Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Pietro Germano
Entrevistado por Rosali Henriques e Carla Gibertoni
Estúdio da Oficina Oswald de Andrade
São Paulo, 14 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 20
Transcrita por Rosali Maria Nunes Henriques
P - Se...Continuar leitura
Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Pietro Germano
Entrevistado por Rosali Henriques e Carla Gibertoni
Estúdio da Oficina Oswald de Andrade
São Paulo, 14 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 20
Transcrita por Rosali Maria Nunes Henriques
P - Senhor Pietro, vamos começar a entrevista perguntando o seu nome completo.
R - Pietro Germano.
P - Nasceu em que cidade?
R - Verbicaro, província de Cosenza, Itália.
P - Em que ano?
R - Em 1910.
P - Como é Verbicaro. Que região da Itália?
R - Fica na Calábria. É uma cidade pequena, na minha época tinha 9 mil habitantes.
P - Morava na cidade? Dentro da própria cidade?
R - Na mesma cidade.
P - E a sua família trabalhava com o que lá na Itália?
R - Na lavoura.
P - E eles plantavam o quê? Que tipo de plantação?
R - Plantavam tudo: milho, arroz não tinha lá, milho, batata, feijão, tudo alimentos de lá.
P - Como era a sua casa?
R - Ah, a minha casa, naquela época tinha subsolo, tinha dois dormitórios, sala, cozinha.
P - A família era grande?
R - Porque o meu pai faleceu, não o conheci. Eu não tinha quatro anos quando faleceu meu pai. Meu pai faleceu no início da Primeira Guerra Mundial, no 1914. O que sei é que depois ficou três filhos e minha mãe.
P - Então tinha dois irmãos?
R - Tinha, já estão noutro lugar, já.
P - Como se chamavam seu pai e sua mãe?
R - Meu pai chamava Salvatore Germano.
P - E a sua mãe?
R - A minha mãe é Rinaldi Maria Giuseppe.
P - Como eram as brincadeiras entre vocês na família?
R - Brincadeiras. Como estava dizendo, o meu pai não conheci, fui criado com a minha mãe, a minha mãe, coitada, para tomar conta de três filhos naquela época, ela trabalhava dia e noite, de dia trabalhava na lavoura, de noite em casa para fazer comida, para lavar roupa, tudo isso aí. A vida foi um pouquinho triste, viu?
P - As crianças brincavam com o quê, lá em Verbicaro?
R - Naquela época não tinha brincadeira nenhuma, brincávamos com pedaço de coisa assim, jogando com bocha assim.
P - Ah, jogava bocha?
R - Jogando bocha.
P - Eram só homens ou tinha alguma irmã também?
R - Só homens. A minha mãe teve seis filhos. A primeira era mulher, morreu, depois veio a segunda, morreu com 9 anos e a caçula tinha, ela faleceu depois do meu pai parece que três, quatro meses depois que o meu pai faleceu, a minha irmã caçula faleceu. Aí ficamos em três irmãos.
P - Mas porque faleceram? Tinha algum problema de saúde?
R - Negócio de saúde, não sei que doença, naquela época era uma doença, e eles tratavam de outra, compreende?
P - Seu pai lutou na guerra?
R - Não. No início da guerra, mas morreu em casa, negócio de doença, doença triste, câncer no coração.
P - Além das brincadeiras da bocha, freqüentavam alguma escola? Estudavam?
R - Os dois irmãos, que eram um pouquinho mais velhos, trabalhavam na lavoura porque o primeiro, quando faleceu meu pai, ele não tinha nove anos ainda, e o segundo tinha sete. Então eles trabalhavam na lavoura junto com a minha mãe. E eu ficava em casa sozinho, ia para aqui e para lá.
P - O senhor era o caçula?
R - O caçula. Quer dizer, caçula eu fiquei porque tinha outra menina que era mais nova de mim.
P - Então a sua mãe trabalhava na lavoura e vendia essas mercadorias?
R - Ela começou a trabalhar na lavoura depois que faleceu meu pai, se não ela tomava conta da casa. Mas por necessidade teve que fazer de homem e de mulher.
P - Vocês plantavam uva também?
R - Uva tinha, fazíamos o vinho, fazíamos a uva passa, fazíamos, sim.
P - Como era feito o vinho?
R - O vinho lá era feito, tinha uma fonte assim, púnhamos a uva lá dentro e pisava-se com o pé assim. Depois tinha outra coisa aqui, punha lá e escorregava o vinho.
P - E ficava bom.
R - Ficava bom, ficava um vinho bom.
P - A uva passa como era feita?
R - A uva passa amadurecia bem no pé e depois na colheita vinha, amarrava num barbante e punha dentro de uma água quente, para não falar o nome que tem, na água quente e depois ficava pendurada até secar. Ficava seca, comia a uva.
P - Faziam também tomate seco ou não?
R - Figo, o figo seco ficava bem bastante seco, pimentão também, colhia, depois botava no fio e secava assim. Fazíamos a massa de tomate, fazíamos tudo, se fazia tudo em casa lá.
P - Faziam isso para o inverno?
R - Para o inverno, porque durante o verão se fazia a colheita. E depois em Verbicaro, às vezes, no inverno passava semana a semana que não podia sair de casa de frio e chuva. Então a gente tinha a comida em casa. No inverno cozinhávamos bastante feijão, feijão com macarrão e isso era assim.
P - A cidade de Verbicaro é na montanha? Faz muito frio?
R - Meio montanha.
P - No inverno neva muito lá?
