Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Vanda Machado
Entrevistada por Julia Basso e Winny Choe
Piaçabuçu, 05/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_058
Transcrito por Paula Leal
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 13/04/2009
P1 – Para começar, queria que ...Continuar leitura
Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Vanda Machado
Entrevistada por Julia Basso e Winny Choe
Piaçabuçu, 05/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_058
Transcrito por Paula Leal
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 13/04/2009
P1 – Para começar, queria que você falasse seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.
R – Eu sou Vanda Machado. Eu gosto muito de ser Vanda Machado, e resolvi omitir o último nome, que é Silva. Mas eu gosto de Vanda Machado, é o nome do meu pai. Eu nasci em São Felipe há 65 anos, portanto, em 15 de abril de 1942. Sou ariana, filha de Oxum e Ogum. Sou a primeira de cinco filhas, matriarca. Meus pais morreram aos 35 anos cada um, e, daí em diante, me tornei a matriarca, criando a mim mesma primeiro, já que também era menina, e criava minhas irmãs. Isso é o início de tudo.
P1 – E você nasceu em Salvador?
R – Não, nasci em São Felipe, é uma cidade que fica no Recôncavo do Sul, cidade fumageira. É uma cidade pequena. Às vezes, eu gosto de lá, às vezes, não gosto, mas é significativo para mim pensar em São Felipe. Lá eu tive uma infância pequena, porque a minha infância durou pouco, e, nessa infância pequena, foi muito importante a presença do meu pai. Meu pai continua sendo meu ídolo, ele era músico, ele fazia teatro, ele cantava, ele dançava, ele esculpia, pintava, e as melhores lembranças da infância são as que estão relacionadas a meu pai, às festas, às festas do lugar, às festas de São Felipe, às procissões, ao tempo que eu passava no engenho. Eu tive uns padrinhos muito queridos, e durante as férias eu ia para o engenho. É uma lembrança muito querida de Nicolau Barbosa e Iaiá Pinheiro, eles eram donos de uma fazenda linda, de engenho de açúcar, casa de farinha. As lembranças estão cheias de banho de fonte, caminho para fonte, do leite cru bebido de manhã cedo às vezes de má vontade e do carinho do meu padrinho, do cheiro da farinha, do cheiro do rio, do cheiro da mata, às vezes, do cheiro de mato queimado, cheiro de crianças negras, que era minha oportunidade de encontrar porque, perto de mim, só tinha minhas quatro irmãs mesmo. E as crianças lá no engenho eram maravilhosas. Brincar no rio era minha fascinação. A minha infância está ligada a esses brinquedos, meus padrinhos, meu pai, minha mãe, um pouco da minha avó, mas nem tanto. Minha avó não gostava muito da gente porque ela preferia os netos que eram loirinhos, e da gente ela não gostava muito, não. Eu não tenho uma ausência na minha vida da avó, acho que por isso eu procuro ser tão avó, tão próxima, tão brincante com os meus netinhos, que são dois.
P1 – Qual era a origem de seus pais?
R – Meu pai, ele não viveu toda vida em São Felipe. Ele chegou lá, se encantou pela minha mãe, foi difícil casar com a minha mãe, porque meu pai era negro, e minha mãe era de uma família branca. E branco pobre, ele também dá mais restrição do que o branco rico, porque é como se fosse o único bem possuído a cor da pele. Pois ele casou com a minha mãe, e a minha mãe contava uma coisa muito interessante, que, quando eles ficavam sozinhos, ele abriu uma mala e mostrou para ela cinco cédulas de 20. Devia ser 20 mil réis, na época. E mostrou, e era um bom dinheiro que ele tinha, na época. E minha mãe era filha de um… Meu avô eu sei que era serrador, minha avó tinha muito ciúmes dele. E eles viveram “legal”, meu pai com minha mãe, mas também por pouco tempo. Quando eu tinha oito anos, meu pai faleceu e, mais adiante, quando eu tinha 15, acho 15 ou 16, minha mãe também faleceu. A vivência com eles foi muito pouca.
P1 – E esses seus padrinhos, com quem você passava férias no engenho? Como era lá?
