Projeto Conte Sua História
Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de João Chrisostomo de Jesus
Entrevistado por Rosana Miziara e Consuelo Montero
São Paulo, 21/07/2011
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV0311
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Débora Rodrigues e J...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de João Chrisostomo de Jesus
Entrevistado por Rosana Miziara e Consuelo Montero
São Paulo, 21/07/2011
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV0311
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Débora Rodrigues e Joice Yumi Matsunaga
P/1 – João, o senhor pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Eu me chamo João Chrisostomo de Jesus, nasci no dia 27 de janeiro de 1922 na cidade de Irará, no estado da Bahia.
P/1 – Seus pais são de Irará?
R – Quando eu nasci o meu pai já tinha morrido, eu sou o caçula na família. Minha mãe nasceu provavelmente, não temos certeza, nos anos de 1876, por aí, e foi beneficiada pela Lei do Ventre Livre. Isso eu sei porque ela comentava que sempre viveu na casa grande, não na senzala.
P/1 – Ela era escrava?
R – Os avós.
P/1 – Os avós eram escravos?
R – Ela foi beneficiada pela Lei do Ventre Livre. E, lá, ela viveu até que houve a libertação dos escravos, em 13 de maio. Aí, ela teve a vida independente, mas nunca detalhou como foi a vida dela. Foi razoável, porque ela passou a morar na cidade e logo depois teve um filho que deve ter nascido, mais ou menos, em 1892, 93, logo depois da República. E outros filhos se seguiram. Os quatro últimos filhos foram do mesmo pai, que era o meu.
P/1 – Qual era o nome dele?
R – Manoel Marinho Chagas.
P/1 – Quantos anos você tinha quando ele morreu?
R – Eu não tinha nascido ainda, ele morreu no final de 1921. Eu nasci depois que meu pai morreu.
P/1 – Ah, ele morreu e sua mãe estava grávida de você?
R – Estava grávida. Eu sou o sexto filho, duas moças e quatro homens. E numa época de muita dificuldade...
P/1 – O senhor sabe como ele morreu?
R – Não. Não tenho informação.
P/1 – A sua mãe contou alguma vez como era a vida na casa grande?
R – Contou. Ela era muito ligada à dona da casa, ao senhor, à família Carvalho que tinha a fazenda. Não sabemos direito a origem africana da minha mãe. Mas depois de muitos anos deduzimos que a família dela tinha sido oriunda do Senegal, devido ao fato de outras famílias já terem identificado a origem e parentes no bairro em que a família nasceu, todas parecidas, mesmo tipo físico, etc. Ali por volta de 1965, 66, veio ao Brasil o Balé do Senegal, que os militares, já no poder, impediram inicialmente de se apresentarem ao público porque elas dançavam com os seios nus. Depois houve um movimento de intelectuais e eles cederam, se apresentaram no Teatro Municipal e depois houve duas apresentações no Ibirapuera, perto de onde nós morávamos. E fomos assistir, eu levei a família, e lá percebemos que as moças pareciam muito com minha mãe e minhas irmãs: tamanho físico, um metro e sessenta, um metro e setenta, todas negras mais claras, e aquela característica. Porque o fazendeiro baiano escolhia de preferência os negros pequenos, canela fina e dentes bons, isso era uma tradição. A lei que autorizava a escravidão obrigava aos senhores alimentar, cuidar da saúde dos escravos porque ele recebia o trabalho, etc. Então, eles procuravam os pequenos, sadios, imaginando ter menos despesa, devia ser isso. Coisa que o americano fez diferente. O americano preferiu os negros altos, fortes, porque achavam que eles trabalhariam mais. Questão de preferência ou orientação de alguém.
P/1 – E essa casa grande, onde ela trabalhava era no Irará?
R – Era no Irará, na fazenda e depois na cidade. Quando começou o processo de urbanização, ali talvez antes da primeira grande guerra, em 1910, por aí, eles mudaram para cidade e ela foi com a família. Mas já tinha os filhos. A minha mãe usava o método, que depois viemos constatar que era constante com os filhos homens, que ela doava os filhos homens para pessoas que tinham posses para educar e usar o trabalho deles, porque ela sempre acreditou na leitura, na Educação. Ela condenava a República, porque a República trouxe coisas que ela considerava não serem interessantes para o povo pobre.
P/1 – O senhor pode me explicar melhor? Ela doava os filhos?
R – Ela permitia que os filhos fossem trabalhar sem remuneração, lá eles se alimentavam e eles dormiam em casa. Aconteceu com o irmão mais velho, que depois foi levado para Salvador para ficar na casa dos patrões, ficar com a família porque os filhos foram estudar em Salvador, fazer faculdade etc, e ele foi ficar como acompanhante das pessoas. O meu segundo irmão ficou na casa do dono do cartório, o filho abriu uma venda, ele ia trabalhar lá e dormia em casa. E ia para escola também. E eu, por último, que fui praticamente dado à diretora das Escolas Reunidas do Irará. Quando, em 1930, o Getúlio ganhou a Revolução, implantou a Reforma Capanema, que ficou famosa porque todas as escolas eram isoladas, o fazendeiro ou o rico instalavam as escolas para o filho ou para filha e o Governo reconhecia. Quando Getúlio tomou o poder, o Ministro Gustavo Capanema implantou a reforma que unificou as escolas, passou a ser Escolas Reunidas, reuniram todas as escolas em um programa só. E veio uma professora da cidade de Alagoinhas, que era a comarca, e minha mãe me ofereceu para eu ficar lá porque ela trouxe uma sobrinha e vieram dois meninos, filho de fazendeiros morar na escola para estudarem. Então, eu ia para ficar brincando com eles o dia todo, e lá eu me alfabetizei, porque no período era difícil o pobre ir à escola. Na Bahia havia intencionalmente, que depois se constatou isso, uma barreira ao pobre. Fazendo um parêntese, Irará tinha a segunda maior célula comunista do Brasil, a primeira era em Bauru por causa das oficinas das estradas de ferro, da Paulista, da Sorocabana e da Noroeste, e depois Irará. E os revolucionários, comunistas diziam que essa barreira que se fazia ao ingresso das crianças pobres no Ensino Fundamental era oriunda de uma lenda que corria entre pessoas, que os fazendeiros eram orientados a não abrir a educação para os pobres porque Deus dava a inteligência para todos, agora o saber só para quem poderia pagar. Então, para manter o filho do vaqueiro no seu lugar, não dê o conhecimento para ele. Isso era a lenda que corria. Eu fui uma vítima, talvez a última, porque a partir de 1934 as coisas mudaram muito.
P/1 – Aí, a sua mãe doou você para essa professora?
R – É, ela permitiu que eu ficasse na casa dela o dia todo. Lá eu me alimentava, ela ficou sem o problema de alimentar mais um, e eles me alfabetizaram fora da sala de aula. Eu só fui conseguir me matricular em 1932, que houve um arejamento na questão do ensino. Porque o impedimento que havia é que eu precisava ter botina, roupa, cabelo cortado. Eles faziam inspeção: unha cortada, orelha limpa, cabelo cortado a cada quinze dias etc. Isso impedia que o pobre, quem tinha dois filhos não podia gastar dinheiro com essas coisas por causa da escola. Como a escola era quase uma abstração na época, não se punha o filho na escola pra não ter a despesa.
P/1 – O senhor se matriculou com doze anos?
R – Eu consegui me matricular com dez anos, 1932. Houve a interrupção nas aulas por causa de uma epidemia de tifo negra que houve no Irará, que quase todas as casas, acho que noventa e cinco por cento das casas tiveram um caso. Havia um pelotão de voluntários para enterrar as pessoas, foi uma coisa terrível. Por qualquer razão lá na minha casa, éramos em quatro pessoas, não houve caso nenhum. Minha mãe era muito cuidadosa, apesar da pobreza.
P/1 – Como era a casa do senhor?
R – Era uma casa de chão batido, de adobe, coberta de telhas, mas sem forro, um quintal onde tinha mamoeiro, um pé de cajá. E juntava lixo para vender, para os agricultores de volta, comprava. Eu não esqueço, comprava trezentos réis, a carroça de lixo. A pessoa acumulava, guardava. Não havia água corrente, a água era numa fonte pública e tinha pessoas que tinham o comércio de água potável. Iam buscar em barris, em jegue ou mulas, e vendia na cidade, tinha pessoas que viviam disso.
P/1 – E como era a dinâmica na sua casa? Quem exercia a autoridade era a sua mãe?
R – A minha mãe passava roupa, ela era especialista em passar roupa. Naquele tempo usava-se muito linho. A roupa mais importante para as pessoas mais abonadas era o linho inglês. Tinha o linho branco, o linho pardo e o linho chumbo, que era fabricado em Manchester, se não me engano, que o pessoal chamava de cimento armado. Foi justamente quando surgiu o cimento armado que eles apelidaram aquele tipo de linho, que era o do dia a dia, de cimento armado porque ele parecia com cimento devido à cor. E as famílias que tinham filhos homens, a minha mãe passava a roupa numa grande parte da cidade, principalmente das famílias abonadas. Agora, já depois de casado, com filhos, eu vim a descobrir porque uma família rica mandava roupa para minha mãe passar e ganhar algum dinheiro. Ela tinha três empregadas e era minha mãe quem passava a roupa dos filhos homens, que eram oito. Os maiores, alguns estavam fora, dois moravam no Rio, um era deputado federal, assim por diante, e ela passava a roupa do marido e dos filhos. Ela fazia isso para nos ajudar, sem que isso ofendesse. Mas eu descobri isso quando me mudei para Salvador, de São Paulo mudei pra Salvador, e pessoas contemporâneas dela que falaram, filhos, netos. Contavam que dona Genésia Santana ajudava indiretamente. O meu irmão do meio, o Cecílio, é quem bancava a despesa maior da casa. Ele era colega do cidadão que namorava a filha de um fazendeiro muito importante, que inclusive era herdeiro de uma sesmaria, coronel Cazuza Miranda. O pai do Tom Zé, que era o cidadão, era o seu Everton Martins, namorava a filha do fazendeiro. Essa parte é fora do contexto, mas tem uma importância eeenooorme na vida da gente. O meu irmão era amigo dele, os dois eram alfaiates. A fazenda do fazendeiro era vinte e quatro quilômetros distante, e o pai do Tom Zé, o seu Everton Martins, ia uma vez por mês para noivar a filha do coronel Cazuza. E levava o meu irmão porque eles eram amigos, trabalhavam juntos na mesma alfaiataria, para ser companhia deles. E o meu irmão era muito simpático, tinha um riso bonito, sorriso da minha mãe, era claro, sarará. Então, para ele não perder viagem começou a namorar uma filha bastarda do fazendeiro. Porque a dona Geminiana costumava trazer para casa grande todos os filhos bastardos do coronel. E todos eles tiveram educação, alguns se formaram, farmacêutico, contabilidade etc. E o meu irmão namorou e casou com uma delas, para não ficar lá sem fazer nada. Porque o bairro onde o fazendeiro tinha a sede era muito pequeno, lá passava a estrada de ferro, no Irará não passava, mas lá em Água Fria passava. Eles iam se divertindo para a estação, vendo o trem passar etc. E aí, ficou namorando com a filha bastarda, Bijuca. No fim acabou se casando com ela e o coronel abriu um ramo da empresa que ele tinha na região das usinas de cana-de-açúcar, perto de Santo Amaro, para ele ter uma vida um pouco melhor, uma outra representatividade, ajudou ele a ter um negócio. O Everton, pai do Tom Zé, ganhou na loteria da Bahia. Ele era muito dispersivo, muito inteligente, muito alegre. O Tom Zé é filho da segunda mulher. E gostava de jogar e nesse período ele comprou um bilhete da loteria da Bahia, e o prêmio maior era vinte e cinco contos de réis. E como ele era muito dispersivo, ele deu para o meu irmão guardar. O meu irmão pôs numa caixa de pó de arroz, tampou, e jogou num baú que ele guardava os tecidos que as pessoas traziam para eles costurarem, eles tinham uma alfaiataria. Quando saiu o bilhete, o bilheteiro veio avisar que o Everton tinha ganho o prêmio maior. E aí, gastaram quinze dias procurando o bilhete, porque não achavam. Meu irmão não sabia onde estava o bilhete. Quando eles encontraram, levaram mais quinze dias tomando porre pra comemorar.
P/1 – Eles dividiram o dinheiro?