R - Puxa vida, os dois meus filhos, quando eram pequeninhos lá, quando fazia neve faziam aquela bola de neve e se jogavam um com o outro, juntava bastante criança descalça, o pé ficava vermelho, o nariz todo vermelho, se dormia sobre a mão ficava assim, ele pegava com a neve e jogava assim. Uma vez estava na fazenda, fazia tanto frio que se pegava isso aqui quebrava. Fiquei congelado, as orelhas. Lá quando é frio é frio. Agora, quando é calor, também na sombra às vezes faz 40, 45, na sombra.
P - E além desses trabalhos na lavoura, faziam mais alguma coisa?
R - Lá a única coisa é isso. Não trabalhei na lavoura, como falei, porque eu tinha oito anos quando fui aprender o ofício de sapateiro. E fiquei. Depois tinha 18 anos, já trabalhava por minha conta.
P - Como começou a aprender esse ofício? Por quê?
R - É porque lá tinha sempre o mestre que ensina. Fiquei quatro, cinco anos, seis, depende da cabeça da pessoa, sete, depende da cabeça da pessoa para aprender. Como se diz, lá não aprende, depois que começa a trabalhar por conta própria então que vai se aprendendo. A mesma coisa é uma dona-de-casa que casa, quando casa não sabe fazer tudo. Depois, indo, indo, aprende a fazer comida, isso, aquilo outro.
P - Gostava da profissão ou...
R - Gostava.
P - Tinha algum parente que trabalhava com essa...
R - Não, eu trabalhava sozinho.
P - Tinha algum tio que já trabalhava como sapateiro?
R - Tinha, tinha. Aquele que eu aprendi era um tio e o outro que era irmão da minha mãe também era sapateiro. Então com ele fiquei tempo, depois ele era um pouquinho muito severo e saí de lá e fui com o outro tio que já tratava diferente.
P - Como era esse aprendizado?
R - Ah, olhando. Primeiro começava com a linha, não sei se você reparou lá aquela linha que estou costurando o sapato lá, depois vai ver outra vez. E depois começava-se a costurar, e indo assim.
P - Os sapatos eram feitos artesanalmente?
R - Tudo à mão.
P - Como é que era o processo?
R - Lá pegava-se um pedaço de couro e cortava-se o sapatinho modelo, cortava-se, montava-se, acabava-se, quer dizer, que cortava-se, montava-se e se fazia tudo. Tinha a fôrma que a gente montava em cima da fôrma, compreende? Quando era pronta tirava da fôrma, já dava para o cliente usar.
P - E a sola era feita de quê?
R - A sola é couro de boi.
P - Aí o senhor entrou para aprender esse ofício. E como foi nos primeiros tempos? Achou difícil?
R - Não achei difícil porque não é que se pega tudo de uma vez, compreende? Então, como falei, começa aprendendo a fazer a linha, tem um rolo assim, eles fazem uns cinco, seis fios de coisa lá para costurar. Depois começa a costurar uma coisa assim e depois costura coisa grande, depois costura a sola e quando é assim você vai aprendendo pouco a pouco.
P - E o que era mais difícil fazer? Sapato feminino, masculino, infantil?
R - Agora, quase a diferença era pouca, só que o sapato masculino lá, uma vez fez uma, quando já trabalhava por minha conta fiz um sapato para meu irmão, quando pesei pesava três quilos, pesado, com uma sola grossa assim, tudo cheio de prego embaixo, aqui no salto tinha prego que tinha a cabeça assim porque lá todos iam para a lavoura lá, três quilos pesava.
P - Fazia alguma coisa na sola para não escorregar na neve?
R - A sola cortava-se, punha na água para amolecer. Depois tem um ferro, ainda tenho aqui. Antigamente o ferro de passar roupa era um ferro mesmo maciço, então esquentava-se na brasa, assim. Então punha sobre o joelho e com um martelo batia ele para durar mais a sola e depois o pé era tudo cheio de prego embaixo. Era mais ou menos mais de, quase um quilo entre a sola e o salto ia quase um quilo de prego. E aquele não escorregava na neve, em qualquer lugar ali.
P - E esses sapatos duravam mais?
R - Às vezes duravam uns seis meses, um ano, mais ou menos isso. Depois, quando se estragava a primeira sola dava para se fazer outra, compreende? E durava mais um tempo.
P - A Itália, nessa época, estava passando por dificuldades depois da Primeira Guerra. As pessoas tinham mais de um sapato ou um sapato só?
R - E olha lá. Quem tinha possibilidade, tinha um só. Aquele que não tinha, punha um pedaço de sola assim amarrado por baixo, com um cordão amarrado aqui e não tinha nada aqui, só amarrado aqui embaixo. Porque não tinha possibilidade. Depois da Guerra, sempre esse sapato assim, até esqueci o nome como chamávamos lá, compreende? Aquele que tinha esposa, tal, alguma tinha dois par, tinha aquele para ficar para a lavoura e outro para pôr no domingo, numa festa, tal, mas era difícil. A roupa, a mesma coisa Às vezes a roupa da semana, de uma semana a outra tinha sempre a mesma roupa. Mesmo eu, eu me lembro nos primeiros tempos que faleceu o meu pai, não é vergonha falar, só tinha uma calça e uma camisa. De noite a mamãe lavava, se o tempo era ruim enxugava no fogareiro, e de manhã punha a roupa limpa.
P - E o senhor lembra da Primeira Guerra? De alguma coisa?