R – A festa começava na hora em que a minha madrinha dizia que eu estava indo para lá. Eu era tão pequena que ia, às vezes, não era bem na garupa, no cabeçote. Minha madrinha montava cavalo e eu ia sentadinha na frente dela e, às vezes, ia numa coisa que chama panacu. Tinha o burro com dois caçuás, que são duas cestas, acima, de um lado, atrás do outro. Então, enchia de coisas para contrabalançar com o meu pesinho, que ia do outro lado. Eu ia naquela cesta, lá na casa da minha madrinha, tirava, e eu ficava absolutamente livre para pular de um lado para o outro nas varandas.
P1 – E o rio, como é que ele era?
R – O rio era uma coisa legal. Tinha o rio em que a gente tomava banho, a fonte em que a gente tomava banho, embora tivesse um banheiro na casa. Era uma casa bacana, a casa da fazenda, mas ela era uma fazendeira típica. Na época, morriam muitas mulheres de parto e, à medida que as mulheres iam morrendo de parto, a minha madrinha levava os filhos para a casa dela. Então, tinha um monte de crianças, muitas crianças. No final da tarde, essa hora assim, talvez um pouco mais cedo, nós saíamos como uma procissão para tomar banho na frente, mas o rio mesmo que eu gostava era o Rio Copioba, que era o rio em que se lavava roupa. A água, para mim, é uma fascinação, sempre foi. Lá, uma das coisas que me enchiam de prazer era ficar dentro da água por um dia quase inteiro.
P1 – No rio?
R – No rio.
P1 – E você ficava com as outras crianças que moravam por lá?
R – Ficava com as outras, com as crianças que moravam lá no engenho. Bom, nessa época, não tinha a menor ideia que eu era filha de Oxum, e que a água era meu elemento essencial – porque a água é minha essência, que me dá forma, que me dá flexibilidade, que me dá jeito de caminhar, que me dá leveza. Mas a água, ela se encontra em todos os estados. Então, a água tanto pode ser um lago, um córrego mansinho, como pode ser também uma grande cachoeira, uma ruidosa cachoeira, e eu me identifico com todas essas formas da água.
P1 – Da casa da farinha, do engenho, quais são as lembranças do que você brincava lá? Como era?
R – É interessante. A casa de engenho, a casa de farinha, essas lembranças, elas foram me acompanhando e me dando caminho. Muito cedo, eu pensava como etnógrafo, sem ser etnógrafo, sem ter a menor ideia que existia esse tipo caminhando pelo mundo. Então, eu sempre caminhava e fazia anotações sobre lugares, com poesia, mas eu sempre falava de lugares. Eu sempre falava de lugares. Mais adiante, quando eu terminei o curso que naquele tempo era ginasial, eu pensava várias coisas, eu pensava em ser advogada, porque eu tinha um sonho, eu queria ser diplomata. Imagina? Gostava de ser diplomata, achava que era um caminho. Depois, numa época, onde apareceu, eu sabia pouca coisa, mas eu sabia da existência da ONU (Organização das Nações Unidas). Depois, eu disse: “Não, não é isso, não. Acho que vou ser enfermeira.” Disse: “Não, eu preciso viajar pelo mundo, acho que eu preciso ser professora de inglês.” Comecei vários cursos e parei no caminho. Comecei várias vezes. Hoje, eu tenho um inglês horrível. Aí, finalmente, eu disse: “Não, acho que não é nada disso, eu quero ser historiadora.” Escuta, quando eu pensei em ser historiadora, eu pensava exatamente no engenho, no rio, quer dizer, eu tinha uma história e uma geografia já marcadas dentro de mim, que eu precisava saber o que significava. Quer dizer, enquanto eu não sabia nada, eu não sabia, sentia, mas não sabia o que era. Ainda não sabia nada sobre essa pluralidade étnica, mas eu tinha uma ideia de alguma coisa que eu precisava saber. E, aí, eu resolvi fazer um curso de História. Foi péssimo, péssimo. Quando eu terminei o curso de História, eu disse: “Meu Deus do céu, acho que eu vou entrar na universidade outra vez, fazer uma outra coisa, porque eu não caminho.” Enfim, as informações que me deram como aprendizagem para a vida, como aprendizagem que me serviria, que me serviria como educadora, como pessoa, nada disso eu tinha aprendido durante. Daí, eu comecei a pensar. Bom, é necessário um outro tipo de educação, fazer diferente, aí, nessa época, quer dizer, toda essa influência, toda essa paisagem que eu tinha na minha cabeça, pensava e servia para pensar, fazer