R – Não, porque o bilhete era do Everton, ele que comprou. Ele foi pra Salvador, recebeu, voltou, e em vez da alfaiataria, ele montou uma loja. Foi nesse meio
tempo que ele ajudou o meu irmão a se casar e o coronel colocou o meu irmão numa empresa. O Coronel Cazuza era representante de uma empresa alemã e comprava tudo que era nativo do local: resinas, renda de bilro, couros e peles. O forte era couros e peles, couro de bode, de carneiro e de animais silvestres. Havia muita cotia, muito veado, naquele tempo ainda havia muito veado. Havia muitas caças e ele comprava tudo que alguém quisesse vender. Ele comprava castanha-de- caju. Ele comprava e remetia para os alemães. E então, pôs uma filial pro meu irmão tomar conta, lá em Terra Nova, já na região das usinas de açúcar. Essa foi a primeira fase. Eu, o seu Everton, o pai do Tom Zé, que tinha uma loja, nós iamos lá todo sábado, que era o dia da feira. Ele dava cinco mil réis para fazermos a feira e meu irmão acertava com ele quando vinha no Irará a cada seis meses, quando tinha festa. Pagava a conta. Era isso, mais o que minha mãe ganhava, nós passamos a não dar despesa a partir de 1931. Só minha irmã ajudava, ela bordava e fazia renda de bilro, e vendia geralmente para quem era de fora e aparecia no Irará. O ator Paulo Autran, que faleceu, tinha um tio que morava no Irará. Eles moravam no Rio e uma vez por ano eles iam para lá com as irmãs e parentes. Quando eles chegavam, a minha irmã dava um moonnnte de renda de bilro para oferecer pras moças que chegavam, e elas geralmente compravam. A renda era feita com linha inglesa porque na época ainda não se fabricava linha no Brasil, tinha linha só de costura, mas não a linha brilhante que dava um outro tom à renda.
P/1 – O senhor lembra das suas brincadeiras de infância?
R – Ah! Sim. Revendo as coisas hoje, a gente conclui que era proposital, todas as brincadeiras, as pessoas idosas, de mais idade, não propriamente idosa, que iam contar histórias na noite de lua, reunia a meninada e ficavam contando histórias dos reis de França, dos árabes. Pessoas liam as coisas e passavam para nós. Isso até 1931, quando chegou no Irará um médico preto, doutor Adalberto de Assis Nazaré, que morreu aqui em Assis. Vou contar, para ter sentido a coisa: O Getúlio começou a perseguir pessoas de Alagoinhas, porque era uma comarca, cidade grande, era um entroncamento onde tinham as oficinas da estrada de ferro, tinham muitos operários, etc. E era o núcleo político do Otávio Mangabeira, que tinha sido o chanceler do Washington Luís. E ali, o João Mangabeira, fundador do Partido Socialista, atuava em divergência com o irmão porque o Otávio era ligado ao Presidente Washington Luís, foi Ministro do Exterior, e o João era socialista, entusiasmado, e foi fundador do Partido Socialista no Brasil. Quando Getúlio tomou posse, todas as pessoas que tinham emprego público e eram do lado do Mangabeira não perderam emprego, porque já tinham certa estabilidade, ele não quis desmantelar o sistema que funcionava. O Irará era uma cidade que não era caminho para lugar nenhum, ela ficava isolada. Feira de Santana estava a quarenta e dois quilômetros, Alagoinhas a sessenta, Serrinha a uns cinquenta quilômetros, Santo Amaro estava a setenta. Então, as pessoas nasciam ali e ficavam ali, quase não ia ninguém de fora, a não ser quem estava fugindo de alguma coisa e ia pro Irará, porque lá era isolado. No início do Irará, um século ou mais atrás, o Irará tinha sido um quilombão. Os escravos que fugiam dos bangues, das usinas de açúcar, fugiam pro Irará. Depois, já no final do século dezoito, na época da perseguição do Marquês de Pombal aos judeus, começou a fugir judeu pro Irará. Lá abrigava negros e judeus. Eu conheci um compadre da minha mãe, era Dudu de Jacó. Quem conhecia o Jacó, ele ainda usava o chapeuzinho, etc. E tinham outros, Siqueira, o Elesbão, os Carneiros, eram todos judeus, só que eram cristãos e eles tinham se desvinculado, fugiram pra não ser punidos, etc. Então, Irará tinha uma vida própria. Quando Getúlio perseguiu os políticos, veio um professor de Alagoinhas que falava cinco línguas, era professor de Latim, Francês, Inglês e Alemão. E o doutor Nazaré também chegou nessa época. Ele não foi expulso, ele veio porque Irará não tinha médico e ele, recém-formado, estava procurando um lugar para montar a clínica. À noite, em vez de deixar as crianças ouvindo histórias, o doutor Nazaré levava a gente para dentro de uma sala, acendia um fifó, que era aquele candeeiro que queimava querosene, com pavio de algodão porque não havia eletricidade. E ele dava livros aos que sabiam ler, foi naquela fase já de José Lins do Rego, José Américo de Almeida. O Jorge Amado surgiu um pouco depois. Aquela literatura nova, assinava revistas do Rio, “A Noite Ilustrada”, a “Vamos Ler”. A “Vamos Ler” era do grupo da “Noite”, que era do Governo, mas “A Noite Ilustrada” era uma revista que só tinha fotografia, crimes, notícias da semana. A “Vamos Ler” era mensal e já tinha literatura, tinha soneto, contos, crônicas etc. Quem sabia ler, lia, e precisava dizer o que leu, explicar. Eles começaram a exigir isso dos meninos. Já os filhos da classe média, digamos assim, o professor Camargo que era um poliglota, montou o que ele chamou na época de um “Curso de Humanidades”. Ah, o doutor Nazaré ensinava Matemática, arranjou uma outra professora que ensinava Ciências, e ele ensinava línguas, Português especialmente, Latim etc. Desse grupo, com o passar do tempo, surgiu uma elite. Fernando Sant’anna foi deputado federal até há pouco tempo, o José Valverde, os Sant’Annas, família Reis, todos eles foram pra Salvador porque mostraram condições para progredir no ensino e os pais mandaram pra Salvador, pra Alagoinhas, pra fazer ginásio etc, e alguns se formaram.
P/1 – Voltando um pouquinho. A sua mãe deu alguma educação religiosa para vocês?
R – Minha mãe era uma criatura que não acreditava nos padres. Mas era católica religiosa. Depois de muitos anos, conversando com pessoas de maior conhecimento e entendido mais de Teologia e religião, descobrimos que ela era uma católica litúrgica. Ela acreditava nos sacramentos, nas coisas de Deus, mas não acreditava nos padres. Eu cheguei a perguntar uma vez: “Por que a senhora não acredita nos padres?”. Ela falou: “Porque os padres cedem muito à tentação. Eu já vi muito padre sair daqui expulso montado em um jegue em pelo”, que era como os fazendeiros puniam um padre que causava mal ou praticava atos não condizentes com a moral da época. Eles expulsavam os padres num tal de jegue em pelo. Os padres não resistiam à tentação, havia uma quantidade enorme de moças e poucos rapazes, porque a maioria saía para trabalhar fora. O Irará era muito isolado. Eles vinham para Feira de Santana, pra Alagoinhas, pra Salvador, pra São Paulo. Iam pro Sul, que era um sufoco naquela época sem transporte. As moças avançavam nos padres, essa que é a realidade, e os pais achavam que eles eram os culpados, porque eles tinham que resistir. Tanto que depois nós chegamos a conclusão que se minha mãe tivesse vivido em Canudos na época do Antônio Conselheiro, ela seria uma das beatas, porque ela culpava tudo o que ocorria de ruim à República. O jogo de bola era culpa da República, porque chegou um pouco depois. O automóvel, o gramofone, todas as novidades que ela não aceitava, talvez até porque a gente queria e ela não podia dar, ela culpava a República de ter trazido pro Brasil, que não precisava dessas coisas. Nós fomos sempre livres a respeito da religião, mas preferencialmente a religião católica nos direcionava, e somos todos católicos, não desviamos até hoje.
P/1 – Queria perguntar qual era a brincadeira predileta do senhor.
R – As brincadeiras eram... A gente ia no passeio da igreja que era enorme e jogava. Castanha-de-caju era a moeda. Primeiro punha a castanha-de-caju em uma trilhazinha de areia e com um pastel feito de caco de prato, redondo, tinha que derrubar. Quem derrubava mais, ficava. Depois veio o jogo do dado, aquele dos três dados. Você apostava na banca de um a seis, quando dava dois dados com números iguais você recebia a aposta em dobro. A diversão era essa. O caçar também, caçar passarinho, certos animais comestíveis como camaleão, preá. E tinha muita ave, nambu, perdiz, a gente precisava de uma outra maneira, não era com estilingue que conseguia. Era difíííícil conseguir borracha pra fazer o estilingue, muuito difícil. Quem tinha estilingue era o maior. A gente fazia armadilha, fazia alçapãozinho no chão, cavava o chão e fazia um alçapão, punha uma tábua muito doce e cobria com a terra. Às vezes um passarinho ia e caía, e a tampa fechava. Na primeira infância esses tipos de coisas, eram jogos. E olhar as coisas. No Irará não tinha júri, o Irará dependia da comarca que era Alagoinhas, então, quando havia um crime, vinham os advogados. O júri era em Irará, na prefeitura, que era um prédio muito antigo e tinha um salão que o prefeito arrumou e fazia como júri. Do lado de fora tinha uma bancadinha assim, que a gente subia e ia assistir aos debates. Na época tinha um criminalista em Salvador que não era formado, era provisionado como chamava, ele tinha autorização para advogar, Cosme de Farias, era um negrinho esticaaado, magro, usava terno branco de linho, enfim, era uma sumidade. Quem conseguia o patrocínio dele para uma causa quase sempre saía vencedor. E a gente disputava o lugar para assistir ao júri, aos debates. E, já em 1933, no distrito de Pedrão, em Irará, fundou-se o Núcleo do Integralismo. A família Valverde que morava lá, um dos membros da família era o Cardeal Arcebispo de Olinda e Recife, que o Dom Hélder Câmara substituiu. E ele era da Câmara dos quarenta do Plínio Salgado, quando ele montou o Partido Integralista. E eles queriam implantar no Irará, e o Irará, como tinha muito comunista, nunca deixou, eles nunca conseguiram.
P/2 – O senhor tinha quantos anos nessa época?
R – Nessa época eu tinha onze, doze anos, por aí. Já sabia ler.
P/2 – O senhor entrou com doze anos na escola?
R – Com dez anos.
P/2 – Qual é a lembrança mais marcante que o senhor tem dessa época da escola?
R – Ah, tem muitas. Os colegas. Como eu vivia na casa da professora, eu sabia um pouco mais do que os outros, porque lá ela tinha uma sobrinha para quem ela dava aula, e tinha os dois meninos. Ela era uma professora polivalente, fazia teatro, tinha um curso de teatro amador, escolhia criança para participar, ela dirigia, tinha um coral com canto orfeônico que ensinava. Ela não parava. Quando chegava nas festas comemorativas, a principal festa sempre foi São João, era maior que o Natal. No Natal ela inovou com distribuição de prêmios por sorteio. Ela pedia brindes pro comércio, embalava, punha um número e pendurava em uma árvore. Fazia com antecedência. E fazia uma reunião, sorteava os números correspondentes aos brindes que estavam lá com as crianças e quando sobrava das crianças ela dava para os adultos também. Isso movimentava a praça. Ela mudou a vida de Irará, e de todos nós, proporcionava novidades. Outra coisa que ela fez, os alunos do quarto ano tinham curso de francês, ela dava rudimentos de francês pra quem ia completar o Fundamental. Porque a Bahia teve um número muito grande de franceses na época da Independência. A Bahia foi libertada pelos franceses, veio um batalhão de mercenários conduzidos por Benjamin Constant, que era político lá, que é nome de ruas no Ipiranga. General Labatut, e muitos outros, que foi quem trouxeram o batalhão para tirar os portugueses de Cachoeira de São Félix, eles estavam alojados ali. Tanto que a comemoração da Independência na Bahia não é no dia sete de setembro, é no dia dois de julho. A Bahia comemora a independência, tem um festão, até hoje. Eles comemoram justamente a expulsão dos portugueses da Bahia, e foram os franceses que fizeram isso.
P/2 – O senhor tinha aula de Francês na escola?
R – Ela ministrava para quem estava concluindo o primário.
P/2 – E o senhor gostava de aprender Francês?