R - Pouca coisa, viu, porque tinha, a Primeira Guerra, eu tinha nascido em 1910, a Primeira Guerra começou do 15 ao 18, me lembro alguma coisinha. Me lembro que dava a, lá chamava a tessera, não sei como se chama, que ia comprar lá na venda primeiro um quilo de feijão, um quilo de macarrão, eu me lembro disso aí. Mas que passei fome, passei fome.
P - Por quê? Não tinha comida? Como era?
R - Se tinha muita comida não se passava fome, se vê que tinha pouca (risos).
P - Mas as pessoas não plantavam? As pessoas não estavam plantando durante a guerra?
R - A maioria estava tudo na guerra, compreende? Lá tinha ficado só aqueles velhos, às vezes tinha três, quatro pessoas de uma família só. Tinha o pai, um, dois, três filhos, porque na Primeira Guerra, 18 anos já se ia para a guerra, compreende? Até tinha uma família, não, isso foi na Segunda Guerra, que o pai foi na Primeira Guerra e ficou ferido, ficou sem uma vista e tal e na Segunda Guerra, depois, foi que perdeu dois filhos. E chorava lá, coitado, e dizia: "Mas bastava Deus ao menos me deixar um filho, dois filhos morreram lá." Foi uma tristeza. Sinceramente, a Primeira Guerra, o 14 a 18, a Segunda Guerra, 39 a 45, vou te contar, viu?
P - E da Segunda Guerra chegou a participar?
R - Não, fui excluído.
P - Por quê?
R - Sabe porquê? Não é vergonha falar, eu tinha isso aqui, por causa disso não fiz a Guerra, primeiro que não me incomoda nada, compreende? Então na época que tinha que fazer o Militar, porque 19 anos tem que ir servir o Exército, então fui falar com o médico lá. Eu digo: "Olha, doutor, estou passando mal com uma perna e tal, me faz uma declaração como sou aleijado." "Mas nunca vi aleijado, você." Ele falou. Fiz isso e não fiz o Serviço, e na Guerra não fui chamado.
P - Que bom, senhor Pietro.
R - Mas perde de um lado ou de outro, não sei se foi bom, não.
P - Retomando a sua carreira, o seu trabalho. Depois que aprendeu a trabalhar como sapateiro, abriu um negócio?
R - Abri uma oficina por conta própria.
P - E aí, o que era? Uma oficina?
R - Era um quarto assim, com uma lojinha aqui, lojinha pequena e trabalhava lá.
P - Lá em Verbicaro havia muitos sapateiros? A concorrência era muito grande?
R - Era. Como falei, lá era 9 mil habitantes naquela época, mas tinha 28 sapateiros (risos). Mas tinha serviço. Agora, o que se trabalhava muito era no tempo do inverno, por exemplo outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro. Lá, se tinha quatro braços podia-se trabalhar com oito, porque tinha muito serviço. Mas trabalhava mais de noite do que de dia, porque de dia estava frio, então no barbante tinha que passar uma cera e ela endurecia, não ia o barbante. Agora, no inverno, de noite, fechava-se a porta, com o calor da luz e o calor da pessoa então ficava quente e nós trabalhávamos mais. Tinha, depois tinha sempre gente, eu tinha muita amizade lá, a oficina ficava cheia de gente assim conversando, aquele falava uma coisa, aquele falava outra e ia trabalhando, eles falavam e eu ia trabalhando.
P - Trabalhava sozinho ou tinha ajudantes?
R - Sozinho. Às vezes tinha algum aprendiz, mas a maioria trabalhando sozinho.
P - Tinha quantos anos quando abriu a sua própria...
R - 18 anos. Trabalhei 50 e poucos anos de sapateiro.
P - Tinha algum capital, teve algum dinheiro para montar?
R - Não, lá não precisava capital.
P - Pagava aluguel do local?
R - Pagava, a casa era casa própria, mas lá pagava aluguel, mas era barato.
P - E o dinheiro que entrava, dava?
R - Dava para passar a vida. Mas não dava para fazer muita extravagância, compreende? Mas dava para passar, dava para dar de comer à família.
P - O senhor lembra mais ou menos quantos sapatos fazia por semana, por dia? Como era a produção?
R - Porque como falei, o sapato lá é todo feito à mão, um sapato demora quase dois dias porque até cortar e depois aqui fazemos duas costuras à mão, outra costura aqui, um reforço aqui atrás lá e fazemos uma outra costura aqui e demorava muito. Eu cheguei a fazer quatro, cinco pares de sapato por semana. Lá não tinha horário, uma noite estava trabalhando sozinho, trabalhando, e sonhei, estava sonhando que tinha gente no meu lado: "Fica quieto e não faz barulho." Quando olhei não tinha ninguém, me levantei, fui embora. Trabalhava até 1 hora, 2 horas e quando era 7 horas, 8 horas da manhã, porque no inverno lá 8 horas é ainda escuro, 8 horas da manhã. Mas trabalhava muito, viu?
P - E com essa idade, 18 anos, tinha algum divertimento na cidade? O que fazia?
R - Não tinha nada. Só domingo que se jantava com alguém, ia-se tomar um copo de vinho na cantina particular, toda noite havia um vinho particular. Aí juntava-se quatro, cinco amigos, íamos lá, tomávamos um copo de vinho, comíamos uma coisinha, tal, lá não tinha nada.
P - Não tinha baile, festa.
R - Lá não tinha nada mesmo.
P - E como conheceu a sua esposa?
