? Eles levaram um susto!
P/2 – Quem é esse cara?
R – “De onde é que ele apareceu?” E meu preços eram muito bons! Então essas duas coisas: o conjunto de lojas e as vendas para a Fapesp, que aí eu percebi que tinha um nicho, e aí passei a atender, botei um setor na empresa que só cuidava disso, que era ver universidades, títulos de pesquisa. Logo depois a Fio Cruz fez uma compra grande, nos fez uma licitação. Tudo era... Tudo licitação, nós ganhamos, fornecemos. Depois fornecemos livros para a Universidade de Brasília também. E aí esse setor era um setor da empresa pouco conhecido, que a imprensa pouco explorou, e que tinha uma rentabilidade fantástica, e que só era possível mesmo... Depois já não precisava nem mais o disquete, daí para frente...
P/1 – Você...
R - Eu estabeleci um sistema com a Book Stacks de uma área privada, quando eu tinha necessidade de qualquer cotação eu entrava, pegava o preço dele e não podia abrir isso para todo mundo, para mim ele abria porque a gente era correspondente e eu fazia minhas cotações. A cotação era feita em dois cliques. Preço lá, preço aqui, mais margem, preço.
P/1 – Só você que fazia isso? Aqui no Brasil, por exemplo, de...
R – Virtual?
P/1 – Virtual.
R – Virtual só tinha eu! Aí em 1998, três anos depois, a Saraiva aí resolve fazer um site, a Siciliano resolve fazer um site, e começaram a entrar no mercado. Mas em 1998 eu já estava consolidado no mercado, com uma imagem pública muito simpática, a empresa já estava muito forte, e 1998 foi o ano que eu vendi a empresa.
P/2 – Pois é, você ia vender para Ediouro, acabou comprando coisa da Ediouro e acabou vendendo... Foi uma oferta irrecusável? Você já estava pensando em outros negócios, internet?
R – Não, não. Eu tinha duas preocupações: em primeiro lugar, quando... Eu nunca acreditei na ideia − e depois a vida me deu razão −, de que o lugar onde a tecnologia ia pousar eram as empresas “ponto com”. Quer dizer, eu não tenho dúvida nenhuma, e acho que a tecnologia ela é o transformador do mundo. Por exemplo, eu acho hoje que é o que faz o mundo se mover e mexer, e que faz as transformações sociais, mais do que qualquer outra teoria...
P/2 – Mais do que luta de classes...
R – Mais do que luta de classes, exatamente. Ela inclusive destrói a ideia tradicional de classe. Quando a Saraiva e a Siciliano se lançaram no mercado, eu não tive com eles uma relação de presunção, de dizer: “Eu já estou aqui no mercado há três anos, eu estou muito na frente deles, eles não vão ter sucesso nisso!”. Eu nunca achei isso! Eu tinha certeza que em quatro, cinco, seis anos, eles iam ter uma presença no mercado importante, porque são empresas tradicionais. Tem gente competente lá. Eles só não estão tão atentos à novidade. O que é que aconteceu com a tecnologia nesses anos? Ela deixou de ser inovação, passou a ser mainstreaming, passou a ser centro da sociedade, não é? Quem são os grandes bancos virtuais do Brasil? O Bradesco, Itaú, Unibanco, e nenhum daqueles se lançou a cinco, seis anos atrás com a ideia de serem bancos virtuais novos apenas na Internet. Então eu já achava que não ia resistir muito tempo a essa presença deles, e ao mesmo tempo já tinha recebido duas propostas de associação, coisa que também não era do meu perfil, nem também achava que naquele momento seria bem sucedido de fundos estrangeiros, o modelo clássico que aconteceu com algumas empresas do Brasil e que depois os projetos não andaram, e essas empresas perderam esse dinheiro que haviam investido aqui e acabaram em situações delicadas com relação aos investidores. Foi quando eu recebi uma proposta que era: “Está aqui o dinheiro e amanhã de manhã você vai embora para casa!”. Então eu medi aquilo, pensei, e era uma proposta interessante, do ponto de vista financeiro, muito interessante. Era um retorno para aquilo que eu tinha investido, muito significativo. E achei que, também por um outro lado, a empresa ia ter continuidade, portanto, vender a empresa era um ganho para eles e para mim. E eu queria muito que a empresa continuasse, e continuasse líder no mercado. Então o Submarino é hoje líder do mercado, continua sendo. É a maior empresa de comércio virtual do Brasil, ameaçada agora pela operação da Americanas e tal, mas continua... Virtual é a maior, disparada! Não tem nenhuma próxima. E para a história e para a vida eu sou a pessoa que criou o Submarino, quer dizer, eu ganhei duas vezes com isso: ganhei com a venda e ganhei com o papel que eles fizeram, enorme, investimento. E a empresa continua vivendo, então eu acho que foi no momento certo, foi no momento adequado. Lamento muito, porque a minha vida é muito ligada ao livro, eu tenho fascínio pela leitura. Eu leio seis, sete livros por semana! É uma coisa normal: eu tenho, em casa, quase 20 mil livros, não tenho onde botar livro. Eu sou um leitor compulsivo, um comprador de livro compulsivo. Leio tudo sobre tudo, sobre qualquer assunto que me chame a atenção, que eu acho que pode ter uma correlação aqui ou acolá com alguma coisa que me interessa. Mas na venda da Book Net, no contrato, eu fico impedido de trabalhar, de vender, de comercializar livros – pela internet ou não – durante cinco anos. Então isso para mim é como se eu estivesse em Alcatraz.
P/1 – Mas está acabando...
R – Está acabando, exatamente. Acaba em maio do ano que vem. Então eu já estou aí com vários projetos, várias ideias e muita comichão de voltar para esse mercado. Eu me envolvi em dois projetos...
P/2 – Logo depois.
R – Logo depois, um mês, exatamente, depois. Na verdade um deles já estava sendo gestado antes, e outro que começou a ser gestado logo em seguida, que foram dois sites. Um chamado Valeu, que era um site leilões, que foi um fracasso absoluto, por vários motivos! O segundo um site chamado Ticks, era um site de venda de ingressos que fez um grande sucesso, que continua existindo com outro nome e que eu vendi também para o meu sócio, uma coisa também que pouca gente sabe dessa história. O Valeu atribuo o insucesso dele a três coisas: primeiro lugar, que o site de leilão no Brasil não... Nenhum deles deu certo. É uma coisa estranha, mas faz parte da cultura brasileira.
P/2 – E numa certa época existiam vários.
R – Existiam vários! Mais de 20.
P/2 – Mais de 20.
