Museu da Pessoa

Lojas Dália, as primeiras flores do SAARA

autoria: Museu da Pessoa personagem: Isaac Meyer Nigri

Memórias do Comércio do Rio de Janeiro
Depoimento de Isaac Meyer Nigri
Entrevistado por Paula Ribeiro e Edivaldo de Melo
Rio de Janeiro, 16/06/2003.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MCCRJ_HV017
Transcrição: Denise Boschetti
Revisão: Gustavo Kazuo Yamashiro
Duração: 125 minutos (2 CDs)

CD 1

P1- São três lojas hoje?

R- Três.

P1- Aquela pequenininha, no fundo é a maior que você fica e?

R- É uma grande e duas pequenas. Uma das pequenas é a origem, onde o meu pai começou há 80 anos, 79 pra ser preciso.

P1- Boa tarde, Isaac.

R- Boa tarde.

P1- Eu gostaria então de começar nossa entrevista pedindo que você nos forneça o seu nome completo, local e data de nascimento.

R- Nasci no Rio de Janeiro, na Rua da Alfândega, 360, sobrado. Em 29 de Setembro de 1935.

P1- Seus pais, o nome completo deles e a origem, por favor.

R- Meyer Isaac Nigri e Jamile Salim Nigri.

P1- Qual a origem dos seus pais?

R- Eles vieram do Líbano, da cidade de Sídon, que é o Sul do Líbano, meu pai veio em 1913, chegou aqui já encontrou um tio, irmão da mãe dele, que o acolheu e começou a trabalhar como mascate, vendedor de rua, vendendo algumas coisas, gravatas, depois ele conseguiu abrir uma pequena loja na antiga Rua Larga, hoje Avenida Marechal Floriano e isso em 1917 a 1920.

P1- Então, espera aí, antes da gente chegar lá, um pouquinho ainda da sua origem, seus avós você conheceu?

R- Meus avós eu só conheci do lado paterno a minha avó, o paterno já havia morrido, do lado materno eles chegaram do Líbano também, da cidade de Sídon também, em 1938, eu tinha três anos de idade, quando eles chegaram. Que a minha mãe veio para casar com o meu pai em 1928, casou com meu pai em 29.

P1- Mas algum desses avós era ligado ao ramo do comércio, por exemplo, no Líbano, você sabe?

R- Não eram comerciantes não, meu avô era funileiro.

P1- O que é um funileiro?

R- Funileiro, ele consertava chapas, panelas, tudo o que era ligado a isso, tinha uma portinha e dali sobrevivia a família né. E meu pai quando fez quinze, dezesseis anos, a minha avó, com medo daquela Guerra que tava se aproximando, a Primeira Grande Guerra, todo mundo já estava com medo lá no Líbano e ele era o filho homem único e o homem era o esteio da família, o filho homem era o sustentáculo, as mulheres não tinham aquele, não digo valor, mas não tinham, porque a mulher não trabalhava naquela época, então era dona de casa e meu pai como filho homem único, a minha avó ficou com medo de ele ir pra Guerra e ela perdê-lo, então ela mandou-o, sabia que o irmão dela estava aqui e arrumou e ele com dezesseis anos veio pra cá.

P1- O que o Brasil significava nessa época pra esses imigrantes de origem libanesa?

R- Era América né, América, eles não tinham ainda a noção do que era América do Norte e o que era América do Sul, eles pensavam que, “vamos pra América do Sul, Brasil”, alguém falou em Brasil e foram pra lá pra conhecer e pra desvendar, vamos dizer assim, pra fazer a

América, eles falavam muito “fazer a América” porque eles eram paupérrimos então precisavam fazer de alguma maneira alguma evolução na vida deles e como rapazes começaram a vir, meu pai veio com uns trinta rapazes na época.

P1- Ele contava um pouco sobre essa viagem? Qual foi a primeira impressão do Brasil?

R- Eles vieram, esses rapazes todos, oriundos de lá de Sidon e começaram a formar essa comunidade aqui no Brasil.

P1- Que comunidade é essa?

R- Comunidade judaica brasileira de origem Sefaradita, que é justamente originária do Oriente médio, vamos dizer assim. Porque os Sefaraditas, eles são, na realidade, oriundos da Espanha, porque como o judeu era muito errante ele sobreviveu à inquisição de Portugal e foi pra Espanha, então a Espanha se tornou o Sefaradita, porque o outro ramo dos judeus foram pra Alemanha, Polônia, foram pro outro lado, né, então por isso, então eles vieram e aqui formaram uma comunidade, fundaram uma Sinagoga.

P1- Eles foram se estabelecer aonde, quando ele chegou, esse teu tio?

R- Rua da Alfândega.

P1- O que era a Rua da Alfândega na década de 10, o que o seu pai comentava?

R- Era uma rua de atacadistas, a maioria portugueses, a maioria portugueses, eram atacadistas de tecido na época, quase todos, a Rua da Alfândega. A Rua Santos, Passos era mais ferramentas, já era outro estilo de trabalho. Agora a Rua Larga, hoje Marechal Floriano era o varejo da época, era rua de varejo, ali tinha as lojas grandes, o Dragão que vendia as louças, tinha o Mandarim, que vendia miudezas, eram lojas grandiosas, firmas grandiosas, tinha calçados, então a Rua Larga era tida como uma das melhores ruas de comércio do Rio de Janeiro. Agora a Rua do Ouvidor e a Gonçalves Dias já era uma outra classe, agora a Marechal Floriano ou Rua Larga era mais popular, vamos dizer assim, a aristocracia ia mais pra Rua do Ouvidor, ali perto da Colombo, aquele pedaço que era mais da nobreza, vamos dizer assim, né.

P1- Esse tio do seu pai ele já vivia no Rio, vivia onde, ele já comerciava?

R- Ele veio em 1911 pra cá, anteriormente ele tinha ido pro México, anteriormente uma turma de Sidon foi pro México, não gostaram, voltaram pro Líbano e vieram pro Rio de Janeiro, pro Brasil. Era uma aventura, a grande verdade era essa, mas a dificuldade lá no Líbano era muito grande, não era fácil ganhar o pão lá não, era muito difícil, muito difícil. E a vida, muitos filhos, então a coisa começou a ter muito problema e eles precisavam fazer a América, eles falavam muito nisso, “vamos fazer a América” e vinham pra cá e muitos vieram com a intenção de voltar, não vou dizer totalmente, mas a grande maioria, a intenção era fazer algum dinheiro e voltar.

P1- Seu pai também?

R- Meu pai, não digo que, eu acho que não, meu pai era um dos que queria, mas esse tal meu tio que acolheu meu pai, ele em 21 voltou, ele era solteiro

ainda, em 21 ele foi pra lá e casou lá e só retornou em 48 com a família toda.

P1- Como é o nome dele?

R- Mourad Nigri.

P1- Então fala do seu pai. Como é que é a vida no começo, no Rio de Janeiro?

R- Bom, ele começou, como eu falei, como ambulante, depois abriu essa loja, ele vendia gravatas na rua e depois abriu essa loja na Rua Larga

P1- De que ramo?

R- De miudezas, era meias, cadarço, coisas que se usavam assim, liga, homem usava liga, meu pai vendia muita liga.

P1- Pra meia?

R- Pra meia, porque a meia era de algodão, não existia nylon, era de algodão, então a meia ficava entrando no sapato, então o homem tinha que usar uma liga aqui pra suspender pra meia não cair, então se usava muita liga, o homem usava muita liga. Ele vendia muito, o colarinho de camisa era sobreposto, a camisa vinha sem esse, então você botava a camisa, depois colocava o colarinho e botava a gravata. É claro, as pessoas não podiam, então tinham aquela camisa e tinham meia dúzia de colarinho e iam mudando o colarinho, porque o que sujava era o colarinho, então isso se vendia muito na época e meu pai trabalhou com essa miudeza. Depois que ele veio pra Rua da Alfândega, ele abriu um sobrado em sociedade com um outro rapaz, abriu o comércio de calçados nesse sobrado. Então no sobrado a sala da frente era o negócio dele e nos fundos era moradia.

P1- Em que ano isso, Isaac?

R- Em 1921, em 22 ele trouxe os pais com as três irmãs solteiras e acolheu nesse sobrado, arrumou a casa e tudo mais e as três irmãs eram, uma delas, a mais nova inclusive, não o conhecia porque quando ele veio pra cá ela não tinha nascido ainda, então ele educou as três irmãs, comprou um piano pra elas aprenderem piano, levou elas pro colégio, abriu matrícula e elas estudaram aqui, elas apesar de, todas três estudaram aqui no Brasil na escola pública.

P1- E esse ramo de calçados do seu pai, o que era um sapato nessa década de 20, assim, era tecido, era camurça o que era?

R- Era, tinha muita camurça, muito crocodilo, eu me lembro, aí já no meu tempo, quando garoto eu me lembro que esse tipo já existia naquele tempo, eu vou falar, coisa de 42, 43, quando eu era garoto e eu me lembro que meu pai vendia muito desse sapato, esse tipo assim, eu não tô lembrando agora o nome exato,

P1- Era de mulher? Anabela?

R- Anabela, exatamente, Anabela. E quando usavam o social era o Luis XV, sapato Luis XV, era alto, sapato alto, então eu me lembro. Eu era garoto, já acompanhava o trabalho, meu pai falava “traz o sapato Luis XV” ou ele me mandava ir com o empregado dele ir na fábrica pegar às vezes uma falta, alguma coisa, então eu me lembro desse detalhe. Agora meu pai trabalhava tanto com sapato de homem como de mulher e ao mesmo tempo ele já, aí nessa loja nova que ele fundou em 1924 ele tinha loja de calçados e tinha uma alfaiataria nos fundos, e tecidos, então o cliente chegava, escolhia o tecido, ele fazia a roupa pra ele e ele comprava um par de sapatos também, então ele saía quase que vestido, né. E tinha algum tecido até pra camisa, porque não existia camisa pronta, tudo tinha que ser feito, tudo era na base do tecido, não existia. Aí já então ele fundou essa loja em 5 de setembro de 1924.

P1- Tinha nome?

R- O nome da firma era Meyer Isaac Nigri, era o nome dele né, firma individual, aí ele ficou. Mas aí houve uma crise no ramo de calçados e ele abandonou o ramo de calçados e continuou com tecidos e ficou até 1950. Em 1950/51 é que eu comecei a trabalhar com ele e começamos a modificar o trabalho.

P1- Então antes de entrar nisso, vamos falar de você. Então conta, seu pai e sua mãe casam, casam no Brasil? Onde é que a família nasce?