R - A minha esposa não é da minha cidade, é uma cidade pequena que é uma hora à pé, naquela época. Agora, o meu caso é um pouquinho complicado, isso aí. Fiquei noivo quatro anos com uma da minha cidade e depois de quatro anos desmanchamos o casamento por causa dos pais, tal, por uma coisinha de nada desmanchamos o casamento. E a minha noiva daí a pouco tempo ficou doente, ela morreu. Morreu de desgosto da mãe e do pai porque eu gostava muito dela, ela gostava muito de mim. Até era um pouquinho, tinha um parentesco mais ou menos. Então ela de desgosto ficou doente e faleceu. Depois um tempo fiquei esperando, acho que uns cinco, seis meses: "Tenho que arrumar outra, tal." Então veio uma dessa cidade da minha patroa que era uma amiga, ela falou: "Não quer arranjar uma namorada lá?" Eu falei "Pode arrumar." "Vem lá, tem uma mocinha assim." Fui lá, comecei namorar, oito meses fiquei namorando com ela e casei. Porque naquela época lá tinha a lei de Mussolini que, completando 25 anos, punha uma taxa, depois para tirar as coisas era duro porque ele queria população, Mussolini queria que se aumentasse muito a população. Então o homem quando tinha chegado a 25 anos tinha que se casar, senão tinha que pagar. Então tinha até uma piada: Ou te case ou pagues a taxa (risos). E por isso. Me casei e graças a Deus fiquei na brincadeira 54 anos casado com a minha esposa, casei em 35, ela faleceu em 89, fiquei 54 anos.
P - Teve filhos?
R - Quatro filhos.
P - E o nome dos seus filhos?
R - A primeira se chama Maria Giuseppe Germano, o segundo Salvatore Germano, o terceiro Vincenzo Germano e a caçula Franceschina Germano.
P - E então casou, começou a ter os filhos, a situação na Itália não estava boa?
R - Mais ou menos.
P - Mas tinha muito trabalho?
R - Trabalhava muito porque para sustentar uma família, para um homem sozinho trabalhar, qualquer cara não passava vida boa salvo se fosse rico, se os pais dessem uma fortuna. Aquele a vida é fácil, mas para aquele que tem que fazer a vida dele não é tão fácil não, tanto aqui como lá, a mesma coisa. Lá trabalhava muito e aqui também trabalhei muito, trabalhava de sapateiro, entrava na hora e não sabia a hora que saía. Agora tenho o filho mais velho, o Salvador, às vezes à noite ele vinha na oficina aqui e pegava o sapato, acabava na máquina, tal, e ficávamos até 10, 11 horas da noite, às vezes.
P - Veio para cá por quê?
R - Porque no tempo da Guerra fazíamos muito contrabando. Não contrabando de coisa, contrabando de coisa necessária, de comida, porque na cidade não tinha. Então íamos a uma outra cidade buscar, e era batata, era o milho, era o trigo, era óleo, compreende? Trazia na cidade para vender. Trabalhava mais de dia do que de noite também, porque da cidade que saía também, se te pegava a polícia te prendia porque não podia falar nada. E a vida estava triste em 45, 46, 47, 48. Esses foram anos muito tristes lá, viu?
P - Quer dizer, na época da Guerra o senhor não trabalhava muito fazendo calçados?
R - Ah, não trabalhava muito porque via que ganhava mais fazendo aquela coisa, compreende? Depois em 50... saí de lá da minha cidade dia 15 de dezembro do 49 e cheguei aqui dia 9 de janeiro do 50.
P - Saiu de Verbicaro e pegou o navio aonde?
R - Em Nápoles.
P - De Verbicaro para Nápoles foi de trem?
R - De trem.
P - E como foi a viagem?
R - Ah, foi bom.
P - Quantos dias?
R - Saí dia 15 de dezembro de lá, quando chegamos em Nápoles haviam transferido a partida, era para o dia 18, do dia 18 ficou para o dia 20, do dia 20 ficou para o dia 23, e fiquei oito dias lá em Napoli sozinho. Depois saímos de lá dia 23 de dezembro do 49, cheguei aqui no Rio dia 9 de dezembro, quer dizer que foram oito e nove, 15 dias mais ou menos.
P - Veio com a família inteira ou veio sozinho?
R - Não, vim sozinho. Lá no Rio tinha uma tia, fiquei 13 dias lá. Depois vim para São Paulo porque foi o endereço da casa do meu cunhado, que ele me chamou aqui. E fiquei lá. Depois de três meses que fiquei aqui fui para o Rio de Janeiro ficar na casa de uma tia, fiquei lá onde vivi 20 meses. E na época que estava lá no Rio chamei o primeiro filho, que é o Salvatore, que tinha dez anos. Ele chegou dia 23 de outubro do 51. Depois vim para São Paulo e o resto da família chegou em setembro do 52, veio a minha patroa e mais três filhos.
P - Então eles ficaram lá enquanto o senhor estava trabalhando aqui.
R - Ficaram lá. Eu sempre mandava o dinheiro.
P - E logo que chegou no Brasil já começou a trabalhar como sapateiro?
R - Como sapateiro. Só o tempo que estive lá no Rio, que estava na casa da minha tia, não trabalhei como sapateiro. Minha tia tinha uma loja e fiquei trabalhando com ela. Depois, quando vim para São Paulo, trabalhei como sapateiro.
P - Veio morar em que bairro aqui em São Paulo?
R - No Cambuci.
P - E por que veio morar no Cambuci? Tinha muito italiano lá?