R – Eu gostava, inclusive porque meu avô era francês. O meu pai era filho de um Valois, um desses mercenários que ficou por lá. Eu tenho muitas pessoas da minha família que ainda usam o sobrenome Valois. Minha mãe não colocou em nós porque meu pai não era casado com a minha mãe, ela era concumbina do meu pai. Nós somos o que se chama de “filhos naturais”. Porque o meu pai era casado com uma outra senhora que tinha filhos, e eu conheci os irmãos lá no Rio. Eles nos socorriam quando havia necessidade. Mas o que havia de divertimento, de lazer era isso. E o futebol depois. Futebol que empolgava todo mundo, era o único esporte praticado, não tinha outro.
P/2 – Onde você jogava, na escola, na rua?
R – Na escola nem tanto, as escolas não tinham campo. Era no campo, na rua. Esse seu Everton, quando montou a loja na praça, porque ganhou na loteria, toda tarde ele dava uma bola de borracha, aquelas bolas cinza pros meninos jogarem. E ia crescendo e ia jogar num time no segundo ou terceiro time da cidade. Nós morávamos na Rua das Quixabeiras, o meu padrinho era marceneiro, tinha quatro filhos homens e todos jogavam futebol, alguns muito bons até. Então, ele desafiou o resto da cidade para jogar contra os filhos. E se tornou uma tradição, a Rua das Quixabeiras desafiava a cidade uma vez por ano, fazia uma melhor de três. E quase sempre nós ganhávamos. Quando eu tinha catorze anos, eu passei a jogar no time dos homens.
P/2 – E o senhor jogava bem?
R – Jogava. Aqui em São Paulo, já em Regente Feijó, ganhava mais no futebol que no meu emprego. Quando o Bradesco abriu as primeiras agências e passou de Casa Bancária Almeida pra Banco Brasileiro de Descontos S/A eu trabalhava lá, era correntista, e jogava em um time numa cidade que era vizinha de Presidente Prudente, mais para o oeste, Álvares Machado. Eu ganhava trezentos réis no Bradesco por mês e ganhava oitocentos para jogar futebol em Álvares Machado. Tinha dois médicos que tinham dois times e eles eram inimigos, os times era onde desaguavam as mágoas, as raivas, era a vitória do time. E um deles me contratou para jogar. Como o médico do meu time era mais velho na cidade, tinha mais coisa, conseguia me dispensar do banco duas vezes por semana às três horas para eu ir treinar em Álvares Machado, que é uma cidade depois de Presidente Prudente.
P/2 – Voltando um pouquinho, o senhor passava o dia na casa dessa diretora das Escolas Reunidas e dormia em casa. E como era para sua mãe à noite, com a diretora. Sua mãe se dava bem com ela, conversavam?
R – Minha mãe se dava bem com metade da cidade porque ela passava roupa para metade da cidade. Como ela passava muito bem, tinha fila aguardando. Pessoas que precisavam da roupa dali a um ou dois meses já levavam a roupa pra ela passar pra festa, pro evento. Então, ela se dava muito bem, e com a professora ela se dava bem também, porque a professora me tratava muito bem, eu sempre fui bem comportado, modéstia à parte. Na cidade de Irará viveu o doutor Teixeira, uma figura incrível na história da Bahia. Tem até um livro escrito pelo senador com a biografia dele. O doutor Texeira casou-se com uma africana, ela não era só negra, ela era africana de origem. E vivia em Cachoeira, era da família Teixeira, do educador, formou-se e a família mandou ele pra Irará porque ele era muuuito bagunceiro, farrista, boêmio. E ele tinha uma coisa que era inusitada, ele plantava papoula no quintal pra uso e a Secretaria de Saúde mandava todo mês uma quantidade de ópio pra ele consumir, ele era um viciado irreversível. Como não dava, ele plantava papoula no quintal, e dali ele usava a papoula. Ele era paralítico, perdeu o movimento das pernas, dizem que foi de tanta esbórnia, tanta farra. E foi com a mulher pro Irará. Ela ainda falava nagô, minha mãe dizia que era nagô, outro dizia que ela falava Jeje, que era de uma etnia africana da língua Jeje. Mas ela falava um português arrevesado. Alta, curvada, era quem cozinhava pra professora onde eu morava. Ela mandava um tabuleiro, eu ia buscar. A professora tinha uma doméstica, mas eu que ia buscar a comida e comia na casa da professora. Aí, eu comi macarrão pela primeira vez na vida, comi queijo parmesão, porque eles eram ricos e importavam. Uma das filhas do doutor Teixeira foi a primeira negra a se formar em Medicina na Faculdade de Medicina da Bahia. Casou-se com um francês em Ilhéus porque ela foi clinicar em Ilhéus e lá ela casou-se com um francês. Porque na época tinha o consulado francês em Ilhéus, por causa do cacau. O marido dela chamava doutor Eusinio Lavigne, bisavô da mulher do Caetano, que ele separou agora, dessa moça.
P/2 – Da Paula.
R – Da Paula. O José Lavigne, que deve ser neto ou bisneto do doutor Teixeira é um criminalista importante no Rio de Janeiro, que é da família Lavigne de lá. E ele morava no Irará. O Irará era uma cidade de desterro, de punição. Ele ainda clinicava, apesar de estar na cadeira de rodas. E de quando em quando a família dele vinha para o Irará passar férias. E tinha os meninos que iam pra casa da professora que era muito amiga deles, era quem as netas, os filhos se relacionavam com a professora com quem eu morava. Então, eu também me relacionava com os meninos, eles traziam novidades de Salvador, outros moravam no Rio. Não foi uma vida assim, surda, mansa, tinha sempre agitação. Irará comemorava muito o Sábado de Aleluia, era uma festa especial porque tinha queima do Judas. Lá tinha um núcleo de fogueteiros, fabricante de fogos, que inovavam na questão dos fogos, eram os Aquinos, que tinham vindo de São Félix de Cachoeira, tanto que alguns morreram no incêndio da fábrica de fogos. E fabricava-se muito a espada, é um foguete grande assim, feito com bambu especial e enrolado com barbante encerado, pra tocar no São João. A pólvora é uma pólvora muito forte, misturada com limalha de ferro. Como Irará não tinha carro, só tinha um carro no Irará, que vivia na garagem e era do coronel Pinto Nogueira, que era inimigo dos Campos, dos Sant’Anna e dos Cerqueira na política. Ele tinha um sobradão de três andares construído nos anos de 1700, que hoje é o Centro Cultural de Irará.
P/1 – Quantos habitantes tinha na época?
R – A cidade tinha uns oitocentos, por aí.
P/1 – Todo mundo se conhecia?
R – Todo mundo se conhecia, os amigos e os inimigos.
P/1 – E o senhor passou a adolescência lá? O senhor ficou lá no Irará até quando?
R – Eu fiquei até 1940. Em 1940 eu vim pra São Paulo.
P/1 – Então, passou a adolescência lá?
R – Passei até os dezoito anos lá.
P1 – E o que tinha de diversão, o que vocês faziam?
R – Em 1937 algumas pessoas que ficaram ricas, no padrão do Nordeste, começaram a voltar pro Irará. Em 38 voltou um cidadão chamado Elesbão. Ele era muito pobre, apesar de ser loiro, filho de algum descendente de holandês, coisa assim, e foi trabalhar em uma fazenda. Lá ele se mostrou muito capaz, passou a administrador, ganhou dinheiro. Em 1937 ele voltou pro Irará. Irará tinha um cinema que tinha funcionado no final dos anos 20, tocado a um motor belga imenso, com um pistão só de vinte polegadas , não, tinha umas dez, doze polegadas. E ele, então, resolveu restaurar o cinema e montar um cinema falado. Comprou equipamento da Philips e ia montar o cinema. Ele reformou o cinema, mandou buscar o mecânico porque era um rapaz que tinha saído fugido do Irará em 1937. Isso já era 1938. Por causa da perseguição do Getúlio em cima dos comunistas, ele veio pra Bauru. Ele era ferroviário e lá em Bauru se aperfeiçoou na mecânica geral e voltou pro Irará quando houve uma anistia, então ficou encarregado de cuidar do motor. Ele montou o cinema, comprou o equipamento e fez um concurso para um rapaz ser o operador. Nesse concurso eu ganhei e habilitei em ser o operador. Veio um técnico holandês da Philips para montar o equipamento e ensinar a pessoa. Aí, que eu comecei a conviver com a eletrônica, lâmpada excitadora, como era o som, porque o som, aquela faixa onde era gravado, e aprendi quase tudo. Passava filme no sábado e no domingo, às vezes repetia, às vezes passava um outro filme no domingo, dependendo do período, se tivesse uma festa, alguma coisa, passava um período novo. E havia a banda de música do Irará.
P/1 – O senhor lembra-se dos filmes que assistia?
R – Eu me lembro de um filme que eu pedi para o representante da Paramount em Salvador, para eu passar em meu benefício para eu viajar pra São Paulo. Eu pedi e eles mandaram o filme, eu paguei só o frete. Era “O último trem de Madri”, um filme com o Gary Cooper sobre a Revolução Espanhola. Passavam aqueles filmes de danças, filme moderno. Os filmes alugados nunca eram antigos, eram filmes modernos. E Carlitos ainda estava, o Charles Chaplin, o Gordo e o Magro. E os faroestes, os filmes de cowboy. O cinema tinha uma coisa especial, o equipamento ficava atrás da plateia e focalizava-a lá embaixo. E, atrás da tela, a legenda saía ao contrário, em vez da esquerda pra direita, saí da direita pra esquerda. E tinha um narrador lá, que nós deixávamos entrar de graça pra narrar para as pessoas que não conseguiam ler, por causa da dificuldade. A maioria das pessoas que iam ao Galinheiro, como chamava aquela parte do canto, tinha umas tábuas assim, e as pessoas sentavam. E tinha o João que tinha um nome esquisito, o chamavam de “João vira-bosta”. Ele é quem fazia a leitura da legenda para o público que estava ali, porque o preço do cinema era um terço do preço da plateia. A tela era molhada antes de começar a projetar o filme pra ela perder o brilho, ficar opaca.
P/1 – Quantas pessoas cabiam?
R – Ah, umas oitenta a cem.
P/1 – Cem lugares?
R – Cem lugares mais ou menos.
P/1 – Senhores, senhoras, crianças?
R – Crianças esperavam o filme com ansiedade. O seu Everton, o pai do Tom Zé, era um sujeito muuito inteligente, era um cara que naquela época falava palavrão
pras moças, pros rapazes. Passava uma menina e falava: “Seu Everton, como é o nome do filme que vai passar sábado?”. Ele falava: “Napoleão no Egito, o ânus da mãe Pantanas”. Desbocado! Então, as meninas vinham provocá-lo. Era interessante, mas era uma figura. A origem da irreverência do Tom Zé é ele.
P/1 – O senhor ia falar da banda de música.
R – Ah, banda de música do Irará. Se não me falha a memória ela foi fundada em 1895, e existe até hoje. Naquela época os coronéis de todo o sertão da Bahia e até uma parte de Minas, a disputa deles não era o futebol como hoje. Naquela época era a banda de música que melhor se apresentava. Tanto que eles recrutavam músicos de fora. O músico tinha importância, tinha valor na sua profissão. Às vezes, a prefeitura bancava salários e estadia. E o Irará tem a banda de música. Em 1934 houve a Constituinte de 34 que elegeu o governador, que era pressão de São Paulo com a Revolução de 32, Getúlio cedeu e elegeu um congresso constituinte e foi discutida e votada a constituinte de 34. Quando foi eleito aqui em São Paulo, o Armando Sales de Oliveira, o Juracy Magalhães, que era o interventor, renunciou pra se candidatar a governador e conseguiu. E nesse período houve eleição pra prefeito, e um dos Sant’Anna, o seu Elíseo foi eleito prefeito do Irará com apoio do Juracy. Lá no Irará, o grupo escolar ia num casarão antigo de adobe, mal feito, e o Juracy construiu um prédio moderno. Nessa época veio um mestre de obras que era um preto que usava um linho branco e ia aos bailes, um cara muito civilizado. Eu assisti um ato dele que tinha vários ajudantes de pedreiro com ferramenta e começaram a briga. E um deles pegou a enxada e o outro a picareta. Foram chamá-lo, ele foi chegando e falou: “Meninos, vocês parem com essa briga porque eu vou falar uma coisa, já passei por isso. Se briga fosse coisa boa não chegava pra vocês, ela seria pra quem pode”. Aí, eles pararam, encostaram a ferramenta e foram trabalhar. Era um cara de poder de convencimento.