R – Mais de 20. Então foi uma coqueluche, acho que um pouco pelo fato de que eu fiz... Aquele foi um momento em que estava muito visível. Duas semanas depois de vender a Book Net eu apareci na capa da Exame, dei lá uma entrevista para a Exame, que era para ser uma entrevista, enfim, normal, quando, na quinta-feira eu saio de casa e olho na banca, vejo lá a capa da Exame, outdoor pela cidade. Eu acho que aquilo tudo naquele momento foi um impulsionador destes projetos todos. Muita gente veio para o mercado impulsionado por aquela... Um conjunto de coisas acontecendo, mas aquilo foi também um estimulador. E como ali já dizia que eu estava fazendo um projeto de leilão, de repente apareceram mais de 30 sites de leilão! Mas nenhum deles deu certo. Alguém deveria ter dado... Eu atribuo o insucesso, em primeiro lugar, a uma ausência do histórico cultural do brasileiro de comprar coisas usadas, ao contrário dos americanos. Hoje o site no mundo mais bem sucedido e o melhor exemplo de comércio eletrônico no mundo é o eBay, o eBay é hoje uma potência econômica!
P/1 – Na Europa, Estados Unidos, se compra muita coisa usada.
R – O eBay é mais forte que o Walmart hoje! É uma coisa que muito pouca gente está acompanhando esse processo, pouca gente, mas no Brasil não deu certo. Talvez esse lado cultural. No meu caso, depois de alguns meses de operação do leiloeiro eu me percebi entregando a ilustração do site para a equipe que tomava conta dele, que era ótima! E aí eu percebi o seguinte: eu não tinha nada haver com aquilo que ali estava. Aquilo não me... Vender uma panela, vender um fogão, vender um binóculo...
P/1 – Vendia livro?
R – Vendia livros, alguns, vendia.
P/2 – Você acha que o fato de não ser você que estava vendendo, você está só possibilitando vendas e compras...
R – Não, acho que da minha parte foi um desinteresse por aquilo que era vendido.
P/2 – Pelo que era vendido.
R – Pelo que era vendido.
P/1 – Porque o livro era a tua paixão!
R – Era. A minha vida inteira fui vender informação, cultura e conhecimento. Essas eram as três coisas que eu passei a vida inteira vendendo. Eu sou um comerciante dessas três coisas. Se você olhar, desde lá do início... Aí de repente eu tenho um site que vende... O primeiro acordo que a gente fez foi com a DeMillus, que vendia pontas de estoque de calcinha, sutiã. Então não tinha nada a ver com... Não me trazia nenhuma emoção, nem tinha... Aquilo havia uma equipe, a equipe tomava conta, estava indo equilibrado e tal, mas não me trazia nenhum retorno do ponto de vista pessoal. Então eu acho que a soma destas duas coisas: o fracasso geral do mercado nessa área, com...
P/2 – Isso foi já em 2000, 1999?
R – Isso foi no final de 1999 começo de 2000. E aí eu tomei rapidamente a decisão de fechar o site, o que permitiu que o prejuízo fosse pequeno. Eu abortei o projeto muito rapidamente. O segundo projeto foi o Ticks, que foi um site de venda de ingressos para espetáculos teatrais. Espetáculos de todo o tipo, que teve um sucesso enorme também, muito grande! Por ele tinha um caderno cultural, eu tinha uma equipe de jornalista que trabalhou conosco lá. E teve o grande feito do Ticks, foi... Nós montamos, gerenciamos todo o sistema de venda de ingressos do Rock In Rio, o último aqui. É coisa que poucas pessoas... Nenhuma empresa de internet no Brasil teve tantos funcionários quanto o Ticks teve. Porque na construção, no momento de pique dessa operação do Rock In Rio... Porque não era... O Rock In Rio era o seguinte: nós montamos 40 stands no Brasil inteiro com gente vendendo ingresso, tudo online, com controles. Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Campinas, e não sei mais aonde. As bilheterias lá na cidade do Rock eram nossas, nós é que montamos. Toda a estrutura tecnológica nós montamos, tudo via internet, com relatórios online, com tudo, tudo o que a tecnologia dá de direito! Nós chegamos a ter quase mil funcionários nessa operação. E do ponto de vista financeiro, foi um sucesso enorme. O resultado, para a empresa, foi bom, muito bom! Chegou o momento que eu achei que o meu perfil como pessoa dentro da internet estava muito mais ligado a essa ideia de discutir as ideias da tecnologia, de dar aulas, eu já tinha tido vários... Hoje eu dou aula na Coppead, aqui no Rio de Janeiro, faço parte do Conselho Consultivo da Coppead aqui; dou aula na Fundação Getúlio Vargas, o ano passado fui Paraninfo das turmas de Comércio Eletrônico da Fundação, então isso foi criando... Eu faço conferências regulares para o CEBRAE, para diversas entidades. Então esse lado da história foi me chamando, então eu cheguei à conclusão que já não era mais hora de eu ter um site, ou outro site, então eu passei as minhas quotas dessa empresa Ticks para os meus sócios, e eles continuam tocando a empresa, chama-se
Ticketronics, continuam aí no mercado...
P/2 – Ticketronics?
R – É, é. No Rio de Janeiro tem uma cadeia grande de teatros que tem na bilheteria os ingressos Ticketronics, e eles continuam tocando a empresa, acho que com bastante sucesso.
P/2 – Você acha que é uma questão cultural também ou de comprar coisa usada em leilão, ou agora comprar ingresso sem pensar naquela coisa: “eu vou lá, será que vai ter fila?” Você acha que também tem uma espécie de um gap cultural que atrapalha certas iniciativas e que talvez não atrapalhe as mesmas iniciativas nos Estados Unidos e na Europa?
R – Acho que sim! Na hora do ingresso... Os ingressos vendidos online é cada vez maior, você tem três empresas fortes no mercado.
P/2 – Quer dizer, está mudando, então?
R – Está mudando. Você tem uma empresa chamada Ingresso ponto com, que vende ingresso só para cinema. Tem uma outra que está indo muito bem, está indo muito bem, e cada dia vendendo mais.
P/1 – Mas a que você atribui isso? Eu acho que é interessante pensar...
R – No caso do cinema?
P/1 – Do cinema, por exemplo.
R – A facilidade do cinema é você não entrar em fila! No caso do ingresso __________ você imprime o ingresso em casa. Então você já sai de casa com o ingresso no bolso. No caso da Ticketronics e no caso da Ticketmaster, que é uma empresa americana que veio para o Brasil, ligada a esse grupo (SEE?), que é dono de vários teatros em São Paulo e aqui no Rio, é dono da antiga ATL Hall, que agora é deles, é uma empresa americana com muito sucesso lá, que veio aqui e implantou o sistema deles aqui nos seus teatros, prioritariamente, e em alguns outros. Estão vendendo muito! No caso do teatro, a grande vantagem é você comprar antecipadamente, e no caso do teatro a venda antecipada é mais valorosa ainda por causa do lugar marcado.
P/1 – Do lugar, exatamente. Acho que é...