R - Não é por causa disso. Comprei uma oficina que era no Cambuci, e nos primeiros tempos fiquei na casa de um compadre que era em Indianópolis. Trabalhava no Cambuci e de noite ia para Indianópolis, eu e o meu filho pequenininho, lá. E depois, quando chamei a família, já aluguei a casa lá no Cambuci, fiquei no Cambuci do 52 até o 65, fiquei no Cambuci. Depois mudei para o Ipiranga. Agora são 32 anos que estou morando no Ipiranga.
P - Qual foi a sua impressão quando chegou no Brasil, principalmente aqui em São Paulo?
R - Os primeiros tempos que cheguei aqui, depois um mês, se tinha o dinheiro de volta voltava para lá, porque era muita paixão que havia em mim.
P - O senhor não queria ficar.
R - Ah, não queria ficar.
P - Porque a família ficou lá, né?
R - Até o meu cunhado dizia: "Ah, Pietro, tem que se acostumar aqui, e tal." E depois fui para o Rio de Janeiro, me acostumei um pouquinho mais. Parece mentira mas toda noite me sonhava com a família. De um modo ou de outro, mas toda a noite. Depois chamei a família e passamos juntos. Uma vida boa, uma vida ruim, até a falecida falou um dia. Antes da falecer, disse: "Pedro, aqui passamos muitas coisas, passamos dias ruins e passamos dias bons." Compreende? Às vezes um dia de festa, um dia de choro, a vida é isso aí.
P - E a situação aqui no Brasil era melhor do que lá na Itália?
R - Era e não era, viu? Porque naquele tempo em que vim para o Brasil lá na Itália não se conseguia muito trabalho, não tinha uma coisa que... reconhecia que não tinha possibilidade de ganhar o que dava para sustentar a família, compreende? Então o meu cunhado estava aqui, ele me escreveu uma carta: "Se você quer vir aqui, a vida é assim, assim. Dá para trabalhar, não sei o quê." Aí, vim. Agora, se tinha passado mais dois anos que eu tinha vindo, não vinha mais. Porque depois mudou lá, quando foi no 53, 54, 55 lá mudou do dia para a noite, pessoa que lá não tinha onde cair morto, agora são milionários lá, porque mudou, a coisa mudou.
P - Como era São Paulo nos anos 50, quando chegou aqui? Era uma cidade grande? O senhor se assustou com o tamanho da cidade?
R - O tamanho da cidade gostei, assustei um pouco, mas não tinha nem a metade do que tem agora. Em 46 anos, São Paulo cresceu 90%, viu, e naquela época não tinha televisão, não tinha geladeira, não tinha fogão, não tinha nada. Agora, desses tempos aqui, que São Paulo cresce bem, mesmo.
P - Freqüentava aqui algum lugar, um cinema, teatro?
R - Freqüentava a casa e a sapataria, só (risos).
P - Só trabalhava.
R - Olha, vou falar uma coisa para vocês. Estou, 46 anos que estou aqui, duas vezes fui ao cinema antes da minha família, porque depois que chegou a família...
P - Por quê? Era muito trabalho?
R - Não, não era muito, não gosto de futebol, então não gosto de futebol, não gosto de nada. Sempre gostava de trabalhar, só.
P - Quanto ao trabalho, entre a Itália e aqui mudou muito sua forma de trabalhar?
R - Não, não muda muito porque era o mesmo trabalho. Só que lá era um trabalho mais pesado de fazer aqueles sapatões e aqui, um trabalho mais leve porque aqui não se usa aquele sapato que se usava lá. Fazia sapato assim e fazia sapato novo também, mas a maioria era conserto.
P - Era só conserto?
R - Só conserto.
P - Não se fazia o sapato à mão?
R - Fazia, mas era pouco. Lá naquela fotografia já você vê quanto sapato que estava arrumando, já.
P - Na época já existia fábrica de sapato aqui no Brasil? Ou as pessoas preferiam... Quem mandava fazer o sapato à mão?
R - Tinha muitas pessoas, especialmente às vezes aqueles que vêm de fora, porque de fora eram todos os sapatos feitos à mão. Então quem vem de lá gostava de não comprar sapato de fábrica, compreende, e gostava de usar um sapato feito à mão porque o sapato feito à mão é outra coisa. Porque o fabricante é como um sapato de carregação, vamos dizer, e um sapato feito à mão, já...
P - Que tipo de ferramentas usava para fazer o sapato?
R - Ah, o martelo, alicate, faca, é isso aí.
P - E a sua clientela? Era mais italiana, mais brasileira ou não tinha essa distinção?
R - Mais ou menos, era misturado.
P - Mas era tudo do bairro, ali do Cambuci?
R - Não, vinha até de fora, às vezes do bairro vinha e de fora vinha, viu? Porque tem um provérbio italiano, que diz: "Santo de perto não faz milagre". Às vezes o santo vai noutro local e não no de vocês, viu? Como eu. Onde moro tem um barbeiro encostadinho, moro aqui e o barbeiro ali. Às vezes vou cortar o cabelo em outro lugar e não vou cortar lá. Por isso lá na Itália diz que santo de perto não faz milagre.
P - Ensinou o seu trabalho para os filhos?
R - Não.
P - Eles não quiseram aprender?