R- Então, vamos voltar. Meu pai trouxe as irmãs com os pais, isso em 1922, elas começaram a estudar, eram mocinhas e começaram estudar, ele dando todo apoio, fazia tudo por elas, aí em 1928 ele, ele já solteiro, os pais forçaram, ele precisava casar, tinha que formar a família, né, então a minha mãe, não sei como mandaram uma fotografia da minha mãe, ele gostou, mandou pedir em casamento. Então a minha mãe veio com o pai dela em 1928 pra casar com meu pai, ele veio e trouxe a filha, que é a minha mãe, pra casar com meu pai aqui em 1928. Mas nesse intervalo o meu avô, pai do meu pai faleceu, então tiveram que adiar o casamento, então só casaram em 29. Aí em 29 ele começou a formar a família.

P1- Você sabe aonde que eles casaram?

R- Casaram na Rua da Alfândega, 285, sobrado, aonde ele morava.

P1- Casaram em casa?

R- Casaram em casa, casamento era feito em casa.

P1- Mas dentro das tradições judaicas?

R- Nas tradições judaicas. Vinha o oficiante, com dez testemunhas e acabou, não tinha mais problema, (risos) e depois era um jantar pra família, a festa né e a festa durava sete dias, uma semana

P1- É mesmo? Mas isso é uma tradição judaica?

R- Tradição judaica. Hoje não existe mais, é raríssimo hoje, mas é tradição. O noivo tem que festejar sete noites com a noiva, com a família, então o que é que se fazia. É claro que não se podia naquela época fazer toda noite um jantar, então a primeira noite era dos pais do noivo, a segunda noite era dos pais da noiva, a terceira noite era dos tios dos padrinhos, a quarta e a quinta e aí ia, mas tinha que fechar a semana, isso é uma tradição.

P- Você sabe dizer se nessa época tinha alguma sinagoga sefaradita na cidade?

R- Já tinha, na Rua Buenos Aires e meu pai foi um dos fundadores, que hoje ela ainda existe na Tijuca né, na Conde Bonfim, 521.

P1- Qual é a sinagoga?

R- Sidon, Templo Sidon, oriundos do Sidon, justamente esses rapazes formaram essa e meu pai na época, quando ele veio, modéstia a parte tinha uma bonita caligrafia, ele tanto em português, como em francês, como em hebraico e como árabe, ele sabia escrever muito bem e tinha uma boa caligrafia, então o estatuto da sinagoga foi feito por ele em árabe e depois houve a tradução.

P1- Você sabe datar, que época que foi fundada?

R- Em 1914. Ele fez esse primeiro estatuto e ele sempre foi o secretário dessa sinagoga, dessa sociedade, ele ficou como secretário até 1942, era o secretário, vamos dizer, eterno da Sinagoga. Ele que era a segunda pessoa, vamos dizer assim, da coletividade, primeiro era o presidente, segundo era ele porque na ausência do presidente quem respondia era ele. E ele por ter assim dentre os demais, ele tinha, não só a caligrafia, mas ele tinha uma cultura, então ele era sempre chamado, sempre procurado pelas pessoas pra, até pra resolver problemas familiares de casais, de primos que brigavam, de irmãos que brigavam, ele era o mediador, o apaziguador. Chamava um, depois chamava outro, depois gritava com um, gritava com outro, ele batia na mesa e ele fazia as pazes deles, era feito assim, no grito e com respeito. E arrumava tudo dentro do ambiente sem ninguém saber, muitos casais que brigavam, ele procurava a mulher porque não sei o que e tentava daqui e de lá e quando não conseguia, chamava um outro pra ajudá-lo na conversa, aí vinha, aí trabalhava o marido aqui, depois marcava um encontro os dois, aí os dois discutiam, discutiam, depois que ele deixava eles desabafar ele: “e agora, já falaram?”, “já”, “então agora vocês vão se beijar e acabou a história” e ele conseguia.

P1- Então conta um pouco como foi se formando a sua família, os irmãos, onde é que vocês nasceram e a tua infância ali na Rua da Alfândega?

R- Então, meu pai casou em março de 29 e a primeira filha que faleceu agora, infelizmente, ela nasceu no dia 31 de dezembro desse mesmo ano, ele casou em março e ela nasceu em dezembro, 31 de dezembro de 29.

P1- Como é o nome dela?

R- Marie Nigri Balaciano, ela casou com um da família Balaciano e minha mãe depois perdeu, ela teve alguns abortos, em 34 nasceu a segunda, de nome Sarina, ela é casada tem dois filhos, tem quatro netos e depois vim eu em 1935, eu tenho três filhos e dois netos, depois veio o Salinho, meu irmão, nasceu em 1938, quando justamente vieram meus avós maternos, o nome dele é Salim em homenagem a esse avô que chegou, que é nome de Salim e depois o caçula que nasceu em 42, o José. O Salim tem um filho e o José não tem filhos.

P1- Então quais são suas memórias dessa família grande, ali na Rua da Alfândega, na década de 40, 30 né?

R- Nós morávamos em cima e nosso pai tinha a loja embaixo, eu pegava o meu carrinho e ficava brincando na loja, atrapalhando a vida dele, mas era o único lugar onde eu podia brincar na época, porque na rua não podia porque era caminhão, já tava começando a entrar aqueles caminhões grandes e era perigoso. De noite não, a gente brincava na rua porque não tinha muito movimento, não tinha quase carros.

P1- Qual é o trecho da rua da Alfândega que você ta falando?

R- É entre a Praça da República e a Tomé de Souza, perto da Praça de São Jorge, ali que nós fixávamos. Então os sobrados todos eram famílias morando, né, e as lojas, às vezes alguns como meu pai, tinham a loja embaixo, mas outros não, eram firmas diferentes, não tinha nada a ver, fechavam a loja e iam embora e a vida familiar continuava lá em cima né, não tinha nada a ver com as firmas. Agora o que era o mais gostoso, vamos dizer assim, que me deixa muita saudade, é que havia uma solidariedade, uma amizade pura, simples, sem demagogia, entre os vizinhos, né. Não importava se era judeu ou não judeu, não importava se era católico, se era muçulmano, se era... Não existia essa animosidade, existia uma amizade, tanto é que nas nossas festas judaicas, os vizinhos não judeus vinham cumprimentar meu pai pelo ano novo, pelo dia do perdão, pelo dia do Kipur, enfim cumprimentavam e simultaneamente meu pai, no Natal, percorria a vizinhança toda e cumprimentava de mão um por um desejando um feliz natal. Então existia isso e também nas nossas festas minha mãe mandava um prato pros vizinhos, dos doces da época, do dia da festa, como também nós recebíamos a nossa, que se come aquela...

P1- Rabanada?

R- A rabanada, enfim existia essa...

P1- Quem eram esses vizinhos, Isaac? Eram outros imigrantes?

R- Eram outros imigrantes.

P1- De que origem?

R- A maioria libaneses, a grande maioria, não vou dizer, que não, mas era 80% pode-se dizer, de 70 a 80% todos libaneses, alguns judeus outros não.

P1- Cristãos, o que, maronitas?

R- Cristãos, maronitas e o árabe era a língua falada entre eles, na minha casa se falava o árabe porque meus avós quando vieram pra cá não falavam outra língua, então meu pai tinha que falar com eles em árabe, minha mãe tinha que falar com eles em árabe e nós então aprendemos o árabe pela convivência. Tanto é que eu falo árabe, não vou dizer hoje, já perdi um pouco, mas eu falava corretamente e correntemente.

P1- Os comerciantes, por exemplo, eles comerciavam em árabe ali, você lembra?

R- Também, eu falava com meu pai em árabe na loja. Quando ele precisava me dizer alguma coisa pra o cliente não perceber ele me falava em árabe e eu respondia em árabe pra ele, quando eu comecei a trabalhar com ele. Então existia muito isso e entre eles também.

P1- Então como que era, por exemplo, o Campo de Santana tinha um papel na infância de vocês?

R- Ah!

Tinha o nosso passeio era lá, o nosso quintal ou playground hoje era o Campo de Santana, aquela gruta lá eu brincava lá dentro na gruta que tem ali, era ali meu passeio dominical, sábado não, domingo mais, sábado trabalhava-se o dia inteiro, até eu estudava sábado, tinha aula aos sábados, naquela época as aulas iam até sábado.

P1- Vocês estudavam aonde, Isaac?

R- Na Escola Tiradentes, ali na Visconde do Rio Branco com Gomes Freire, Escola pública, todos nós estudamos lá, anteriormente Jardim de Infância no Campo de Santana, existe até hoje, ali tem uma escola, não sei se tá em uso.

P1- Você lembra o nome?

R- Jardim de infância, mas ali nós, eu estudei lá, todos meus irmãos estudaram lá, depois primário fomos pra Escola Tiradentes, depois quando fomos pro Ginásio aí eu fui pra Tijuca, quando nos mudamos pra Tijuca em 49.

P1- Mas assim, antes disso ainda na Rua da Alfândega, você falou de escola aos sábados e trabalhar, por exemplo, como judeus, os judeus nessa época fechavam as lojas aos sábados?

R- Não, poucos, poucos fechavam, meu pai trabalhava aos sábados, só fechava nos dias festivos, as grandes festas vamos dizer assim, mas os sábados ele abria, a grande maioria abria, alguns, não vou dizer, mas alguns fechavam aos sábados, mas eram poucos, em relação eram poucos.

P1- E, por exemplo, brincadeiras, como futebol?

R- Também o futebol começava assim, depois que as lojas fechavam, aí começava, depois das seis aí virava a rua de futebol, brincadeiras, as

meninas brincavam de amarelinha, os homens de futebol, outro de peteca, outro de patinete e a gente fazia a nossa vida ali com os vizinhos, amigos ali. Aos domingos nós íamos ao cinema, nós tínhamos cinema na Marechal Floriano ou Rua Larga, que era o Primor, que era um cinema grande, tinha o Floriano, tinha na Visconde do Rio Branco um grande cinema, na Praça Tiradentes, os cinemas.

P1- O que você via, você consegue lembrar, o que se via na tua juventude, de cinema?

R- Bom, na minha época já começou a ter legendado né, 46, 47 começou a ter, mas antes era mudo. Eu quando meu pai me levava era tudo mudo né, eu me lembro assim alguma coisa, com meus seis sete anos ainda era mudo. Meu pai gostava muito de cinema, ele nos levava muito ao cinema e ele gostava muito também e depois a gente saía do cinema e ele nos levava pra tomar um sorvete na Colombo e era nossa alegria naquele dia né. Mas era uma vida de, o centro tinha uma vida excelente, uma vida própria, gostosa, sem... e ainda mais que há poucos, não vou dizer, mas você tinha a Cinelândia perto, a Lapa perto, a Praça Tiradentes perto, tinha os teatros, os cinemas, então havia uma grande concentração de coisas pra fazer, de diversões.