a educação de outro jeito. E, aí, eu criei uma escola. Eu criei uma escola, e as imagens começavam, continuavam me acompanhando. Elas não eram imagens do passado. Na verdade, eu sempre tive essa ideia que existe um único tempo, que é o tempo presente, presente do presente, presente do passado e presente do futuro. Então, pensando nesses tempos, eu inventei uma escola, eu criei uma escola. Esse colégio tem dois motivos. Um dos motivos é que eu precisava trabalhar com as minhas cinco irmãs, que eu já era matriarca nessa época, com menos de 20 anos, e eu precisava de alguma coisa que pudéssemos trabalhar eu e minhas irmãs. Então, eu criei uma escola onde nós mesmas fizemos as mesas e as cadeiras. Aliás, não era mesa. Era assim: uma tábua compridona, com uma tábua aqui, uma tábua aqui, para dar apoio para ficar em pé. Então, essa era mais altinha, onde a criança escreveria, e a outra era mais baixinha, onde a criança sentaria. O meu cunhado ajudou a serrar, e a gente mesmo que fez. E depois nós pintamos tudo de azul. E onde era a escola, era no fundo da casa, e as mães confiaram e matricularam as crianças, muitas crianças. Tantas crianças que, depois, eu tive que construir uma casa, construir uma sala maior do lado. Depois, eu construí um casa, uma casa que era uma escola mesmo. Aí, começou a se realizar o meu sonho com as imagens da fazenda da minha madrinha, com a possibilidade de pensar uma história de vida. E eu morava num lugar que era um subúrbio, e esse subúrbio pertenceu a uma mesma sesmaria, onde havia um grande engenho, um engenho que exportava açúcar para o mundo, que estava ligado a Santo Amaro. Então, tinha o engenho, tinha uma casa grande e tinha uma senzala. As crianças iam lá visitar essa reminiscência, estavam lá, ali mesmo onde eu tinha escola, era um lugar que se chamava Freguesia do Ó, onde tinham missões jesuíticas ali perto. E ali, perto também das missões jesuíticas, havia uma grande igreja, que, por pouco, a cidade de Salvador não teria começado nesse lugar, não teria sido efetivado, onde eu tinha escola. Então, o Brasil não é um Brasil nem branco, nem negro, nem índio. O Brasil é um Brasil que é branco, que é negro e que é índio. Então, ali, eu comecei a fazer um trabalho que se chamava Raízes Culturais, para fazer esse trabalho de raízes culturais. Na época, chegaram umas freiras suíças para alugar, eu fui ajudar as freiras suíças a aprender a língua portuguesa. Elas me esinaram francês, e eu ensinava português para elas. Foi ótimo, porque eu consegui passar no vestibular com nota dez em francês. Depois, desaprendi tudo. Hoje, mal sei dizer “bonjour”. Deu para me virar em Paris, não passar fome, coisa assim, mas nada significativo. Então, essas freiras, elas faziam. Era o lugar mais importante aquele centro comunitário, onde eu era catequista, cursilhista, onde eu fazia todos os movimentos religiosos. E ali mesmo, eu disse: “Como eu vou pensar raízes culturais, raízes negras?” Mas eu encontrei uma solução. Eu chamei o meu amigo, que ele hoje é um babalorixá, é um pai de santo, mas tem um irmão que é padre, Padre Clóvis, uma pessoa muito conhecida no movimento negro. Aí, eu disse: “Então, vai ser legal porque eu vou estar próxima da religião matriz cultural africana, mas também vou estar perto da religião católica, uma vez que eu estou trabalhando com um irmão de padre e vou poder ficar perto também da igreja.” E, aí, você pode imaginar. Na verdade, eu que tinha sido criada por um pai que ia à missa todos os domingos, que tocava na missa, de repente eu estava pensando em conhecer cultura africana, uma cultura negra. Como que isso ia se arrumar na minha cabeça? Trabalhando com as freiras suíças. Tudo foi, de início, bastante caótico; hoje, é completamente arrumado na minha cabeça. Hoje, eu não tenho mais problemas, mas a escola na realidade era a possibilidade de eu fazer uma espécie de educação onde o Brasil começasse a ver uma maneira cirandada. Então, a minha paixão vem desse sentido, desse trabalho que tem mais de 40 anos, que eu comecei a pensar em um Brasil plural. Essa é hoje a minha razão de trabalhar, de pensar. A minha vida, a história da minha vida, ela se confunde com a história de pensar numa educação plural no Brasil.