R – Isso é precioso! O Ticks você entrava, via o mapa do teatro, via o conjunto de cadeiras, via o que já estava vendido, clicava em cima daquela poltrona e aquele ingresso era seu! O ingresso não era impresso em casa porque tinha o código de barras. Você recebia o ingresso, o ingresso era entregue em casa. Exatamente como a Book Net fazia. Era um sistema de entregar os ingressos em casa. Então, nos últimos dois anos, o que é que eu fiz? Me dediquei muito a essa coisa de palestras, consultorias, e tive um convite, que eu aceitei, de uma empresa chamada Ideias Net. A Idéias Net é uma empresa que foi criada em final de 1999, começo de 2000, nessa hora do boom! Foi um conjunto de empresários do Rio de Janeiro e São Paulo que se juntaram, criaram essa empresa, cento e tantos sócios que conseguiram num prazo assim, recorde. Em três meses abrir o capital da empresa aqui no Brasil na Bolsa de São Paulo. Então a Ideia Net é a única empresa brasileira de tecnologia, de internet com capital aberto, não lá... Na NASDAQ, como é o sonho de todo mundo do final da década.
P/2 – Alguma empresa brasileira abriu capital na NASDAQ?
R – Não.
P/2 – Teve projetos. UOL, né?
R – UOL. A UOL perdeu o pé por dois meses, e aquilo foi fatal para eles! Foi fatal para eles! Eu procurei ajudar um pouquinho, na época. A NASDAQ tem uma representação aqui no Brasil, e o presidente da NASDAQ era muito meu amigo. Ele, na época, me chamou lá e pediu para eu ajudar, se eu podia empurrar aquilo. Mas era muito difícil, era uma empresa... Uma associação Abril e Folha, havia ali alguns conflitos, e perderam tempo! Então a Ideia Net abriu... é uma empresa de capital aberto, é a única empresa no Brasil com esse caráter. É um fundo que aplica recursos em empresas de tecnologia. Ela começou, parece que, com 18 empresas, e em três meses eles compraram 18 empresas. Participações em 18 empresas.
P/2 – Ela ficou com participação majoritária sempre?
R – Algumas majoritárias, outras minoritárias, depende do projeto. E aí abriram o capital, lançaram-se nas ações e bolsas e, enfim, se instalaram no mercado. Passou pelas dificuldades naturais de 2000, 2001, e aí num certo momento me convidaram para fazer parte do Conselho de Administração da empresa, como uma espécie de consultor privilegiado. E eu aceitei o convite, fui para lá. Acho que podia ajudar um pouquinho reduzindo um pouquinho as expectativas da gente (risos), transformar em... A minha contribuição foi em dizer: “Olha, é outra coisa! Vamos abaixar a bola porque o jogo é outro”. E a empresa se consolidou. Hoje ela está com 11 dos 18, 11 projetos, sete foram eliminados. Está indo bem, está começando a equilibrar a grande maioria dos sites, alguns já rentáveis, e nos últimos dois meses a Ação dela aumentou 100%.
P/1 – Nossa!
R – 100%! Então o que é que eu faço, hoje? Eu faço parte do Conselho Administrativo da Ideias Net, eu faço parte do Conselho Consultivo da Coppead, que é um conselho criado pela Coppead, são sete empresários ex-alunos da Coppead e um convidado − porque, enfim, decisão deles −, que sou eu. Então o presidente da ESSO, o Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, que por coincidência foi ex-aluno e faz parte do conselho, e tenho, portanto, um pé na Academia. Tenho ajudado eles em projetos dentro da Coppead, projetos de inovação, criar novos cursos. Dou aulas regulares lá, para todas as turmas lá. E faço consultorias especialmente para um organismo da ONU chamado (UNACT _____ force?), que é um organismo da ONU [Organização das Nações Unidas] encarregado de políticas de tecnologia para o mundo inteiro, como se fosse a UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], a FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo] para a tecnologia. Essa área, no Brasil, o coordenador disso no Brasil é uma pessoa que eu reputo como a mais importante nessa área no Brasil, que é o Tadao Takahashi, uma pessoa que criou a estrutura tecnológica da internet no Brasil. Ele é um cientista de Campinas, foi o primeiro Presidente do Comitê Gestor da Internet no Brasil, e ele é o homem da construção da internet no Brasil. Na verdade, quem entende desse negócio, no Brasil, é ele! E possivelmente estou criando um projeto novo junto com ele, acho que ano que vem vou lançar esse projeto. Porque é um projeto muito grande, com financiamentos internacionais, projetos para o desenvolvimento de tecnologias de massa, internet, projetos de inclusão social. É um projeto muito ambicioso, com apoios internacionais diversos, do MID, da Comunidade Europeia, da... E acho que vai ser um outro projeto interessante.
P/1 – Ah é?
R – Já estou falando muito aqui...
P/1 – Pois é.
P/2 – Pois é.
P/1 – Pois é, a gente está ouvindo, né?
R – Acho que esse é o próximo passo.
P/1 – A gente tinha feito aqui uma perguntinha, aqui no roteiro: você passa, assim, de vender serviços e produtos, e começa... Está numa fase de vender ideias, né? Como é que é isso?