P1- Agora assim em termos, havia muitos imigrantes árabes, muitos judeus por ali, e festas brasileiras? Por exemplo, uma festa junina, isso era comemorado, fazia parte um pouco dessa, ou não, vocês tinham uma coisa mais da cultura do seu país?

R- Não, por exemplo, quando eu comecei a estudar, mas aí foi justamente quando nós, o que aconteceu, em 48/49 mudamos pra Tijuca e eu tinha treze anos, foi justamente quando eu comecei a frequentar esse tipo de festa junina, na Tijuca, até Vila Militar eu ia depois, tinha muita festa junina lá, levava minhas irmãs lá, então... Mas lá mesmo no centro eu não me lembro por causa da minha idade, eu não tenho essa lembrança de festa junina.

P1- Agora um pouco assim, Isaac, as suas memórias de criança da Rua da Alfândega, desse comércio, você lembra de lojas, descreve um pouquinho as lojinhas?

R- As lojas eram todas de atacadistas, todas trabalhavam em alta escala, a grande maioria de portugueses ou descendentes de portugueses, aí os libaneses e judeus começaram a entrar e conforme ia saindo eles iam entrando, né, mas aí começou a diversificar mais, mas o ramo 70 a 80% pode-se dizer, dois terços eram tecidos. Os comerciantes do interior do estado do Rio e de Minas e até do Amazonas vinham comprar no Rio de Janeiro, não havia São Paulo naquela época, São Paulo começou depois de 40; 40 que deu o boom em São Paulo, depois da Guerra né, até então era o Rio de Janeiro que vendia pro Brasil inteiro, então eu me lembro, garoto, que saíam das lojas, saíam caixas de madeira, naquela época era tudo em caixa de madeira e saíam os tecidos pro Brasil inteiro e ou iam de navio, ou muitos de navio, levavam às vezes vinte, trinte dias pra chegar no destino, era um pouco difícil. E havia muita gente, muito comerciante, que inclusive o tecido brasileiro, vendia pra Argentina, pro Uruguai, ele exportava, então eu me lembro que as caixas saíam com uma listra verde e amarela nas caixas, pra identificar a origem brasileira, que aquela carga é uma carga brasileira indo ou pro Uruguai ou pra Argentina, América do Sul.

P2- Sr. Isaac, quem eram os fornecedores do seu pai?

R- Na época? Bom, eram as fábricas de calçados aqui no Rio, havia muitas, tinha uma, inclusive que era uma das maiores, a Bordalo, que é na República do Líbano, onde existe hoje o Edifício Bordalo, era uma grande fábrica de calçado ali. Existia outra na Praça da Bandeira, tinha uma outra no Caju, grande, havia muitas fábricas de calçados, muitas, e tinha também atrás na Rua Camerino, ali naquelas ruas atrás, Rua Camerino, Leandro Martins, uma fábrica de senhoras, aí já calçados de senhora e o tecido meu pai comprava já de segunda mão porque ele não conseguia comprar peça fechada.

P1- O que é uma peça fechada?

R- Peça fechada na época, de casimira era trinta, quarenta metros de tecido, então ele comprava conforme a necessidade dele, comprava meia peça, então ele tinha que comprar do segundo, comprava um estoque menor.

P1- Como era essa cadeia, Isaac?

R- O fabricante entregava para o grande distribuidor, esse grande distribuidor distribuía pros pequenos comerciantes, os pequenos comerciantes é que vendiam pro consumidor, então passava por várias mãos. Pro interior ainda passava por uma outra mão, então a mercadoria, quando chegava, apesar de que a lucratividade era mínima em cada um, mas quando chegava no final ela vinha pesada já, ela já vinha acrescida, bem gordurosa, vamos dizer assim (risos).

P1- E quais eram os tecidos dessa época?

R- Casimira, muita casimira. Eu fico até hoje, como é que nós usávamos naquela época a casimira, que era um tecido grosso, de lã, com essa temperatura. Eu me lembro ainda, que eu como garoto, eu ia pra escola, me lembro que em junho, julho, agosto, eu ia de pelegrine(??) que era um capote azul-marinho com capuz, pra não pegar chuva, nem frio, mas a temperatura era outra, a gente ficava com frio mesmo. Era outra e eu quando peguei já, nós vendíamos muito casaco de lã, depois, mas hoje não se usa.

P1- Mas além da casimira quais eram os outros tecidos que se vendia muito nessa

época, você lembra?

R- Bom, o linho, começou a ter muita procura depois de 40.

P1- Pra fazer o que do linho.

R- Terno de linho, muito, muito.

P1- De que cor?

R- Entrou muito o azul, o branco e o azul e o cinza, era a coqueluche, todos homens vestiam terno de linho, o verão inteiro, ninguém usava, então o homem usava o terno de linho no verão e no inverno ele usava a casimira, com colete, gravata, colarinho duro.

P1- Mas assim, pra gente entender, você fala o homem, mas esse homem era o seu pai, um comerciante? Por exemplo, um empregado da loja do seu pai?

R- O empregado do meu pai, ele morava em Bonsucesso, tenho lembrança dele, porque ele praticamente me criou porque ele era, porque o empregado daquela época era um empregado diferente, a grande verdade é essa.

P1- Por que, Isaac?
R- Eles eram mais... como é que eu vou dizer, eles tinham uma outra mentalidade, primeiro. Segundo, havia um entrosamento melhor, não existia essa diferença de patrão e empregado, havia uma... então eu me lembro que esse empregado morava em Bonsucesso numa casa de fundos, porque eu fui na casa dele várias vezes, mas eu me lembro que ele vinha com sapato engraxado de terno e gravata, ele pegava o bonde Ramos, descia, pegava o bonde e voltava, lia o jornal, jogava no bicho e era funcionário do meu pai. E meu pai não era um comerciante vamos dizer assim de alta escala, era médio, mas sobrevivia, isso que eu quero dizer e ele sempre trajado, terno e gravata, porque até 1940 mais ou menos não se andava no bonde sem gravata, só no reboque (risos), na frente você não conseguia e a mulher tinha que usar o chapéu.

P1- Você tava falando dos tecidos, era o linho...?

R- Linho, a Casimira, aí depois nós trabalhávamos também muito com tecido, aí entramos com tecido de senhoras né, aí entrou o tecido de tipo de, nós chamamos de podange, era um tecido assim brilhoso, pra fazer vestidos, nós vendíamos muito, aí entrou muita estamparia, entrou o cetim, no carnaval vendia-se muito cetim pra fantasias e tinha uma grande variedade, porque nessa época, 1940 a indústria deu um crescimento muito grande, principalmente no têxtil, no tecido.

P1- A indústria era no Rio?

R- Não, mais em São Paulo.

P1- Nessa época já era em São Paulo?
R- Não tinha no Rio, mas no Rio tinha mais fábricas de algodão, como a Nova América, América Fabril, Bangu, algodão era forte aqui, mas esse tecido novo que começou aparecer nessa década de 40/50, no ano de 40, 45 foi, começou de São Paulo, São Paulo a fornecer.

P1- Pra entender ainda um pouco a década de 40 a loja do seu pai. Quem era o cliente do seu pai?

R- O cliente do meu pai eram os revendedores, os chamados prestamistas, o que eles faziam? Eles iam de porta em porta, batiam, eles levavam uma bolsa com vamos dizer, dez, doze cortes de tecido, porque a mulher gastava três metros e meio de tecido, então meu pai já cortava três metros e meio.

P1- Pra fazer o quê?

R- Pra fazer um vestido. Então esses revendedores levavam e eles batiam de porta em porta, a mulher “gostei desse” aí fazia o preço e ele anotava no cartão o nome dela, o endereço e o preço da venda e ela ia pagando todo mês, ele ia descontando, um cartãozinho, aquilo era na base da, não tinha nada assinado, tudo na base da amizade, pagava se quisesse.

P1- Mas como que, ele também comprava à prestação do seu pai?

R- Ele comprava do meu pai a prazo e revendia a prazo, então o que acontecia, é claro, alguns ele fazia com dez prestações, outro com seis, outro com cinco e meu pai dava 90 a 120 dias de prazo pra pagamento, naquela época o prazo que todos comerciantes davam era 90, 120 dias de prazo, três a quatro meses pra pessoa pagar, isso o revendedor, o consumidor pagava em oito a dez vezes, sem juros sem nada, não tinha nada disso, juros nada disso, então o que acontecia, ele comprava do meu pai pra pagar em quatro meses, mas ele enquanto isso, ele já estava recebendo três ou quatro prestações daquilo que ele vendeu, então com mais aquilo que ele vendeu no mês seguinte ele conseguia pagar a duplicata do meu pai. Meu pai no final do mês pegava a duplicata ia aos bancos, descontava pra poder ter o dinheiro pra fazer os pagamentos dele, então havia um giro, vamos dizer assim e os pagamentos todos, praticamente, eram de 25 a 30 não existia o que hoje existe de todo dia pagar. Os bancos de 1 a 25 ficavam vazios, de 25 a 30 eram os pagamentos, todo mundo pagava no final do mês.

P1- Tinha um banco ali na Rua da Alfândega?

R- Naquela nossa zona não, eles todos eram lá embaixo.

P1- Aonde?

R- Depois da Avenida Rio Branco. Meu pai trabalhou com o Banco Transatlântico, que era o Banco que foi fechado pela Guerra, que era Banco germânico, era Banco alemão, aí Getúlio Vargas fechou. Meu pai depois trabalhou com o Banco Boa Vista, que ele veio pra Avenida Passos, esse gerente de banco quando veio pra lá, ele veio, o Banco Boa Vista abriu a agência e o dono do Banco, o Saavedra, naturalmente, o Barão, mandou ele ir de porta em porta e oferecer crédito, o gerente foi de porta em porta oferecer crédito, naquele tempo e cada um foi abrindo as contas lá e descontar títulos, fazer caução de títulos. E ali foi crescendo né, na Avenida Passos, até hoje tem o prédio, mas não é mais banco lá não.

P1- Esses prestamistas que você falou, a maior parte deles era judeu, era de origem libanesa cristã?

R- Tinha de tudo, tinha judeus, tinha libaneses cristãos, tinha libaneses maronitas, tinha de toda raça, a maioria, não vou dizer maioria, era bem dividido.

P2- Tinha muita pechincha nessa negociação aí?

R- Tinha.
P2- O senhor presenciou discussões acaloradas?

R- Não, dentro de um ritual, nada excessivo.

P2- O senhor lembra como era esse ritual de negociação?

