P - D. Berenice nós gostaríamos de conversar com a senhora, eu queria que a senhora primeiro dissesse o nome local e data de nascimento. R - Meu nome é Berenice Juliana Ricardo Nascimento, nasci dia 1 de Julho de 1938; Campinas, mas fui criada aqui em São Paulo. P - Conta pra gente como que ...Continuar leitura
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D. Berenice nós gostaríamos de conversar com a senhora, eu queria que a senhora primeiro dissesse o nome local e data de nascimento.
R - Meu nome é Berenice Juliana Ricardo Nascimento, nasci dia 1 de Julho de 1938; Campinas, mas fui criada aqui em São Paulo.
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Conta pra gente como que foi este nascimento e toda essa trajetória da senhora.
R - Aconteceu o seguinte: minha mãe teve eu aos 14 anos, e minha avó não aceitando na época, por que ela era muito jovem, então o que ela fez? Ela mandou minha mãe escolher entre eu ou ela pra ficar em Campinas, então eles esperaram minha mãe ir trabalhar, minha avó foi lá tomou eu da minha mãe, me trouxe pra São Paulo e me internou numa creche, Creche Catarina Laboré, aqui no Ipiranga. Daí nunca mais minha família teve contato comigo. Passei por 3 colégios: Pindamonhanga, Orfanato São Domingos, e aqui este colégio que tem aqui do lado, aqui em Pinheiros, qual é o nome? Educandário. Esse Educandário que tem aqui do lado.
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Essa primeira creche, a senhora ficou lá quanto tempo?
R - Olha, na creche eu entrei bebê, de lá saí com mais ou menos, eu acho que com uns 4 anos. Porque de lá eu fui pra Pindamonhangaba.
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A senhora era muito pequena, não deve se recordar de nada desse período...
R - De Pindamonhangaba?
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Não, da creche.
R - Não, da creche não. Mas de Pindamonhangaba eu lembro bem. Porque da creche eu era muito jovem, muito bebê.
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A senhora tinha 4 anos e aí foi pra Pindamonhanga, por quê?
R - Porque na época eles não achavam que eu já tinha crescido o suficiente, porque na creche eu acho que seria até 2 ou 3 anos, como meus pais não me procuraram de jeito nenhum, era uma opção de vida, aí eles me entregaram nesse colégio.
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Como é que se chamava isso lá em Pindamonhangaba?
R - O Colégio?
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É.
R - Educandário. Sei que foi um colégio que eu tive lá, gostei muito desse colégio, era um colégio fazenda. Lá eu aprendi a ler, escrever. Lá tinha uma professora que gostou muito de mim na época, ela esperou eu crescer, que a dona Cacilda Pereira Maracine ela me conheceu lá com 3 anos, esperou eu atingir os 10 anos e me tirou desse colégio e me levou pra casa dela. Me pediu altorização e me levou pra casa dela, com 12 anos. Assim pra mim tirar férias de fim de ano, mas como o juiz ainda não tinha certeza se ela podia ficar comigo, aí me passaram para mais uns dois colégios. Mas como na época ela se interessou muito por mim, então ela ia me visitar nesses colégios, essa dona Cacilda. Então na época eu tinha ela como minha mãe, porque eu não sabia distingüir o branco do preto. Então pra mim ela era minha mãe, ela que ia me visitar, que me levava doce. Quando ela me levou embora, eu fui, era dia 14 de dezembro de 1953, essa data eu não esqueço. Fui morar aqui na rua Dom José de Barros, no centro da cidade, que os pais dela tinham redes de hotéis, e lá...
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Dona Berenice, antes da senhora chegar em São Paulo, vamos falar um pouquinho como era lá no educandário. A senhora se lembra de alguma coisa: as aulas, a relação com os alunos, com as professoras...
R - Olha eu adorava lá. Inclusive eu tive uma professora que até hoje não esqueço o nome dela: Dona Iracema. Se for falecida que Deus a tenha, porque eu era muito criança, mas lá era um colégio muito bonito, muito bom, a gente nadava na represa, subia em abacateiro, muita fruta, só que tinha as freras que eram muito rígidas, talvez por que muita criança tudo, né. Tinha uma irmã Eulália e uma irmã Efigênia, que eram muito rígidas comigo, não sei se era só comigo, ou se com a maioria das escurinhas, porque eu sofri muito pela minha cor, na época, mas como eu não sabia distingüir o branco do negro, então pra mim não me afetava. Eu só passei realmente a perceber que eu era preta depois que eu saí deste colégio, que eu fui parar nas mãos dessa família, que me levou embora, e na época eles não diziam nada, eu chamava eles de mamãe, eles aceitavam, mas como eu era muito arteira, eu me escondia debaixo do sofá, eu subia em alpendre, eu subia nas marquises do hotel, ficava assobiando. Eu me escondia até dentro de caixa dágua, isso tudo eu me lembro bem. Hoje quando eu vou visitar lá nós lembramos desse fato. Mas eu fiz uma arte muito grande, que na época eu tinha mania de me esconder na caixa dágua, eu fiquei muitas horas dentro da caixa dágua, e eles me procurando e eu, estava muito calor, depois quando eles me descobriram, me tiraram da caixa dágua, me deram um banho, me repreenderam, tiveram que me dar uma coça, e aí que ela pegou num momento de fúria talvez, ela falou pra mim: "- Berenice, você não é minha filha. Você não está vendo que você é negra e eu sou branca". Mas eu não sabia nem o que queria dizer isso. Pra mim, eu era branca também. Aí ela falou assim: "- Mas você não aprendeu no colégio cor: preto, branco, azul, vermelho". Eu falei: "- Aprendi". Aí ela falou assim: "- Então, você é preta, você é negra, você não tem nada a ver com nós. Nosso sangue não corre nas suas veias". Aí eu fiquei muito chocada. Eu já não morava mais no hotel. Nós tínhamos mudado aqui pra rua Tupi, Santa Cecília. Eu já estava com 12 anos mais ou menos. Daí eu comecei a ficar muito revoltada, fiquei mais rebelde. Porque aí que eu vi mesmo. E ela falou que a minha mãe não prestava, na época ela usou um termo que minha mãe me jogou na lata do lixo, que se arrastou com negro e me jogou na lata do lixo. Então ela atingiu eu profundamente. Aí que eu notei que, realmente, na época eu não era ninguém. Ela falou: "- Você não é minha filha, eu tirei você pra trabalhar Você veio aqui pra trabalhar". Na época, realmente eu não tinha as mordomias que uma empregada hoje tem. Eu não sentava num sofá, não comia na mesa, comia na escada, no topo da escada, porque a mãe dela era uma italianona muito severa, então ela me punha no topo da escada pra comer. Eles não me davam café. O café da manhã era assim: 4:30 da manhã eu tomava um cafezinho pra servir bandejas, na época que eu estava no hotel com eles. Eu só fui conhecer mesmo um bom café com leite, depois que eu saí deles. Porque eles me davam café preto com nata. Tanto é que até hoje eu tenho horror de nata, não suporto nata Mas depois que ela fez isso, que ela me ofendeu, eu fiquei uma criança muito manhosa, muito chorona, aí eu dei de querer saber quem era minha mãe. Cheguei até um dia ir aqui na Asdrubal Nascimento. Não sei se o senhor conhece Asdrubal Nascimento, aqui na Praça das Bandeiras, ali tinha um juizado de menores, eu fui lá dar queixa deles.
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Ah, a senhora foi dar queixa?
R - Ah, fui. Tomei o bonde, o bonde na época passava aqui perto da rua Tupi, aqui na General Olímpio da Silveira. Tomei o bonde, fui parar lá. Quando cheguei lá eles me perguntaram: "- O que você está fazendo aqui? O que está acontecendo?". Eu falei: "- Olha, ela disse que não sou filha dela, que eu sou preta, que a minha mãe se arrastou com negro e teve eu, que não tenho sangue dela, não quero mais ficar com ela". Eles voltaram comigo, fizeram uma entrevista com ela, aí eu aproveitei e falei: que eu não sentava em sofá, comia resto, que o que sobrava eles punham no meu prato e completava com feijão. Até nem quero nunca que ela saiba desta história, porque ela é já uma senhora, está com quase 80 anos agora, está com 76 anos. Mas ela é viva, muito bem viva essa dona Cacilda.
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A senhora dormia onde?
R - Eu dormia no beliche, em baixo ou então às vezes em cima. Como eu brincava muito eu me jogava do beliche pra baixo, eu virava cambota, eu fiu uma criança assim muito terrível. Terrível mesmo, fora de cogitação. Mas era um terrível assim de brincar. Gostava muito de brincar. Eu não achava que eu era empregada, que eu tinha saído pra trabalhar. Eu queria brincar, por isso que eles impunham pra mim fazer o meu serviço, que era servir bandejas de café de manhã, 4:30 da manhã, eu lustrava 24 quartos, com a escova, naquela época era escova, era escovão. Eu lustrava, dormia meia noite, 1 hora da manhã, mas até aí eu não tinha noção da coisa, o que eu queria era brincar. Então pra mim não fazer arte, eles prometiam pra mim: "- Ó Berenice, se você não fazer arte, no fim da semana vou levar você no Jardim Europa, na casa da dona Guiomar, que é irmã da dona Cacilda Pereira Maracine, que você vai lá assistir televisão. E pra mim televisão era uma coisa de outro mundo. Naquela época, numca tinha visto no colégio, não sabia o que era. Aí dia de semana eu ficava mais calma, pra no domingo eu ir ver televisão.
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Era o grande prêmio?
R - Era o grande prêmio, mas eu fazia arte lá também, eu virava na rede com os sobrinhos dela. Ficava na rede com a Tereza, a Célia e o Luís Augusto, que hoje são todos casados. Na época, um tinha 10, 12 e 14 anos. Eu quando ia pra lá eu ajudava a olhar eles e também entrava na rede junto com eles.
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A senhora lembra de alguma coisa da televisão que a senhora assistia?
R - Da televisão...
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Daquela época que a senhora ia lá.
R - Olha...
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Que a televisão estava começando no Brasil, né?
R - Estava começando, eu lembro assim de filmes, eles punham muito esse tal de balé, por isso que eu tenho amor ao balé, ao clássico, porque eu fui criada assim, apesar de toda minha arte, arteira, mas eles me ensinaram o dom, me deram esse dom de gostar de música. Porque ela tinha um tio que morava em Mogi das Cruzes que foi um grande pianista: "seo" Nhonhô Pimentel. E na época que ela me tirou do colégio, ela tirou uma outra menina junto comigo: a Neusa. Neusa Evangelista, que até hoje nós temos amizade, ela mora aqui no Jardim das Oliveiras, então ela foi ficar com esse tio da minha tutora, da dona Cacilda. E eu fiquei com a dona Cacilda, e a Neusa aprendeu a tocar piano. Eu tinha loucura pra aprender. Quando eu ia pro Jardim Europa, eu pegava ó, no piano.