P/2 – Como ele falava?
R – “Se briga fosse coisa boa, não chegava a vocês, só serviria pra quem pode”. Só quem pode usava a briga como meio de resolver as coisas.
P/1 – O senhor ouviu isso?
R – É, eu estava presente, eu era criança e estava por ali.
P/2 – Quantos anos o senhor tinha quando começou a trabalhar nesse cinema, como operador de equipamento?
R – Ah, eu já tinha quinze, dezesseis anos.
P/2 – Foi o primeiro trabalho do senhor?
R – Não, meu primeiro trabalho era na loja do pai do Tom Zé. Porque lá, a partir de 1935, 36, a Europa começou a comprar tudo o que se produzia no Brasil e em outros países, porque aí já havia rumores de guerra. O Hitler já tinha feito uma porção de lambança por lá. E as nações chegaram à conclusão que iria haver guerra. O Irará era o maior município produtor de fumo no Brasil. Então, havia muita produção de fumo, era maior que em Alagoas, em Arapiraca. O pessoal de Alagoas vinha pegar agricultor em Irará pra implantar modernidade, se é que pode se chamar assim, no plantio de fumo e no trato lá pra Arapiraca. O Dida, esse goleiro que foi da seleção, nasceu no Irará e foi criado em Arapiraca porque a avó dele foi trabalhar com fumo em Arapiraca. Ele começou a jogar bola em Arapiraca e chegou à seleção. Essa questão de produção foi a época que o Irará mais teve dinheiro, porque o fumo valorizou, todo mundo plantava e comprava fumo. O agricultor que tinha pequena plantação levava cinco, dez quilos, vendia e as pessoas compravam e selecionavam as folhas, tem um processo.
P/1 – Mas na casa da professora o senhor tinha que trabalhar também, ou não era considerado trabalho?
R – Não, eu não trabalhava, eu ia apenas buscar comida e fazer as coisas que ela precisava. Porque o comércio de Irará era numa praça um pouco distante da casa, uns quatro quarteirões, e ela pedia pra ir fazer. Era um ‘menino de recados’, estava disponível pra fazer tudo o que precisasse, mas não havia trabalho efetivo.
P/2 – Depois o senhor saiu desse trabalho do pai do Tom Zé, foi pro cinema.
R – Não, pra completar. Como havia muito movimento na loja do pai do Tom Zé, no sábado, porque era o dia da feira, ele separava o setor de miudezas, bijouterias da loja, porque a loja vendia tecidos. O dia todo os caixeiros ficavam ocupados na loja e não tinha tempo de vender miudeza que é um negócio muito detalhado, um quer uma coisa, outro outra, muito miúdo. Então, ele montava um caixãozão assim que abria e ali eu tomava conta. E ele me dava dez por cento da venda, às vezes vendia cem cruzeiros, cento e vinte, cento e trinta, e eu ganhava aquele dinheiro por semana. E ganhava mais o do cinema. Eu não tinha emprego fixo, era esse o trabalho.
P/2 – Já tinha saído da professora?
R – Aí, eu já tinha saído. Em 1935 me desliguei dela, inclusive porque ela foi promovida e foi pra Alagoinhas.
P/1 – E depois que o senhor saiu do cinema...
R – Nesse período que eu saí da professora, minha mãe queria que eu aprendesse um ofício. Eu já tinha a leitura, como ela chamava, e precisava aprender um ofício. Mas eu tinha na mente vir embora pro Sul. Tinha um cidadão lá que tinha estado em Teófilo Otoni, em São Paulo e falava: “Não, vai embora!”. Em 1934 apareceu um sargento do corpo de fuzileiros navais que era de lá, mas estava no Rio, entrou na Marinha e foi a sargento. E ele foi procurar crianças de doze, treze anos para irem pro Rio pra Escola de Aprendizes de Marinheiro. Porque quando Getúlio formou a frota dos navios costeiros, que era a Companhia Costeira de Navegação, e tinha Itassucê, Itararé, aqueles navios que faziam só o jardim costeiro, e tinha o LLoyd que fazia internacional, que ia pra Europa, Buenos Aires, pros Estados Unidos, navios grande de dezoito, vinte toneladas. O navio era de oito mil toneladas, comprado na Inglaterra, parece, era padronizado. Esse rapaz esteve lá e eu chorei pra que minha mãe me deixasse ir pra Marinha. Ela falava: “Não pode, a Marinha castiga muito as crianças!”. Já contando a história do João, daquele da revolta da Marinha, que aquilo correu o mundo. Lá no Nordeste foi motivo dos versos...
P/1 – Navegante negro...
R – Ela não permitiu que eu fosse, eu fiquei muito zangado. Mas todo ofício que ela me mandava aprender, eu mastigava, mas não aprendia.
P/1 – Não aprendia?
R – Não aprendia, porque eu achava, “se eu aprender, eu vou ficar aqui. Vou acabar casando e aí, não saio mais como os outros”. Meu raciocínio era esse. Ela me pôs pra barbeiro, alfaiate, sapateiro.
P/2 – O senhor estava determinado mesmo.
R – Sim. O cinema, eu fui porque não era ofício, era uma coisa que eu fazia aos sábados e domingos. Durante a semana não fazia, porque tinha que devolver o filme, enrolar, por as latas na caixa, fazer o despacho. No Irará, o correio vinha de duas estações, uma era Amarão, que era mais próximo de Alagoinhas, e outro de Água Fria. O trem descia o correio em um dos dois lugares. E tinha o estafeta que ia todo dia buscar os malotes, ia com uma mula que era de propriedade dos Correios, não era dele, e ia buscar. Geralmente o trem passava de madrugada por lá, ele chegava à estação de madrugada e, como a distância era de vinte e quatro, trinta quilômetros, ele chegava meio dia, onze horas. Aí, o correio fechava pra poder fazer a distribuição das cartas, arrumar por ordem alfabética etc. E eu ia ao correio e pedia pro seu Everton pra ir buscar o jornal, ele assinava “O Estado da Bahia”, que depois passou a incluir no jornal do Chateaubriand. E tinha o “Diário de Notícias” que era do Requião, que era um deputado, outra corrente política. Eu ia pegar o jornal pra vir lendo no caminho a manchete porque eu já gaguejava, já soletrava. E nesse período eu fui deslanchando pra aprender a ler. Porque eu ia sempre às aulas noturnas do doutor Nazaré, e ele continuava, a gente já lia, lia Castro Alves, decorava poesias, lia revista. Tinha um Sant’Anna que mudou pro Rio e mandava revista do Rio. Mandava coisa que ele usava como se fosse um salão de leitura.
P/1 – E o senhor chegava a comentar com esse senhor, o mentor digamos, as suas vontades de sair?
R – Ah, falava. Nós discutíamos e ele sempre animava que a gente devia ir porque o Irará não tinha futuro. Não tinha mesmo.
P/2 – E com a sua mãe, você falava isso?
R – Eu falava. Tanto que, quando uma senhora foi pedir pra deixar que eu viesse pra São Paulo pra tomar conta da casa de um médico, ela deixou. Ele era de lá e a família estava expulsando do Irará porque ele formou-se em 1936 mas fazia tudo de graça. A Faculdade de Medicina da Bahia era praticamente a única ali no Nordeste. Pernambucanos, piauienses, cearenses até, vinham estudar Medicina na Bahia. E esse cidadão vinha pra Bahia, era de Correntes, e, quando chegavam as férias do meio do ano, ele ia pra fazenda do Irará porque era muito longe pra ir pro interior de Pernambuco e ele não tinha condições, tinha que andar a cavalo por muitos dias, então ele ficava ali e só ia pra Pernambuco nas férias de fim de ano porque comprava passagem no navio com antecedência e ia pra Recife, de Recife a família vinha buscar. E ele formou e já mudou pra São Paulo, porque eles tinham uns parentes em Rancharia e os parentes mandaram pegar os tios. Ele ficou em Presidente Prudente, era um pediatra. Por sinal, um cidadão extraordinário. A família escreveu pra ele se ele arranjava um lugar, e ele arranjou Regente que era dezoito quilômetros de Prudente na época. O médico veio e a irmã pediu pra minha mãe para eu vir, e era muito amigo porque tinha havido uns problemas políticos e eles eram da célula comunista, quase todos os Sant’Annas. O prefeito ficou preso muito tempo.
P/2 – E a sua mãe autorizou você a vir com ele?
R – Ele veio primeiro, montou o consultório, a casa, e depois ele telegrafou. Porque carta era a coisa mais difícil de chegar, levava dois meses, uma carta. O único meio era o navio.
P/2 – E como é que vocês vieram de lá pra cá?
R – Eu vim de navio. Vim no Itassucê. Levou oito dias pra chegar.
P/2 – Sozinho? Ela te deixou vir sozinho?
R – Sozinho. Porque meu irmão mais velho morava em Salvador. Ele foi com os rapazes filhos do fazendeiro e a moça pra ficar na casa enquanto eles faziam a faculdade, um formou-se médico, outro em Direito, etc, e a família o colocou numa sapataria dos espanhóis. Em Salvador a colônia espanhola era enorme na época, era quem dominava. Tanto que em Salvador tinha um time de futebol da primeira divisão chamado Galícia por causa da colônia espanhola que era tão importante lá.
P/1 – É a maior do Brasil.
R – Eu acho que sim. Então, ele trabalhava com um sapateiro que tinha uma fábrica de sapato, e lá ele aprendeu. Só que ele passou a fabricar sapato contra o calo, a propaganda dele era essa. Ele fazia a forma do pé da pessoa, localizava o calo e ele fazia uma forma para cada pé. O freguês que tinha calo tinha uma forma dele. A clientela dele era de professores, desembargadores, juízes, advogados, oficiais de Exército, da polícia. Ele tinha muito boas relações, apesar de ser um líder trabalhista.
P/1 – Aí, o senhor veio...
R – Eu vim, ele conseguiu uma passagem. Porque a coisa mais difícil era conseguir uma passagem no Ita, pois ele vinha lotado de Belém. Ele vinha lotado pro Sul de Belém, vinha pingando de porto a porto, cidade a cidade. E ele conseguiu com um chefe de polícia marítima.
P/2 – Uma das relações que ele tinha...
R – É. Ele perguntou se eu queria de primeira ou de terceira. Eu fui ver como é a primeira. “Tem cabine?” “Não, é no convés”, porque já vinha lotado. “Então, eu vou de terceira.” Foi o melhor negócio que eu fiz. Na época custou oitenta cruzeiros, não esqueço o preço. A outra custava cento e sessenta.
P/1 – Quem patrocinou a passagem pro senhor?
R – Eu. Com o filme que eu passei, deu cento e sessenta cruzeiros, o filme. E mais algumas economias.
P/2 – Quantos anos você tinha?
R – Quando eu cheguei aqui tinha dezoito. Eu comprei um terno de casimira da Guaspari, era uma loja do Rio Grande do Sul, que vendia naquele sertão, ele
vendia casemira, vendia terno. Os vendedores levavam molde, tomavam medida, fabricavam no Rio Grande do Sul, mandavam, e a gente pagava. Porque eu vim no inverno, tinha que ter um terno. Aquele cidadão que eu conhecia e conversava falava: “Ah, leva um terno de casimira”.
P/2 – E você chegou onde, em Santos?
R – Cheguei em Santos. Eu tinha o endereço de um colega do médico em São Paulo. Mas eu desprezei tudo isso, porque quando eu cheguei em Santos tinha uns gatos que pegavam trabalhadores pra mandar pras fazendas de café, levavam as pessoas pra imigração. Tinha um Departamento Paulista de Imigração, era um casarão, uma chácara em Santos, que a gente ficava em quarentena mais ou menos quarenta e oito horas. Então falou: “Quer ir pra lá?” “Eu vou.” Deixei de subir porque dali que ia começar a dificuldade, tinha que comprar passagem de trem pra subir a serra, descer na estação, procurar me comunicar com esse homem, que eu não sabia onde era, não sabia o tamanho de São Paulo. A primeira vez que eu fui a Salvador foi quando eu embarquei pra cá, nunca tinha saído do Irará, tinha ido a Feira de Santana duas ou três vezes. Então, eu fui pro casarão lá da chácara ficar de quarentena. Ficamos quarenta e oito horas.
P/1 – Era em Santos essa chácara?