R- “Eu tenho mais barato”, e aí dava pra negociar, é claro, quando a pessoa vinha e pagava à vista tinha sempre um pequeno desconto a verdade é essa, mas aquele que pagava à prazo, já não podia obter grandes coisas, mas sempre tinha uma maneira de pechinchar.

P1- Mas como que chegava assim a ponto, um prestamista, por que ele chegava na loja do seu pai? O que fazia ele ter crédito?

R- No caso dos judeus eu posso falar melhor, os outros eu não sei, meu pai, o que acontecia? Meu pai quando veio pra cá, meu pai veio em 1913, em 14 arrebentou a Primeira Grande Guerra, então até 1918 eles ficaram aqui isolados, o mundo ficou isolado, não havia, você não conseguia falar com ninguém, não sabia nada, lá eles não sabiam o que tava acontecendo aqui e aqui não tava sabendo nada de lá, a partir de 18, 19, 20, começaram a vir os novos imigrantes, os novos imigrantes começaram a vir e os que estavam aqui iam recebê-los, eles iam recebê-los na Praça XV, onde era o Cais do Porto antigamente, né e lá cada um levava um, dois pra casa dele. Por exemplo, não sei, não é exatamente, mas vinham trinta rapazes, porque só vinham os rapazes, as moças ainda não vinham, trinta rapazes pra trabalhar, pra ganhar o pão. E daqui também iam vinte, trinta pra recebê-los, os que estavam aqui, um era primo, outro era cunhado, outro era primo de

terceiro grau, então cada um escolhia um, dois, levava pra casa deles, porque eles não tinham onde ficar, arrumava um colchão e eles dormiam, no dia seguinte explicava pra ele: “olha, você tem que começar a trabalhar, assim, assim... é a única maneira que tem, você não tem capital, mas nós vamos te ajudar, você vai levar mercadoria, vai bater nas portas e vai vendendo” eles escreviam pra eles como deviam falar as primeiras palavras e assim eles começavam. É claro que entravam muitas vezes no ridículo, não sabiam falar. É que nem aquela história do Salim Saiu.

P1- Como é, não conheço?

R- Isso é uma anedota, quando o camarada veio cobrar do Salim “o Sr. Salim está?” “Saiú” (sou eu) ele não sabia falar bem o português (risos), aí ele disse “é porque eu vim cobrar aquela promissória que você ta me devendo”. “Ah! Salim saiú, saiú”, então eles faziam isso até como piada né, porque eles não sabiam falar, então as primeiras clientes que eles batiam na porta, eles eram, não vou dizer maltratados, mas ridicularizados. Os que estavam já aqui, “calma, isso é a primeira vez, segunda vez, depois você vai aprendendo e tal” e eles então davam o primeiro crédito, cada um dava um crédito pra cada um, ou por exemplo, se meu pai não tinha um artigo que ele queria comprar porque uma cliente pediu, meu pai ia na loja que tinha esse artigo e dizia “olha pode vender pra ele, é minha responsabilidade” acabou, aquilo era...

P1- Quer dizer, funcionava uma rede, as pessoas se conheciam, um pouco a coisa do país de origem.

R- É. E ai dele se deixasse de pagar, porque a coletividade vinha e cobrava dele, que não podia sujar o nome. Aquilo era respeitado rigorosamente, não havia problema. Quando ele então, depois de uma semana, vamos dizer assim, dez, quinze dias “você já se ajeitou? Então agora você vai alugar um quarto ou uma casa” eles davam a fiança pra ele, assinavam como fiador pra ele arrumar uma casa e assim foi crescendo a coletividade. Mas foi tudo ajudado, um com outro, foram dando apoio, crédito e assim foi. Claro, cada um limitava, “até mil, até dois mil, cinco mil”. Quando o camarada começava a crescer, aí crescia sozinho, não precisava mais aval da fiança, mas o início era assim empurrado, tinha que ter. Lembro que meu pai, um tio dele mandou dois filhos, que eram primos, né, que eram menores na época, um tinha catorze. Eu encontro com os filhos dele, eu digo “olha, você tá me devendo” (risos). Eles vieram trabalhar e o tio do meu pai escreveu pro meu pai e disse “tome conta dos meus filhos, que eles vão pra aí, mas eu quero que você não deixe dinheiro na mão deles”, porque ele tinha medo de eles começarem a trabalhar e fazer, sabe como é garoto rapaz, catorze, quinze anos, vai se aventurar aí vai fazer besteira, né. Eu me lembro, eu era garoto e eles vinham na loja, todo dia eles faziam a cobrança né, vendiam e faziam cobrança, eles vinham às quatro, quatro e meia da tarde pegavam o dinheiro e entregavam pro meu pai, meu pai tinha um livro e anotava tudo o que recebia deles, o caixa. Chegava depois dava pra eles pra despesa, pra cada um, e no final do mês as contas vinham tudo pro meu pai, meu pai pagava as contas todas, aí o que sobrava ele anotava lá, crédito deles, não dava o dinheiro, ficava em conta corrente, até um certo tempo, até que eles se consolidaram, se fixaram bem, porque era o medo deles se aventurarem, fazer alguma coisa errada, sabe como é, rapazes, aventureiros, né, apesar de com pé no chão, mas podiam escorregar.

P1- Isaac, nessa época, essa região da Rua da Alfândega como é que ela era no contexto da cidade, como é que ela era chamada, esse lugar, como hoje a gente chama...?

R- Centro. Todo mundo chamava cidade, aí é que está essa turma que começou a ir pra Tijuca, porque quando a Presidente Vargas foi cortada...

P1- Quando foi isso?

R- Em 40. Todo mundo que morava ali, teve que mudar, não tinha pra onde ir, aí todo mundo foi pra Tijuca, o nosso pessoal todo, Tijuca, São Cristóvão, outros foram pra Vila Isabel, outros foram pro Engenho Novo, então essa turma toda, quando eles precisavam comprar qualquer coisa eles tinham que vir pra rua da Alfândega porque lá comprava tecido, calçado, bolsa, sapato, trigo pra comer, feijão, arroz, tinha que comprar lá. Então nós tínhamos ainda o sobrado como moradia, a turma que vinha fazer compra, batia na porta, a minha mãe “sobe”, ou então subiam sem pedir licença e vinham tomar café, era coisa muito espontânea tomar café na casa dos amigos, na casa do parente, na casa do primo, era uma honra.

P1- Essa coisa que você falou de casas de especiarias, então fala um pouco qual eram as casas?

R- É, assim, tipo a J. Asmar é uma das firmas mais tradicionais lá do Saara, minha mãe me mandava quando garoto comprar tudo, faltava lentilha “vai lá correndo, pede um quilo de lentilha” eu ia e fazia a compra e ele anotava no caderninho, tudo fiado, meu pai ia lá de mês em mês pagar, era tudo fiado.

P1- O que mais se comprava nessa casa?

R- Era todo mantimento de casa, aí meu pai ia aos domingos na Praça XV onde tinha o Mercado Municipal e fazia a compra de verdura, de frutas, assim a coisa mais volumosa ele trazia no bonde, eu ia com ele no bonde, trazia as sacolas e via, todo domingo. Quando faltava alguma coisa assim, durante a semana, uma tia, a menor de todas, que viveu conosco até 1940, que ela se casou em 1940, então ela me levava e eu ia fazer a feira na Praça XI, nós pegávamos o bonde íamos até a Praça XI e trazíamos a feira até a Rua da Alfândega.

P1- Quer dizer, essa loja de especiarias, ela atende tanto os imigrantes judeus, como os libaneses.

R- Porque nós judeus sempre comemos comida árabe, não comia, a nossa comida sempre foi comida árabe, nunca foi outra. Porque, o que acontece? O judeu do outro lado Squerazie(??) , que é oriundo da Alemanha ele também pegou da Alemanha, da Polônia, a influencia de lá, o judeu libanês pegou a influência árabe, então até hoje a gente come comida árabe.

P1- Mas por exemplo, na sua casa você comia arroz e feijão preto?

R- Sempre, toda quinta-feira (risos).

P2- Como era almoçar na loja, tinha pausa na hora do almoço, pra subir, comer?

P1- Você começa a trabalhar quando com seu pai?

R- Em 1951, comecei a trabalhar com meu pai, eu terminei o ginásio, comecei a estudar a noite e trabalhar de dia. Fiz o curso de contabilidade, na Praça da República, ali na Suesc [Sociedade Unificada de Ensino Superior e Cultura], depois eu terminei e entrei pra Faculdade de Ciências Econômicas, eu fiz dois anos, mas no terceiro ano eu travei a matrícula, porque eu não tava aguentando, já estava trabalhando, acordava cedo, dormia tarde, aí não aguentei, travei, aí parei, infelizmente não terminei, mas eu tenho o curso, infelizmente não deu, porque foi justamente 54, 55 que eu comecei a precisar trabalhar mesmo, era duro né.

P1- Como era essa rotina, como o Ed perguntou, vocês paravam pra almoçar, como era o horário de funcionamento do comércio?

R- O comércio começava às oito e terminava às seis. Quando meu pai, agora eu vou voltar um pouquinho, quando nós tínhamos a moradia em cima, eu me lembro, meu pai fechava às seis horas, seis, seis e cinco saía, mas ele nunca subia direto pra casa, ele saía da loja, fechava, dava uma volta, parava num botequim tomava uma água mineral, comprava o jornal à noite, que na época saía às sete horas da noite, dava a volta, lia um pouquinho o jornal e vinha pra casa. Aí eu perguntei, “pai, por que você”, você não, senhor, a gente tinha aquele respeito, meus filhos me chamam de você, meus netos me chamam Isaac (risos). ”Por que você não sobe direto?” Ele disse assim “meu filho nunca faça isso, nunca saia do teu trabalho direto prá casa, você tem que fazer uma separação, porque senão você vai levar teus problemas do teu negócio ou da tua parte profissional pra dentro de casa e vai prejudicar tua família, nunca faça isso.” Aí eu disse “por quê?” “Porque às vezes você sai com um problema na tua cabeça, que você não conseguiu resolver naquele dia, você vai deixar pro dia seguinte. Você vai entrar em casa, por qualquer motivo, a mulher ou a filha vai te falar alguma coisa que você não vai gostar e você vai descarregar em cima dela e ela não tem culpa porque você tá com a cabeça quente, com algum problema, que não foi ou foi mal resolvido, então essa volta eu consigo esfriar minha cabeça, quando eu entro em casa, eu quero entrar feliz e receber a felicidade de casa, então isso é muito importante.” Eles tinham esse costume de não misturar o negócio com a casa pra não prejudicar a família, porque a família não tem nada a ver com os problemas profissionais.

P1- Porque tava muito perto né.