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A é?
R - Eu era muito arteira Uma pena que eles não me incentivaram pra fazer isso porque eu podia ter tido um estudo melhor, por que eu lia corretamente com 10 anos, apesar de que na época eu tinha só o quarto ano, mas pra eles era um diploma, na época era um ginásio hoje.
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Só não entendi bem uma coisa, quando a senhora estava no educandário, a dona Cacilda foi lá várias vezes quando a senhora era pequena e visitava sempre e depois, de uma certa idade, ela trouxe pra ficar com ela?
R - Pra ser empregada dela, mas na época eu achava que ela me trouxe pra ser filha dela. Como eu estava falando, eu não tinha a noção do branco do preto. Tanto é que eu tenho aqui um documento escrito por ela na época quando eu saí de lá, do colégio, que eu quero que o senhor dê uma olhada. Aí que eu entendi que realmente eu saí pra trabalhar, não como filha dela. Então eu morria de ciúmes dela porque ela tirou uma outra menina, de outro colégio, a Cíntia, e essa menina branca, então eles deram aula de tapeçaria, ela fez faculdade, tocou piano, e eu sempre pra trás. Então eu morria de ciúmes dessa menina, aí que eu deduzi mesmo que realmente eu era empregada, não era...sabe? Aí numa dessas eu com mais ou menos 14 anos, eu estava varrendo a calçada aqui na Rua Tupi, e passou o Antonio (__________ e Barros?), e passou por mim, ele com 15 anos, ele passou de bicicleta, assobiou pra mim, aí eu olhei ele veio conversou comigo, aí eu falei:"- Olha eu não posso ficar com você aqui batendo papo não porque senão eles vão me bater". Aí ele falou assim: "- Mas você, o que você é aí?". Eu falei: "- Eu sou empregada, mas eles me criaram eu". Aí ele pegou e falou pra mim que no outro dia ele passaria a me ver, e ficou assim uns quinze dias me vendo. Então todo dia 2 horas da tarde eu ia lá varrer a calçada só pra ver ele. Aí ele perguntou pra mim se eu queria morar com ele. Olha quando a gente é criança gente faz cada uma, que pelo amor de Deus Por isso que eu falo que eu era realmente terrível. Eu não conhecia sexo, eu não sabia nada, eu não sabia nem o que era namoro. Eu falei pra ele: "- Onde você vai me levar?". Ele falou: "- Não, eu moro num quarto aqui na rua Camarajibe, aqui na Barra Funda, e você vai morar comigo. Pra mim na época aquilo foi uma coisa fantástica Porque eu não gostava muito da família como eu contei, essa rejeição que eles tinham por mim. Aí eu fui morar com ele. Mas eu fui, quando ele saiu de manhã pra trabalhar, que ele me trancou, eu pulei a janela. Porque aí eu vi que o espaço era pequeno, eu achava que ele me levou numa prisão. Eu não aceitava ele sexualmente, porque eu não conhecia o sexo, ele me assustou. Eu gritava, fazia o maior escandalo, tanto é que a dona da casa veio, e me chamou e conversou comigo, a dona Maria, ela falou assim: "- Você é tão menina, o que você está fazendo nesse quarto?". Aí eu falei: "- É porque eu fugi da dona Cacilda, e eu queria voltar pra ela, e eu tenho medo do juizado me prender, a polícia me levar embora". Ela falou: "- Ai Berenice, mas você é tão jovem. Você foi louca, volta pra eles". Mas eu tinha medo, porque eles eram muitos bravos. Por isso que eu não voltei. Achei melhor agüentar o pai da minha filha.
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É o Antonio?
R - Achei melhor agüentar o Antonio.
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O Antonio, ele trabalhava em que?
R - Na época ele era office boy. Ele fazia entrega de dentaduras, pontes móveis. No laboratório Marson, aqui na Praça do Correio, rua Capitão Salomão. Depois ele aprendeu a profissão e trabalhou 35 anos, com o mesmo patrão.
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Sendo protético?
R - Sendo protético. Foi um grande protético Ele como trabalhador, não tem queixa. Era um homem que trabalhava até meia-noite. Mas só que infelizmente ele era também muito violento, me espancava muito, talvez porque eu fugia ou ciúmes, ninguém podia olhar pra mim que ele encarava a pessoa e me encarava junto, dava cabeçada em todo mundo. Então, pra ficar com ele assim aí que eu vi a burrice que eu fiz de sair da dona Cacilda Pereira, porque lá não tinha este tipo de violência. A violência era assim uns gritos, uns puxões de orelha, não assim espancamento assim como eu...
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Mas olha, a gente estava na...vamos dar uma pausa aqui...Então dona Berenice a senhora estava morando na pensão lá com o senhor Antonio e queria voltar pra sua antiga residência, com a dona Cacilda, e aí o que aconteceu?
R - Eu, como tinha muito medo de voltar e ela não me aceitar, continuei com o Antonio, mas pra mim não ficar parada dentro de casa eu arrumei um emprego. Na rua Conselheiro Botero mesmo, perto da Cati, da tia Cati ela não sabendo e comecei trabalhar fazendo salgadinhos numa casa de jogo.
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A senhora sabia fazer salgadinho?
R - Olha, eu cozinho assim profissionalmente desde os 14 anos. Porque a mãe da tia Cati me ensinou muito. Muito Eles são famílias de doceiros, cozinhava muito, ela me punha eu do lado da panela, pra ver ela mexer as coisas, fazer. Com isso eu peguei amor pela cozinha. Sobre esta parte de cozinha, eu também agradeço muito a tia Cati, e à mãe dela, a pezar dos pezares. Só o que me magoa é como eu estava falando, eu sou uma pessoa, o senhor está vendo, não rancorosa, que poderia atirar pedras nelas e não, eu só elogio elas. Ela não me beneficia em hipótese alguma. Por isso que eu levei este fato à doutora Alda Marco Antonio, pra ver se ela intercede.
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Voltando ao passado, então a senhora começou a fazer salgadinhos?
R - Mas eu morava no emprego. Aí eu passei a morar no emprego, ia pra casa de dois em dois dias. Antônio muito mulherengo, apesar de pouca idade, 15 anos, mas eu encontrava sempre eles com garotas. Eu também tinha crises de ciúmes, nós nos agarrávamos, brigava bastante, batia nele, ele batia em mim. E nesse ínterim eu engravidei e tive minha primeira filha, em 1962, Sueli. Sueli era pra estar agora com 36 anos, se fosse viva, mas ela morreu com 1 ano e 2 meses de desidratação de último grau, na época. Aí depois passou mais um pouco eu engravidei, passou mais uns nove, dez meses eu tive uma outra gravidez. Seria um menino, deu o nome de Antonio José, mas nasceu asfixiado o cordão umbilical enrolou nele todinho e não teve salvação. Depois fiquei muito traumatizada com isso, não engravidei mais. Mas de repente aos 28 anos eu engravidei de novo da pai da Denise. Mas quando eu engravidei nós estávamos mais separados do que juntos, por que aí ele tinha uma amante, que não saía da minha porta, vivia perturbando, e ele também se dizia enlouquecido por ela, e trabalhava aqui na Albuquerque Lins, que eu cozinhava pra doze pessoas, e na época a dona Luci, que segurou essa onda, essa barra, porque eu ficava muito nervosa, eu não queria ir pra casa, minha barriga crescendo, aí ela pegou e falou pra mim: "- Berenice você tem que voltar pra casa porque de repente o nenê nasce e como é que você vai fazer?". E eu tinha medo de voltar pra casa e encontrar ele com esta determinada pessoa. E quando eu estava com 7 meses, eu voltei pra casa, a pedido dos meus patrões, pra mim descansar por uns 15 dias, mas assim que eu virei a chave na fechadura dei de cara com ele com esta moça na minha casa. Então na época eu não fiz nada porque eu pensava só em poupar o meu bebê. Mas eu fiquei muito traumatizada, gritei muito, ele correu atrás de mim na rua, era por volta de 1 hora da manhã, eu só queria morrer, eu quase fui atropelada, eu queria me atirar em baixo dos carros, essa era a minha intenção. Aí meus patrões me acudiram, eu vim até aqui o prédio da Albuquerque Lins, e meu patrão me pôs no sofá me deu calmante e falou: "- Berenice, amanhã de manhã você vai contar pra nós o que está se passando".
Aí quando foi de manhã, a dona Luci, dona Cilci, é o nome dela, ela veio conversou comigo: "- O que está se passando?". Aí eu peguei e disse: "- Olha, a senhora me mandou embora pra casa, antes a senhora não tivesse mandado. Eu cheguei lá e encontrei o Antonio com a moça. Dentro da minha casa mantendo relações. E eu não vou mais voltar, eu vou ficar com vocês, vão me levar pra maternidade, eu daqui não saio". Aí ela foi controlando, controlando, mas depois aí, quando estava perto de nascer, ela ligou pra ele, mandou eu ir pra casa, e ele chegou em casa e falou pra mim: "- Berenice, eu vou te levar até a porta do hospital, de lá pra cá não temos mais nada em comum". Aí eu falei pra ele: "- Olha Antonio, eu não quero realmente nada com você. Só quero que você dê o nome pro nenê. Não precisa nem ajudar, que através do meu trabalho eu posso sustentar". E no início assim foi feito, assim que ela nasceu, em três dias ele levou o registro de nascimento e eu fiquei 10 dias internada porque eu estava com o estado emocional muito a flor da pele, eu chorava muito, queria morrer, queria me atirar das janelas. Então depois de 10 dias, essa família que eu trabalhava vieram me buscar, e me levou na casa da irmã dela aqui no Murumbi, porque não podia manter no apartamento um bebê. Aí eu fui pro Morumbi pra trabalhar pra uma irmã dela que tinha também 11 pessoas na casa, mas como eu gostava de cozinhar, aí eu fui ser cozinheira, e essa minha irmã de criação a Neusa Regina foi ser babá das três crianças que eles tinham na época. Que é o Artur, a Branca e a Rebeca. Nessa casa eu fiquei um ano e pouco. Mas quando estava com três meses que eu estava lá o Antonio apareceu. Minha irmã deu o endereço porque ele começou aquela perseguição, que queria ver a menina, que queria ver a menina, aí ele foi ver, eu deixei, que era um direito dele, que meus patrões tinham orientado, que não adiantava eu levar pra o lado agressivo, aí eu falei pra ele: "- Antonio, você pode ver a Denise, você pode levar ela pra passear, mas só que nunca mais nós vamos ter nada em comum". Eu gostava muito, mas muito dele, apesar dos pesares, que foi meu primeiro namorado. Assim foi feito, ele vinha ver a menina, e Denise, quando estava com quase um ano, meus patrões conversaram comigo: "- Berenice, a Denise tá numa fase que mexe em tudo, você presta mais atenção nela, a gente precisa de uma pessoa que não tem filhos, na época nós ficamos com você, porque você era cozinheira da minha irmã, mas você vai arrumar um lugar pra ela, e eu lhe arrumo um outro emprego. Eles eram ótimos Aí eu fiz assim, eu arrumei aqui na Casa Verde Alta, pra Denise ficar. Ela já tinha quase um ano. Durante este tempo que trabalhei nessa casa eu ajuntei 80 cruzeiros, que foi o dinheiro que eu fiz a festa de aniversário dela. Tudo que eu ganhava eu guardava pra ela, porque eu ganhava pouquíssimo. Porque, como eu fui vive com ela, logicamente que os patrões ganhavam pouco. Aí fiz uma festa muito grande aqui na casa verde, que uma amiga minha cedeu a casa, e eu tinha feito uma promessa que se ela vingasse, continuasse viva, se eu não perdesse ela, que eu ia fazer uma festa de Cosme e Damião.