P2 – Como você foi se relacionando bem com a cultura africana e a pedagogia?
R – Bom, nesse primeiro contato, quando eu tinha escola lá em Paripe, no subúrbio de Salvador, eu criei esse contato, de levar as crianças e mostrar: “Olhem, aqui viveram índios, aqui perto, mas aqui tem a casa grande onde viveram os senhores, aqui onde viveram nossos ancestrais.” Eu comecei a pensar “ancestral”, “ancestralidade”, afinal, o que significa ancestralidade? Aliás, isso eu fiquei sabendo há pouco tempo, quando nós criamos uma criança. Para você, o que é um ancestral? Eu disse: “Ancestral? Eu acho que é avô do avô, do avô, do avô, do avô do meu avô.” Aí, disse: “Cara, eu podia ter pensado isso antes, eu tive tanta dificuldade de pensar ancestralidade.” Então, esse pensar, esse outro jeito, eu precisei encontrar talvez o primeiro livro que eu li, nesse sentido. Foi o livro do Abdias Nascimento, o livro do Abdias, e depois eu fui encontrando outras possibilidades, outros estudiosos e fui criando também um caminho. Quando eu estava fazendo os créditos de um mestrado, e eu tinha um projeto com uma professora que cada vez mais eu queria sair daquilo que ela queria fazer, ela dizia assim: “Não, mas isso aí você não sabe, mas isso aí você não sabe.” E a cada vez que ela me dizia isso: “Meu Deus do céu, como que eu estou fazendo o mestrado e que tanta coisa que eu não sei e não vou aprender, como que é isso? Se isso você não sabe?” Um dia, ela me perguntou pelo projeto, eu disse: “Eu perdi, eu não tenho mais o projeto.” Eu não quis dizer para ela que eu tinha rasgado, que estava com raiva dela, de ela me dizer tanto que eu não sabia. E, aí, alguns dias, talvez uma semana, duas depois, eu fui convidada para participar de um evento em Nova York, e eu fui. Eu ia falar exatamente de cultura afro-brasileira, mas na relação com as artes. Foi um trabalho que veio evoluindo desde 21 anos atrás, e hoje é o trabalho que eu vou mostrar aqui (risos). Que eu falo dessa influência negra nas artes, nas ciências, no Brasil. E, quando eu estava lá, encontrei uma senhora, conheci uma senhora, Estela, uma mãe de santo. E eu estava com uma amiga, com a Marcélia. Ela disse: “Por que você não fala com a Estela, vai fazer a tua dissertação estudando as crianças lá da escola que existe no terreiro de candomblé?” Digo: “Mas como eu vou fazer isso? Ela nem me conhece, eu nem a conheço direito e como que eu vou chegar para ela e falar uma coisa dessas?” E ela me encorajou, me encorajando, eu falei com a mãe, e ela disse: “Bom, quando chegar no Brasil, quando chegar em Salvador, você aparece no terreiro, e a gente conversa com Xangô.” Aí, disse: “Nossa! Chegar em Salvador, conversar com Xangô, que história é essa?” Passaram os dias, eu cheguei lá e disse: “Estela, a senhora se lembra? Nós estivemos, nós tínhamos participado de uma mesma mesa.” E, completamente, sem jeito, não foi meio, foi completamente sem jeito, e ela disse: “Tá bom, vamos conversar com o Xangô.” Disse: “Como que é conversar com o Xangô?” Aí, quando eu cheguei lá, era uma sala, uma sala bonita, tinha uns panos e uma mesinha redonda, e ela começou a jogar búzios. Eu pensava: “Ah, meu Deus, como que esse punhado de conchinhas vai resolver a minha vida acadêmica agora?” Eu fiquei olhando, eu nunca tinha entrado num terreiro, nunca tinha visto ninguém jogar búzios. Ela jogou e fez: “Ah, mas os caminhos estão abertos.” Eu disse: “O que é caminho aberto?” Porque toda a linguagem religiosa de matriz africana é um outro código. “O que significa ‘estar com o caminho aberto’?” Ela disse assim: “Você pode fazer o seu trabalho aqui, com quem você trabalhar, com quem você vai trabalhar? Quando você quer começar?” E confesso que eu fiquei um tanto sem jeito. Primeiro, eu acho que eu nem acreditava que ela me aceitasse para fazer esse trabalho