R- Muito perto, porque quando você... depois quando nós mudamos pra Tijuca, levava meia hora, quarenta minutos pra chegar, ele já esfriou, o próprio trânsito já tomou conta dele, ele já esfriou a cabeça, então é uma filosofia talvez, né, acredito eu que esteja certo, não sei.

P2- Isaac, como era essa relação, trabalho, ambiente familiar, a casa, o trabalho e os funcionários também, como era essa relação no dia a dia?

R- Acontece o seguinte, eu comecei trabalhar com meu pai, depois veio um irmão, veio minha irmã e aí a família praticamente começou a nos ajudar, né. A minha mãe fazia a comida e nós mandávamos um funcionário apanhar as marmitas e ele vinha com cinco, seis marmitas e cada um entrava com a sua, ela botava um papel com cada um, porque cada um tinha uma preferência por uma certa comida

P1- Ah! Que mãezinha hein!!!

R- E ela fazia pra cada um aquela comida especial, né, mas tinha alguns dias especiais assim, em que ela fazia um tipo de um pastel de carne com uma massa folhada, isso me veio à lembrança agora e geralmente às sextas-feiras, que era preparativo de Shabat e quando a gente abria sempre vinha um dos funcionários e olhava e aí a gente oferecia também, porque ela nunca mandava um, mandava dois, três pastéis, então eles sempre iam lá pra beliscar e a gente dava, com prazer, é claro e eles gostavam da comida. Até quando dava pra dividir a gente dividia com eles e eles comiam e eles traziam também a marmita deles, mas quando eles podiam e muita gente beliscava, não só os funcionários, até vendedores, que vinham lá por acaso, tavam lá e cheiravam, quando levantava a marmita e vinham, então ela mandava, na realidade ela chegou a mandar, porque teve um período que nós trabalhamos com dois cunhados, os dois cunhados casados com minhas irmãs, eles trabalharam conosco numa outra loja, então na realidade nós éramos, três..., ela mandava sete marmitas.

P1- Uma marmita daquela época era um prato, era marmita mesmo, fechada?

R- Marmita, ela fechava, deixava bem quente e ia botando uma em cima da outra e uma toalha pra e ele vinha de bonde ou de ônibus e trazia pra nós e vinha quentinha, claro, não era pelando, mas era...

P1- E essa coisa assim do café, por exemplo, comerciante tem isso, vamos sair tomar café. Como que isso funcionava nessa década de 50 na Rua da Alfândega? Tinha um lugar que era o café da tua turma, por exemplo?

R- É, exatamente, na Rua da Alfândega tinha um bar ou na Senhor dos Passos. Meu pai por exemplo, tinha a turma das oito, quando ele abria, tinha a turma das nove e tinha uma turma das dez. Eram três cafés antes do almoço, que ele rigorosamente tomava e tinha os extras né, que de repente vinha algum conhecido extra, então vinha ou pra negócio, ou pra conversar, mas era uma gentileza convidá-los pra tomar um café e às vezes ele tinha até assuntos pra resolver na loja, mas ele era obrigado a fazer aquela...

P1- Ritual.

R- Aquele ritual, aquela homenagem, vamos dizer assim de levar pra tomar um café e eu ficava às vezes até um pouco irritado, mas ele dizia, isso faz parte também e tinha que conciliar as duas coisas. Fazia parte, hoje eu vejo que na hora ali eu reclamava, mas hoje eu dou valor.

P1- Você faz isso?

R- Faço, hoje eu faço.

P1- Bom, Isaac, então você em 1951 começa a trabalhar com seu pai, qual vai ser sua primeira função na loja, você escolhe o nome da loja?

R- É, o nome da loja não, continuou sendo Meyer Isaac Nigri, mas no decorrer do, nós continuamos trabalhando, meus irmãos começaram, em 55 veio um irmão, em 57 veio outro, 58 mais ou menos. Aí nós começamos a trabalhar e mudamos de ramo, o tecido começou a ficar muito desgastante pra nós, aí nós começamos entrar em roupas feitas. O que eram roupas feitas? Aí começamos entrar com lingerie, começamos a trabalhar muito com sutiãs, com anáguas, camisolas, jogos de lingerie pra noivas, se usava muito combinação, anáguas e a mulher quando casava ela tinha que levar pelo menos dois jogos daqueles de, era quimono, camisola, enfim era um conjunto né, nós vendíamos muito daquilo. E anáguas, e sutiãs a De Millus começou a trabalhar conosco, então nós fomos grandes compradores deles, trabalhamos muito e no final, em 59 e 60.

P1- Que cores eram?

R- Era branco e areia, bege né. E sempre os sutiãs eram todos eles acolchoados, era moda na época. Nós tínhamos até um problema muito sério, que nós todos homens trabalhando e vendendo sutiã, então tinha senhoras, que não gostavam, a gente ia até certo ponto, quando a gente sentia que tava atrapalhando a venda a gente chamava nossa irmã e Elza vinha e nos dava uma cobertura, aí, mas muitas levavam a coisa dentro, com respeito, não tavamos lá de brincadeira, mas tinha algumas que não gostavam, principalmente as meninas moças, quando elas iam com as mães pra fazer compra de sutiãs, elas não gostavam, era um problema pra nós.

P1- Se experimentava nessa época, roupa de baixo?

R- Tinha uma cabine, elas iam, mas aí nós colocamos algumas funcionárias moças, pra justamente nos ajudar nesse ponto né, mas até então nós éramos todos homens e era difícil, nós encontramos muito problema com isso. Então minha irmã só descia às onze, mais ou menos até dez e meia, onze horas, de vez em quando, a gente tinha alguns baques, mas a gente contornava, não era assim coisa muito difícil não. Algumas entendiam, outras não, mas enfim, nós trabalhamos muito com o ramo de lingerie, nós fomos muito fortes e depois nós entramos com roupas em geral de mulher, vestidos, blusas, saias e vendemos muita saia, entrou a moda de saia plissada, saia de tergal, enfim, nós trabalhamos muito, conjunto de Ban-lon, aí eu já to entrando nos anos 60, conjunto de Ban-lon , vendíamos muito, camisa de Ban-lon de homem, entende, não sei, você não

pegou, né.

P1- Não

R- Era uma helanca, um tipo de um nylon que aderia bem ao corpo, então a mulher gostava, era colante, mas se usava com casaco né, a mulher usava com casaco, era um conjunto. Olha, aquilo não dava tempo da gente abrir as caixas pra vender.

P1- E essa mercadoria vinha de onde?

R- De São Paulo, tudo de São Paulo, essa época, 95, 98% era de São Paulo a não ser algumas coisas que nós comprávamos aqui de lingerie. Lingerie nós tínhamos boas fábricas aqui no Rio

P1- Lingerie, é o tecido lingerie também?

R- Não, lingerie que eu digo, é roupa íntima.

P1- Mas é de tecido lingerie ou pode ser de algodão, de...?

R- Também de algodão, tinha de algodão, nós comprávamos muito do Norte, nós comprávamos umas camisolas do Norte, que vinham do Ceará, mas toda trabalhada sabe, com trabalhosinho, mas era uma coisa, o que se vendia. É que o comércio também, o que aconteceu? Houve uma evolução, havia uma concentração de loja no Saara, principalmente como atacadistas, as sacoleiras começaram a revender justamente. Eu, como exemplo, eu cito até uma cliente, que eu perguntei a ela como é que ela se tornou sacoleira, uma curiosidade. Ela disse simplesmente “eu vinha pra cidade fazer compras e uma vizinha minha me pediu pra comprar uma, um objeto”, ela comprou esse objeto, mas ela levou mais alguns pra ela escolher, por qualquer motivo, não me lembro mais agora e ela levou e ela gostou e disse “eu vou ficar com esse e mais esse e aquele” e aí despertou a atenção dela, “ué eu posso trabalhar nisso” e ela começou a revender assim por acaso.

P1- Quando é que você acha que começaram assim as sacoleiras?

R- Elas começaram assim.

P1- Década de 60, 70?

R- 60, meia zero, em 1960 já tinha, nós tínhamos muito cliente, antes eram feirantes, os feirantes é que compravam muito, principalmente esse ramo, mas depois dos feirantes vieram

as sacoleiras, compraram muito, foi uma época muito boa e não havia na época, era tudo na base da confiança, a gente tomava algumas informações. Porque o que acontecia? A cliente chegava com uma relação de pedidos, “me dá um sutiã, me dá uma camisola, um bege, me dá isso, me dá um conjunto, na, na, na”, aí a gente fazia a conta, na hora que chegava a conta, deu 445. “Então vamos tirar, que eu só to com 380.” Aí o que nós fazíamos, dependendo de quem: “não, você pode levar, depois você paga, você vai ficar devendo 65 reais” e aí ela vinha e depois pagava e começou a ter um relacionamento. E essa facilidade, fez com que ela se tornasse fiel à nossa firma e nós evoluímos ali, foi dando essa oportunidade de ficar devendo, eles se tornaram fiéis e nós começamos a crescer, entendeu. É claro, tem algum risco, não vou dizer que não, mas foi risco pequeno porque era tudo de boca e na moral e havia muita moral nessa época.

P1- No comércio?

R- Muita, muita moral. As pessoas, dificilmente acontecia de alguém fugir e não pagar, dificilmente. A coisa de inadimplência vem de vinte, vinte e cinco anos pra cá, até 70, 75 a coisa era com mais rigor, a pessoa tinha mais decência, a verdade é essa.

P1- A década de 60, você tá falando da mulher consumidora né, quer dizer, esse espaço da rua da Alfândega, a minha sensação é assim é que era um espaço um pouco masculino, porque eram os grandes atacados, vocês todos são homens, a mulher consumidora vai aparecendo quando?

R- É, então o que acontecia? As mulheres vinham pra Rua da Alfândega, mas eram poucas, mas nós devemos, a grande verdade, nós devemos muito ao Gabriel Habib, infelizmente ele encerrou a loja dele lá, mas nós devemos porque foi ele que dinamizou o mercado varejista na rua da Alfândega, foi ele que deu o primeiro passo, ele começou a vender brinquedos à varejo, quando não acontecia, só vendia meia dúzia em diante, na época, aí começou a ter o fluxo, aí nós começamos a ter o fluxo de pessoas. Com a inauguração da Saara em 62 a coisa foi crescendo, foi crescendo ao ponto de nós termos hoje o varejo somente varejo, hoje não tem mais o atacado, não tem mais sacoleira, quer dizer, então foi ali em 1958, 60, que a coisa deslanchou pro varejo.

P1- O que foi, assim de uma forma sucinta, o que é essa área e porque ela foi fundada nesse momento?