R – Em Santos. De lá subimos e ficamos no Brás, naquela Casa dos Imigrantes, que hoje é um Centro Cultural, um negócio assim, e também ficamos lá por quarenta e oito horas.
P/2 – Qual foi a sua impressão quando você chegou em Santos, depois em São Paulo?
R – A impressão não foi aí, a impressão foi em Copacabana, eu estava de costas no navio e quando virei e vi aquele paredão de pedra, eu falei: “O que é isso, meu Deus do céu?”. Em Santos também me admirei da cidade. Porque Salvador era e é uma anarquia, aquela coisa horrível. Eu me admirei, organização, tudo detalhado, departamentalizado. E lá não, lá era ao Deus dará.
P/1 – E a beleza do Rio?
R – Eu não desci no Rio. Porque nós ficamos dois dias no Rio. O navio estava quebrado, ficamos na Ilha do Viana. Muitos pegaram barco e foram pra cidade, eu não fui. Eu falei: “Eu não vim pra ficar no Rio, mas pra ir pra São Paulo. Quando eu chegar em São Paulo vou ter que descer e dar a minha cara lá, ter minha dificuldade”. Muitos dos passageiros foram.
P/1 – E qual foi a sua impressão lá na Hospedaria do Imigrante?
R – Ah, muito bem organizado. Fomos vacinados, alimentação diferente, boa, mas diferente. Eu tinha morado na casa da professora e já tinha comido macarrão, mas nunca tinha visto. Naquela época quase tudo era importado. Macarrão era sobra de pão que o Matarazzo fabricava, não havia outra fábrica de macarrão. E também me causou muita surpresa a diferença de alimento. E quando cheguei em Regente, eu peguei o trem. E tudo de graça, a vantagem foi essa. As pessoas conduziam os trabalhadores que vinham trabalhar na agricultura, eles davam passagem, pra Marília e região, que estava mais necessitada. Quando vieram me encaminhar falaram: “Você vai pra Marília”. Eu falei: “Olha, eu não posso porque eu vou trabalhar com uma pessoa lá em Regente Feijó, não posso ir pra Marília, nem sei onde fica. E lá eu tenho esse médico me esperando”. E a pessoa perguntou: “Mas você não vai trabalhar na lavoura?”. Eu falei: “Não. Eu vou trabalhar com um médico, vou morar com ele, ele me espera lá em Regente Feijó”. “E você comunicou?” “Não, mas eu chego lá e procuro, a cidade é pequena.” E vim no trem, na segunda classe. E no trem tinha um vendedor de comida que trazia um saco assim, com prato feito, tampado, dentro do trem. Corria o trem inteiro. Tem o restaurante, o dormitório, o vagão leito, que era pra quem estava na primeira classe. E só podia frequentar o restaurante do trem quem estava na primeira classe. Na segunda classe comia o prato feito, que o vendedor da concessionária do restaurante do trem vendia. E a gente dormia sentado. Naquela época o trem levava vinte e quatro horas pra ir de São Paulo à Regente Feijó, que era seiscentos e vinte quilômetros de distância. Tu passava a noite rodando.
P/1 – E quando chegou lá?
R – Quando cheguei lá eu desci, e na estação tinha os meninos que carregavam mala. Um se ofereceu, eu perguntei: “Você conhece o doutor Beraldo?” “Ah, conheço! Um médico baiano que chegou agora?”. E me levaram lá até a casa.
P/1 – E aí, chegando lá...
R – Uma nova vida!
P/1 – E como foi, o senhor chegou lá...
R – É, cheguei, ele era solteiro ainda, ele se casou depois. E tinha um quarto pra mim. Ele já sabia, pois tinham telegrafado pra ele, naquela época a carta levava dois, três meses pra chegar. Uma viagem pra Vasp, que era a única companhia que fazia viagem pro Nordeste, levava dois dias pra chegar a Salvador. Ele saía daqui, parava no Rio, parava em Vitória, parava em Ilhéus. E não levava carta porque era DC-3, era um avião que abrigava vinte e sete pessoas parece, mais a tripulação. E era difícil encontrar uma passagem.
P/1 – O senhor chegou lá e foi fazer o quê?
R – Ele me pôs pra trabalhar numa farmácia de manipulação. Naquele tempo quase todo medicamento era manipulado. Havia uma restrição muito grande porque a guerra já tinha começado. Os maiores laboratórios na época eram o Bayer e um outro, francês, e só. Era o que havia.
P/1 – E o que o senhor fazia na farmácia?
R – Na farmácia eu fui trabalhar no balcão e aprender a manipular medicamento. A primeira dificuldade foi ler receita médica, aqueles garranchos. E à noite, às vezes, eu ia atender cliente com ele. Naquela época, logo depois já havia restrição de gasolina, mas, no fim dos anos 1940, os carros já começaram a se movimentar com gasogênio, que era carvão, fazia-se um recipiente de zinco atrás, punha carvão, punha uma ventoinha que ativava o carvão, fazia vento para o carvão manter-se aceso e aquele carvão tinha um mecanismo de tubulação que levava ao motor e fazia-o girar. Era o gasogênio. Mas nos dias de frio era muito difícil o carro andar, ele andava um pouco, mas era melhor do que nada, melhor do que carro de boi ou cavalo. Em Regente Feijó havia grandes fazendas de café, até de pessoas do exterior, Fazenda Mandaguari, que tinham trezentas famílias de colonos. Eles tinham dois milhões e quinhentos mil pés de café. Tinha os Valinotti, que eram italianos, que um dos irmãos era engenheiro agrônomo italiano. Tanto que quando a Itália conquistou a Etiópia, a origem do café, tinha muita plantação de café, ele foi pra lá administrar o café italiano na Etiópia, já estava habituado com a fazenda dele que era grande. Ele tinha prática com café brasileiro, o Mussolini o convidou, antes de 1942, e esse cidadão foi pra Etiópia administrar as fazendas lá, e orientar naturalmente.
P/2 – E o senhor recebia no balcão as pessoas que vinham com a receita pra pedir medicamento. Essas pessoas também eram pessoas que vinham das fazendas?
R – O grosso da população do município era das fazendas de café. Porque apesar de Regente Feijó ser uma cidade pequena, o município era muito grande, ele ia do Rio Paranapanema, na divisa do Paraná, atééé o Rio do Peixe, que era na divisa da região de Lucélia, Adamantina, etc. Eu não lembro bem a quantidade de quilômetros quadrados, mas era muuito grande, tanto que ele se desdobrou em cinco municípios.
P/2 – Quanto tempo o senhor ficou na farmácia?
R – Eu fiquei até 1944 quando fui pro Exército. Fui bancar o sabido e no fim fui pro Exército. Eu tinha feito o tiro de guerra durante um período, depois abandonei porque comecei a trabalhar na farmácia. Em 1944 eu jogava futebol num time lá de Álvares Machado, mas não havia campeonato amador, só havia o campeonato profissional em São Paulo, e um segundo era Campinas, Sorocaba, Taubaté, cidades grandes. A Federação Paulista criou o Campeonato Amador de Futebol, quando dividiram São Paulo em seções, cada região tinha um grupo de municípios e disputava, o vencedor disputava com o do outro e ia estreitando até o campeão. Uma terça-feira, que era o dia do treino, eu cheguei lá e disseram: “Olha, você precisa me dar uma certidão de nascimento para fazer o seu registro na Federação Paulista e tem que ser essa semana porque sexta-feira tem que ter na mão o registro, pra jogar no domingo”. Mas como eu sabia que o correio levava dois, três meses e eu só tinha uma certidão de nascimento, eu neguei que tivesse a certidão. Eu tinha um salvo-conduto que a gente precisava ter pra viajar no período da guerra, o Governo exigia que a gente tivesse, o delegado emitia. Eu falei, eu tenho um salvo-conduto”. Eu tinha a certidão, mas não dei por causa da dificuldade, eu podia precisar e como é que eu ia conseguir outra? Então, não dei. O delegado que era do time disse: “Isso não serve”. E tinha um cara do cartório: “E como é que faz?”, “Não tem jeito, hoje leva quatro meses pra chegar uma certidão lá da minha terra”. Aí, apareceu um cara lá: “Ah, eu tenho um cartório, a gente dá um jeito”. E me registrou, tirou uma certidão, e como ele me registrou eu resolvi o problema do futebol, na segunda-feira tinha a carteira, e joguei no domingo. Só que daí a um mês e meio o Exército me convocou porque eu era maior de idade, tinha vinte e dois anos por aí, por causa daquele registro, porque lá na Bahia eles não iam me achar, mas aqui eles me acharam.
P/2 – E como é que foi?
R – Eu fui pra sexta RI lá em Bauru, de Bauru fui pra Três Lagoas, no Mato Grosso. Aí, cheguei a jogar contra o pai do Pelé no Noroeste de Bauru, no ano que ele estava lá.
P/1 – Um ano vivendo lá no Exército?
R – Não, eu fui pra Três Lagoas, fiquei lá. Em Três Lagoas o Exército tinha muuitos soldados que estavam lá há quatro, cinco anos, por causa da guerra. Quando chegou essa turma, houve uma baixa de cabos até sargento, sargento que não quis, engajou e ficou vivendo como soldado. Na época, além do trabalho, quando os funcionários e operários alcançavam nove anos e meio, eles ficavam estáveis. Havia estabilidade para o resto da vida, tanto que o fundo de garantia surgiu pra acabar com a estabilidade do emprego. Eles dispensaram a maioria dos sargentos que estavam com oito anos, por aí, mandaram embora. Muitos cabos e soldados pediram baixa. E os recrutas passaram a frequentar o curso de cabo, eu entrei no curso de cabo porque ganhava mais e a gente deixava a comida do batalhão, ia comer na pensão, isso era uma vantagem. Três Lagoas tinha um adendo no soldo porque era fronteira com São Paulo, estava em guerra e tinha um pelotão que fazia a guarda da ponte no Rio Paraná, a cada quinze dias um pelotão fazia, e por isso eles tinham um adendo. Eu fiz o curso de cabo, como saíram muitos sargentos, eles abriram curso de sargento, pegaram os cabos melhores colocados e puseram no curso de sargento obrigatoriamente, não fizeram seleção. Eu fui pro curso de sargento. Eu não queria, eu queria voltar pra Regente, porque em Regente eu tinha uma vida boa, eu vivia bem, tinha amigos, tinha festa, tinha dinheiro. Eu tinha ganhado seis contos de réis fazendo penicilina na farmácia. A penicilina era obrigada a ser dada de duas em duas horas. Tinha muita febre tifo na cidade, era quase uma epidemia. Eu virava a noite fazendo injeção nas pessoas, e ganhava um pouco de dinheiro de cada um. E aí, eu falei: “Eu não vou fazer esse curso”, porque era fazer, promover e tomar posse, e era obrigado a ficar engajado por dois ou três anos. Então, eu falei pra um sargento no rádio, arrumar um jeito para eu jogar e mudar pra Campo Grande. Ele então falou: “eu tenho um capitão lá que é do time do Operário de Campo Grande e vou falar com ele”. Ele bateu o rádio pro capitão, o dia passou e o trem que saía de Bauru até Corumbá, parava uma hora em Três Lagoas pra reabastecer água, lenha, etc. E, um dia, o sargento arranjou um jogo e ele foi me ver jogar, lá ele deixou um rádio pro sargento, ele mandou pra um coronel em Campo Grande, isso na terça-feira. Na quinta de manhã o rádio bateu, minha transferência por necessidade do serviço como cabo datilógrafo do quartel general, no serviço de veterinária do quartel general. Na sexta-feira eu juntei minhas coisas, peguei o trem e fui embora, me desliguei e fui embora pra não dar problema, poderia haver um retrocesso e eu ter que ficar lá. Fui pra Campo Grande. Cheguei lá no sábado, na segunda-feira eu me apresentei. O major era um paranaense de Curitiba, descendente de japonês, e começou a me interrogar. “Ah, o senhor veio transferido por necessidade do serviço, como cabo?” “Isso.” “O senhor sabe escrever à máquina?” “Não.” “Como é que é, não sabe escrever à máquina?” “Não senhor, major.” “Mas o Exército Brasileiro tá perdido, como é que manda, em regime de urgência, um cabo datilógrafo que não sabe escrever à máquina!”. Eu falei: “Mas eu aprendo, eu aprendo rápido”. “Mas não tem jeito! Pode ficar”. Saiu, pegou o boné e saiu. Em um mês eu já estava batendo máquina. Mas eu tive sorte que eu era correspondente da Folha da Manhã, eu caprichava em escrever certo, aprender, lia muito dicionário.