R - Agora, lá na Itália, na minha época, se estamos lá, se morasse lá, meus dois filhos seriam sapateiros, porque lá o filho tinha que aprender o ofício do pai. Era na lavoura, tinha que ir na lavoura. Agora já mudou, naquela época era assim, agora já mudou. Agora especialmente o maior, o Salvatore, ele sempre gostou do comércio, ele trabalhou 90% no comércio. Agora, o outro filho, ele fez um pouquinho de tudo, aprendeu mesmo mecânica, fez mecânica, posto de gasolina, tinha comprado um caminhão de tanque que transportava gasolina, fez de tudo. Agora, são mais ou menos 20 anos que está firmado com negócio de confecções. Porque lá são dois anos que estão lá agora na Rua dos Italianos, lá perto tinha uma loja grande no 79, parece, tinha uma loja grande que trabalhava para o magazine Buri, fazia 20, 30 mil peças de roupa por mês. Depois separaram, ficaram um tempo separados. Agora, separando, um não andava, outro parava. (riso) Porque dois irmãos, só um não dá para fazer. Agora, de um pouquinho de tempo para cá, já estão juntos os dois outra vez e vamos ver se estando juntos fazem fortuna novamente.
P - Fez sapato à mão até que época, mais ou menos?
R - Aqui?
P - É, aqui no Brasil.
R - Aqui 90% era só conserto.
P - Quer dizer, dos clientes que tinha eram poucos os que faziam sapatos, pediam sapato?
R - Que faziam sapato novo. Mas de conserto tinha uma clientela, era muito grande, viu?
P - O que mudou em relação ao trabalho lá na Itália? Material, equipamento, ferramenta.
R - Ferramenta mais ou menos é sempre a mesma. Agora, o material daí é outra coisa, o material é pesado, é isso.
P - O couro era melhor, era pior?
R - Mais ou menos a mesma coisa, ficou, agora aquele aqui não vale nada, viu? Não vale nada porque antigamente púnhamos uma sola, podia-se ficar o dia inteiro na água que não molhava o pé. Agora, a sola de hoje, a chuva em cima, o sapato está molhado, já não vale nada. Tanto é que uso só esse sapato.
P - É isso que eu ia perguntar. O sapato que usa foi o senhor mesmo que fez?
R - Não, esse é de fabricação, só uso esse sapato agora.
P - Mas é couro legítimo?
R - O couro é legítimo, mas a sola é borracha, não sei que sola é essa aqui, mas eu uso só esse aqui.
P - Então seus filhos não quiseram se interessar por aprender o ofício.
R - Não, porque eles já partiram para outra coisa, aqui.
P - Acha que a profissão aqui é menos valorizada do que na Itália? A profissão de sapateiro?
R - Não, acho que não, viu?
P - Desde quando aprendeu a profissão de sapateiro, até hoje, acha que mudou muita coisa na profissão?
R - Ah, mudou, mudou, porque agora é, como se diz, qualquer coisa é tudo maquinário, 90% hoje é maquinário, não sei lá. Porque são 46 anos que saí de lá que não sei como é a coisa agora. Aqui é tudo maquinário, sapato à mão algum, mas não tem mais, viu?
P - Mesmo em conserto mudou muita coisa?
R - Mudou muita coisa. Porque agora quem tomou conta foi mesmo... o sapato, esse aqui, não tem conserto, acaba, joga-se fora. Mas o sapato que fazíamos antigamente púnhamos a primeira sola, podia-se por outra sola, compreende? Porque o couro era diferente, era um couro que durava bastante, lá chamava couro alemão, que é o melhor que existe, compreende? Púnhamos um, dois, três, quatro vezes a sola lá, trocava-se. Agora não dá para trocar. Esse aqui acaba, compra um novo.
P - Porque é que chamava couro alemão?
R - Couro alemão porque era pele mais especializada, acho que não sei se faziam só na Alemanha ou como era, não sei o nome disso aí, mas se chamava couro alemão. "Aquele tem um sapato de couro alemão." Já quando via no pé, já conhecia. E era assim.
P - Uma curiosidade: sapato de pelica o que é? Quando a pessoa fala que é um sapato de pelica.
R - Pelica é a pele do cabrito, aquela coisa de pelica, uma pele muito delicada, muito fina.
P - Sabe por que há essa tradição do italiano fazer sapato, de fazer sapato bom, que a gente tem até hoje, que os melhores sapatos são italianos? Tem uma idéia de por que tem essa coisa?
R - Acho que fazendo o sapato à mão a pessoa era mais especializada, compreende? Agora aqui acho que não existe mais. Era um sapato que dava-se mais valor, compreende? A mesma coisa uma comida que faz em casa outra comida que vai comprar, a comida que vai comprar você não sabe qual é, a comida que tem em casa é a mesma coisa do sapato, o material é o mesmo. Agora. a mão-de-obra já sabe quem faz o sapato que faz lá, na fábrica não sabe o que vai, o que não vai.
P - Gostava do que fazia? Se tivesse que escolher uma outra profissão...
R - Agora, se desse para trabalhar, ainda gostaria de trabalhar de sapateiro. Agora, a, como se diz, a sombra tem, mas falta a força agora, porque sabe como é. Me lembro daqueles sapatos que fazíamos lá, digo: "Puxa vida, precisava fazer agora." Mas não tenho aquela força, aquela agilidade que tinha naquela época de costurar, a vista também, sabe como é. Porque sapateiro, costureira, o barbeiro também, o barbeiro perde a vista mais fácil porque tem que ter muita atenção lá. O sapateiro, pelo modo de que tem que ficar sempre olhando aquilo que faz, a vista se perde ao mesmo preço.
P - Ficou com sapataria até quando?