Pra 200 crianças. E eu fiz esta festa. Fiz os doces, combinei os balões, mandei chamar todas crianças da rua, dei convite, aqui na Antonio Cravasam .
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Conta pra nós, como é uma festa de Cosme e Damião? Que doce que faz, o que é que tem?
R - A festa de Cosme e Damião é assim você compra balas, chocolates, cocada, pipocas, batata doce, muita maria mole, eu fiz muitos potinhos de geléia, criança gosta muito de geléia, manjar, fiz um bola pra 200 crianças.
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De que tamanho era este bolo?
R - O bolo era enorme, maior do que esta mesa. Eu tirei 15 dias pra preparar tudo, na casa dessa minha amiga. Eu congelei os salgadinhos também, que eu fiz coxinha, empadinha, croquete. Porque era uma forma de eu agradecer a Deus, que minha filha não tinha morrido. Porque eu perdi 2. Se eu perdesse mais 1 pra mim não tinha nexo eu viver. Por eu já não tinha ninguém, e ainda ia perder mais 1. Nessa época não conhecia minha família.
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Ela tinha quantos anos, a Denise?
R - A Denise, quando dei a festa?
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É.
R - 1 ano. Foi muito bonito. Aí eu já estava trabalhando com a dona Anita, dona Anita (Zoco?), que é essa que deu o vestido de aniversário da Denise, deu uns brinquedos. E eu fiquei com a dona Anita, fiquei com ela por mais ou menos uns 5 anos. Mas depois aí na época, eu não sei se eu era gananciosa, eu sei que eu queria era dinheiro. Talvez porque eu estava criando a Denise sozinha.
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Quanto, na época, a senhora ganhava?
R - Olha, na dona Anita eu lembro mais ou menos que eu ganhava, eu acho que eu ganhava uns 800 cruzeiros.
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Mas isso significava o quê? Era pouco dinheiro? Era um salário mínimo, era mais, era menos?
R - Era um salário. Eu ganhava 80 cruzeiros pagava 60 pra olhar a Denise, aqui na casa verde, me sobrava 20. Esses 20 eu guardava, eu fiquei uns 3 anos sem comprar uma roupa, sem comprar um sapato pra mim, eu andava direto com um vestido cor-de-abolbora xadrez que eu tinha e um tailler azul marinho, que era as minhas roupas que eu saia com a Denise, pra fazer economia pra eu poder comprar os remédios dela, os brinquedos dela, o que aparecesse. Eu sei que o pai dela, quando eu pedia pra ele: "- Antonio, vê se me arruma um dinheiro, a Denise está precisando de um remédio". Ele falava que não. Que não ia dar nada, que ele não estava nem aí. Então de ele fazer isso, eu fui perdendo o amor que eu tinha por ele. Eu acho que a melhor forma de uma mulher perder o amor por um homem é se negando a ajudar o filho. Porque aí a gente dá valor ao filho, não no homem. A gente vai ver que a gente tem capacidade pra isso. E foi assim que eu fui criando a Denise. Ela ficou 5 anos com essa família.
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Só um momentinho, vou dar uma pausa.
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Dana Berenice, a senhora sempre foi cozinheira, ou fazia outras funções nessas casas onde a senhora trabalhou?
R - Olha, eu sempre fui cozinheira. Me pegavam pra cozinhar, lavar e passar.
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Então quer dizer que a senhora fazia outras coisas além de cozinhar.
R - Cozinhava, lavava e passava. Porque tinha patroa que queria que eu fosse servir, assim, quando tinha festa. Aí me comprava aquele uniforme preto. Aí eu ia servir à francesa, porque eu também sabia, porque eu aprendi. Mas na hora "H", cozinha.
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E o tratamento que a senhora recebia, comia com os patrões, como é que era nessa época?
R - Não, não, eu comia na cozinha, mas essa minha patroa foi uma mãe pra mim. Dona Anita. Sabe, ela foi uma mãe pra mim. Quero deixar bem claro, ela era muito compreensiva, quando eu estava triste, quando eu tinha saudades da minha mãe, eu queria saber quem eu era, eu falava pra ela. Ela falava: "- Berenice, porque você não vai na Globo, vai aqui, vai acolá, procura". Até uma vez, eu fui no programa do Jacinto Figueira Júnior, aquele homem do sapato branco, eu fiz um anúncio e apareceu realmente uma mulher si dizendo minha prima, mas não era. Foi uma atitude enganosa da mulher. Também acho que ela tinha vontade conhecer alguém e ela bateu na porta do meu emprego, mas não era. Porque quando é uma coisa de pele, a gente sente.
P1 - Então a senhora trabalhou na casa da Anita 5 anos.
R - Trabalhei 5 anos, depois eu achei que ela me pagava pouco, não dava pra eu sustentar a Denise sobrando só 20 porque eu pagava 60. Aí eu saí de lá e fui trabalhar pro Cassiano Gabos Mendes. Aqui na José Maria Lisboa. Eu fui ser cozinheira dele, cozinhava e lavava, vinha passadeira e tinha uma faxineira. O cassianinho, na época, tinha 13 anos e Luís Gustavo, apelido Tato, 25. O Gabos Mendes já estava desquitado da dona Elenita. Ele era desquitado dela mas um ótimo patrão. Me deu todos plenos poderes na casa, eu levava o Cassianinho pra escola de tarde, de manhã eu acordava ele dava suco e ficava esperando a perua pegar ele, que ele estudava no colégio israelita. Fim de semana eu ficava com eles, porque eles iam pro Guarujá. O Cassiano ia pro Guarujá escrever novela, e eu ficava com pena de largar ele sozinho no apartamento, então
como eu também não tinha muito pra onde ir, ficava com ele fazendo companhia, no apartamento.
P1 - Os filhos moravam com ele?
R - Moravam com ele. A mãe vinha de vez em quando ver. Mas foi um ótimo patrão também, pena que me robaram os documentos, fui assaltada no ônibus, então
eu
tinha carteira assinada por ele. Quando ele morreu eu senti muito, mas muito mesmo. Tentei procurar o filho dele que mora aqui em São Conrado, o Gabos Mendes, o pequeno, cassianinho, mas eles não me dão o endereço certo, ou eles não lembram de mim ou então ele ficou rico e
esqueceu de mim. Mas eu assisti com o maior prazer aquela novela Anjo Mau, porque essa novela na época, apesar que eu não era uma pessoa má, mas ele faou pra mim: "- Berenice eu vou diminuir seu nome, vou dar o nove pra Suzana Vieira de Nice, mas em sua homenagem. Foi em minha homenagem. Eu assisti essa novela com muita emoção. Lembrei muito dele. Foi em minha homenagem porque a Glória Pires fez papel de má, e inverteram, cortaram muito, reduziram muito a história, não teve tanta tragédia assim, como mostraram agora. Na primeira versão era água com açúcar, aquelas novelas muito bonitas. Tinha história, hoje em dia não tem mais a história tem mais é violência. Mas mesmo assim eu
assisti com muita emoção.
P2 - E essa personagem,a Nice, tinha alguma coisa haver com a senhora, ou era só o nome?
R - Olha eu acho que era só o nome, viu. Porque ela não era boazinha. Ela era boazinha pro pequenininho, pro menino. Mas e as maldades que ela fazia por fora? Eu não era má Tanto é que o Gabus Mendes me dava plenos poderes, como eu falei, eu fazia as compras do mês, ia no banco por o dinheiro pra ele, ia pra Santos fazer faxina no apartamento dele, tomava conta de tudo dele. Até uma vez ele falou assim pra mim:"- Berenice, por que você não sai, vai num baile, vai aqui, vai acolá". Eu falei que não que eu preferia ficar e porque ele ficava muito sozinho. Os filhos se mandavam, eram jovens. E nessa noite ele teve o primeiro infarto, que eu no meio da noite eu levantava ia lá levava um chazinho, um cafezinho, e eu notei que estava meio desmaiado, meio caído na cama aí eu chamei socorro e a ambulância veio buscar e realmente ele teve um primeiro infarto quando eu estava com ele. Depois ele se reestabeleceu, e eu saí de lá por causa de uma empregada, a Florinda. Porque nesse interim, minha filha estava morando com esta Florinda lá em São Miguel Paulista, e ela judiava muito da menina, da Denise.
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Ela tinha quantos anos nesta época?
R - A Denise tava com 7. Porque essa que eu fiquei 5 anos com ela, foi embora pra Minas e queria levar a Denise. Mas como é que ia deixar ela levar a Denise pra Minas? Aí começou meu calvario tudo de novo, procurar uma pessoa que olhasse a Denise. Porque eu não podia no momento morar com ela. Não tinha condições de alugar uma casa, porque o pai dela, apesar que ganhava muito bem, lavou as mãos. Por isso que eu morava nos empregos, e fim-de-semana ia buscar ela comigo.
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Quanto tempo a senhora ficou lá no Cassiano?