R- O que aconteceu, foi um grupo de comerciantes, posso me incluir inclusive, nós nos reuníamos assim nos cafés e nós precisávamos nos unir, justamente que quando começou a ter esse movimento de varejo, de consumidor final, que nós estávamos acostumados à sacoleira, aos representantes, aos

intermediários, vamos dizer assim. E era muito fácil vender pra intermediário, o mais difícil é vender pro consumidor, então nós precisávamos de uma estrutura, de uma base pra fazer uma boa organização, de policiamento, de limpeza, enfim, então foi criada essa área, com um grupo de uns vinte lojistas e nós começamos a trabalhar em cima disso e foi crescendo.

(troca de CD)

P1- O que significa a sigla Saara?

R- Sociedade Amigos Adjacências Rua Alfândega, SAARA.

P1- E esse nome é ligado um pouco à origem étnica de vocês?

R- É, nós íamos colocar Sociedade Amigos Rua Alfândega, mas aí ficou Sara, aí acharam melhor SAARA e ficou e ganhou o pulso e a coisa foi bem, agora o nosso mérito é todo graças ao Gabriel Habib, Elau, essa turma toda que.

P1- Elau era o que?

R- Era eletro eletrônico.

P1- Aonde que é?

R- Na Rua da Alfândega, eles tinham várias lojas lá. A Tele Rio foi um dos que nos deram muito apoio na época, ele foi um dos fundadores, nós fazíamos as reuniões na loja dele, o nome dele agora ta me escapando, nós tivemos um bom relacionamento, ele foi um dos que nos incentivou muito, ele colaborou muito, os bancos na época que estavam lá, também apoiaram na época, era o Banco Nacional do Norte, Mercantil Niterói.

P1- Eram comerciantes individuais, mas vocês se viam realmente como uma sociedade, quer dizer, vocês divulgavam esse nome, de que forma isso foi tomando na cidade esse nome na cidade como a gente conhece hoje o SAARA?

R- É, cada um de nós foi promovendo isso, inclusive nós fazíamos nossos talões de venda, as notas fiscais, Rua da Alfândega, 360 - SAARA- Rio de Janeiro, começamos a divulgar e foi indo né. E de vez em quando a gente fazia alguma propaganda também na televisão, nos jornais.

P1- Você lembra da propaganda da sua loja, por exemplo, na

televisão?

R- Da loja não, mas da SAARA.

P1- Ah! Da SAARA.

R- Nós promovemos muitas vezes, dia das mães, dia das crianças, então houve muita promoção, Natal, essas datas assim festivas, né, fizemos um time de futebol, enfim, pros funcionários das firmas. Mas sabe como é, o grande problema da SAARA no meu modo de entender, é que nós somos, eu calculo, aproximadamente 1500 firmas, a SAARA, porque a SAARA hoje vai da praça da República, rua da Alfândega, até Buenos Aires, até

rua dos Andradas, ela faz esse quadrilátero, mais ou menos, 1500 firmas, mas só trezentas e poucas que pagam, esse é o grande problema nosso, nós temos limpeza própria, temos segurança própria, nós não dependemos de Coluve(??), nem de polícia, porque nós temos tudo lá, você vai qualquer hora da noite você tem segurança lá, os nossos problemas de segurança são contados a dedo, acontece, não vou dizer que não, mas são contados a dedo, não tem, quando são pegos, são levados. Acontece muita coisa, na questão de segurança, entra na loja alguém pra roubar, mas aí não depende de segurança, aí já é um outro problema, mas nas

ruas você não encontra problema.

P1- Mas então voltando ao seu comércio da década de 60, de roupas, assim, me descreve um pouquinho como era a loja, como vocês expunham a mercadoria?

R- A mercadoria a gente colocava na porta em bancas assim, expondo né, mas não ultrapassando a calçada, a ultrapassagem da calçada que existe hoje é coisa de oito, dez anos pra cá, anteriormente era da porta pra dentro. Então cada um colocava o letreiro dele ou fazia a propaganda, nós tivemos no boca a boca.

P1- Você nunca anunciou a sua loja?

R- Nunca, pra não mentir, na Saara eu anuncio por uma questão de, mas assim fora disso eu nunca anunciei, mas o nosso trabalho foi todo de boca a boca, eu quando atendia uma cliente, porque não tinha escritório, eu trabalhava mesmo no balcão, eu comprava e vendia e pagava, lá dentro, lá no balcão, tudo, então quando eu atendia a cliente eu dava um cartão pra ela, “nos dê preferência. A senhora vai levar mais cinco cartões, manda cinco amiguinhas suas pra mim, que eu preciso” e assim foi. Nós fizemos esse trabalho de boca a boca e nós fomos ganhando mercado e fomos conquistando de 60 pra cá. Graças a Deus.

P1- E você fica com esse ramo de roupas até quando?

R- Bom, aí nós fomos com roupa até 88 mais ou menos, quase 90. Nós fomos grandes distribuidores da USTop

P1 - Ah!!!

R- No período de 80 a 90.

P1- Como é que era a calça USTop?

R- A calça USTop foi um coqueluche, nós éramos os maiores distribuidores no Rio de Janeiro, nós recebíamos uma boa cota e nós distribuíamos até pros pequenos comerciantes, né. Nós vendíamos muito, mas depois ela decaiu e quando ela decaiu, nós saímos do ramo de confecção.

P1- Mas a mulher usava calça USTop?

R- Usava, era tanto homem quanto, era unissex.

P1- E era uma calça nacional?

R- Nacional.

P2- E o tecido?

R- Era brim, o brim azul aquele.

P1- E qual era a marca específica dela?

R- USTop.

P1- Mas não tinha algum detalhe, era um brim liso ou Lee(??).

R- Era um brim Lee(??) azul, USTop né. Ela vinha com a etiqueta assim, USTop. Agora tinha algumas modelagens né, uma com bolso faca, outro sem bolso, uma com botão, outra sem botão, mas tinha o clássico, que era, vamos dizer assim, “o pão com queijo”, que aquilo vendia assim às toneladas, era uma coisa. Não sei como cresceu, como caiu a venda daquilo, impressionante!

P1- Mais jovens eram consumidores?

R- Mais jovens, muito mais jovens, os jovens é que consumiam muito, muito, até meia idade, era muito consumida,

nós tivemos um bom período nesse relacionamento com a USTop, com a calça de brim e depois trabalhamos também com outras fábricas de brim também, mas essa USTop foi a número um, não tem comparação com as demais.

P1- E essa calça também podia ir, podia se experimentar, sua loja tinha cabine?

R- Tinha cabine, mas a grande maioria levava, experimentava em casa, se tivesse apertada vinha, trocava, não tinha problema, era muito mais fácil ele levar do que entrar na cabine, experimentar, voltar. Porque o que acontecia também ele quando comprava, ele comprava pra irmã, pra tia, pra avó, então ele comprava, quatro, cinco, seis e levava, depois vinha, trocava uma ou duas.

P1- Nessa época que você tá falando, década de 70/80, a sua loja tinha embalagem?

R- Nós embrulhávamos tudo no papel, demorava, justamente isso, eu tava me lembrando disso naquele dia, que hoje com o advento das sacolas, a gente pega uma colcha, um acolchoado e bota dentro da sacola e entrega pro cliente, antigamente não, o cliente, nós tínhamos que amarrar o acolchoado, pegava uma folha de papel daquelas grandes, embrulhava aí fazia alça pro cliente levar na alça, isso levava pelo menos de cinco a oito minutos, cada cliente.

P1- E uma calça USTop?

R- A calça USTop

dobrava, mas não tinha sacola naquela época, isso é que é, hoje a coisa é muito mais rápida, isso que eu me lembro, o que nós comprávamos de

papel pra embrulhar era uma coisa, hoje é sacola, você enfia.

P1- Mas, por exemplo, seu papel tinha uma marca? A loja tinha um logo?

R- Não, nada, nós evitávamos despesas, evitamos ainda.

P2- O letreiro como era?

R- Letreiro comum, na loja?

P2- É na loja.

R- Dália Atacado, Cama e Mesa.

P2- O que é Dália?

R- Dália é o nome de uma flor, é o nome da minha filha em hebraico.

P1- Mas o que veio primeiro o nome da loja ou o nome da filha?

R- Da filha, porque até então nós tínhamos o nome de Nitex, quando meu pai faleceu, nós transformamos todas as lojas em Dália, aí ficou Dália.

P1- Que ano o seu pai faleceu?

R- 72. Até 72 nós mantínhamos Nitex, a nossa marca era Nitex, quando ele faleceu nós transformamos as firmas em Dália, aí ficou todas três Dália, porque uma era Dália e uma era Nitex, aí nós transformamos tudo em Dália.

P2- E o significado de Nitex?

R- Nitex de Nigri, Nigri têxtil, era abreviação de Nigri e têxtil, né. Como nós queríamos unificar, aí nós colocamos Dália, né, porque Dália é o nome de uma flor.

P1- Agora essa coisa de embalagem, isso é muito próprio do Saara ou da sua loja?

R- Não, a Saara era toda assim, totalmente.

P1- Ninguém tem sacola personalizada?

R- Agora tem, agora tem, mas anteriormente não. Ainda sexta-feira feira eu tava lembrando a um representante, que quando eu recebia mercadoria da fábrica dele, vinha numa caixa de madeira, panos de prato, na época, colchas, lençóis, uma caixa de madeira, que

nós tínhamos que abrir com muito cuidado e nós tirávamos a mercadoria e essa mesma caixa nós revendíamos porque muita gente da própria Rua da Alfândega precisava comprar essa caixa pra remeter mercadoria pro interior, porque a embalagem era toda em caixa de madeira, eram caixas fortes. Hoje tudo de papelão, e nós,quando nós mandávamos mercadoria pra fora do Rio, nós tínhamos que arquear, nós tínhamos uma máquina só de arquear pra evitar roubo, esse arqueamento era uma máquina, era demorado, hoje você passa aquela fita.

P1- Então quando é que vocês começam a comerciar esse ramo de cama e mesa?

R- Bom, de cama e mesa nós começamos já em 61/62, aliás, 59 já começamos, mas nós misturávamos muito, cama e mesa, confecção, tinha de tudo um pouquinho, quando chegou em 88, nós sentimos que o nosso mercado de cama e mesa era mais favorável do que a própria confecção, a confecção tava muito espalhada e dependia muito de moda, então nós optamos pela cama e mesa, porque não depende de moda, o lençol vai vender sempre o lençol, a toalha vai vender sempre como o lençol. Mas o vestido, o cinza hoje é moda, amanhã não é, então tinha que vender abaixo do custo, então nós começamos a ter alguns problemas financeiros no caso, prejuízos né, aí nós optamos em ficar só na cama e mesa. Aí dinamizamos a cama e mesa, e levantamos em 88, aí ficamos só com cama e mesa, 88/89 começamos a ficar somente na cama e mesa.