P/1 – O senhor escrevia pra Folha da Manhã?
R – A Folha de São Paulo, o jornal de Nabantino Ramos, que era o dono da Folha de São Paulo.
P/1 – Mas quando o senhor começou a escrever pra lá?
R – Mais ou menos em 1943, por aí.
P/1 – Mas até então o senhor não tinha feito faculdade, nada?
R – Não. Isso foi antes do Exército. Eu me dei bem no Exército porque eu tinha uma prática de redigir alguma coisa, levava um professor pra ver se estava correto, mandava e a Folha publicava a notícia.
P/2 – Sobre quais assuntos o senhor escrevia?
R – Ah, principalmente assunto administrativo, que até me criou problema porque
morria muita criança e um dia eu escrevi uma matéria anunciando que havia muita morte, e inadvertidamente um médico se doeu, achando que ele não era o culpado.
P/1 – Mas o senhor tinha uma coluna?
R – Não, era um correspondente. De quando em quando, quando havia notícia eu mandava.
P/2 – O senhor escrevia à mão, porque o senhor não sabia escrever à máquina.
R – Escrevia à mão e mandava pra ele.
P/1 – Você mandava pelo correio?
R – Mandava pelo correio. Tinha uma sucursal em Presidente Prudente, que era uma cidade grande, e ele monitorava os correspondentes.
P/1 – Como o senhor foi chamado, como é que começou?
R – Eu me ofereci.
P/1 – Com quantos anos?
R – Na época eu tinha uns vinte e um, vinte e dois.
P/2 – Já em São Paulo.
R – Já em Regente Feijó.
P/1 – Qual foi a primeira matéria que o senhor mandou?
R – Ah não lembro porque faz muito tempo. Depois que eu fui pro Exército, fiquei por lá.
P/1 – Até quando o senhor escreveu?
R – Até eu ir pra Três Lagoas, pro Exército.
P/1 – Quando acabou o Exército, o senhor tinha uma vontade de seguir carreira militar, dentro do Exército ou não?
R – Não.
P/1 – Você sabia que era aquele período.
R – Era obrigatório.
P/1 – E o senhor tinha assim, “eu quero ser tal coisa, quero fazer tal coisa”? Tinha algum desejo naquela época?
R – Não, a minha vontade era formar uma família, isso era uma coisa que eu sempre quis. Já estava com vinte e poucos anos. E tem um negócio, uma coisa assim, depois mudou. Eu gostaria de escrever, porque aí, veio uma pessoa que escrevia pra um jornal em São Paulo, eu acho que era o Diário Popular, era um jornal mais da capital. Eu sempre gostei disso, mas não tive como.
P/1 – E quando o senhor saiu do Exército, o senhor fez o quê? Saiu de Três Lagoas...
R – Aí, eu fui removido pra Campo Grande. Lá eu jogava no time Operário, acho que existe até hoje. Cheguei a ser cogitado pra jogar na seleção do Mato Grosso, mas não fui. Joguei no que eles chamavam de Olímpiadas da Nona Região. Campo Grande era a sede da Nona Região Militar, tinha o quartel general, eu trabalhava lá no serviço de veterinária e jogava no time. Tinha um coronel que era do Rio de Janeiro e foi desterrado pra Campo Grande, ele odiava a cidade, mas vivia lá. Pra se divertir ele começou a dirigir o time do Operário. Sempre conversava, encontrava a gente à paisana, mas não fazia nada. Porque, na época, o militar não podia andar à paisana. Campo Grande era grande, tinha alguns bailes, festa e a gente ia. Eu era arranjado, não vivia no quartel, mas numa pensão de um paraguaio, no bairro dos paraguaios. Tinha um tocador de harpa que saía à noite, tocava de casa em casa, procurava festa pra tocar e, às vezes, quando não tinha, ele tocava na pensão. Uma vida diferente. Aí, terminou a guerra, foi uma fase muito interessante na minha vida porque muitos que voltaram eram companheiros de farda que trabalhavam no quartel-general e juntamos com esse pessoal. Aí, eu me engrenei com eles, a gente ia a bailes do Sindicato dos Pecuaristas, que era em cima do Banespa. Um salão bonito e os caras levavam a gente porque eles tinham voltado da guerra, então íamos juntos porque eles tinham amigos no grupo, foi uma época muito boa. Como jovem, a gente aproveitava porque o Clube dos Pecuaristas era muuito rico, aqueles fazendeiros do Pantanal vinham gastar e as festas eram muito concorridas, muita festa, muita bebida, bebida era só estrangeira, até então. A respeito de coisa estrangeira, por exemplo, quando eu trabalhava na farmácia e terminou o fornecimento de produtos franceses, porque, em 1941, a Alemanha dominou a França, mas ainda havia produtos alemães, não franceses. Mas lá em Buenos Aires, tinha gente que tinha que ir buscar muitos medicamentos, que só tinha alemães, para abastecer a farmácia. Por exemplo, a pebrina, que era o remédio pra maleita, havia maleita no estado de São Paulo, no rio Paranapanema, no rio Paraná que descia por Epitácio. E aí, ainda havia maleita. A leishmaniose, que é a ferida brava, a qual comia a pessoa, mandava buscar o remédio em Buenos Aires, às vezes levava uma semana pra chegar em Buenos Aires de carro até lá. Às vezes ia de trem porque tinha a estrada de trem que ia de São Paulo até Porto Alegre, de lá eles arranjavam uma maneira de buscar.
P/2 – De que forma o senhor acha que o exército moldou a sua personalidade, o seu caráter? O que resultou dessa experiência?
R – A disciplina, a maneira de reconhecer quem tinha mais capacidade pra fazer as coisas, isso aconteceu comigo. Davam valor pelo mérito, quer dizer, era um mérito de pequenas coisas, mas não deixava de ser. Eu lia, porque esse médico com quem eu morava tinha uma biblioteca muuito grande, e era contemporâneo dos grandes escritores da época, Jorge Amado. Jorge chegou a ir no Irará visitá-lo quando fazia parte do Congresso Nacional no Rio, ele foi em Regente Feijó visitar o amigo, que em 1932 os estudantes da Bahia, quando os paulistas saíram para a luta pro Getúlio decretar a Constituição, transformar o congresso em Constituinte, São Paulo levantou com a luta da Revolução de 32. Quase todos os universitários do Brasil se posicionaram a favor de São Paulo.
P/1 – Foi aí que o senhor teve vontade de vir pra São Paulo?
R – Não, a minha vontade mesmo cresceu quando o sargento do corpo de fuzileiros navais veio atrás de crianças pra levar pro Rio, pra Escola de Aprendizes de Marinheiro.
P/2 – Que o senhor tinha doze anos.
R – Eu tinha doze anos.
P/1 – Mas quando o senhor decidiu migrar pra São Paulo?
R – Eu consegui realizar quando o doutor Beraldo resolveu vir, que a família tinha conseguido com um amigo dele uma cidade pra ele vir pra cá. O médico veio e nós arrumamos. E a família me convidou, e como se diz, estava sacramentada a minha viagem, eu já tava arrumando a bagagem pra vir, levei uns seis meses.
P/2 – E o que São Paulo representava pro senhor, na sua imaginação?
R – Não era só pra mim, é até hoje... Representava a salvação de mudar de vida, sair daquela vida sem horizonte, sem melhorar, sem nada a fazer, aprender uma profissão e ficar naquilo, não podia sair porque ia ter dificuldade pra sobreviver. E em São Paulo havia trabalho, condição de ser alguma coisa, porque São Paulo estava dando oportunidade a todo mundo. Quando se falava que São Paulo era a locomotiva que puxava vinte e sete vagões, bábábá bábábá. Depois mudou um pouco. Quando começaram a achar que São Paulo era uma fama que não tinha porquê, mas os políticos começaram a dizer que São Paulo era quem roubava deles, trocando em miúdos era isso, que São Paulo sugava o trabalho do nordestino, não sei o quê. Em 2002, antes da eleição, no mês de abril, eu fui na minha terra e discutindo com um prefeito até: “É, porque São Paulo suga tudo...”.
P/1 – Vamos voltar senão a gente vai perder a ordem da história. Quando o senhor chegou, chega na Brigadeiro Luís Antônio?
R – Quando eu mudei pra São Paulo, eu fui morar pra lá do zoológico, onde ainda não havia o zoológico.
P/1 – Como é que o senhor foi parar lá?
R – Porque eu já era casado...
P/1 – Como é que o senhor conheceu a sua esposa?
R – Eu conheci porque uma irmã dela ficou com febre tifo, morava na zona rural, e veio pra casa de uma tia. O médico com quem eu morava foi escolhido pra tratá-la porque ele era muito bom, clínico bom diagnosticista, e ele usava uma medicina um pouco diferente da que o médico praticava. Ele era mais moderno, mais corajoso. E corria uma fama que ele tinha algo mais, que não era normal o que ele fazia. Vinha gente de Goiás, do Mato Grosso pra procurá-lo como médico. Então, a tia da minha mulher, chamou ele pra tratá-la e eu ia fazer a injeção. Porque pra febre tifo não havia remédio, os médicos davam remédio só pra levantar o tônus, a energia, porque não havia um remédio específico. De sete em sete dias alterava o estado do doente que pegava tifo, com sete dias, catorze, se ele fosse ao vinte e um estava salvo! Às vezes, quando chegava em catorze, morria. A senhora sabe como atua o vírus do tifo? Ele limpa o intestino, a pessoa fica só com aquela película, ele pega e deixa o intestino que se a pessoa comer algo mais sólido ele rompe e a pessoa morre.
P/1 – Aí, o senhor foi lá aplicar a injeção...
R – Eu ia aplicar injeção todo dia, inclusive o médico receitava um remédio pra distrair o doente da febre.
P/1 – Mas o senhor se apaixonou por ela logo que a viu ou não?
R – Não... Ela era muito doente, tinha uma bronquite e eu descobri que ela podia ficar tuberculosa porque na época era comum, era quase epidêmica. Eu falei pro médico: “Aquela menina, filha da dona Regina, pode ficar tuberculosa. Ela está muito ruim, sente febre, tem problema noturno”. Eu estava lá na farmácia, trabalhava com ele. O médico falou com a tia, levaram ela pra São Paulo pra ela poder fazer exame de escarro, que só fazia em São Paulo, etc. Levaram nesse médico amigo dele que era um pediatra, mas cuidava de criança, ela tinha catorze, quinze anos. Ele examinou e achou que ela estava com uma pré-tuberculose. Levaram ela para tratar, aí passou por um processo e sarou. Eu fiquei amigo, quando ela cresceu, daí uns três anos é que começamos a namorar e logo depois nos casamos. Ela tinha dezoito, dezenove anos. A família não aceitou muito.
P/1 – Por quê?
R – Pelo preconceito racial, ela branquinha e eu negro. Das primas dela, filha da tia, o marido era rico, era dono da cidade, tinha hotel, carros, representação de muita coisa, duas fazendas enormes. Ela não queria que o casamento saísse. Aí, o médico que me trouxe falou: “Mas por que essa caipira está querendo impedir o casamento? Você não salvou a moça? Ela não sabe disso. Ela iria morrer na mão daquela ignorante”. Chegou e chamou a mãe da minha mulher, que morava no sítio, contou a história e falou: “Você quer, vá buscar sua filha porque ela vai casar com o rapaz”. A tia achou que era muito bom pra ela que casasse comigo. Na época eu era secretário da prefeitura. Então, ela foi embora por causa da mãe, esperamos um tempo. Quando foi para casar, ela veio, ficou na casa do médico, que ele já tinha casado, até o dia 24 de dezembro, que era Natal e casamos. Um ano depois tivemos uma filha e depois tivemos mais duas. A minha filha mais velha foi quem me trouxe aqui hoje.
P/1 – Quando é que o senhor chega na Brigadeiro, compra e monta aquele bar do Tirino?