R/ No Gabos Mendes eu fiquei 3 anos. Aí eu saí dele, por causa da faxineira, porque essa faxineira se prontificou em ficar com minha filha em São Miguel Paulista e a irmã dela quando chegou um dia, foi lá, a Sônia, e me disse:"- Berenice, vou te falar uma coisa pra você, se você visse
como eles judiam da Denise: menina com 7 anos lava louça, varre a casa, eles batem nela, ela fica descalça, fica com o nariz escorrendo, cabelo em desalinho, tudo que você leva de roupa, de legumes". Eu comprava mesmo, eles comiam tudo. Sabe o que eles davam pra Denise? Farinha batida com água e sal, passava na frigideira e dava como se fosse uma panqueca. Denise pegou uma anemia profunda aos 7 anos, que ela quase morreu. Porque eu trouxe ela comigo e a Neusa viu ela no final-de-semana e falou:"- Berenice, a Denise está sumindo, está morrendo em vida, o que está acontecendo. Aí eu falei pra ela deixa estar que eu vou dar um jeito. Falei com o Gabos Mendes, ele falou assim pra mim:"- Berê, vai lá e pega ela de surpresa". Foi dito e feito, eu cheguei lá, tudo que eu levei, os filhos dela e ela tava comendo, as roupas da Denise ela punha na filhinha dela, e a Denise andava nos trapos, descalça no barro. Batendo na Denise. Cheguei lá na hora que ela tinha acabado de dar uma surra na Denise. Eu fiquei muito nervosa Muito, ainda mais que era revoltada, eu não tinha mãe, eu não tinha ninguém, ajuntava tudo, porque se eu tivesse parentes e não tinha passado por tanto mal bocado, porque minha família logicamente iria me ajudar. Aí o que eu fiz: eu tomei um taxi, peguei a Denise levei lá no Gabos Mendes, ele falou pra mim:"- Berenice,você vai pegar essa menina, vai levar num bom médico, vai ver o que ela tem, ela punha vermes pelo nariz pelo ouvido. Eu acordava com ela de noite pondo bicha pelo nariz. Ela quase morreu. Ele falou pra mim:"- Olha Berenice, eu vou arrumar um emprego pra você, pra você ver se você pode ficar com a Denise porque por enquanto ela não pode ficar sem você, que as pessoas judiam dela. Aí ele me arrumou pra eu trabalhar na casa do Renato de Magalhães Golveia, aqui no Sumaré aos 7 anos, fui ser cozinheira deles também, cozinhava também pra 10 pessoas, como sempre. Mas eu adorava cozinhar, era minha meta mesma não tinha como. Aí eu tratava da Denise, levava
ela no médico quando ela tinha ataque de vermes, levava ela de madrugada ela pro hospital das Clínicas. Aí ela foi engordando, ficou bonitinha, aí ela com 8 anos quase 9, minha patroa falou pra mim:" Berenice, eu gostaria tanto de ficar com sua filha". Eu falei:"- Já sei a senhora vai me mandar embora". Ela falou:"- Não é que eu vou mandar você embora, mas essa menina precisa de uma escola, ela não tem escola não tem nada, como você vai criar uma criança sendo cozinheira você não pode por ela na escola, porque você vai atrapalhar a vida do casal, e do filhos". Eram 4 filhos, e não era uma casa que eu recebia muito. Aí eu peguei, vim, e conversei com o Antonio:" Olha Antonio, eu estou numa situação que a Denise está a ponto de ficar na
rua. Se ela for pra rua eu vou ficar com ela. Só tem uma coisa se acontecer isso, antes disso eu vou na Globo eu vou dar parte de você, porque você é pai, eu não fiz ela sozinha. Você ta dando apoio pra outra mulher, pra filha
da outra mulher, e isso não é certo." Ela morava aqui
na vila Penteado, que minha também morava eu não sabia. Aí ele achou ruim, ficou nervoso:"- Não, eu não vou ficar". Então se você não ficar eu vou dar parte de você. Eu não fiz a menina sozinha. Alguém aí tem que me socorre. Ele falou:"- Eu vou conversar com a mulher, eu vou falar com ela..." Eu disse :"- Você vai ficar com a menina Antonio, se não eu chamo a polícia pra você, você é pai, não é padastro". Ele disse que não ia ficar, e o que eu fiz? Eu peguei e fui na Teodosina, a deputada que tinha aqui. Eu fui na Teodosina, ela pegou me deu uns conselhos pra mim, conversou comigo e falou que ia me arrumar um bom colégio pra Denise, de crianças legais. Mas na época ela foi muito infeliz que ela me arrumou um colégio de crianças indisciplinadas, aqui no jardim Pirajuçara. Eu tinha que ver a Denise uma vez por mês, neste colégio. Mas eu ia 2 vezes por semana, dava dinheiro na portaria, dava sacos de balas, sacos de doces, então todo mundo lá tratava bem a Denise, que era um colégio espírita. Todo mundo tratava ela porque eu chegava com dinheiro, com as balas, as granas, olha eu dava tudo, eu só não queria que batessem na Denise, mas infelizmente ela pegou sarna, por falta de higiene do colégio, pegou sarna, pegou catapora. Eu falei, meu Deus do céu, se eu perder esta menina eu
vou enlouquecer. Conversei com minha patroa, ela falou:"- Berenice, você vai tirar essa menina do colégio, vai ficar na minha casa, vai fazer um tratamento depois você vai levar ela pro pai dela.
Porque se ele não ficar com ela eu vou tomar a frente". Aí ele trabalhava aqui na Capitão Salomão, eu cheguei nele e falei:"- Antonio, você vai ficar com a Denise". Ele:"-Não, eu não vou ficar...". Eu disse:"-Você vai ficar, ou que deixe
ela lá na porta da sua casa? Pra você sintir que ela é teu sangue, que
ela não é filha adotiva". Ele disse:"- A mulher..." Eu disse:"- Não tem mulher, quem come a carne que roa os ossos" Eu levei a Denise na Vila Penteado, a mulher cheia de reticências, morria de ciúmes, ela achava que ainda gostava de mim. Porque ele citava muito meu nome pra ela, que eu era uma pessoa muito limpa, muito bonita, era muito seloza com a menina, que eu parecia uma leoa, que não dava trégua, por causa da menina. Quando a Denise estava com 8 anos
e pouco, falou pra mim:"- Mãe, ela me judia, ela bate em mim, só meu pai virar as costas ela bate em mim e na Edilene, é essa que mora no Rio, que estava junto na época também. Eu falei:"- Denise eu não acredito, que quando eu vejo a mulher ela não sabe o que fazer por você". "Mãe, vai um dia que meu pai não estiver lá, a senhora vai, a senhora vê". Falei pra ele:"- Antonio, a tua mulher está judiando da Denise, tá batendo nela de fio
de luz, tá batendo mesmo A Denise não dorme de noite, ela tem ataque de bicha de novo, com o corpo todo manchado. Se você não tomar jeito Antonio, eu vou dar parte de você e dela". Ele falou assim:"- Se for verdade eu vou quebrar a casa, eu faço, eu aconteço...". Me fingi que fui trabalhar, ele também se fingiu que foi trabalhar, ele tinha uma moto, siu deu uma volta, eu estava no ponto final do ônibus lá na Vila Penteado. Quando foi 10 horas que eu estava chegando, a mulher tinha acabado de dar uma surra na Denise. Ele enlouqueceu, botou a casa a baixo, quebrou tudo. Eu falei:"- Sentiu que a filha é sua? Sintiu que ela não é adotiva? Sintiu?". Aí ele começou a chorar, isso é bom que você viu Antonio, você não acredita quando eu falo que judiam da Denise, você vai mais pelo lado carnal, você não está indo pelo lado do amor paterno. Aí ele chorou muito, e eu falei:"- Eu vou tirar ela de você Antonio, ela está aqui provisório, mas eu vou tirar ela de você, porque eu que pus ela no mundo, eu apenas te pedi um favor, porque se tivesse que dar ela pra você teria dado quando ela nasceu, passei por tantos
maus sabores, levei ela pros empregos, você não quis ficar com ela". Nesse meio tempo eu arrumei um namorado, quando a Denise estava com 8 anos, na
época ele foi assim uma dádiva do céu, ele falou pra mim:"- Berenice, vou te alugar uma casa você vai lá tira a Denise vamos viver juntos. Mas você vai ter que falar com o Antonio". "Eu vou falar com ele porque eu quero a menina
de qualquer jeito". A
gente quando quer ter os filhos a gente suporta tudo, suporta qualquer coisa, mas só que eu não sabia que ele era alcólatra, o Carlos Miguel. Levei ele pra conhecer o pai da Denise, e o pai da Denise falou pra ele eu vou deixar, que a Berenice não larga mesmo da filha, mas tem uma coisa se você encostar na Denise eu vou liquidar com você. Eu falei, não se preocupe, se tem alguém aqui que vai liquidar, vai ser eu, não se preocupe, é um negrão de 1,80 m, mas a gente defende mesmo, a gente vai as últimas conseqüências. Nós conseguimos ficar 10 anos. Mas bebia de rolar. Denise passou a ter ódio dele, por causa da bebida. Achei melhor nós nos separarmos, porque ela estava com quase 20 anos. Ela falava:"- Se a senhora não mudar de vida, eu vou abandonar a senhora, eu vou morar com meu pai, porque eu não quero este tipo de vida pra mim". Aí eu renunciei. Fui em São Miguel, falei com a família dele, falei olha eu não vou ficar com o Carlos, porque ele bebe demais, Denise tem medo dele, ele já é uma adolescente ele não respeita as colegas dela - o homem quando bebe ele não encherga filha não encherga nada , joga beijo pra todo mundo -
Então nós nos separamos assim, entreguei a casa. Aí começou meu calvário tudo de novo, não tínhamos pra onde ir.
P -
Nesse tempo a senhora continuava trabalhando como cozinheira?
R - Como cozinheira, mas eu sustentava a casa porque o Carlos ficava no bar bebendo.
P -
Ele não trabalhava?
R - Ele era aposentado, apesar de pouca idade, mas ele teve um problema numa fábrica, ele perdeu o braço direito. Então eu sustentava a casa, pagava aluguel, pagava os luxos da Denise, sabe
que adolescente exigi muito, pede muito. É uma pena que na época eu não tive cabeça pra guardar, eu ganhava muito dinheiro, fazendo congelados no Alphaville, pra fora, Morumbi, ia pra tudo que era canto.
P -
Peraí, vamos
voltar um pouquinho no trabalho da senhora, a senhora mudou de patroa, nesse período da Denise estudar, aí a senhora foi trabalhar onde?
R - Aí eu fui trabalhar pra dona Anita, eu continuei com a dona Anita mas trabalhando 3 vezes por semana pra ela. E 2 vezes pra filha dela, a Noma Zoco. Eu voltava pra casa todo dia, porque como o Carlos ficava em casa e Denise tinha medo dele, ele passava o dia no bar, mas quando era 6 horas ele chegava, se Denise punha uma novelinha, ele não deisava ver novela. Eu tinha que chegar correndo, ou então eu tinha que combinar com minha vizinha pra pegar a Denise pra mim. A Denise ia pra casa das colegas, aqui no Parque Peruche: da Elenice, da Vilma. Ficava até eu chegar, dos meus congelados, eu
chegava 1 hora 2 horas da manhã. Eu ia muito longe, ia pra Jundiaí, pra Chacra Flora, Mogi das Cruzes.