lá no terreiro, mas ela aceitou. E eu fiz uma dissertação de mestrado que, por dez anos, ninguém compreendeu, por dez anos ficou lá na academia, até que, um dia, encontrei um antigo professor. “Onde está sua dissertação?” Eu disse: “Bom, tem cópias lá na biblioteca, cópias lá na USP (Universidade de São Paulo).” “Olha, segunda-feira, você procure Gustavo Falcón e deixe lá, e diga a ele que eu mandei.” Ele era reitor na época. Poucos dias depois, eu recebi um parecer lindíssimo, sem assinatura obviamente – a gente não fica sabendo quem é que fez o parecer –, e o livro foi editado. Tem 21 anos de editado, é um dos livros mais vendidos, por ele estar completamente atual, levando em consideração a lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira, na escola. Então, está completamente atualizado. Bom, daí eu fiquei um tempo, saí do mestrado um pouco triste, nesse intervalo até a edição do livro. Nesses dez anos, eu resolvi ser florista, abri uma floricultura e eu resolvi ser florista. Eu saí muito triste do mestrado, me sentindo impotente, me sentindo: “Fazer o quê com isso, meu Deus? Quem vai acreditar, quem vai acreditar nessa possibilidade de fazer isso?” E, realmente, eu tive a maior nota, fui indicada para edição, mas era alguma coisa que não tinha ressonância, não tinha com quem conversar e que acreditasse naquela história como uma boa coisa. Depois, quando passou, passados dez anos, eu voltei novamente para a mesma escola, a escola Eugênia Anna, a escola que existe no terreiro de candomblé. Voltei para a mesma escola e criei um projeto, o projeto Irê Ayó. “Irê ayó” significa caminho de alegria. Projeto Irê Ayó. E, aí, apresentei à Prefeitura Municipal, e a Prefeitura Municipal apoiou e começou a achar que era uma coisa muito boa para fazer, e aí continuou. Continuei com o apoio da Irmã Estela, do povo da comunidade. E, de repente, a escola passou a ser escola de referência nacional, e eu fui, várias vezes, para um salto para o futuro, e uma professora da universidade, da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, a Denise, na televisão. Eu fui fazer um trabalho lá com ela, começou a florir (risos) de verdade, não mais a floricultura, mas a ideia de novamente eu pensar numa educação diferente daquela que eu tive, pensar numa educação em que eu acolhesse as crianças. A principal coisa que eu fazia na escola, uma coisa de grande valor, chegava cedo… Depois que a minha mãe morreu, ninguém tocava na gente, ninguém tocava em mim e nas minhas irmãs, ninguém tocava. Isso é uma coisa que me fez uma falta imensa. Eu tinha que pensar: “Bom, eu devo fazer com outras pessoas.” Eu achava que era como se eu buscasse uma espécie de cura para o isolamento que eu tive. Eu ficava na porta e recebia todas as crianças e trocava o nome das crianças: “Oi, tudo bem? Oi, como vai? Ah, mas que cabelo seu que está legal, quem penteou?” E, como eu tenho cabelos trançados, as crianças começaram a trançar o cabelo e a ficar com o cabelo bonito, e os meninos também faziam uns cortes masculinos interessantes, que eu tenho várias fotografias. Eles são muito bonitos e arrumados, as crianças de lá, do engenho. Então, eu pensei, disse: “Não, eu preciso pensar numa pedagogia de acolhimento, de tocar, de brincar.” Meu marido era ator, ator de teatro, e ele começou a gostar de teatro. “Teatro vai dar esse tom nesse trabalho, que pensei fazer.” E era bacana. O teatro na escola não faz somente representar peças, mas o teatro é o que no teatro eu respeito: a presença do outro. Eu respeito a fala do outro, o olho do outro, o jeito do outro, que mostrasse um para o outro. Toda a criação converge para o acolhimento e para o jeito de se mostrar bonito para o mundo.
P1 – Esses aprendizados que você teve, você acha que aprendeu com quem, quando era nova? Marido, amigos?