R – Depois a família da minha mulher mudou pra São Paulo, um dos genros do casal abriu imobiliária, e um dos irmãos da prima da minha mulher, que era muito meu amigo, nós íamos pra festa na cidade da gente. Porque na época era comum a cidade fazer bailes, sair, vender ingresso, a gente comprava e ia. Ele tinha carro e a gente ia junto pra Aracatu no Paraná. O Lunadelo abriu a usina no Paraná e a cidade mais próxima era Regente. Quando fazia bailes lá, a gente ia porque o rapaz tinha carro, a gente pegava dois, três rapazes, algumas moças e íamos pros bailes em Aracatu. E nisso foi que eu me casei, eles mudaram pra São Paulo, aí me convidaram para vir trabalhar. Só que a irmã que mais se opunha ao meu casamento morava em Presidente Prudente, o marido tinha uma loja enorme com vinte e sete caixeiros na loja, ela mandou me chamar. Era minha inimiga, ela me mandou chamar e ofereceu: “Eu tenho uma chácara, só que é pra lá do zoológico em São Paulo, se você quiser morar lá eu ofereço o que eu tenho pra você morar”. Eu já tinha uma filha e aí mudamos. Eu aceitei, agradeci e mudamos.
P/1 – Como é que era a região perto do zoológico?
R – Era pra lá do zoológico. Não morava quase ninguém, eram só chácaras. Não tinha transporte, eu vinha a pé para cidade todos os dias pra trabalhar na Praça da Sé. Trabalhava na Senador Feijó, esquina da Praça da Sé. Eu saía sete horas da manhã, chegava oito e meia porque eu andava quatro quilômetros a pé, pegava um ônibus até a Praça da Árvore em São Paulo, e de lá pegava o bonde. O bonde que vinha pela Avenida Paulista, pegava a Brigadeiro. O bonde Bosque, saía do Bosque da Saúde. Depois, a minha filha fez sete anos e começou a ter problemas para ir no grupo escolar, na chácara que nós vivíamos, então mudamos pra cidade. Era a época em que a moeda, que era o cruzeiro, teve o maior valor no Brasil, porque eu ganhava um salário mínimo, pagava uma casa e o dinheiro ainda dava para viver com a mulher e os três filhos. Nesse meio tempo eu comecei a arranjar um jeito de passar a escritura dos terrenos vendidos. Ia no cartório, me aproximei de um escrivão e ele combinou que cada escritura que eu levasse, ele me dava uma porcentagem sem tirar do cliente. Nesse tempo eu era membro de uma loja maçônica em São Paulo. Um dia eu me encontrei com esse cidadão, ele era maçom e trabalhava na secretaria. Aí, ele me convidou pra trabalhar na secretaria e fazer um bico à noite. Ele falou: “Mas você aqui! Eu não sabia”. Ele me levou e eu comecei a trabalhar como uma espécie de redator da Grande Secretaria da Loja e ganhava um salário mínimo.
P/1 – Da loja maçônica?
R – Do Grande Oriente de São Paulo.
P/1 – O senhor trabalhou na Loja Maçônica à noite, ganhava uma graninha...
R – Não era loja, era no Grande Oriente de São Paulo. A maçonaria tinha uma estrutura e eu trabalhava como redator, vamos dizer assim. Era quem redigia toda a correspondência que chegava na Grande Secretaria, fazia despacho e passava pros funcionários. E eu recebia uma média de vinte a trinta ofícios para responder para as lojas do interior, de outros estados. Só que houve uma dificuldade muito grande porque o secretário não deixava fazer rascunho, a resposta tinha que ser diante do despacho, tinha que redigir. Porque não havia tempo. Então, naquelas três horas que eu trabalhava tinha que redigir vinte, vinte e dois, vinte e cinco ofícios. Lembro até que o Doutor Nazaré que lááá nos anos 1930 me levava pra ler lá no Irará, ele estava em Assis e era o Grão-mestre da loja de Assis. E tinha trânsito livre pra falar com o Grão-mestre porque não era qualquer um que falava com ele, que conseguia uma audiência, chegava e falava. E o doutor Nazaré... Aí, eu vi aquele negrão entrar e eu falei assim: “Esse cara é do Irará!” E na outra viagem que ele fez eu consegui conversar com ele e relembrar, ele já estava velho, a família tinha falecido, muito amargurado porque uma filha dele sumiu naquela repressão no tempo dos militares.
P/1 – Eu quero chegar no bar da Brigadeiro. Quando é que o senhor compra ele, como é que o senhor veio parar na Brigadeiro Luís Antônio?
R – O seu Antônio, tio da minha mulher, morreu e houve uma desagregação da família porque um irmão mais velho era viciado. Não era a droga que se usa hoje, ele era viciado em remédios, não era cocaína, nem maconha. E ele não trabalhava. E a tia me confiava em procurá-lo, ele chegava sem terno, internaram ele em um hospital lááá em Santana, onde tinha um hospital do Estado. Eles decidiram acabar com a imobiliária, tinham loteamento lá em Eldorado, no Taboão onde tem a fábrica de automóveis, mais cá embaixo. E eu achei que não tinha mais condições de trabalhar de empregado porque a minha especialização era de escriturário. Eu já tinha idade, quase cinquenta anos, aí, eu resolvi comprar, que era o negócio mais fácil de ser montado em São Paulo, ainda hoje é relativamente. Como eu tinha vendido muitos lotes numa área boa que foi loteada para amigos no interior, inclusive um compadre lá de São Paulo, eu fui atrás dele e propus de fazer um negócio. O marido dessa parente da minha mulher, dono da chácara onde eu morei, era sócio do negócio e me facilitou fazer um triângulo com um terreno que um amigo tinha montado. Então, eu fiquei devendo para ele, o amigo recebeu a escritura e me pagou, e eu fiquei devendo o restante. Com esse dinheiro eu dei entrada em um bar na Brigadeiro, mas o bar estava podre, tinha barata atrás dos azulejos, atrás de qualquer móvel que havia, mas era o único que sobrou porque o dinheiro não dava. Mas ele tinha telefone, o telefone valia quatro, cinco mil cruzeiros na época, era difííícil telefone, e eu fiquei de olho no telefone. Aí, consegui esse compadre no interior, aceitou o negócio, mandou o dinheiro, eu dei a entrada, arranjei um sócio. Quando acabei de fechar o negócio com o homem, peguei o telefone, vendi o telefone por cinco mil cruzeiros na época e ajudei a tocar o bar, eu e a mulher. Dava comida, tinha um cozinheiro, eu mantive porque eu era um burocrata, não sabia nada de cozinha. Minha mulher entendia um pouco da cozinha doméstica, não a cozinha comercial. Era um restaurante, fazia arroz, feijão, ensopado, picadinho. Vendia uma média de cem refeições no almoço. Mas gastava uma fortuna de energia elétrica. Eu não me conformei. Tinha um baiano que tinha uma oficina de eletricidade ao lado, quando eu falei pra ele que paguei tanto de eletricidade, se era normal, ele falou: “Não, uma fábrica com pelo menos vinte funcionários que paga isso. Alguma coisa está errada”. Então, eu proibi que se ligasse uma chapa grande pra fritar bife, fazer sanduíche, manter aquilo ligado o dia todo. Diminuiu tanto o consumo que a Light mandou um inspetor pra saber porque baixou tanto o consumo de energia. Eu falei: “Foi simples, é só controlar. Eu sou o novo dono, controlei e caiu o consumo, que era um exagero aquilo que gastava”. Começamos a trabalhar, foi excelente para minhas filhas porque na época a mais velha conseguiu entrar num colégio na Rua São Joaquim que dali ela pegava um ônibus até São Joaquim, atravessava o viaduto do Pedroso, saía na Vergueiro e descia a Rua São Joaquim que era o colégio Roosevelt, onde minha filha entrou no ginásio. As duas filhas, a do meio e a caçula entraram no Colégio Rodrigues Alves na Avenida Paulista. Elas iam a pé, e ali na travessa da Tutóia tinha a União Brasil-Estados Unidos, era da Fundação Rockefeller onde davam aula de inglês e eu matriculei as três. Pagava quinze, dezesseis cruzeiros por mês. Elas vinham do ginásio e a outra vinha do colégio. As que vinham da Paulista iam a pé e desciam a Brigadeiro porque a ordem era economizar. Hoje a minha filha mais velha é tradutora de Inglês-Português, vive disso. A caçula que já está aposentada era coordenadora de pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu, e a do meio mora na França. Formou-se na Álvares Penteado, fez Artes Plásticas, casou com um cientista nuclear brasileiro e mora na França.
P/1 – Sua esposa faleceu?
R – Faleceu no dia 24 do mês passado.
P/2 – E ela trabalhava com o senhor no bar?
R – Ela trabalhou. Porque eu parei de trabalhar quando eu fiz sessenta anos. Eu trabalhei como voluntário, mas do meu ponto de vista, eu acho que quando se faz sessenta anos e se forma a filha caçula, que já está empregada, trabalhar pra quê?
P/1 – Me fala um pouco do bar, quem ia ao bar? Como era?
R – Nós mudamos o bar, o português vendeu porque já não dava lucro. Ele dava pra Light, o outro pouco ele deixava os cozinheiros fazerem o que quisessem. Nós entramos e mudamos. Primeiro, nós compramos uma peça de acém com vinte,
vinte e dois quilos e fazíamos picadinho. Era carne picada ensopada com batata e vendia o prato feito, o famoso PF. Daí a uns dois meses observamos que não era o ideal, passamos a fornecer um bife, arroz, feijão, pão e salada. Porque ninguém controlava a quantidade de carne que se fornecia no picadinho. Mas o bife eu sabia quanto eu dava de carne para cada um. Procurei saber como eu poderia fazer pra fazer o coxão duro ir pra mesa mole, mastigável, porque tem também essa coisa. A minha mulher se encarregou de perguntar pra alguém como era, e no fim descobriu numa casa que tinha um cozinheiro de nível que trabalhava em um hotel de qualidade. O cara falou: “O segredo do bife é fritar um lado, depois o outro, não voltar o lado que já fritou, senão ele cozinha e endurece”. Começamos a utilizar o método, a chapa quente, fritava de um lado, do outro, o bife ficava mole, começou a dar certo. Nós vendíamos uma média de cento e dez a cento e trinta refeições no almoço. Tentamos o jantar, mas não valia a pena. Só trabalhava no sábado até o meio dia, no domingo não trabalhava. A mulher procurou aprender a fazer quibe com uma libanesa rica, mulher de um médico, uma senhora que o filho era muito nosso amigo, que veio de Regente. Ela ensinou os segredos que tem o quibe, a esfirra, e nós já fazíamos coxinha de galinha, vatapá de vez em quando para um grupo limitado de pessoas. Porque eu vim da Bahia, casei, e tinha coisa que a gente tinha vontade de comer e não conseguia porque não sabia fazer, que era um doce de banana de rodelinha, já comeu? É um doce que fica roxo, com banana prata, ela tem muito tanino e tem uma maneira de cozinhar que as rodelas ficam roxas. Isso era uma coisa. E fazer o vatapá e a galinha ao molho pardo, que precisa saber como faz. E biju, tapioca, polvilho. Eu falei: “Então, você vai na Bahia”. Isso depois de muitos anos. Quando minha filha mais velha casou, ela foi passar a lua de mel e foi em Irará. Eu não tinha voltado lá ainda, eu voltei trinta e três anos depois. Eu tinha uma irmã que não conhecia. Quando o meu irmão do meio casou com a filha do coronel Cazuza, minha mãe ficou com dó dela e mandou minha irmã, que era mais velha do que eu, ir com meu irmão pra ela não ficar sozinha numa terra estranha. E essa irmã, eu era tão criança que eu não conheci, devia estar com uns nove, dez anos e foi viver lá. E eu nunca mais vi, eu vim conhecer quando eu fui lá a Santo Amaro e ela morava lá.
P/1 – Quem frequentava o Bar Torino?
R – Olha, meu bar era frequentado por profissionais, operários especializados. Porque ali é Jardim Paulista, então era lustradores, marceneiros, vidraceiros, pedreiro de acabamento fino, torneiros...
P/1 – E o pessoal do Exército? O bar ficava próximo ao quartel, não ficava?
R – Estava na outra rua, estava perto da Rua dos Bombeiros e da Rua Salto que era o quarteirão onde era o quartel do segundo exército.
P/1 – E o pessoal do Exército ia lá?