P -
A senhora fazia congelados pra quem?
R - Pra dona Anita, a filha e outras pessoas também, porque aí a dona Anita começou a diminuir meu serviço pra eu poder ficar mais com a Denise, porque ela queria uma empregada pra dormir, pra morar. Eu aproveitava, ia pra Chacra Flora, Jundiaí, Osasco, Alphaville, Morumbi, Barueri, Taubaté, eu conheço muito aqui São Paulo.
P -
A senhora passou
a ganhar bem mais?
R - Pena que na época eu vivia só em função do trabalho e não pensava em guardar. E o Carlos sabia onde eu punha o dinheiro e pegava. Gastava tudo em pinga e pastel. O que eu podia eu dava pra Denise, pra fazer as tranças dela, estudar, porque aí ela já estava estudando no Liceu, aqui na Casa Verde Alta. Eu pagava colégio pra ela. Ela tinha uma vida mais ou menos boa, mas não feliz por causa da atitude do Carlos, que ela passou a ter medo dele. Eu também já fiquei com os olhos em cima, eu ameaçava "olha se você fizer qualquer coisa pra
Denise, eu não vou responder por mim, porque não é possível.
P -
Nesse período a senhora ainda continuava procurando a sua família?
R - A sim, claro. Eu ia nos bailes, ia nas feiras, na escola de samba. Pena que eu não sabia meu sobrenome, porque na época era Berenice Juliana, Berenice que minha mãe deu, mas juliana que as freiras me puseram, porque quando eu cheguei no colégio eles me deram o nome de Berenice de Tal, porque eu não tinha o Juliana. Quem pôs o Juliana foi uma freira, que gostou muito de mim, e me rebatizou no colégio, com o nome de Berenice Juliana. Mas eu ainda não sabia que eu era Ricardo Nascimento.
P -
Quando se separou do Carlos, a senhora ainda fazia congelados ou já estava empregada em alguma casa de família?
R - Eu ainda fazia congelados. Mas depois que eu me separei dele nós ficamos sem casa, eu comprei jornal e vi que estavam precisando de cozinheira na Palmas de Tremembé e eles aceitavam filhos. Fui lá fiz uma entrevista, conversei com a patroa e ela aceitou eu com a Denise. Porque a Denise saía de manhã e voltava à noite, ela trabalhava aqui no Shopping Norte. Ela trabalhava nas lojas da dona Anita, na X-Ray. Tem várias lojas tem aqui, tem em Campos do Jordão, Sorocaba, Piracicaba, Jundiaí, só não tem no Rio porque ela diz que no Rio ela não põe mesmo, Porto Alegre. A Denise foi funcionária deles por 9 anos.
P -
Ela começou a trabalhar com quantos anos lá?
R - Com 14 anos. Começou cedo, com 13 anos começou a costurar, numa fábrica de japoneses. Ela dizia pra mim que iria pra escola, mas ia trabalhar com o japonês. Quer dizer que é uma coisa de família mesmo, não tem jeito. Eu fui na escola pra saber dela e a professora disse "olha Berenice, faz 1 mês que a Denise não aparece". Eu fiquei muito assustada, fiquei com medo que estivesse se drogando, ou fazendo alguma coisa, aí chamei ela pra uma conversa e ela falou:"mãe, eu estou trabalhando na fábrica de um japonês". "mas como você vai trabalhar e teu estudo?" "mãe mais tarde eu vou estudar". "Não, num tem mais tarde, você vai estudar à noite e trabalhar de dia". Conversei com a dona Anita e ela colocou a Denise na loja. Ela entrou com 14 anos na loja, e estudava à noite no Liceu pena que ela não concluiu os estudos, com esse negócio de brincar demais: levava o som pra escola, fazia batucada, brincava demais, ela não tinha sabor pro estudo, como eu quis ter. Tive chances de dar isso pra ela, mas não gostava. O João-do-Pulo treinava ela no Ibirapuera, arrumava uma bolsa de estudos pra ela ser esportista, porque época ela fazia salto em distância, arremesso - eu até vou trazer as fotos, tá no Rio - ela era pra ser uma velocista, mas que este negócio de amigas, de colega, ela largou de mão. Eu sempre falei pra ela:"Denise, tudo que você começa você não termina, você não tem identidade?" Sempre falo isso pra ela. Agora que ela está com os pés no chão, porque já está com 30 anos, mas se tivesse feito o que eu falava pra ela, teria até uma boa faculdade, estaria trabalhando num lugar melhor. Agora ela quer fazer computação, porque na loja ela usa o computador. Então falei pra ela que até o final do ano nós vamos comprar um computador. Porque através do computador a gente também pode arrumar bons serviços. Principalmente eu me aposentando vou me oferecer pra fazer salgadinho, servir festa, fazer marmitex. Acho que nunca vou largar de cozinha.
P -
Dona Berenice, vamos falar desse negócio de cozinha, a senhora sempre gostou de cozinhar?
R - Sempre. Quando eu saí do colégio,ela me punha no fogão, falava assim:"Berenice, vou te ensinar você fazer comida, porque quando eu voltar da escola, quero chegar e encontrar a comida pronta." Aí ela me ensinou a fazer arroz, feijão, fritar um bife, mexer uma polenta - aqui fala polenta, né, lá no Rio fala angu - aí eu fazia, subia no banquinho, que era fogão de lenha na época, eu fazia o arroz, o feijão, ajudava a mãe dela a abrir massa de balas, balas de coco, me ensinou a fazer massa, eu praticamente desde os 12 anos que eu cozinho. Fazia panquecas, que é uma coisa difícil, eu já fazia inhoque - minha filha não sabe fazer inhoque, fiz de tudo pra ensinar pra ela mas não entra na cabeça dela. Ela sabe cozinhar, mas o básico: arroz, feijão, fritar um bife, fazer uma maionese, um macarronada. Gostaria muito que ela gostasse de cozinha, mas o negócio dela foi roupa mesmo.
P -
Como é a rotina numa casa onde se cozinha pra 12 pessoas, como é um dia de trabalho?
R - Olha é muito estafante, demais
P -
Conta o dia-a-dia, como era a senhora acordava ...
R - Eu levantava assim, tipo 7 horas - principalmente aqui - servia o café, tem a copeira, eu fazia o café. Depois eu pegava na comida firme. Tinha pessoa da família que começava a almoçar 11 horas, 11, meio-dia, 1 hora, 2, 3, tinha gente que almoçava 3 horas da tarde. Que nem lá no Rio, o último que come, come 3 horas quase, que é o enteado do meu patrão.
P -
Como é um cardápio de uma casa de 12 pessoas, o que é que se comia lá durante a semana?
R - Olha, variado, porque como eu fazia congelados, eu tinha meus cardápios básicos: um dia panqueca, outro dia strogonoff, outro dia peixe, um dia rabada, outro dia dobradinha, outro dia um rocambole, outro dia uma empadão, fazia um medalhão, carne recheada, braxola. Fazia muita coisa: tabule - gosto muito da comida árabe - um prato com beringela, é que eu não me lembro do nome...
P -
Babaganuche.
R - Isso. Também um prato que eu faço muito no Rio, pra minha patroa. Tô fazendo este frango ao curry, que eu acho uma delícia. Fazia o cardápio, mandava imprimir na gráfica, cada vez que eu ia nas casas, pra fazer meu compromisso que ia cozinhar, mostrava o cardápio, a pessoa escolhia, eu falava o tanto de carne que vai usar um mês inteiro, tinha tudo básico. Eu dava eles compravam, eu fazia 35 pratos, 35 marmitinnhas.
P -
Por dia?
R - Por dia. Chegava em casa 1 hora, 1 e meia da manhã.
P -
Pra quantas pessoas? 12?
R - Não, não, isso quando fazia congelados. Agora pra 12 pessoas é variado, todo dia. É estafante, porque o que come no almoço, não come no jantar. Meu patrão mesmo é assim, se ele vê a comida do almoço e vê no jantar fica todo arrepiado. Mas ele pode se arrepiar, né
P -
A senhora poderia dar uma receita pra gente de um prato? Que a senhora é craque nele.
R - Eu vou ver um prato, é um prato que gosto muito, prato árabe. Porque trabalhei num restaurante aqui na ... esqueci o nome da rua ... no Paraíso, restaurante que se chama Prato Cheio, fazia uma rabada, era assim: cozinhava a rabada, limpava tudo, tirava os nervos, cozinho a rabada, depois que ela está mais ou menos cozida, fritava uma a uma, punha do lado, fritava lingüiça, costelinha, bacon aos pedacinhos, depois fazia um molho ao vinho: roti. Porque a frigideira fica marrom, então eu jogava uma garrafa de vinho, mas misturado com água, misturava todos os ingredientes e esse molho, mas bastante porque era pra restaurante, acrescentava cenoura e pimentões: vermelho, verde e amarelo. Dá um contraste maravilhoso no prato. É meu prato predileto. Tem um outro que eu adoro, inclusive fiz agora antes de vir pra cá, que foi frango ao molho roti, é um prato árabe também. Você tempera o frango, coxa e sobre-coxa, de um dia pro outro, mas tem que ficar temperado numa garrafa de vinho, põe uma garrafa de vinho no frango...
P -
Branco ou tinto?
R - Tinto. Ele dá aquela cor rasada, quando chega no dia, corta bastante pimentões em lascas, cebola, azeitona, orégano, cebolinha pequena - na a de aperitivo, a outra - mistura tudo e põe pra assar. Quando estiver pronto, assado - costumo assar com ele tampado, cozinha mais rápido demora uns 20 minutos pra cozinhar - tiro pra ele tomar cor, o frango fica cor de vinho. É um espetáculo
P -
Serve com que?