P1- E quem são seus fornecedores?

R- Hoje é a Coteminas, é o nosso vice-presidente.

P1- E antes? Não tem problema nenhum, imagina (risos). E antes?

R- Era Artex que ele comprou, era toalha do Norte, que ele também comprou, as grandes fábricas ele comprou, a Santista ele comprou.

P1- Mas seu produto é 100% nacional?

R- Tudo nacional, tudo nacional, eu tenho alguns artigos em algodão puro que são importados, mas nós compramos dos importadores, porque nós compramos pouco, não dá pra comprar direto.

P1- E quem é seu cliente desse ramo?\

R- Nossos clientes, tem o varejo, nosso varejo lá, né. Nós temos os hotéis, as clínicas, os motéis.

P1- Motéis e os hotéis?

R- Os hospitais.

P1- O que os motéis compram?

R- Lençol, toalha, colcha.

P1- Mas tem algum tipo específico de?

R- Não, dependendo é claro de cada um tem alguma coisa especial, né, mas pra cada um nós temos um tipo, vendemos muito pra saunas, vendemos roupões pras saunas, essas saunas todas compram conosco, né, então nós temos uma gama muito boa de clientes.

P1- Mas o Saara tem um cliente, tem um cliente, que é aquele que passa na rua e entra e compra?

R- Tem, tem, nós temos o varejo completo. Nós temos o varejo em si e nós temos o atacado, que nós chamamos de, que é feito lá atrás, que é feito pelo meu irmão né, ele que trata da parte de venda para hospitais, clínica, ele que faz essa parte, mas a parte da frente é toda de varejo.

P1- Agora, hoje como é que se expõe uma mercadoria tão grande como essa, um lençol, uma colcha?

R- É, a grande verdade é que a gente nem quase expõe, o cliente vem, quero isso e vamos atendendo de alguma maneira. A gente tem duas vitrines pequenas lá, mas não, na Rua da Alfândega não funciona muito não, você tem que colocar, eu vejo dessa maneira, você tem que colocar uma pilha, por exemplo, de um lençol, se você tem seis cores, você coloca as seis cores, o cliente entra lá, aí ele vê que tem todas as cores e ele escolhe a cor. Você pega o jogo de banho, você coloca uma pilha de vinte toalhas na porta com o preço, então você tem, você bota, o branco, o amarelo, o verde, o azul e depois repete as cores, o cliente escolhe a cor. Ele sabe, o cliente já sabe que tem aquelas cores todas, porque nós já colocamos as cores, se ele quer dois jogos brancos, então tem que pegar

lá no estoque, aí já é diferente.

P1- E como é que são marcados os preços na sua loja?

R- Tem uma tabuletazinha com os preços.

P1- Como é que é essa tabuleta?

R- Amarela com azul.

P1- Amarelo o quê? O papelzinho?

R- O fundo amarelo e a cor azul.

P1- Quer dizer, no Saara ou na tua loja, essa coisa um pouco da estética, do visual, não é uma coisa importante no negócio?

R- Não.

P1- Como é numa loja em Ipanema, por exemplo?

R- Não, porque o cliente vai, ele entra, ele quer ver, ele olha, ele procura olhar “eu quero ver uma toalha de banho” aí mostra a toalha de banho, “eu quero ver um lençol”, aí pega, “olha tem esse, tem aquele, tem esse com essa medida, tem o king size”, aí o vendedor é que trabalha.

P1- E como é que você prepara esses vendedores pra trabalharem nessa loja?

R- Bom, a nossa turma é antiga, né, eu já aposentei uns dozes funcionários, que vieram comigo, se aposentaram e pararam.

P1- E como você atribui isso? Por quê?

R- Porque a gente faz um relacionamento amigável, amistoso, é claro tem suas exceções, não vou dizer que todos, mas a grande maioria, 80% dos meus funcionários, talvez até mais, pra não mentir, eles tem mais de seis, sete anos.

P2- Existem casos de filhos de ex-funcionários trabalhando com o senhor?

R- Não, pelo relacionamento. Eu tenho uma gerente que fica na Senhor dos Passos, ela tá comigo há 42 anos.

P1- Nossa!

R- Ela veio com 16, ta com 58, ela começou comigo em 61. Então é um relacionamento que a gente faz, é claro, a gente procura atender cada um dentro do possível, a gente mantém um equilíbrio, vamos dizer assim, a gente entende, cada um tem algum problema e a gente vai procurando resolver de alguma maneira, sem prejudicar ninguém. Aquele que é bom, ele fica, eu sempre digo uma coisa, aquele que não é bom, ele tem que rodar não adiante, o que é bom fica, tanto é, a prova ta aí, eu já aposentei dez, doze que não quiseram trabalhar mais, porque eu pedi a eles, implorei pra eles continuarem, eu disse “aposentem e continuem”, “não, eu quero descansar, tô cansado”, tá bom, um morreu, outro morreu, infelizmente, mas é, graças a Deus, nós temos pelo menos um bom convívio.

P1- Bom, a gente meio que pra ir encerrando, essa coisa da mudança da cidade nessa época, de que forma, por exemplo, metrô muda a sua clientela, o seu comércio, essas mudanças urbanas do centro da cidade. O que o centro ganhou e o que o comércio do centro perdeu?

R- Eu acho que o nosso maior problema se chama estacionamento, estacionamento e sanitários. Eu acho, no meu modo de entender, porque eu me coloco como consumidor, não como comerciante, se eu vou a um Shopping e eu quero encostar o carro, eu quero ter um estacionamento rápido e bom, se eu to lá passeando com a mulher, fazendo compra e não sei o que, mas eu tenho as minhas necessidades, então eu tenho que ir ao sanitário, então eu tenho que ter um bom sanitário, eu acho que nossos dois problemas na Saara são esses dois, estacionamento e sanitário porque o resto nós temos tudo. O dia que nós tivermos o bom estacionamento, amplo e bem conservado e bem puro, aquilo vai triplicar ou quadriplicar, não tenha dúvida, porque note, não precisa ir longe, você nota no sábado, só porque no sábado nós conseguimos, coisa de uns sete, oito anos, nós conseguimos que da praça da República até a Avenida Rio Branco, a Presidente Vargas do lado direito de quem vai pra Candelária, é toda de estacionamento, já repararam né.

P1- E aumenta o número de clientes?

R- Muito, não só pra nós, pro comércio todo do centro, porque o que aconteceu? A Saara conseguiu da Praça da República até a Avenida Passos, depois ela conseguiu até Andradas, aí o comércio lá do Centro parece que reivindicou e eles estenderam até a Avenida Rio Branco. E a Avenida Rio Branco você também já pode colocar aos sábados no meio fio ali, então isso favoreceu o comércio do Centro, completamente.

P1- Mas quem é o cliente de sábado?

R- Ah! É o casal, é o casal com os filhos, eles vêm passear, eles vêm comer kibe e esfiha, mas eles também compram. É claro, não vou dizer que todos vêm pra isso, mas quando eles não compram colcha ou lençol, eles tão comprando brinquedo, tão comprando na Turuna uma fantasia, enfim, é um comércio em geral, eu acho, muito importante. Eu acho o estacionamento, o dia que a Saara conseguir resolver esse problema de estacionamento, nós vamos ter um progresso, porque eu sinto pelos nossos clientes, porque eu tenho clientes que quando chega

no mês de dezembro, até no mês de novembro, ele chega lá quatro horas, não tem onde estacionar, ele vai estacionar no Largo São Francisco e na praça Tiradentes, aí ele vem andando, ele já chega cansado, já tá irritado e o cliente não pode ficar irritado, pra nós não é bom. Então ele vem, ele já compra, não sei o que, não sei o que e tá com pressa porque o estacionamento tá custando caro pra ele e aí o que nós temos que fazer? Nós temos que deslocar um funcionário, pra levar a mercadoria pra ele lá na Praça Tiradentes, esse funcionário leva meia hora no mínimo, pra nós não é uma boa, mas nós temos que fazer, é um custo, mas vale, mas na falta nós somos obrigados a atender, entende? E muitas vezes o que acontece? Ou então a gente pede, “dá a volta na esquina, o rapaz te espera” pra ganhar tempo.

P1- Dá a volta de carro?

R- Dá a volta de carro, isso tem que ser uma pessoa acessível, porque as pessoas não atendem o nosso pedido, então eu acho que o dia que tiver um bom estacionamento, porque existe um projeto pra isso, é o tal projeto Saara, que não saiu do papel, infelizmente. Era pra fazer lá na presidente Vargas, um tipo de um, além do estacionamento, uma rodoviária dos caminhões de transporte, aqueles que trazem e levam mercadoria, porque eles também têm problema, eles encostam o caminhão lá na Praça Tiradentes ou no Largo São Francisco e vem com o carrinho com a mercadoria pra entregar pra nós e só podem entrar até às nove horas.

P1- Quando é que passa a ser de pedestre aquele?

R- De nove às sete.

P1- Não, assim, quando é que aquele grupo de rua se torna de pedestre?

R- Por volta de 1980.

P1- E assim, você falou de transporte, a figura daquele homem, aquele burro sem rabo, ainda existe no sábado?

R- Ainda tem com carrinho, todos nós temos, senão não dá pra você transportar a mercadoria de um lado pro outro, nós temos em todas três lojas um, pra poder locomover, pra poder tirar uma mercadoria do outro, vi com aquilo.

P2- Sr. Isaac, entre o passado e presente, o senhor falou que o comércio no começo era bastante português, passou a ser árabe, virou muçulmano, como é a cara hoje do Saara?

R- Hoje ela tá bem distribuída, os judeus ficaram minoria, os libaneses continuam e os chineses e coreanos tomaram uma boa frente, então tá bem distribuído, mas liderado pelos árabes, os libaneses.

P2- Existe uma localização geográfica pelas ruas, que a gente possa fazer esse mapeamento?

R- Não.

P2- É bem distribuído.

R- É bem distribuído, bem distribuído, eles entraram há uns seis, sete anos e estão radicados lá e estão trabalhando bem, é claro, um tipo de trabalho diferente do nosso, mas não são maus não.

P1- Qual é o ramo?

R- É miudeza, é tudo coisa assim, flores, eles trabalham muito com flores, com estatuetas, essas coisas, bibelôs, coisas pequenas, miudezas assim, de quatro, cinco, oito reais, coisa muito miúda.

P2- Tem as lanchonetes também?

R- É, tem caldo de cana, tem algumas que tão entrando agora. No nosso ramo de confecção eles não têm não, tem parece só um que trabalha com roupa lá, eles trabalham muito com bicho de pelúcia, tem uma firma só disso, eles tem uma outra, muita loja de brinquedo, eles trazem muito, eles importam muito brinquedo da China, que sai muito mais barato.