R - Fiquei com a sapataria parece que até o 79. Mas agora, do 60 até o 70, trabalhei na fábrica também. Abri a sapataria e trabalhava na fábrica, a fábrica de cigarro, porque na sapataria eu não pagava INPS, compreende? Então pensei: "Tenho que arrumar alguma coisa para poder ter o INPS depois." Então tinha uma fábrica de cigarro na rua que morava, lá, que eu morava aqui e a fábrica era aqui, só enquanto atravessava a rua. E trabalhava, uma semana trabalhava das 6 da manhã às 12 da manhã, saía da fábrica e ia trabalhar de sapateiro porque era no mesmo lugar. Quando trabalhava de noite, trabalhava até 1 hora na sapataria, ia almoçar e ia trabalhar na fábrica até 10 da noite, porque estava no refeitório. E a vida era assim. Trabalhei dez anos e dois meses na fábrica.
P - Dez anos?
R - Dez anos e dois meses.
P - Fazia o quê nessa fábrica?
R - Trabalhava no restaurante, que falei para você, onde que pára e come, eu tomava conta de lá.
P - Tomava conta do restaurante?
R - Não é do restaurante, sei que cada um se trazia a marmita dele, tinha um lugar na fábrica mesmo que comiam lá, que se chama o refeitório, compreende?
P - Ah, o refeitório.
R - O refeitório.
P - Aí o senhor tomava conta?
R - Tomava conta de lá.
P - Quer dizer, não era um serviço muito pesado, né?
R - Que pesado, nada, se dava para dormir... só enquanto eu dormia lá... (risos).
P - Como era o nome da fábrica?
R - Era a Saprate, agora não existe mais.
P - O senhor se aposentou na fábrica.
R - Não, saí da fábrica e depois me registrei como autônomo e paguei mais um pouquinho, compreende? Eu me aposentei com sete salários e saí recebendo dois salários e meio, só.
P - Tem aposentadoria da Itália?
R - Não, não tenho porque lá trabalhava de sapateiro e não pagava, pagava só o imposto da prefeitura, lá chama o município, a prefeitura. Nunca trabalhei por coisa fora, não servi o Exército de lá, nada, compreende? Então, não tinha nada lá.
P - Nunca mais voltou para a Itália?
R - Infelizmente, nunca.
P - Por quê?
R - Porque aconteceu, toda as vezes que a gente decidia ir para lá acontecia alguma coisa, a penúltima foi no 70 e pouco, não me lembro o ano. Então tinha um desejo de ir na Itália, meu filho Salvador sofreu um acidente de carro no Interior que, por milagre, ele se salvou. Então passou aquela época, passa ano, passa ano. Depois construímos aquela casa onde moro, são 12 anos que moro lá. Então quando construímos a casa, porque primeiro morava de aluguel e recebia aluguel porque tinha três, quatro casinhas lá no Aeroporto, agora passaram uma avenida, estão derrubando lá. Então a minha patroa ela sempre dizia: "Quero uma casa por minha conta." Então aconteceu que teve uma oportunidade onde moro agora, compramos uma casa velha, derrubamos e fizemos um sobrado. Então, depois que era pronto o sobrado, digo: "Vamos para a Itália." Mudei, dia 30 de junho fez 12 anos agora, no sobrado, dia 15 de julho deu derrame na minha patroa, ficou cinco anos de cama. Agora, dia 21 agora, vai fazer sete anos que ela faleceu. Quer dizer que depois que faleceu ela, já perdí toda a vontade de ir lá. Agora, quatro anos atrás, vieram um cunhado e uma cunhada da Franca: "Ô, tio, tem que ir lá." Eles foram embora no mês de fevereiro e nós íamos no mês de maio junto com a Franca, tive notícia que faleceu o meu irmão, o último irmão que tinha aqui e que tinha lá. Digo: "Agora já não sei mais." Agora tenho quatro sobrinhos e alguns primos, já perdí a vontade.
P - Senhor Pietro, acha que o mundo era melhor antigamente ou hoje?
R - Melhor.
P - Quando? Antes ou agora?
R - Melhor o primeiro, 100% melhor o primeiro.
P - Por quê, senhor Pietro?
R - Primeira coisa, as vergonhice que tem agora aqui. Agora, desculpa as mulheres, mas hoje a mulher está desmoralizada, de um modo de outro mundo, compreende? Antigamente, olha, vou falar uma coisa para você. Namorei oito meses com a minha patroa, uma vez dei um beijo como um ladrão, porque não tinha aquela coisa lá, não podia nem chegar perto da namorada naquela época. Agora, lá no Sílvio Santos, quando se conhecem se beijam na boca, sinceramente, não ofendo vocês, mas a mulher hoje está desmoralizada toda vida. E o homem também não presta.
P - E a nível profissional, do trabalho, acha que o seu ofício de sapateiro hoje está melhor ou pior do que na época?
R - Está pior, porque não tem serviço. Porque agora, como falei para você, acho que 80%, 90% usa esse tipo de sapato, compreende? E o serviço de sapateiro diminuiu muito, diminuiu o serviço e diminuiu o sapateiro. Quando morre esse que é mais ou menos de idade, não tem um, aquele que trabalha na fábrica não sabe fazer o conserto porque está acostumado com um serviço só, especializado para um serviço, um fazia uma ponta, outro para fazer isso. Mas nós não, nós lá fazíamos de tudo, pegava do princípio e ia até no fim. Agora, se chama uma pessoa que trabalha na fábrica, lá, diz: "Ponha meia sola aqui." Ele não sabe pôr. Agora acabam-se esses mais velhos, tal, acho que não tem mais sapateiro, ninguém aprende ofício, ninguém aprende nada.