R - Pode servir com arroz branco, salada verde. Tem uma salada também que eu adoro, que uma salada árabe - engraçado, parece até que eu estou fugindo da cozinha brasileira, mas é que realmente a comida árabe pra mim é um dos melhores pratos - é de beringela, mas não esse que eu te falei, é um outro, é uma salada: você pega a beringela, corta ela em lascas, corta o pimentão em lasca, verde, vermelho e amarelo, cebola em lascas. Pega um copo de água, um de azeite, um de vinagre, joga ali, põe sal, põe orégano, bastante azeitona, bastante passas e põe no forno pra assar. Menino, eu vou te contar É uma salada que pode ficar na conserva, você pode comer num piquenique, pra uma festa é muito chique. Fiz uma feijoada pra 15 pessoas, da minha família que foi pro Rio me visitar, fiz essa salada, apresentei essa salada, a de grão-de-bico. A feijoada que o prato principal daqui, eu não gosto mais, porque no Rio só tem feijão preto, é raro se ver um feijão normal daqui. Quando tem o feijão moreninho, mulatinho, carioquinha, levanto as mãos pro céu, porque o feijão preto é gostoso mas não todo dia. Agora vocês aqui comem uma feijoada, eu não aprecio muito, apesar que eu sei fazer feijoada. Mas esse prato de salada que eu estava falando é muito bom, e tem também esse empadão que eu faço, que até hoje deixei pra minha amiga. O empadão eu coloco 2 xícaras e 1/2 de farinha, 1/2 xícara de maisena, 1 ovo inteiro e 1 gema, 1/2 copo de água gelada, sova bem, quando sentir a massa meio úmida na mão nunca põe farinha, põe maisena, porque a farinha tende a deixar a massa grossa e a maisena fica crocante. Eu fazia no restaurante árabe. Depois faço o recheio do frango, no recheio ponho ervilha, ovos cozidos, azeitonas, batata pra encher mais um pouco. Trabalhei em casa que mandava por até torrada, pra calçar. É uma delícia porque a torrada se mistura com o recheio, fica muito bom. Depois cubro elas e pincelo
com gema, azeite e açúcar, pra ela ficar como pão doce, aquele dourado do pão doce.
P -
Tá me dando fome
R - Eu não tenho muita fome não. Porque quando fui pro Rio, fui tão gorda daqui, que eu comia muito pizza aqui. Não era nem a comida, porque dos congelados não provava nada, porque acho que a boa cozinheira não tem que ficar experimentando toda hora. Põe o tanto e acabou. Chegava em casa com fome, cozinhava o dia inteiro e chegava morrendo de fome. Então o que eu fazia, pra não durmir com o estômago cheio, tomava laranjada, muita laranjada, fazia litros de laranjada, tomava, dormia. No outro dia levantava e ia embora trabalhar. A laranja tem vitamina C, me dava força. Hoje analiso que não sei como é que eu conseguia saí de uma casa, ir pra casa dormir 4, 5 horas, no outro dia estava 6 e meia chegando. Saia meia noite, 1 hora. As vezes tinha que tomar o trem em Barueri e ficava com muito medo porque no trem tinha só homem. Como fazia muito frio aqui em São Paulo eu ia vestida de homem também. Punha um quepe na cabeça, sabe aquelas tocas que pega aqui, punha um casaco assim bem surradão, ninguém mexia comigo, eles achavam que eu era um homem. Descia aqui na estação da Luz quase 1 hora da manhã, rezando muito pedindo a Deus que não encontrasse nenhum inimigo pela frente, tomava um taxi e ia embora pra casa.
P -
Dona Berenice, estamos chegando perto da hora da senhora contar como que aconteceu da senhora encontrar a sua família.
R - Minha família foi o seguinte, doutora Alda Marco Antonio na época pôs um comercial na Globo no Jornal Nacional, que as pessoas que não conhecesse a família, que quisessem saber de sua origem, que procurasse que ela estaria a disposição.
P -
Que era a Secretaria do Menor.
R - Isso. Nessa época cheguei um dia mais cedo em casa, na hora do Jornal Nacional, porque como não tinha congelado fui passar roupa pra dona Anita. Quando cheguei, sentei, ouvi, chamei a Denise e disse:"Denise, ó lá, eles tão querendo que a gente ache a família, pra ver a origem, queria muito saber de onde vim, que sou." Ela :"Mãe, cuidado que a senhora pode se machucar, senhora ficou todos esses anos sem ninguém, melhor a senhora ficar assim." "Como ficar assim nada, eu não vim do pó, do nada, de alguém saí." "Mãe, cuidado temo
pela senhora." "Denise, vou encarar essa, nem que for pra eles dizer pra mim que não tenho ninguém, que minha mãe me jogou na lata do lixo que nem a tia Cati falou, mas eu vou atrás." Fui no juizado, falei com a dona Anita, ela me deu o maior apoio, me soltou mais cedo, fui no juizado. O senhor que me atendeu disse:"1939, vai ser difícil, 51 anos agora que a senhora vem procurar." " Não, eu tenho procurado, mas em vão. Como eles tão dando esta nota no Jornal Nacional não custa eu ir." Nesse interim, a doutora Alda Marco Antonio chamou eu pra um entrevista. Porque fui no juizado, eles leram, ela gostou do meu caso e mandou um telegrama pra mim. Que queria me conhecer. Fui ter uma entrevista com ela aqui na avenida Paulista, até a dona Anita foi junto comigo porque eu fiquei com medo. Dona Anita foi junto e eu fiz um apelo: queria saber quem eu era, da onde eu vim, que não era possível que eu vim do nada. Porque o que eu ia contar pra Denise. Que a Denise chorava por mim:"Tenho dó da senhora, mãe, senhora não tem ninguém, que coisa horrível, mãe." Eu falava:"Denise, reza muito pra papai do céu, pra Deus, me dê 100 anos de vida, porque quero ficar com você, quero cutir meus netos, porque é uma continuação. Não quero morrer e deixar você, porque apesar de você ter pai, 2 irmãs..." Mas ela falava:"Não, a senhora é minha família." "Não Denise, você não pode ser egoísta, porque o que foi um horror na época, hoje é benéfico. Porque bem ou mal, você tem duas irmãs." "Então senhora vá, mãe." Eu fui, a doutora marcou esta entrevista, depois ela recebeu
um telefonema dessa minha prima Maria José. Recebi um telegrama, aí a dona Anita falou pra mim:" Berenice, tenho uma notícia pra você" "Que foi dona Anita?" Eu estava fazendo um congelado lá na Vila Mariana, ela falou:" Berenice, se fica calma amanhã se vai passar aqui que eu vou te dar uma notícia." Eu me arrumei, acabei minha comida, na mesma noite fui.
P -
Não agüentou esperar.
R - Não agüentei. Fui. Ela falou assim:" Berenice, acho que sua família vai aparecer." "Mas como vai aparecer?" "Escutei à meia noite no Jornal Nacional uma prima sua de Campinas." "Eu não acredito dona Anita, deve ser rebate falso, porque teve aquele caso daquela moça também." "Não, Berenice, acho que dessa vez é verdade."
P -
Alguém tinha filmado a senhora, a senhora tinha ido à televisão?
R - Tinha, já tinham gravado. O Ernesto Paglia a Eleonora Pascoal gravou comigo, ele mais um outro que não lembro o nome na época, um pessoal do SBT também, que eles se infiltram mesmo pra fazer notícia, tiraram foto minha e aparecia sempre na televisão, a minha cara. A Denise falou assim:" Nossa mãe, olha lá a senhora." E numa dessas minha prima me reconheceu. Minha prima falou pra neta dela:" Ela é nossa prima." A Érica falou:" Como nossa prima?" "Isso é uma história minha filha você não era nem nascida, vou te contar como é que foi." E contou pra ela. O Venilson, filho dela veio. Ela falou:" Olha sua prima lá, você não lembra mas eu tinha 8 pra 9 anos quando a vó dela, minha tia, pegou ela tirou da mãe dela que é minha tia e levou ela numa creche, em São Paulo. Foi assim que a gente perdeu a Berenice. A Maria José foi um espetáculo, porque se não fosse ela eu não tinha conhecido ninguém. Ela veio pra Globo. Me chamaram pra eu vir no Colégio Piratininga, aqui na Celso Garcia, na época ainda não tinha visto a Maria José. Me deram laranjada, muito doce, maracujá sempre que tomo maracujá lembro deles. Perguntava toda hora:" Dona Berenice, a senhora está calma?" "Eu não tenho nada, comigo está tudo bem." Olhava de um lado, olhava do outro. A Denise falava:" Mãe, será que tem alguém aqui da senhora?" "De repente, no meio dessa multidão alguém pode me dizer: oi, eu sou alguém de você." Eu estava levando na brincadeira. A doutora veio e me disse:" Berenice, fica naquele cantinho ali." Aí eles arrumaram uma cortina assim, bem bonitinha, e a Maria José estava escondida atrás. Essa minha prima com a netinha. A Eleonora Pascal veio e falou assim pra mim:" Berenice, eu tenho uma coisa pra te perguntar, e quero que você fale de coração: você acha que alguém vai achar você,
você acha que tem alguém te procurando?" "Minha filha, quem esperou 51 anos, se aparecer alguém é porque Deus acha que eu mereci, estou provando a mim mesmo e a Deus que mereci. "Berenice, e se por um acaso você souber que sua família é favelada, é gente muito pobre." "Não quero saber se eles são pobres, vou pra favela, vou pro morro, quero saber que de alguém eu saí." "Então Berenice, você vai ficar calma, se vai virar do lado, e você vai ver que tua prima está te esperando." (choro) Foi muito lindo mesmo. Ela
contou a história que eu fiquei muito revoltada, perguntava muito pra ela da minha mãe, não acredito que minha mãe me jogou no lixo. "Berenice, sua mãe não jogou você no lixo, vou falar na televisão, foi tua vó, minha tia que pegou você e levou pra uma creche. Nós procuramos uma vida." "Zezé, quero saber de meus irmãos." " Seus irmãos moram em São Paulo, você vai achar eles." A Marco Antonio pegou, na época ... eu não sei, só sei que o meio de comunicação é um espetáculo. Acharam. O 1º irmão, foi uma coincidência tão grande, passei o dia com a Zezé, vim com ela aqui pra Vila Edi, passamos o dia juntas e voltei pra minha casa. Quando foi no outro dia recebi um telegrama, dona Anita falou pra mim:" Berenice, seus irmãos estão atrás de você." "Meus irmãos?" "Tão atrás de você." "Como é que vou saber quem é quem?" "Berenice, eles vão te procurar." Tomei o ônibus e fui pra Santana, como morava na Casa Verde, tomova o metrô e descia em Santana. Quando chego em Santana o ônibus super lotado, notei que tinha uma família atrás de mim querendo tomar o ônibus e não conseguia, mas notei que meu irmão olhava muito pra mim, cutucava minha cunhada - é porque aparência, eu com minha mãe - cutucava muito minha cunhada, mas até aí não sabia que era meu irmão.
P -
Vocês estavam todos no mesmo ônibus.