R – Olha, eu acho que é um movimento natural que eu fiz a vida inteira. Quer dizer, se você olhar bem, eu sempre vendi ideias e produtos. Lá, o Museu Didacta, lá atrás, ninguém comprava uma reprodução de uma obra do Picasso, do Rembrandt, ou do Michelangelo, comprava a ideia de que numa escola de Segundo Grau era muito importante ter um mini museu, e que o contato com aquele tipo de informação era importante para aquela escola e para o desenvolvimento daquele menino. Então poucas vezes na vida, em alguns desvios, eu me dediquei exclusivamente a vender produtos. Quer dizer, a ideia de vender conhecimento em primeiro lugar. E inovação, uma coisa... Eu só percebi que... É engraçado, durante muito tempo na minha vida eu tinha a sensação do seguinte: havia sempre no mercado de trabalho e entre os empresários a ideia de que a minha reta era o caminho, e que o produto era o centro da economia, então eu sempre me achei um pouco fora desse processo, um pouco à margem, e sempre lutando muito para impor aqueles projetos, nos quais eu estava envolvido. De repente o tempo me alcançou ou eu alcancei o tempo... Não sei qual dos dois, mas de repente a história vira, não é? E o que eu fazia passou a ser o paradigma daquilo que deve ser feito! Enquanto que aqueles que, por exemplo, as questões de ligação com o mesmo projeto de trabalho a vida inteira. Antigamente quem ficava 30 anos numa empresa era o paradigma do profissional adequado. “Não, ele dedicou 30 anos de sua vida aqui àquele projeto”. Hoje, quem dedica 30 anos de sua vida a um projeto é um, enfim, é um equívoco completo! Nem as empresas querem mais quem se dedique 30... Isto quer dizer que ali não tem nenhum desejo de inovação, de mudança, de renovação de conceitos. Então foi um pouco isso, o tempo me alcançou ou eu alcancei o tempo, não sei bem o que é que houve. E esse conjunto de coisas que eu fiz hoje me serve muito como referencial, porque acertei, errei, errei, acertei. Desde lá de trás, desde o Índice, desde 1970. Eu, hoje, uma coisa que eu faço muito é consultoria para empresas, que faz parte do meu trabalho ir para uma reunião de diretoria ou de gerente, ficar sentado ouvindo uma reunião e em certos momentos dar opiniões, sugestões ou avaliações sobre como aquilo está sendo feito na empresa. E faço isso com muito prazer, eu faço isso com muito gosto. E tenho procurado ajudar da melhor maneira que posso. Agora, sempre... Eu estou sempre procurando onde é que se pode inovar mais ainda. Quer dizer, eu passei do site Ponto Com para a ideia de que a internet tinha que ser, tinha que estar no centro da economia, quem tinha que usar a internet eram os bancos, as indústrias, o setor rural, o setor hoteleiro, as empresa aéreas. E isso hoje é uma realidade no Brasil! O uso da internet nos bancos no Brasil é uma coisa fantástica, o sistema bancário mais avançado do mundo, mais do que os americanos! Vem gente aqui aprender isso. Há missões oficiais de bancos, nesse momento tem uma missão do Banco do Líbano! Os bancos do Líbano querendo comprar tecnologias dos bancos brasileiros, querendo aprender como é que se faz para vender, para usar tecnologias, usar a internet em bancos. E eu tenho consciência de que eu sei que ajudei muito nisso, porque é quase uma... O pessoal brinca comigo que eu sou o profeta, que eu fico fazendo catequese. É isso mesmo! Você vai, fala, mostra. E agora eu tenho mostrado muito esse resultado na área de varejo. Varejo brasileiro hoje depende da internet, e as pessoas não estão falando isso inclusive na imprensa. Essa mesma coisa que eu te falei da Saraiva, as Lojas Americanas, 15% do que vende é pela internet.
P/1 – Jack, eu queria que você fizesse uma avaliação, uma micro-avaliação do mercado do comércio virtual, quer dizer, nestes teus quase 20 anos de experiência. Quer dizer, o que mudou? Assim, mudou o perfil do consumidor, a internet está mais acessível...
R – Eu acho que esse processo tem, no Brasil...
P/1 – Se compra mais pela internet?
R – Acho que sim. E eu diria que há dois vetores atuando de maneira diferenciada para chegar a um mesmo objetivo. O primeiro deles é esse que você tocou, que é o seguinte: o crescimento das compras pela internet é constante, permanente, e o número de instituições de grande porte utilizando a internet no seu sistema de venda cresce a cada dia, e com resultados cada vez maiores. Ponto Frio, Magazine Luiza, Lojas Americanas, Saraiva, estas organizações hoje dependem da venda de internet para manter o mercado que têm. O que é uma coisa impressionante! Nas empresas de porte médio, conheço pelo menos uns 200, 300 casos de sucesso. E tem uma área inacreditável que é a seguinte: grande parte dos antiquários do Rio de Janeiro vivem hoje sabe de que? De vender peças no eBay. Há mais de 300 empresas brasileiras que hoje faturam mais no eBay do que no seu comércio de loja.
P/2 – E os compradores deles são americanos?
R – São americanos. Se você for hoje no prédio na Siqueira Campos, aquele Shopping dos Antiquários, entre em qualquer loja e faça essa pergunta. Eles têm até preocupação em responder. Em geral, para cada real que vendem na loja, vendem três ou quatro pela internet. Portanto, ela começa a ter um papel cada vez mais irrefreável. É tão impressionante o número de usos da tecnologia... Por exemplo, há duas semanas, três semanas, eu fiz um Ciclo de Palestras no Paraná, no CEBRAE. Então eu fiz uma palestra numa cidade chamada Cascavel e depois fiz outra numa cidade chamada Pato Branco. Cascavel é uma cidade lá quase no final do Brasil, quase Foz do Iguaçu, centro da produção de soja, de grãos, fortíssima. Eu imaginei que chegaria lá e ia encontrar um público... Primeiro, pequeno; e segundo, sem nenhuma informação. Tinha mais de 300 empresários na sala, em Cascavel. Todos eles absolutamente informados e atualizados sobre o uso de tecnologia, e todos usando a internet para compra, ___________, o chamado B2B, o be to be, abastecimento de seus negócios. No final, na saída, um lojista da região, o maior fornecedor de material de eliminação, de construção, um empresário com seis ou sete lojas na região, veio me fazer uma consulta, veio me mostrar o site dele, que ele lançou o site tem um ano e que agora ele está percebendo a importância que o site tem para ele, o que ele fazia para aumentar mais as vendas que estão crescendo a cada dia. Isso lá em Cascavel. O segundo movimento que eu acho que contribui muito para esse crescimento da internet no Brasil é a compreensão que as instituições públicas no Brasil tiveram da importância da internet. Esse é o movimento de muita catequese, de muita discussão, de muito convencimento. Mas o setor público no Brasil que é extremamente importante na nossa economia, tem um peso muito significativo, mesmo depois de todo o processo de privatização, ele aderiu à internet com tal entusiasmo e força, que ele sozinho é capaz de produzir resultados que às vezes as pessoas não percebem! Por exemplo, a internet... Imposto de Renda. Em quatro anos o papel foi eliminado do processo de imposto de renda no Brasil. Aquilo que alguns imaginavam que ia acontecer no livro não aconteceu! Aconteceu com a mais delicada e mais individual informação sigilosa que nós temos, que é o imposto de renda. Hoje, há 15 milhões de declarações sendo feitas...
P/1 – Porque se confia nisso, não é? Eu acho que tem uma relação.
R – Então o que aconteceu? O uso da internet pelo Governo Federal, pela Receita Federal levou os usuários a perceberem a importância e a confiabilidade do e-mail. Neste momento, 15 dias atrás, foi tomada uma decisão que vai ter uma repercussão sobre o mercado de internet, sobre o uso da internet, incalculável. Maior do que dez campanhas públicas sobre inclusão digital, que é o seguinte: foi aprovado o Decreto, uma medida provisória chamada Decreto 107, que o presidente assinou agora, sobre o que eles chamam de novo REFIS, que é o pagamento de impostos atrasados por empresas e agora também por pessoas físicas. Que é um processo... Vamos supor que você deve qualquer imposto. Fundo de Garantia, INSS, Imposto de Renda, todos os impostos, PIS, COFINS. Se você é empresa, se você é pessoa física, você vai ter o direito de pagar esses impostos, se eu não me engano, em 150 vezes, 120, não me lembro do projeto final, mas enfim, por um número longo de meses, sem cobrança de juros, com uma correção muito pequena. A ideia disso qual é? Duas ideias: primeiro, permitir que as empresas voltem à atividade, aqueles que estavam com dificuldade de pagar seus impostos; essa é a principal ideia. A segunda ideia é um recolhimento de impostos que supostamente só vai ser cobrada por ações, que vai demorar muito e que podem reforçar o caixa do Tesouro. Há 15 dias o Governo Federal tomou uma decisão que é a seguinte: você só entra no REFIS, só paga seus impostos atrasados, só vê o seu saldo devedor e só se compromete com o pagamento pela internet. Não tem papel!