P - Se tivesse que mudar alguma coisa na sua vida o que mudaria?
R - De trabalho ou como? Sapateiro?
P - Mas se tivesse que mudar alguma coisa na sua vida, não só na vida profissional.
R - A respeito do quê?
P - Se pudesse voltar atrás, por exemplo, viria para o Brasil ou não? Se pudesse voltar atrás no tempo.
R - Olha, tenho e não tenho queixa do Brasil, viu? Porque atualmente não falo mal da minha terra porque a terra da gente é como a família, se fala mal da terra da gente, fala da família. Mas do Brasil eu gosto, porque tem 46 anos que estou vivendo aqui também, compreende? Não falo mal do Brasil. Agora, como se diz, ambiente, já estamos acostumados com outro ambiente diferente, especialmente agora que aqui não vale nada, porque não tem segurança nenhuma, muita ladroeira, muito assalto, muito estupro, muito isso. Quer dizer que agora está uma coisa que a gente sai de casa e não sabe se volta. Passa na rua, quando você vê uma criança que tem, assim, já fico com medo. Hoje em dia aqui no Brasil se vive uma vida que vou te contar. Antigamente, quando cheguei, quando morava na Muniz de Souza, eu tinha uma casa que tinha um portão na frente e um outro portão no meio.Ficava com o portão aberto, só encostado, assim, agora tem que se fechar com sete chaves. Meu filho, o mais pequeno, ele fala: "Não vamos ficar presos aqui, só que tem a chave para fechar." Mas portão aqui, portão de lá, grade na janela, é grade daqui. Lá na casa onde eu moro, depois do segundo ano que tinha construído, tem um banheiro embaixo e um banheiro em cima. No banheiro embaixo não tinha feito uma grade na janelinha lá, ficamos no sítio do meu filho lá, aí eu tinha deixado um passarinho pendurado na área da garagem, foram roubar o passarinho lá. Roubaram o passarinho e não sei como foram e entraram na casa. Agora entraram naquele sítio da ________ mas limparam a casa lá. Agora já fez a grade, fez tudo. Agora, pouco tempo atrás, a Franca e o marido, se operou, fez uma operação do rim, ela estava em Porto Alegre. Então ela tinha um passarinho, ela disse: "Papa, leva na casa do senhor." Ela levou lá, era um pássaro preto, estava na garagem. Uma noite não entraram lá e não roubaram o passarinho?
P - Só para encerrar o depoimento, diga com quem mora, e quais são as suas atividades atualmente.
R - Agora, atualmente, minha filha mora na minha casa, a Maria, a mais velha. Porque quando faleceu a patroa eu tinha uma empregada. Ela ainda ficou dois anos junto comigo, depois que a patroa faleceu. Quando veio lá tinha 16 anos, era uma menina, então tomava conta da minha patroa, que ficou doente. No último ano ela ficou na cama, fazia toda a necessidade na cama. Essa moça limpava, acho que era difícil arrumar uma igualzinha. Mais dois anos ficou comigo. Depois arrumou um casamento e casou. Aí fiquei quatro anos sozinho lá.
P - Ficou sozinho em casa?
R - Sozinho. De dia estava junto com o meu filho, com o mais velho e de noite dormia sozinho. Eu limpava a casa, me lavava a roupa e passava a roupa, fazia tudo isso aí, só que de comer, comia na casa de meu filho. De noite, um chá, um copo de leite, tal. Agora, depois, a minha filha Maria, ela morava na Rudge Ramos. Então venceu o contrato do apartamento e queriam uma fortuna. Ela não tinha aquela possibilidade que podia pagar aquela coisa, todos os meus filhos: "Por que é que não vai morar junto com o papai?" Já faz um ano e pouco que a Maria mora junto comigo.
P - A Maria é casada? Tem filhos que moram com ela?
R - Não, tem dois filhos casados, só. Ela mora ela e o marido.
P - Como é o seu cotidiano, hoje? O que faz, o que está fazendo atualmente?
R - Atualmente, estou junto com o meu filho, vou lá na loja, às vezes tem alguma coisa eu faço, quando não, fico lá batendo papo com uma pessoa, com outra, compreende? Porque naquele primeiro tempo que faleceu a patroa e que fiquei dois anos com a empregada, ficava como um bobo porque não gosto de freqüentar bar, não gosto, compreende? Então ficava lá em casa como um bobo. Depois comecei a sair com o meu filho e tal, já me despertei diferente. Agora eu saio lá, meu filho passa 6 e meia e 15 para as 7 horas em casa, me pega, e volto só de noite em casa. Me levo a marmitinha, fico lá na loja. Tenho um ordenado bom, ganho 30 dias por mês (risos). Sabe como é? Às vezes alguém pergunta, brincando: "Quanto você ganha?" "Estou ganhando bem." "Quanto?" "Ganho 30 dias por mês" (risos).
P - Está bom, senhor Pietro, agradecemos a sua presença aqui e o seu depoimento.
R - Agora, não sei se gostou, se não gostou, se tem alguma falha me perdoe porque, sabe como é, não tem a gente aquele... não é como o Armando. Agora, também o Armando fala dez palavras, nove são erradas, você reparou? (risos). Até você ficou um pouquinho cheio quando ele pega aquela fotografia da sobrinha (risos). Armando é uma boa pessoa, mas que fala muito, fala muito, viu?
P - Está bom, senhor Pietro.
R - Já acabou? Pietro Germano foi entrevistado pela equipe do Museu da Pessoa em 14 de outubro de 1996, em São Paulo.Recolher