R - Não, eles estavam do lado de fora e eu no ônibus. Eu via assim, fiquei encarada, falei:" Gente do céu, como aquele rapaz me encara eu e aquela mulher, será que é alguma coisa minha? Deus é quem sabe, até nem vou olhar muito se não a mulher vai invocar comigo, vai achar que vou querer o marido dela..." Cheguei em casa, falei pro seu Antonio, o dono da casa:" Senhor Antonio, pelo amor de Deus, vai lá na padaria, compra uma caixa de cerveja, eu do dinheiro pro senhor, compra croquete, empadinha, faz uma compra porque minha família está pra vir aí. Uma amiga que tem a casa maior se prontificou:" Não Berenice, você vai pra minha casa, nós vamos receber sua família lá." "Não, minha família tem que saber onde moro, nem que for debaixo da ponte eles tem que saber ." Porque eu morava num porão até aí. É um sobrado mas eu morava embaixo. Daí meia hora e pouco tocou a campainha quem era? Eles. Essa família, meu irmão falou pra mim:" Sabia que era você. Você é a cópia da Ditinha, olha a pinta, olha o jeitinho da Ditinha."
P -
Ela tinha pinta também?
R - Ela tinha "Quando eu vi você, eu encarei tanto minha mulher até ficou invocada e eu falei pra ela é a Berenice." "Mano, porque você não gritou pra mim no ônibus, porque você não gritou Berenice, que se fosse eu saltava do ônibus e a gente fazia a festa ali mesmo." Ficaram até mais ou menos 10 horas da noite, peguei o endereço deles, no próximo domingo já fui conhecer o outro irmão, o Marco Antonio.
P -
Nesse dia foi a família de um irmão?
R - Foi de um irmão, do Birajara, esse que faleceu.
P -
Retomanto a entrevista, qual foi a emoção de ter encontrado com esse seu 1º irmão?
R - Ele chorou muito e eu fiquei muito preocupada porque ele tinha pressão muito alta. Nós choramos muito. A Odeide, esposa dele também, ele veio com as filhas, 2 filhas. Ele virou uma criança, não acreditava. Depois já me chamava de Ditinha, me abraçava. Essa noite eu nem dormir. Quando a gente fica muito emocionado, a gente realmente troca a emoção pela noite em claro. Porque foi uma coisa muito linda. Quando foi o outro domingo fui conhecer o Marco Antonio, esse que infelizmente papai do céu levou. Quando ele me viu teve um baque, ele falou:" Não, é a Ditinha que tá entrando." Porque a mamãe se chamava Ditinha, depois ela trocou pra Berenice, que foi uma maneira de ela me homenajear com esse nome. Chamavam ela de Berenice também. Ele teve um baque, passou mal, porque ele era diabético, tinha pressão alta, mas depois consolamos ele, ficamos muito amigos, ia ver eles com freqüência apesar da distância. Quando ele morreu senti demais, ele morreu depois de 1 ano e pouco, depois de uns 2 anos mais ou menos ele faleceu. Depois dele morreu um filho também. Enlouqueci pareci incrível, que eu não convivi com eles mas o amor nosso carnal foi tão forte que quando ele faleceu eu queria morrer junto. O pior é que eu tinha que dar força pras sobrinhas, as crianças que ele deixou. Foi muito duro pra mim. Mas tive sorte que quando aconteceu tudo isso estava morando no Rio e tinha uma patroa excelente, dona Francis Davi, imediatamente quando ela soube da notícia falou:”Berenice, larga fogão, larga tudo, está aqui o dinheiro, o motorista vai te levar na rodoviária, só vai te soltar dentro do ônibus, você vai pra São Paulo e fica 10 dias lá.” Fiquei 10 dias com minha família. É ou não é boa patroa?
P -
Quando a senhora reencontrou sua família sua mãe já tinha falecido?
R - 10 anos. Fiquei muito revoltada, fiquei doente, fiquei com muita febre, ia nas igrejas, rezava muito porque não acreditava, tinha febre mas de raiva da minha vó, de ódio como eu falava pra Zezé:”Olha se essa mulher fosse viva acho que esganava ela pelo pescoço” O que ela fez pra minha mãe ... os animais se protegem, por que o ser humano é tão mal assim? Já pensou o quanto essa mulher sofreu? Porque meus irmão também me procuravam, o padastro também me procurava, mas de que jeito? Eles vinham aqui no Camisa Verde, meu irmão desfilava no Camisa Verde na época que eu desfilava. Mas que é que ia chegar no microfone e dizer:”Eu quero falar com a Berenice.” Berenice do que? Se eu não tinha um sobrenome Ricardo Nascimento.
P -
Quando sua avó trouxe você pra creche, ela não falou pra ninguém?
R - Não falou. Fiquei perdida por muitos anos, minha mãe sofreu muito por causa disso, quando ela morreu, aí que a Maria José começou a contar os segredos. Que ela morreu dizendo que queria me conhecer, queria me ver, mas aí já era tarde quando minha avó morreu. Ela fez isso por racismo ao meu ver, porque minha mãe era branca, mulata clara e meu pai era preto, eles não aceitavam, sabe que campineiro é muito racista. O meu primo, o Venilson, ele é pretinho que nem um tição, uma gracinha, casado com uma loura. Quer dizer não tenho nada contra morena, loura, o importante é se dar bem, porque isso aqui é apenas um pigmento que a gente tem, se cortar aqui é a mesma coisa. Mas foi assim nossa separação. Fiquei realmente muito doente, tinha febre, queria morrer, não me conformava, vivia chorando pelos cantos, mas de tanto rezar consegui superar. Pedi a Deus que me desse calma pro meu coração.
P -
A descoberta pra senhora foi porque descobriu seu sobrenome?
R - Descobri meu sobrenome através da Maria José, porque ela falou:”Berenice, você não é Juliana, você é Ricardo Nascimento.” Falei pra ela:”Vou conservar o Juliana porque foi o nome que ganhei no colégio.” Porque antes de ganhar esse nome no colégio era Berenice de Tal, já pensou até hoje ser Berenice de Tal? As freras na época foram boas pra mim, irmã Beatriz, madre Beatriz, que Deus a tenha que ela já faleceu tem uns 4 anos já.
P -
Esse reencontro aconteceu mais ou menos em 1990, tem 9 anos isso?
R - Tem quase 9 anos.
P -
1989?
R - Isso.
P -
A senhora morava ainda aqui em São Paulo?
R - Morava aqui em São Paulo, na Casa Verde Alta.
P -
Quanto tempo depois a senhora foi pro Rio?
R - Olha, fui pro Rio depois de 5 anos, que estou 3 anos no Rio. Mas só fui pro Rio porque o pai da Denise, apesar que ele não foi muito legal com ela quando ela era pequena, mas depois que ela ficou adolescente, que ela ficou jovem, ele passou a dominar, a tomar conta, tinha um ciúmes terrível dela, tinha medo, porque como eu trabalhava demais, que eu não desse educação, não desse assistência. Eu vou citar uma coisa aqui, que vai ficar aqui, essa mulher nunca vai saber, a ex-mulher dele telefonava pra ele aqui em São Paulo e dizia que minha filha estava se drogando, se prostituindo - essa que peguei no meu quarto - que eu não valia nada, fazia a cabeça dele. Ele vinha com uma violência tão grande, falava:”Vou te matar mulher” “Mas Antonio, você quase não me vê e quando vê vem dizendo que vai me matar.” “Estou sabendo que a Denise está se drogando, isso, aquilo...” A Denise teve uma fase que ela não escolhia amizade. O jovem tem mesmo essa fase, mas aí a se dragar, se prostituir, não E a minha índole como é que ficava? Ia atrás, quando Denise dizia:”Vou numa festa, vou na casa de uma amiga.” Dava espaço de 1 hora, chegava lá juntinho, se ela não estivesse lá, já chegava com um pedaço de pau na mão. Falava:”Quero saber da Denise.” “Ela só passou aqui foi na casa de fulana...” “Então vou lá.” Teve um dia que fui na Casa Verde numa festa, Denise falou pra mim que ia num lugar, cheguei não estava lá, nem tinha festa, tinha ido pra uma outra festa aqui na Casa Verde. Me armei com um pedaço de pau e fui. Ela é grandona, eu sou magrinha, não posso com ela, então vou dar uma boa cassetada. Porque o pai dela vivia ameaçando:”Se acontecer alguma coisa, se ela engravidar, te mato, se ela se drogar, faço, aconteço...” Foi uma responsabilidade muito grande que tive comigo. Cheguei lá ela estava dançando rock só isso, com os amigos dela, mas era 1 e meia da manhã. Falei:”Denise,...” Ela passou por mim mas corria que só vendo, que nem um vento, não tinha nem força pra correr atrás dela. Mas não batia nela não só ameaçava. Cheguei em casa ela estava em baixo das cobertas quietinha, eu falava:”Ah pretinha, reza sempre pra mamãe durar 100 anos, viu? Porque você precisa muito de mim.” Mas ela é muito legal, é uma ótima filha, teve esses ataques de juventude que todo mundo teve, que eu também tive: eu fugia do Antonio, ia cantar.
P -
Onde a senhora ia cantar?
R - Ia aqui na rádio cometa na praça da Sé, tinha antigamente a rádio cometa. Era a cabrocha do menino Silva, ele já é falecido há muitos anos. Na rádio América, na Consolação. Ia fazer serenata na Vila Leopoldina, que eu trabalhava de caseira na época que estava esperando minha 1ª filha, cozinhava pra uma família de militares, então ia fazer serenata, cantava que só vendo e olha a multidão, olha...não fora de brincadeira
P -
O que a senhora gostava de cantar?
R - Cantava todo o repertório da Maísa Matarazzo e da Angela Maria. Adorava cantar A turma aplaudia, mas só que o Antonio quando chegava em casa não me encontrava ia lá me pegava pelo braço ia me puxando, ia me batendo. Em vez de me incentivar, porque adorava cantar, meu maior sonho era se um dia pudesse
cantar, para um público... acho que ia soltar mesmo a voz, porque adoro a música erudita, clássica, adoro ópera. Tenho em casa, comprei agora a coleção da Globo no Rio que eles lançaram, do Jornal da Globo, vou comprar do Dia. Gosto muito. Pena que acho que foi vedado esse meu gosto pela vida de cantar, não me deixaram. Só deixaram trabalhar. Soltar a voz como eu gostava - porque no colégio a gente cantava, cantava em coro da igreja.
P -
Uma das cantoras prediletas da senhora é a Angela Maria?
R - É sim. Ela o Agnaldo Timóteo, gosto demais, o Caubi Peixoto, até vou comprar um CD que ele lançou no programa do Silvio Santos, músicas maravilhosas, da Emilinha Borba, essas músicas de boate, canta que é um espetáculo, eu vou comprar este CD dele, o último da Angela Maria e do Agnaldo Timóteo que está cantando todas músicas do Roberto Carlos.