P/2 – Não tem mais balcão de repartição.
R – Não, não tem. Sabe o que isso quer dizer? Que o cálculo é o seguinte: há mais ou menos 20 milhões de empresas com débitos, e mais de 10 milhões de pessoas físicas. São 30 milhões de pessoas e suas empresas que vão ser instados a utilizar a internet para regularizar a sua vida fiscal. Imagina a repercussão disso na construção mental de empresas e de pessoas!
P/1 – Mas exatamente. Você usou a palavra “instadas”. Quer dizer, no fundo, mas as pessoas...
R – Isso é inevitável.
P/1 – Pois é.
R – Você quer ver. Por exemplo, eu comparo isso à alfabetização.
P/1 – Ah é?!
R – O processo de alfabetização que o mundo viveu a partir de Gutenberg, a partir do século XIV. Foi feita da mesma maneira! Se se observar com atenção, toda a preocupação nossa com as taxas de alfabetização e com a alfabetização como processo social... Porque é muito importante, a gente persegue isso há séculos, possivelmente uma parte grande da população poderia exercer seus ofícios e trabalhar sem o uso da linguagem, certamente 20 a 30% da população absorve a ideia da linguagem escrita, da sociedade gráfica, mas não a utilizam no seu dia a dia. Então é importante que assim seja. E esse é um processo induzido, esse é um processo socialmente induzido. Há uma política do Governo. Eu acho, por exemplo, que o Governo da União deveria criar um Programa Nacional de Alfabetização Digital. Podia ser a grande inovação que esse país podia dar na área da educação formal, que é ensinar a linguagem digital a todos. Diferente da ideia de inclusão digital com a ideia de que cada um tem que ter um computador. Ter um computador ou não é outro assunto. É mais ou menos como confundir ter um lápis e uma borracha com sabedoria de escrever! É uma incompreensão quando você diz assim: “Preciso que você saiba ler e escrever”. Você ensina ler e escrever, você não dá a ele um lápis e uma borracha. São consequências depois. Nós precisamos que todos os brasileiros entendam, compreendam e dominem a linguagem digital. Essa é a grande dificuldade do país. Há iniciativa de um lado e de outro, da Câmara Brasileira de comércio Eletrônico, que é uma entidade que foi criada há dois anos para representar o setor. Reúne mais ou menos 200, 250 empresas na área de tecnologia e comércio eletrônico, e que eu ajudei a formar. Fui o primeiro Presidente, e fiquei Presidente durante o ano, agora eu já passei o bastão para a frente, que é um pouco o meu perfil. Eu achei que a entidade está criada, está indo muito bem, então passei à frente, o cargo. Ela está procurando criar um projeto, chamas-se Inclusão Digital de Empresas, é empresarial. Há um analfabetismo digital nas empresas, ainda, no Brasil. E incluir digitalmente empresas seria um processo extremamente interessante e rico para a inclusão digital como um todo. Essa questão da inclusão digital é muito séria, muito grave. Ao mesmo tempo é também fonte de muitos equívocos. Em primeiro lugar eu tenho muita dúvida com relação a projetos tipo: “vamos fazer um computador mais barato para os pobres” ou “vamos criar centros populares para aqueles que não têm acesso ao computador usem o computador de maneira coletiva”. Isso parece um pouco: para quem tem tecnologia de ponta, para quem tem privacidade, para quem tem recursos, privacidade; e para quem não tem, andar de ônibus! Eu acho que a questão da inclusão digital vai se resolver com programas de treinamento e de alfabetização digital e com a disseminação efetiva da compreensão da linguagem digital. Então tem muita coisa equivocada nessa área. A força da linguagem digital é tão grande que não é do produto digital, mas da linguagem digital. E você me falava sobre conhecimento e produto, aqui também a distinção é importante. Hoje, no Brasil, há 25 milhões de usuários de internet; quando eu lancei a Book Net, eram 25 mil.
P/1 – Ah!
R – Portanto, em oito anos o crescimento foi espantoso. Ainda assim...
P/1 – Para o Brasil...
R – Há, do lado de fora, quase 150 milhões! Mas você faz o seguinte raciocínio: sabe quantos leitores de jornal existem no Brasil? Assinante de jornal? Tem ideia? No Brasil inteiro? Um milhão e meio!
P/1- Ia falar quatro milhões!
R – Sabe quantos compradores de mais de um livro por ano? Um ou mais, no Brasil? Quatro milhões! Quantos usuários de TV a cabo? Dois milhões e setecentos! E você nunca viu alguém fazendo campanha para uma inclusão “livral”, uma inclusão “jornalal”, ou uma inclusão “TV cabal”, não é? É tão importante... Seria muito importante se cada brasileiro lesse um jornal de manhã cedo. É um aspecto de cidadania e de construção de conhecimento extremamente importante. Não existe! Não porque seja uma coisa setorial ou localizada, porque é uma falha de quem produz jornal. É isso? Não é. Isso faz parte de um enorme processo de exclusão social e cultural. A internet foi capaz de passar à frente desses setores todos de uma maneira impressionante. E mesmo assim ainda falta muito a fazer.
P/2 – Quer dizer, deixa eu fazer uma pergunta. Você falou um pouco do Governo. Nós somos ao mesmo tempo consumidores e cidadãos, não é? Então, esse lado do consumo, acho que foi super bem tratado, e esse lado da cidadania um pouco... Porque tem essa coisa do Imposto de Renda, e tem vários outros serviços do governo pipocando, quer seja da prefeitura, que agora você paga o ICMS... Várias coisas. Voltando um pouquinho para essa questão das utopias sociais e tudo, você acha que, talvez, na medida em que as pessoas vão tendo acesso à internet e vão se tornando eventualmente consumidores disso ou daquilo e tornando consumidores dos serviços que o Governo provê, você acha que talvez daí venha uma espécie de nova cidadania, de fiscalizar Governo e Governante, de participar de uma nova maneira, que possa ser encarada talvez como uma nova utopia? Porque em termos de informação a gente tem milhões e milhões de fontes de informação diferente na internet, algumas mais fáceis de achar, outras mais difíceis, mas tem gente no Irã fazendo blog. Você vê em tempo real como é que foi a última manifestação e no mundo inteiro você tem esse tipo de coisa. Você acha que talvez venha por aí, nessa época de descentralização total, de estilhaçamento de grandes utopias coletivas ou de dificuldade de comunicação? Você acha que talvez por aí surja uma nova utopia, não mais a dos anos 1960, mas a nova?