R – Oficial raramente, as mulheres sim. Porque depois de dez anos eu comprei o ponto da loja seguinte, que era do sobrinho do ex-governador Ademar de Barros, seu Geraldo, ele tinha uma loja de carros ingleses, aqueles carros pequenos que eram importados. Eu falei com ele: “Quando o senhor for vender o ponto, quando cansar, me dê preferência”. Isso eu já tinha dez anos de bar. Aí, o cidadão que me ajudou a comprar o bar estava numa situação um pouco difícil no interior e eu trouxe ele para ser meu sócio. Aí, abrimos um bazar na loja, porque o seu Geraldo foi convidado por um tio de Laranjal Paulista que tinha montado uma usina de açúcar pra ser o gerente da usina. E ele passou, “A chave, já falei que transferi pra você o ponto. O telefone conta dois mil cruzeiros, você paga em três ou quatro vezes”. E foi embora. Um dia ele apareceu para receber a prestação do telefone e da loja. Eu fui lá buscar o meu compadre, que estava muito mal nos negócios, trouxe ele com o filho. Porque o filho tinha vindo pra minha casa antes pra fazer o cursinho e o vestibular, ele passou e esse rapaz fez o concurso para o Banco Central e se aposentou. E o compadre veio, eu paguei luva pra ele vir para um apartamento, porque na época não existia casa pra alugar em São Paulo. Quem quisesse uma casa na década de 1970. Duas coisas difíceis, troco de moeda e casa pra alugar. Eu precisei comprar lustre, tapetes, cortinas do inquilino que saiu pra poder alugar o apartamento para eles virem, que era no mesmo prédio. E aí compramos. Mantivemos o armarinho, depois transformei em papelaria, vendi o bar e fiquei só com a papelaria. Em 1979, 80 eu vendi a papelaria.
P/1 – Como era essa região da Brigadeiro na época em que você comprou o bar?
R – Naquele tempo a Brigadeiro era movimentada porque não havia a Ruben Berta, todo o trânsito de Congonhas subia a Brigadeiro. Quando chegou o Pão de Açúcar eu cheguei junto. Quando o Pão de Açúcar montou a loja um eu mudei pra lá e comprei o bar. Fazia uns três, quatro meses. O seu Santos morava na Rua Salto, tinha uma doceira, um salão de festas e ele resolveu transformar o salão de festas em um supermercado porque o Abílio tinha voltado dos Estados Unidos, tinha ido fazer o mestrado com o Bresser Pereira, com aquele japonês que foi Secretário de Finanças, na Califórnia. Então, ele trouxe a novidade, que era o supermercado, aproveitou o salão de festas e transformou em um supermercado. Ali em frente. E ele começou. Depois eles compravam as três lojas do Sirva-se. O ministro Simonsen tinha sido professor dele na Getúlio Vargas.
P/1 – Quando o senhor vendeu o bar?
R – No fim de 1979.
P/1 – Daí o senhor se aposentou e ficou voluntário. Eu me aposentei, vendi o bar, mas a papelaria continuou.
P/1 – A sua esposa ficava nela?
R – Eu fiquei uns anos, depois de uns quatro, cinco anos eu tive a oportunidade de aumentar o volume da papelaria. Um atacadista me ofereceu um crédito rotativo muito alto. Eu tinha um empregado, trabalhava eu, minha mulher e as meninas ajudavam quando voltavam da escola. Aí, começou a abrir escritórios naquela região, na Avenida Lorena, na Guarará, Manuel da Nóbrega, aquelas casas foram todas se transformando em escritório e aí, aumentou o movimento. Quando esse cidadão me ofereceu esse crédito rotativo a minha mulher cansou de trabalhar e falou: “Nós vamos ficar trabalhando pra quê? Não saio, eu nunca andei de navio, nunca tomei banho de mar a não ser duas ou três vezes na Praia Grande”. A gente ia com as meninas uma ou duas vezes ao ano. “Eu quero é morar perto da praia, quero viajar de navio”. Eu falei: “Ah é?”. Minha filha caçula tinha se formado e estava trabalhando no Colégio Humboldt, um colégio de alemães. E lá ela se deu muito bem porque é muito criativa, recebeu uma homenagem do presidente da Alemanha, não era o primeiro-ministro. O presidente veio visitar o Humboldt e ela e o japonês que era o professor de Educação Física dos meninos fizeram uma recepção moderna, cheia de danças e competições, o homem cumprimentou os dois. E descobrimos que estávamos no tempo de aposentar realmente. Então, vendemos a papelaria, compramos um apartamento em Salvador e mudamos pra lá. Ficamos lá por doze anos, depois começou a se tornar difícil, as filhas iam pra lá todo semestre pra ficar com a gente. A gente vinha pra cá também de vez em quando. Quando o Presidente Fernando Henrique foi candidato a prefeito em 1985, nós viemos votar nele, que éramos eleitores em São Paulo, por nossa conta. Hoje se paga pra votar, nós viemos votar no Fernando Henrique. Tinha uma prima da minha mulher que morava perto dele na Rua Sergipe, em Higienópolis, então, fizeram um chá com as fãs da dona Ruth e de Fernando Henrique porque nós viemos voluntariamente votar. E foi a melhor coisa que fizemos em política até hoje, viu? Valeu a pena, apesar dele não ter sido eleito, foi bem empregado o voto. E assim é a vida.
P/1 – Seu João, qual é o seu maior sonho hoje?
R – Ah, agora que minha mulher morreu, meu sonho é viver em paz. Eu estou engrenado numa campanha política em Guareí, pro ano que vem, mas... Trabalhar, orientar pessoas, eu faço muito isso. Às vezes eu sou até, não sei se é atrevimento, disposição, quando eu vejo uma pessoa em dificuldade, mesmo que não seja conhecido, eu me aproximo. Se eu tiver um conselho pra dar eu dou, pode até não aceitar, mas eu dou. E continuar assim. Eu não tenho inimigos, posso ter adversários políticos, mas inimigo não tenho, sou de paz, sou tolerante.
E lá onde eu moro, eu gostaria de fazer alguma coisa e não tenho podido, não tenho conseguido. Mas tenho batalhado por isso. Agora mesmo, tem uma senhora lá que foi presidente de um abrigo de idosos, foi muito bem, se aproximou de um deputado que deu verba, ela iniciou a construção de uma nova sede porque eles moram numa chácara. E o Padre Afonso, que é deputado do Partido Verde, eu tive um contato com ele no ano passado, na campanha, mas pra me queixar. Eu me queixei com o padre que Guareí tem uma vara distrital criada no Governo Mário Covas, no ano de 2000 foi promulgada a lei. E até então não tinha sido instalada porque os prefeitos diziam, e dizem, os que foram prefeitos e o atual, que não quer juiz, promotor e advogado lá pra atrapalhar a vida deles. Então, nós ficamos sem o Poder Judiciário. Guareí é uma parte capenga da República, que só tem duas peças, não tem o Poder Judiciário. E numa reunião em que ele foi lá pedir voto, eu falei pra ele que eu, com oitenta e oito anos fui jurado numa comarca que tem um terço de Guareí, fui dispensado e fiquei o dia todo lá e não sabia como voltar pra casa porque não tem transporte. Onde oitenta e cinco por cento do movimento da comarca é oriunda de Guareí. Os velhos sofrem pra poder cumprir a sua obrigação quando são chamados, e ele ficou de resolver. Agora ele telefonou pra essa moça pra me procurar, porque ele quer que ela seja candidata e que eu dê informações, etc. Eu soube disso, não por ela, e fui procurar. Ela é meio tímida e estamos já trabalhando.
P/1 – Seu João, o que o senhor achou da experiência de dar esse depoimento pro Museu da Pessoa?
R – Uma oportunidade de deixar isso gravado, pode ser útil pra alguém. Acredito que possa ser. Ou sozinho, ou em conjunto, comparando com outras histórias, pra ver. Porque é assim que se guarda a memória, né, “tem que ter coisas assim pra fazer”. Lá na minha terra sempre se fez isso de uma outra maneira, lá no Irará. Apesar de eu estar fora de lá desde 1940, mas de quando em quando eu vou, eu tenho parentes, essa semana eu falei com todos eles lá. A banda de música do Irará chegou a vir disputar um concurso que houve entre as bandas do país todo e ela veio pra final aqui, foi no Pacaembu, na década de 1970 eu creio. Então, eles têm o hábito de preservar as coisas, valorizar as pessoas. Talvez seja isso que me deixou nessa posição. Eu tenho dificuldades de mudar pra melhor o lugar que eu moro, eu acho que é pra melhor, porque fazer essas coisas é bom. No ano 2000, o Sebrae começou a implantar o fórum de leis em Guareí. Mas não foi a prefeitura que pediu, o Sebrae escolheu a cidade com IDH baixo e procurou as prefeituras pra implantar uma associação que trabalhasse pra melhorar não só a parte de produtividade.
P/1 – Mas o senhor lutando lá vai conseguir.
R – Não, já estamos lá há dez anos…
P/1 – Seu João, só pra gente concluir aqui, se o senhor pudesse mudar uma coisa na sua trajetória de vida, o que o senhor mudaria? O senhor mudaria alguma coisa, não mudaria?
R – Olha, a única coisa que eu mudaria, eu procuraria ser rico. Eu até cheguei a aconselhar as minhas filhas, isso há muuuitos anos, elas nem lembram, pra ficarem ricas, nem que fosse honestamente. Porque eu descobri antes de muita gente que convive com elas, que o mundo é capitalista, depois que o muro de Berlim caiu, aí então, foi sacramentado: o mundo é capitalista. Quem não tem dinheiro não consegue pegar um ônibus, é posto pra fora porque o cobrador não pode assumir a responsabilidade. E nem todo mundo pensa nisso no Brasil, muita gente se arrebenta porque não vive pensando que estamos num mundo capitalista, que precisa de dinheiro pra tudo. Pouco ou muito, mas precisa. Eu gostaria de ser rico pra fazer certas coisas que não eram pra mim, nem pras minhas filhas. Porque graças a Deus minhas filhas estão bem, porque antes que necessitasse, eu ensinei o caminho. Todas minhas filhas começaram a trabalhar com catorze anos. A mais velha trabalhava na Olivetti, ela tinha dezessete anos, eu tomava cem reais dela, e entrei em um consórcio. Quando tirava o carro eu vendia, dava o dinheiro, ela comprou um terreno, uma casa. Todas têm o seu apartamento, ela tem até apartamento pra alugar, os filhos já têm. Eu tenho uma neta que mora em Barcelona, agora fez um concurso no consulado e ganhou uma vaga, contra oitenta e cinco concorrentes, ela ganhou a única vaga. Ela hoje trabalha no Consulado Brasileiro em Barcelona. Precisava trabalhar porque ela formou-se em Direito, foi pra lá, fez uma especialização, tentou Itamaraty e não passou, hoje ela mora lá e tá bem, casou com um rapaz que tá estudando. Minha filha teve condições de pagar o MBA dele, porque a pessoa paga e depois o Estado devolve. Minha mulher morreu há um mês, ela estava na melhor fase, e muito mais preocupada do que eu com as coisas. Mas ela estava num período assim que falava: “Olha, tá tudo certo até a nossa terceira geração”, porque minha bisneta nasceu, faz dois anos agora. “Tá todo mundo em paz.” Vai ver seja isso, ela morreu tranquila. Não deu trabalho pra morrer, teve um derrame em um dia e no outro faleceu. Mas é isso, a vida é isso. Gostaria de ter pra isso. O que eu quero tentar fazer provavelmente daqui até a semana que vem, vamos conseguir montar um salão de leitura em Guareí. No Guareí, o Estadão tem quinze assinantes e a Folha parece que tem dezenove. Quer dizer, está muito atrasado. O município tem quinze mil habitantes, a cidade está com treze. Eu levei cinco anos colecionando o Caderno Dois do Estadão, o caderno de cultura. Eu sabia que um dia ou eu colocaria no salão de leitura, se fosse feito, ou em outro lugar. Pois lá fundou-se uma penitenciária e a bibliotecária é minha amiga. Ela falou: “Você tem alguns Caderno Dois? Porque eu preciso tirar palavra cruzada pra fazer um torneio de palavra cruzada pra dois mil e seiscentos presidiários”. Eu falei: “Não, eu te dou toda a coleção”. Tinha seiscentos e poucos números. Ela levou, logo depois os presidiários me convidaram pra homenagear. Teve um que disse que passou no Enem porque teve um jornal pra ler, e as palavras cruzadas. Minha filha mandou cento e oitenta livros. O diretor me procurou porque foi uma coisa que abriu caminho. Agora estamos batalhando pra fundar uma associação pra proteger os familiares. Eu estou convencendo a população que os familiares dos presidiários precisam ter contato conosco, moradores de Guareí, pra gente não tê-los como inimigos. Eu acho que os presidiários, uma parte pelo menos, quer furar seus olhos.
P/1 – Que bacana que o senhor tem esse trabalho. Queria agradecer muito a presença do senhor, pra nós foi muito importante o seu depoimento, foi importante mesmo.Recolher