P -
Tem alguma música que a senhora gosta muito e gostaria de cantar um pedacinho aqui pra gente?
R - Ah canto, é da Maísa: “Ouça, vá viver a tua vida com outro bem. Hoje já cansei de pra você não ser ninguém. O passado não foi o bastante pra me convencer, se o futuro seria bem grande só eu e você. Quando a lembrança com você for morar e bem baixinho de saudade você chorar vai lembrar que um dia existiu um alguém que só carinho te quis e você fez questão de não dar, fez questão de negar...” (canta) Essa música me lembra quem? Antonio Candido de Barros, essa música me faz lembrar dele. Eu gostava tanto dele, mas ele não tinha carinho pra me dar.Gosto daquela música da Angela Maria que lançou num CD de amigos: “Babaloo” (cantarola), vai indo que eu não sei as palavras, né. (continua cantando)
P -
Que bacana
R - Adoro Angela Maria.
P -
Dona Berenice, estamos chegando ao final da nossa entrevista, o que aconteceu com a vida da senhora depois de ter conhecido a família?
R - Mentalmete sou uma pessoa feliz, mas me apeguei muito aos meus irmãos, porque são pessoas pobres, vivem com muita luta. Na medida do possível, sempre quando vou levo roupa, ajudo, inclusive 1 semana antes do meu irmão falecer fiz uma compra do mês pra minha cunhada. Sempre procuro ajudar os que mais precisam, porque graças a Deus o pessoa de Campinas são bem de vida, são pessoas que tiveram restaurantes, através da comida, fazem marmitex pras faculdades de Campinas, ela é uma grande banqueteira. Vive muito bem financeiramente. Me apeguei mais pela parte das minhas cunhadas, pelos meus irmãos, que esses realmente precisam de ajuda, por isso que estou lutando pra ganhar um pouco mais. Se estivesse aqui em São Paulo, estaria ganhando muito mais. No Rio ainda não encontrei um emprego que me pague como cozinheira profissional, no máximo uns 500, 600 reais pra mim estaria ótimo. Aí mandaria 100 reais pra essa minha cunhada todo mês, porque ela precisa, ela tem 2 crianças uma de 12 e outra de14. Ela trabalhava na época em 2 hospitais, agora teve que sair de 1 porque ficou muito doente, muito abalada com a morte de meu irmão. Não tenho ajudado ultimamente, porque tem mais ou menos 6 meses que não a vejo, mas tenho mandado cartão-postal, apesar de ela não me mardar resposta, mas é compreensível. Gostaria muito de poder ajudá-la. Quando eu for vê-la, vou levar uma sexta básica, dinheiro, tudo que for de direito. Quero chegar lá como um papai noel. Minhas cunhadas precisam. Da parte de Campinas graças a Deus estão bem. Só senti de não ter sido criada em Campinas, porque tivesse sido criada lá teria tido uma faculdade tinha optado por uma coisa melhor. Apesar que eu sei que cozinha é minha meta, mas através da cozinha eu poderia continuar cantando ou coisa parecida.
P -
A senhora não tem vontade de voltar a morar em São Paulo?
R - Adoro São Paulo Minha terra natal. Acho São Paulo uma cidade limpa, linda Mas Rio de Janeiro me deu muita saúde. Minha pressão quando estava aqui era 19, era 20, no Rio está 12, está 8. Por causa do mar, da praia. Todo fim-de-semana, vou pra praia, vou andar, faço caminhadas. Lá a vida é mais leve. Aqui a vida é mais pesada, é uma selva, a pessoa vive aqui estafante em função do trabalho. Você olha pras pessoas aqui, vê todo mundo de cara amarrada, todo mundo cansado. No Rio não, você vê gente cantando pagode na rua, adolescente nos ônibus cantando, acho isso muito bonito. Quando saí daqui também era assim, uma pessoa muito fechada. Passei a me abrir mais depois que fui pro Rio porque minha mãe me insentivava “mãe, vou levar a senhora na praia, pra ver um pagode, numa festa...” Aqui eu não ia. Passava fim-de-semana deitada vendo Faustão, Silvio Santos, talvez por isso engordava mais ainda, comia bem depois ia pra cama. Amo São Paulo, cada vez que sei de uma melhoria falo pra minha patroa, falo pra meus amigos “Vocês tem que ver São Paulo, aquilo sim que é uma cidade linda.” “Mas lá é muito caro.” “Mas tem que ser caro.” Porque o Maluf pode até ser o que dizem, mas ele mostra o que faz. Aqui no Rio ninguém mostra o que faz, é todo muito pobre. Tem muito miseráveis pra poucos ricos. Os ricos do Rio, não generalizando todos, os poucos que conheço olham só pra frente não olham do lado. De amor que tenho pra dar seria pro povo de São Paulo, pro Rio foi apenas pela minha saúde. Os pontos turísticos de lá são lindos, ainda não conheço, pra subir no bondinho tem que pagar uma furtuna, no Metropolitan tem que pagar uma fortuna. Ao passo que aqui em São Paulo ia aqui na América Latina, assistir meus shows, ia no Masp. Adorava mais o lazer aqui, mais cultural. Já no Rio não dá pra mim ir porque se você vai não sabe se vai voltar, tenho medo.
P -
Dona Berenice, esqueci de perguntar uma coisa, a senhora gosta muito de música e gosta muito de ler também, não é?
R - Leio demais, o Globo, o Dia, Gazeta Mecantil, Jornal do Brasil. Meu patrão recebe, lê, no outro dia põe na cozinha e levo tudo pro meu quarto. Tiro as edições que quero: o Achei, o Boa chance, a parte social, saber notícia dos artistas, a parte cultural. Adoro ler: romances, leio qualquer negócio. Acho que através da leitura, apesar que não tive muito estudo, mas me instrui, foi através da leitura. Gosto demais de lê, viajo lendo, compro revista, jornal. É uma distração e também é muito bom pra mente.
P -
E de cinema, parece que a senhora viu um filme que a senhora se emocionou muito.
R - Titanic Esse filme foi um espetáculo, porque é a história de uma senhora que ninguém acreditava porque diziam:”Imagina, ela teria que estar com cento e tantos anos pra ela contar.” E aí realmente essa senhora apareceu com 102 anos e contou a história dela, de quando ela era mocinha...Esse filme é um filme espetacular, se eu puder vou ver denovo.
P -
Parece que tem outro filme que marcou a senhora bastante, foi A Cor Púrpura?
R - Ah sim, assisti aqui na Brigadeiro Luiz Antonio. 4 vezes
P -
Por que a senhora viu esse filme 4 vezes?
R - Porque me encantei com a história, é um filme muito lindo. Quando gosto de uma coisa procuro assistir o máximo que posso pra mim guardar na mente. Dr. Givago, também que filme Assisti Dr. Givago eu tinha 20 anos. Espartacus, esse com o Frank Sinatra, A Um Passo da Eternidade. Tomara Deus que volta esse filme que eu vou assisti, na televisão. Filmes maravilhosos
P -
Pra terminar aqui a nossa conversa, que foi muito boa, eu queria que a senhora desse sua palavra final, uma mensagem.
P -
A senhora tem algum sonho ainda?
R - Tenho um sonho sim. Não sei se é pedir demais a Deus, mas meu maior sonho era abrir uma portinha, bota umas panelas e fazer comida pra multidão, que nem quando trabalhava aqui no Prato Cheio, nós cozinhávamos pra 500 pessoas. Tinha uma capacidade. Por isso que falo, conservo muito, me preservo muito minha saúde porque quero cozinhar muito. Mas independente desse sonho, gostaria muito de cantar, num programa, nem que fosse de calouros. Só que eu teria que me preparar psicologicamente porque na frente da multidão a gente treme muito, né? Fica nervosa. Então se eu cantasse num bar, pra poucas pessoas, aí soltaria meu vozeirão. Sei que não é aquela voz, mas é um sonho. Gostaria muito, se tivesse um dinheiro disponível, comprar um piano e um violão, que é o que mais gosto na vida Sou apaixonada por piano Essa minha irmã de criação toca piano como ninguém porque ela teve chances, a Neusa. Toca Malaguenha, Valsa de Strauss. Ela sempre fala pra mim:”Berenice, se eu pudesse comprar um piano...pra mim por a Raquel” É minha sobrinha que tem 20 anos. Graças a Deus ela me mandou uma carta agora que ela é chefe de seção do espaço cultural na Estação da Luz, espaço cultural dos músicos. Respondi pra ela:”É um sonho que você está realizando.”Porque ela falou que vai lá no piano e dá suas dedilhadas, já é uma grande coisa. Mas quem sabe um dia ainda vou dar um piano pra ela e ainda nós vamos...né? Adoro música e cozinha, são meus dois ideais, sou fanática mesmo. Chego na casa das minhas amigas, eles falam:”Não, senta aí, fica aí à vontade.” Eu vou chegando, chego na cozinha:”O que tem pra hoje?“ “Berenice, você não vai mexer em nada.” “Então eu vou embora, imediatamente, deixa eu comigo”
Ponho o avental e mando brasa. No dia das mães eu fiz isso, fui pra casa de uma amiga, ela me chamou:”Berenice, vamos fazer um almoço pro dia das mães? Mas eu que quero cozinhar você vai ficar só assistindo.” “Só vou se você me deixar ir pra cozinha.” Aí fiz uma farofa, uma big de uma salada verde, com várias folhas, infeitei com torradas, queijo ralado, que é muito bom, fizemos um churrasquinho na brasa e fiz o arroz que gosto muito com cenoura, tipo à grega. Ela falou:”Mas desse jeito você vai ficar cansada.” Mas eu fico cansada se fico parada, é verdade Sei lá acho que vou morrer sem perceber, morrer trabalhando. Meu maior desejo, quando papai do céu me levar, é estar trabalhando, dormir e não acordar, quer morte mais linda? Não sofre nada, acho que quem morre assim sobe, vai direto, porque não sofre. Tem tanta gente que fica aí sofrendo em cima de uma cama.
P -
Bem dona Berenice, gostaria de agradecer a entrevista, foi muito legal.
R - Eu também, fiquei apaixonada por vocês, guardo vocês no meu coração, sempre vou mandar cartão-postal pra vocês e quero que vocês mandam pra mim e vou mandar uma foto minha de quando eu tinha 20 anos, essa o Antonio Candido de Barros não conseguiu rasgar e vou mandar uma foto da Denise de quando ela tinha 10 anos, comprida, e hoje um mulherão.
P -
Então está ótimo, vamos aguardar.Recolher