P1- Isaac, você pode citar lojas tradicionais, daquela região, que acabaram, de vários ramos, por exemplo?

R- Ah! Tem muita loja, puxa!

P1- Por exemplo, vamos primeiro os portugueses, o ramo de atacado de tecidos?

R- Tecidos.

P1- Daquelas grandes.

R- Grandes, bom, Miguel Daichum(??), Jaime Ataíde, é... Irmãos Chamme, N. André, Salim Shuek e Companhia, Tufik Nigri, Tecidos Siqueira Jorge, Carvalhal Cia. de Tecidos, Beke Gis(??) e Cia., Jaime Gurevits(??),Pinkas Peice(??), Casa Sherman, Ruchnik.

P1- Eram atacadistas de tecidos

R- De tecidos, todos esses, firmas grandiosas.

P1- Como é que você avalia, assim pra ir encerrando, quer dizer, você, hoje você tem um ramo, é, familiar e tem uma tradição no Saara, qual é a tua avaliação, por que essas casas tradicionais foram perdendo espaço?

R- Os filhos não quiseram continuar, ou são profissionais liberais, ou não souberam dirigir, também nós tivemos alguns casos, os pais deixaram, faleceram, os filhos não souberam dirigir, não foram preparados, o grande problema da geração, é o meu caso hoje, que eu to preparando a terceira geração.

P1- Você tá fazendo isso?

R- Tô preparando.

P- Tá preparando quem?

R- O meu filho e meu sobrinho, to preparando, mas é difícil, confesso que é difícil. É difícil porque eu venho de uma geração que eu fui educado pelo meu pai, que nasceu em 1897, havia o respeito, havia aquela tradição, medo, tudo né. Hoje eu dou aquela liberdade pro meu filho, eu dou um outro tipo de educação, não que ele seja mal educado, ele é bem educado, mas diferente do que eu fui, mas eu tenho que prepará-lo porque hoje ele tá no computador e eu tô escrevendo ainda.

P1- À mão?

R- À mão, então existe uma diferença e grande, quando eu digo uma coisa ele já quer dizer outra, então ele tem que chegar um pouco pra mim e eu tenho que chegar um pouco pra ele, essa é a grande virtude ou a grande capacidade que eu deva ter, eu e meus irmãos, é claro, porque senão nós podemos brecar ou não deixar a coisa progredir ou pelo menos conservar o que ta feito né. Porque é muito fácil sentar na cadeira do papai, onde ele sentava, mas antes é o que eu faço com meu filho, meu filho estudou Economia, ele é formado pela PUC, ele fez pós-graduação nos Estados Unidos em São Francisco, ele veio graduado pra ser um bancário de alta... mas eu disse pra ele “escuta, isso tá feito, aqui mal ou bem, um dia é bom, outro dia é ruim, mas aqui a gente tira o nosso pão todo dia e já tem um castelo formado, você como descendente, como futuro herdeiro, você tem que conhecer os mínimos detalhes do que existe aqui dentro. Se você trabalhar lá fora, com todo respeito, eu vou te ajudar em tudo, mas eu vou ter que fechar aqui, imediatamente, eu não posso continuar, porque pra fechar uma firma você leva cinco, seis, sete anos.”

P1- É, Isaac?

R- É. Pra você abrir, você abre em 24 horas, pra fechar...

P1- Por que, hein!?

R- Primeiro porque você tem que fechar o estoque, segundo você tem que fechar as contas, terceiro você tem que fechar os empregados, o fisco, pra você fechar um por um, não é brincadeira você tem que fechar um por um. É ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], é imposto de renda, é PIS [Programas de Integração Socia], é COFINS [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], é fundo de garantia, é ministério do trabalho e cada um tem um processo né e você tem que documentar tudo, não é muito fácil.

P1- Isaac, qual é a tua avaliação? Seu filho vai dar continuidade?

R- Aí é que está, então, eu chamei ele e disse “olha, você tem duas opções, você pode trabalhar lá fora e eu vou te ajudar em tudo que você precisar, vou te dar todo apoio, mas você precisa

dedicar pelo menos duas horas por semana ou três, você tem que vir aqui pra conhecer, pra

quando eu não estiver mais aqui você saber onde é que tem esse papel, o que tem ali, o que tem ali, senão tudo isso vai pro beleléu.”

P1- E ele aceitou?

R- Ele disse “então nesse caso eu tenho que trabalhar aqui”, então ele veio trabalhar. Então eu to dando pra ele a missão, ele tem que saber como se varre uma loja, como se limpa um banheiro, como se faz uma conta de, o cliente, como se recebe um cheque, como se recebe um cartão de crédito, como se embrulha, como se atende o cliente no final, como se agradece o cliente, como se dá com o gerente de banco, quando se chama um vendedor, um corretor, então eu vou subindo, primeiro ele tá conhecendo as coisas lá debaixo, depois ele vai subir, pra conhecer as coisas de cima, porque nenhum comerciante pode começar de cima sem conhecer o que tem lá embaixo. Porque quando um empregado vem e diz pra ele, “olha, precisa comprar isso, que arrebentou ali” ele tem que saber o que, senão ele não... Então ele tem que conhecer a mecânica da firma toda pra poder chegar ao topo e comandar, mas ele tem que conhecer.

P1- Mas você acha que ele vai dar continuidade?

R- Eu acredito que sim, eu acredito, agora é uma pena só que são dois pra tomar conta, essa segunda geração, de três só vem dois, esse é o nosso grande problema.

P1- Isaac, em algum momento a sua firma pensou em sair daquele espaço da cidade?

R- Não, nunca, nós tivemos grandes oportunidades.

P1- Por quê?

R- Grandes oportunidades, perdemos muitas oportunidades.

P1- O que te prende ao Saara, Rua da Alfândega?

R- Não sei, eu não gosto de mudar, eu sou muito, eu não sei se é defeito, eu sei porque minha mulher diz isso também, aquilo que eu to acostumado eu não consigo mudar, é interessante. Eu corto o cabelo, faço a unha com a mesma pessoa, eu não sei se eu sou muito tradicional, não sei, eu acho que tem algum defeito, mas eu não sei fazer diferente (risos). Mas eu tive muitas oportunidades de abrir varejo, todo mundo diz, “com o potencial que vocês têm, vocês vão dinamizar o comércio lá fora”, mas eu prefiro ficar lá, lá eu comecei e lá eu pretendo terminar e, ali eu nasci e lá eu vou morrer né (risos).

P1- Madureira hoje é um comércio competitivo em relação ao Saara?

R- Não, dizem que não, caiu muito. Não, eu acho que hoje o Shopping é mais do que Madureira, compete pela segurança, pelo lazer, que você aproveita tudo lá dentro.

P1- E você como consumidor, como você é?

R- Eu sou, eu vou pro Shopping (risos), quer dizer eu não, minha mulher, mas é Shopping, é verdade e é o futuro, infelizmente, as lojas de rua a tendência é acabar, não digo acabar, mas vai ficar..., mas a Saara eu acho que ainda tem alguns bons anos, eu acredito muito.

P1- Então como é o nome da sua esposa, nome dos filhos, pra gente encerrar?

R- O nome da minha mulher é Geni Nigri, minhas filhas uma é Andréa, outra é Alessandra e o Márcio que trabalha comigo.

P1- E as meninas fazem o quê?

R- Uma é revendedora de jóias, ela gosta de vender jóias.

P1- É comerciante também.

R- É comerciante e a outra trabalha na IBM, não quer ser comerciante. (risos) E o filho teve que ser, obrigatoriamente (risos) senão não tinha pra quem entregar a loja (risos).

P1- Se ele quisesse ser músico?

R- Eu vou apoiar, isso não tenha dúvida. Eu disse pra ele, “o que você quiser eu vou apoiar, agora a única coisa é que você tem que me dizer pra eu preparar o fechamento”, porque meu irmão com um filho, ele também não tem porque fazer, ele tem que deixar a casa arrumada, o outro não tem filho.

P1- Como é o nome do sobrinho que tá trabalhando?

R- Marcelo.

P2- Você tem netos também?

R- Tenho dois netos.

P1- Como é o nome?

R- Patrick e Natalie

P2- Quantos anos?

R- Ele tem oito e ela seis.

P1- Ainda dá tempo de preparar eles, né.

R- Vamos prepará-los.

P1- Bom, Isaac, então o que você acha de um projeto como esse de memórias do comércio da cidade e o que achou de dar o seu depoimento?

R- Eu acho muito interessante. Me sinto feliz porque eu gosto de recordar coisas que me fazem bem e eu acho que até em proveito da própria cidade, do próprio comércio e tudo, saber a história é muito importante. Nós precisávamos divulgar mais, saber mais da nossa cidade, de tudo que aconteceu aqui, seria muito bom as novas gerações saberem o que aconteceu, é muito importante. E eu admiro e gosto muito, o que eu puder fazer, eu faço com muito gosto, com muito prazer.

P1- E tem alguma coisa na sua vida, quer dizer, se você pudesse mudar a trajetória de vida, você teria mudado? Tem alguma coisa que você gostaria de mudar?

R- Olha, honestamente não, porque eu fui educado, minha mãe colocou na minha mente que eu precisava trabalhar, sustentar a família e ela sempre dizia “você tem que trabalhar porque o teu pai sozinho não vai aguentar e você tem duas irmãs mais velhas, elas vão precisar casar, você sabe que há despesas e isso tudo, além do que depois vocês

precisam formar a família e tudo mais”, então eu, desde rapaz, eu tinha aquilo na minha mente e eu fui pro trabalho, fui trabalhar com o meu pai, mas foi duro, porque nós pegamos um tempo, quando eu comecei, de 50 a 59 foram anos muito duros, foram nove anos que eu padeci, mas graças a Deus, em 59 e 60 eu recuperei. É claro, foram momentos difíceis né, porque o crédito era difícil, as pessoas não acreditavam nas pessoas novas naquele tempo, então eu era novo no mercado e as pessoas não me acreditavam, eu tinha que provar que eu era bom, que eu era honesto e eu tinha que provar e pra provar eu tinha que fazer, você não pode provar sem fazer alguma coisa, eu tinha que ter oportunidade, né. Até que eu forçava, fui tendo oportunidade, fui crescendo, aí que eu fui crescendo e de 59 que eu comecei a ter os resultados.

P1- E aquela fotinho do seu pai na loja?

R- Ainda continua.

P1- É uma homenagem?

R- É homenagem a ele, isso mesmo, ali tomando conta da loja (risos).

P1- Tá bom. Super obrigada pelo depoimento, Isaac.

R- Sempre que precisar estamos às ordens.

P1- Tá tudo certinho? Foi ótimo!