R – É possível. Eu vejo isso dentro de um quadro... Acho que parte disso... Porque a gente tem muita dificuldade de, ao vivenciar processos, perceber o que já aconteceu. Então, por exemplo, no que diz respeito a direitos sociais que eram aparentemente dever do Estado, mas que o Estado não os cumpria. Eu vou citar alguns: já falei... Se lembra das filas para entrega de Imposto de Renda nos bancos? Aquilo era uma humilhação do cidadão, uma ausência de cidadania! Deixou de existir! Vou citar outra que as pessoas não falam: quando foi a última vez que você ligou a televisão no final de Dezembro e começo de Janeiro e viu aquela matéria que todo ano se repetia sobre fila para inscrever aluno em escola pública no Rio de Janeiro? Você reparou que sumiu aquela matéria? Que era a mesma anos a fio? Mostrava aquelas senhoras sentadas na fila no meio da rua, sentadas desde anteontem no caixote... Não tem mais! As inscrições são todas pela internet e sobram vagas! Sabe o que são 42 mil vagas sobrando no ensino público estadual do Rio de Janeiro?
P/1 – Quer dizer, isso não se sabe, né?
R – Sobrando... Eu estou te citando... DETRAN: você para pagar uma multa do DETRAN, era uma humilhação social, você tinha que usar aqueles despachantes zangão, você tinha que... Era uma extorsão moral, uma humilhação contra o cidadão. Você entra no site do DETRAN, entra, vê quais são as multas que você tem, imprimi aquilo. Vai ao banco se você quiser, senão você paga pela própria internet. Então se você observar bem um conjunto de direito – são direitos sociais – nós já incorporamos à nossa vida, até sem o discurso, não é? Isso aconteceu porque a tecnologia “é”! A despeito de um discurso sobre o que ela pode ser! Agora, com relação a essa coisa da democracia, ou da ampliação dos direitos, essa é uma discussão muito curiosa. Você fez uma relação com os anos 1960, né? Quando eu comecei a mexer com internet, lá em 1995, você sabe qual era um dos dez sites mais acessados nos Estados Unidos, em 1995? Antes dessa onda toda? E que eu acessei várias vezes? E acompanhava com muita curiosidade. Você se lembra do Timothy Leary, que era um filósofo americano, cientista social, profundamente envolvido com as lutas sociais dos Estados Unidos dos anos 1960, a oposição à Guerra do Vietnã, e que depois enveredou pelo uso do LSD, escreveu vários livros defendendo a ideia dos estados alterados de consciência, de ampliação de consciência, foi um grande mentor intelectual do uso dessas substâncias nos anos 1960, que hoje tem uma leitura completamente diferente. O Timothy Leary ficou doente, ficou com AIDS e foi definhando lentamente, um final de vida muito doloroso. Em 1994 instalou uma câmara no quarto dele mostrando a cama dele, e foi uma das primeiras imagens conectadas à internet. E ele todo dia ligava aquilo e fazia um comentário para a câmara. Ele foi morrendo pela internet e falando daquela tecnologia. Ele fazia fisicamente e também como teórico a relação entre os anos 1960 e a internet. O uso da internet nos Estados Unidos no começo da sua história foi feita pelas mesmas pessoas que estiveram na contracultura dos anos 1960, e o Timothy Leary foi o grande ícone disso. Depois veio o mundo dos negócios, veio o comércio, veio a aplicação. Enfim, de todo o tipo. Eu acho que ela pode propiciar perfeitamente uma nova forma de organização social. Acho que sim! Acredito que ela seja um propiciador imediato, por exemplo, de justiça social ou de melhores condições de vida, porque nenhum dos outros... Edgar Morin que fala muito disso, fala de estruturas de tessitura social. A linguagem é uma tessitura social, então se imaginava que o dia que todo mundo soubesse ler, isto traria automaticamente um mundo de justiça social e de, enfim, oportunidade para todos. Melhorou o mundo? Melhorou muito! O mundo é muito melhor do que quando ninguém lia. Mas isso transformou o mundo num mundo ideal? Não! Então eu acho que o mesmo vai acontecer com a internet. Acho que vai melhorar em muito a vida das pessoas, já melhorou! Citei esses exemplos aqui como se poderia citar “n” outros. Acho que muda também a cabeça das pessoas. Esse é também outro lado, que é o seguinte: as pautas usuais da política e da organização social estão ficando superadas, e isso não vem sendo percebido com clareza pelos partidos políticos e por quem está envolvido na operação política lato senso. Pessoas mudaram. Esse impacto, essa influência da tecnologia é tão forte que ela está recriando nosso processo de vida. Nós hoje somos cada vez mais indivíduos. É um processo inevitável, inexorável, também vem da marcha da história. A gente vem da ideia de caverna, depois de burro, depois de grandes famílias, depois de fazendas, depois de casas onde várias gerações de famílias conviviam, para a família nucleada dos anos 1950, 1960 feita de pai, mãe e filhos para uma estrutura nos Estados Unidos. Hoje, 26 por cento das casas são ocupadas por uma só pessoa, e isso cresce cada vez mais. No Brasil também! Nós somos cada vez mais um indivíduo, e um indivíduo recheado de tecnologia. Nós somos um celular – há cinco anos atrás, quem... –somos um impressor, somos um gráfico, porque temos a impressora em casa. Acabou a indústria gráfica! Ela é hoje um apêndice, um pálido resto do que era nos anos 1950, 1960. Então cada um de nós vai virando uma empresa, um indivíduo que se autogere. As relações sociais vão refletindo isso. O projeto individual supera o projeto da família, o social, no sentido clássico, que é a economia, tão... Por exemplo, o papel dos sindicatos, não é? A ideia de classes sociais como imaginada ou trabalhada por Marx é praticamente uma... É uma referência histórica para uma determinada época. Essa coisa que eu cito dos bancos. O Brasil tinha 780 mil bancários há dez anos. Sabe quantos tem hoje? 150 mil.
P/2 – Com muito mais bancos...
R – Com o movimento da economia dez vezes maior. Aí eu tento lembrar a vocês também outra coisa: qual foi a última vez você viu uma greve bancária?
P/2 – Faz alguns anos...
R – Você lembra que a gente tinha greve bancária todos os anos?
P/1 – Era uma coisa...
R – E os bancários paravam a economia do país.
P/1 – É.
R – Tinha o poder de fazer isso, e mobilizavam a economia. Não param mais! Hoje os bancos podem funcionar com todas as suas agências fechadas. Quem vai sofrer com isso? Os pobres! Aqueles que precisam do banco para receber o seu salariozinho. Mas a operação da economia, como um todo... E tem mais: uma vez eu citei isso no Sindicato dos Bancários em São Paulo, aí uma pessoa: “não, mas nós podemos fechar os computadores lá do banco”. Eu disse: “Olha, eu lamento te informar, mas todos os bancos brasileiros trabalham com uma coisa chamada redundância...
P/2 – Duplicação...
R – Que no Brasil são duas: todo o sistema bancário, por lei, tem sistemas redundantes. Um no Rio, em São Paulo e alguns têm três, tem em Minas. Se você quebrar o computador central lá do Bradesco, ele continua funcionando. Aqui no Rio tem uma sede. É automático, em cinco segundos entra em circulação e em funcionamento a redundância. E se você quebrar esse, tem outro. Portanto...
P/1 – Eu queria então caminhando, e te perguntar sobre a tua família. Você tem filhos? O nome dos filhos e qual e a área de trabalho deles?
R – Eu tenho dois filhos. Um tem 30 anos e o outro tem 27. O mais velho chama-se Diego, trabalhou comigo. O Diego é o seguinte, estudou... É Filósofo, se formou em Filosofia, é um grande Filósofo, uma pessoa que tem uma enorme aproximação com essa área. Depois de formado eu o atraí para trabalhar comigo, e ele trabalhou comigo na Book Net. Foi um dos sustentáculos da razão e do sucesso da empresa. Ele se fascinou também pelo mundo da tecnologia, e aí se embrenhou por este mundo, fez vários cursos de aperfeiçoamento, está fazendo Doutorado agora em Tecnologia da Informação aqui na PUC [Pontifícia Universidade Católica], é um tecnólogo, uma pessoa... Ele hoje presta serviço a várias instituições, como a Revista de Sistemas, com especialização nessa área. É casado, tenho uma netinha de dois anos e três meses que é uma maravilha, chama-se Alice, que é filha do Diego com a Luzia, a mulher dele. E tenho outro filho de 27 anos, este ainda está em casa, chama-se Bruno, há muitos anos trabalha na área de música. Ele é músico, e agora está abrindo uma carreira para ele na área da produção musical e está montando um estúdio de som de porte médio para atender determinados mercados. Então está se especializando nessa área. Estudou Economia também, e esse ainda está comigo em casa, esperando o momento de ir embora. Tenho dois filhos: Diego e Bruno.
P/1 – Como é que é um dia seu hoje?
P/2 – Você navega muito?
R – Muito menos do que eu fazia no passado, muito menos! Um dia, hoje, meu... Eu tenho assim, a minha agenda é mais ou menos assim: um dia por semana eu passo na Ideias Net, é o meu compromisso com eles, que é um dia de analisar os problemas da empresa, se debruçar sobre aqueles problemas, dar sugestões. Eu não quero mais botar a mão na massa, acho que o meu momento de responder aos e-mails já foi.
P/1 – É um dia que você está lá fisicamente...
R – É o dia que eu estou lá fisicamente. Um dia por semana eu reservo para aulas e palestras, que são as mais variadas. Por exemplo, na semana passada eu fiz um trabalho que eu imputo de uma importância enorme para mim e espero que seja também para... Porque são essas coisas subterrâneas que você vai fazendo e que um dia o resultado aparece como este do Imposto de Renda, como este dos Bancos. O que eu lutei com os bancos! Fiz palestras para banqueiros para explicar isso e de repente aquilo... Na semana passada teve um seminário aqui no Rio de Janeiro, na Escola de Comando do Estado Maior do Exército, que é o centro de pensamento do Exército, onde havia 400 oficiais: generais, coronéis. Eu abri esse seminário e conduzi toda a discussão do seminário. São três dias de seminário.
P/1 – Tecnologia?
R – Então qual é a discussão? A discussão, que é a que me interessa hoje na vida, eu procuro sensibilizar setores, como um todo, sobre a importância da tecnologia e da sua aplicação. Acho que esse é o meu principal trabalho. Então eu tenho trabalhado profundamente com um conjunto de oficiais que está defendendo a tese de que o Exército precisa se aggiornare, como diz o italiano, e que o Exército, como era... Nós temos que ter um Exército tecnológico, informado, em rede, com decisões de cadeia de comando completamente diferente daquelas que são cadeias hierárquicas, com o uso de tecnologia como o recente episódio lá no Iraque demonstrou isso. Com todas as dificuldades políticas... Mas foi uma guerra onde a tecnologia foi fulminante, e liquidou a questão em três semanas. Se observar com atenção os dados também – eu procuro me debruçar sobre esses dados e aí vem a questão social –, a tecnologia impacta socialmente sem a gente perceber. Por exemplo, a maior contribuição ao bem estar da sociedade que a tecnologia atrai, sabe qual é? Vamos lá, eu vou te descrever uma coisa, talvez, você absolutamente surpreendente. Nós começamos o século XIX com 900 milhões de seres no mundo, 30% desses seres foram dizimados em guerra durante o século XIX, 30% da população originária do começo do século. Nós começamos o século XX com um milhão e 900 mil terráqueos. Durante o século XX, dez por cento da população original do século foi morta em conflitos, combates, revoluções, guerras, foram mortas mais ou menos 190 milhões de pessoas durante o século XX. Mantida essa proporção, ou seja, se no século XXI o resultado fosse o mesmo do século XX, nós começamos o século XXI com seis milhões e 200 mil humanos, significaria dizer que durante o século XXI, 620 milhões de humanos poderiam ser exterminados em guerras. Os três primeiros anos do século estão apontando uma média de 120 mil mortos em conflitos no mundo inteiro. Significa dizer que isso vai ser, no final do século, se assim continuar, chega a 12 milhões, que é 0,2 por cento da humanidade. Então a tecnologia, pelo seu simples uso militar, ecológico, vai salvar, entre aspas, neste século, 600 milhões de vidas. Sem a gente dar uma palavra, só pelo seu uso! E se o século XX tivesse ficado nos mesmo níveis do XIX, que foi um século muito sangrento, se tivessem sido mortos no século, já havia novas tecnologias anteriores ao século XIX. Se tivéssemos matado 30% da população original em vez de 190 milhões, teria morrido 570 milhões de pessoas.
P/1 – Sensacional!
R – Não é impressionante isso?
P/2 – Apaixonante!
R – Ah, mas quem fez isso? Ninguém. Que partido político fez isso? Que construção acadêmica? Nada! Apenas a existência de tecnologias inovadoras. Só isso, mais nada!
P/1 – Jack, voltando... Quer dizer, sua semana, palestra...
R – São palestras, Ideias... Na Coppead, que eu tenho uma reunião, às vezes, por semana, ou a cada 15 dias para discutir os problemas lá, na Coppead. E dedico muito tempo à leitura.
P/1 – Você lê pela internet?
R – Leio também. Leio, leio.
P/1 – O que você acha, assim...
P/2 – Você imprime e lê depois?
R – Deixa eu falar com vocês,
eu não gostaria de falar muito sobre isso pelo seguinte: esta é uma área onde a tecnologia não avançou, onde todas as tentativas que foram feitas deram errado. Algumas já começam a dar certo nos Estados Unidos, na Irlanda e em Israel, nesses três países. Mas que em geral as pessoas têm pouco conhecimento. Eu estou envolvido num projeto, também para o ano que vem, disso. Então esse é aquele assunto que eu acho que... Eu espero que a Saraiva me deixe mais três anos eu fazendo isso sozinho, dizendo que não vai dar certo.
P/1 Mas que é bom pegar o livro, é.
R – É, sem dúvida nenhuma! Mas acho que há aí um pouco do que o Carlos perguntou. Nós podemos multiplicar em muito a quantidade de informação disponível no mundo e democratizar a informação no mundo com um misto da leitura eletrônica e do processo eletrônico de formulação do livro.
Não falo mais nenhuma palavra sobre isso!
P/1 – É, tá.
P/2 – Deixa então eu te fazer a penúltima pergunta, ela faz a última. Eu acho até que a entrevista está pequena! Você falou de uma trajetória de vida que tem uma coerência subjacente, mas tem também um grande movimento. Você, olhando um pouco para trás, tem alguma coisa que você acha que é um nó, que você olhando nisso eu devia ter feito aquilo, pensa de vez em quando sobre alguma coisa desse tipo? Família, negócio...
R – Não. Eu dedico muito tempo à família. Tenho uma relação com meus filhos muito intensa, muito forte, estou com eles todos os dias, e isso para mim é uma... Eu sou uma pessoa extremamente ligada aos meus filhos, à minha casa, a tudo o que me cerca, e talvez isso seja uma coisa que ocupa uma parte grande do meu tempo. Eu, talvez, olhando para trás, talvez tenha duas coisas que eu me arrependo: em primeiro lugar, de não ter percebido a obsolescência de determinadas ideias sociais com um pouco mais de rapidez. Eu talvez devesse ter percebido isso, eu percebi isso e compreendi isso com muita clareza talvez há uns dez, doze anos, não é? E mudei muito a minha maneira de pensar, de agir e de compreender o mundo. Eu talvez devesse ter percebido isso dez anos antes, isto talvez pudesse ter me ajudado um pouco mais. Então, acho que essa é uma questão. A segunda questão é a seguinte: sempre me perguntam por que é que eu, sendo uma pessoa que tem ideias ou que procura formular ideias e que invariavelmente passam pelo social, por que eu não me aventuro pela política ou pelo serviço público? Eu tenho muita dificuldade. Todas as pequenas vezes em que eu passei próximo disso foram experiências frustrantes. Sou uma pessoa muito irrequieta para me submeter, me subordinar à forma pela qual a política é exercida, e o serviço público também. Eu procuro ajudar, eu procuro dar ideias, mas eu não me... Eu estou sempre procurando uma maneira nova de fazer as coisas, procurando uma maneira que não foi feita ainda, e isso sempre traz inconvenientes. Eu gostaria de ter mais habilidade para isso, mas não tenho, não tenho. E já me conformei com isso e já (risos), retirei inteiramente isso da minha... Agora, erros, cometi muitos. Isso faz parte da vida. E vou continuar cometendo para o resto da vida. E quero, meu projeto de vida – tenho 54 anos – acho que já... Trabalho desde os 17 lá na José Olympio, aquela história que eu contei, que eu fui lá... Portanto, eu já estou merecidamente, se quiser assim, época de aposentadoria, mas espero viver aí mais 20, 30 anos com saúde e procurando ajudar em alguma coisa na construção desse processo. Então procuro estar sempre muito atualizado. Tenho um sistema de leitura que parece à máquina, mas não é. Eu leio de tudo, sobre todos os temas, procuro fazer conexões entre as coisas, procuro participar de seminários via internet. Eu estou participando muito, não mais de... Procuro o site tal para ver isso... Eu uso a internet para quase tudo. Para compras, para...
P/1 – Você compra livros pela internet?
R – Eu compro livros pela internet, compro. Muito, agora ficou um pouco mais, porque meu escritório agora da Ideias Net, nós mudamos, e o escritório é em cima da Livraria da Travessa, da loja nova que inaugurou em Ipanema.
P/1 – Então...
R – Então eu chego no escritório e a primeira coisa que eu vou fazer é entrar na livraria. A livraria está ali embaixo, à minha espera. Eu acho que eu sou o melhor cliente da livraria.
P/2 – Você compara preço na internet?
R – Comparo, comparo. Eletrodomésticos, coisas para casa...
P/1 – Tem diferença do preço da livraria para um livro comprado na Travessa e um livro comprado...
R – Já teve. No momento, de 1999 a 2001 houve uma intensa campanha da Saraiva e da Siciliano dando desconto na rede. Agora eles reduziram isso, os preços estão praticamente equilibrados. Agora, por exemplo, viagens, reserva de hotéis, isso tudo pela internet. Agora, procuro participar muito de seminários que têm versões online, que é uma coisa que me interessa muito. Então, por exemplo, os sites americanos, tem um site chamado Saloon, você deve conhecer. Eu procuro participar, eles têm tema em discussão, eu procuro entrar muito ali, e enfim, vários outros.
P/1 – Então a pergunta final: você gostaria de colocar alguma coisa...
R – Não, eu agradeço muito a você, eu estou muito satisfeito e espero poder ter contribuído em alguma coisa para o projeto. Parabéns para o projeto.
P/1 – O que é que você acha do projeto?
R – Acho uma belíssima ideia, acho que esta ideia da memória é vital para a sociedade, como um todo. Insisto que vocês deviam muito procurar a história desses dois nomes, especialmente o Jesus, que era uma pessoa que merece uma recuperação do que ele é, do que ele foi, e acho que vocês encontrariam muito apoio para fazer isso, se precisarem de apoio institucional. Mas primeiro do Lessa, no BNDES, acho que levar um projeto de recuperar a memória e fazer um trabalho de levantar o que ele foi, fazer um filme, um livro, ou o que seja, uma aplicação no site sobre o Jesus ao BNDES e elevar isso na mão do Lessa, eu tenho certeza que na hora ele aprova! Na hora ele aprova, porque o papel do Jesus é vital na construção do Brasil nos anos 1950. Pouca gente conhece isso! Então eu estou muito feliz de estar aqui, acho que o projeto é muito interessante, espero que ele seja coberto de sucesso.
P/1 – Tá bom! Super obrigada pelo depoimento.
P/2 – Obrigado pela entrevista e pela paciência.
R – Eu é que agradeço.
P/1 – Obrigada.Recolher