R – Imagine o tanto que eu estou aprendendo neste momento, que eu estou te vendo, que você está na minha frente, que você está me perguntando, que está me olhando, que, enquanto você me olha, eu aprendo muito. Eu aprendo, por exemplo, que eu sou importante para você. Isso me dá uma dimensão da pessoa. Eu aprendi com os meus estudantes – eu não chamo eles de alunos, aluno é o que não tem luz, eu chamo muitas vezes “minhas luzes”. Então, eu aprendi muito e aprendi a lição. Uma coisa linda que eu aprendi, eu era bem pequenininha, acho que devia ter uns seis anos, estava nesse rio lá na fazenda da minha madrinha, e pegou fogo lá no canil. Eu não sei se tocaram fogo, eu não sei. Só sei que apareceu um fogo, e eu estava feliz lá embaixo no rio, dentro da fonte, vendo o fogo, aquela coisa quente, bonita. Foi uma coisa bonita. E, aí, eu vi que minha madrinha estava aflita, afinal de contas, eu era a criancinha que não podia ter forças suficiente para caminhar. De repente, veio a Marcília. Marcília é uma senhora negra, forte, um pouco parecida com a Lúcia, e Marcília tinha sempre um pano, Marcília estava sempre lá na cozinha fazendo coisas gostosas. E, aí, vem Marcília correndo, correndo, correndo, me toma no braço e me leva correndo ladeira acima, e eu senti o coração de Marcília batendo junto do meu, coração ofegante de Marcília, meio corpudinha, fazendo aquela força subindo. Essa é uma coisa tão bonita, de Marcília, tentou cuidar de mim atravessando aquele fogo. Hoje, eu não sei se o fogo era grande ou se era pequeno, se podia causar um prejuízo para mim, aquilo que podia acontecer, mas o que eu tenho é o abraço de Marcília, o cuidado de Marcília para que eu não me machucasse, chegasse lá em cima e me livrasse do fogo. Então, eu aprendi muito. Quando eu morei no subúrbio, as pessoas eram muito pobres, máquina de lavar nem pensar. As pessoas lavavam na porta, e tinha um grande varal, que era uma cerca, aliás era uma cerca, não era um varal. Havia um acordo tácito, daqui até aqui, da Dona Benedita, daqui até aqui, cada um. De repente, chovia e chovia, e o que acontecia? Minha tia não pegava só a roupa dela da chuva. Se as duas outras vizinhas não estavam, ela pegava tudo e, às vezes, misturava, era uma confusão, era maior a confusão de separar as roupas de cada um do que deixar a roupa molhada. Então, eu aprendi muito de solidariedade. Eu aprendi. Minha tia paria muito, e eu morava na casa dela, porque, quando meu pai faleceu, ele tinha um sonho que eu estudasse, eu tinha que ser uma pessoa estudiosa (risos). E, aí, ficou certo de que, quando eu terminasse a escola primária, eu ia para lá estudar. Eu fiquei lá na casa dessa minha tia, era interessante como as pessoas pobres são solidárias, como, paradoxalmente, os que não têm têm muito para dar, seja o que for. Minha tia paria, e eu cuidava da minha tia, inclusive lavando as roupas de parto, que era em casa, fazendo a comida, que era típico cozinhar uma galinha todo dia. Lavava roupa, passava roupa, fazia tudo isso lá. Meu tio me ajudava, mas o que era bacana era que, de manhã, eu era magrinha, magrinha, e as pessoas tinham pena de ver como eu tinha que fazer tanto trabalho, aí vinham de lá, cada uma chegava.
P1 – Voltando só um pouquinho: de quando você era mais nova, você falou que muito cedo você virou matriarca. Que tem muitas irmãs. Como foi isso no começo?
R – No começo, foi difícil, mas nem tanto, porque a escola que eu inventei lá no fundo da cozinha, no fundo do quintal, era bom. Primeiro, ela resolveu o problema, porque nós todas passamos a ter um trabalho. Nós éramos duas professoras no início, e as outras foram se formando também professoras. E até, quando construiu um prédio mesmo para escola, todas éramos professoras já. Empregamos mais duas ou três parentes também. Isso nos ajudou a ficar mais juntas, mais solidárias, Eu acho que, na verdade, a minha vida foi salva pela solidariedade, pela história que eu estava te contando das mulheres que não tinham o que oferecer quando a outra mulher paria e, como não havia água encanada, cada uma tinha um tonel do lado de casa, e as mulheres iam chegando com latas de água que pegavam numa fonte perto e colocavam. “Olha, está aqui, que eu trouxe.” Chegava mais outra, despejava outra lata de água, e o tonel ficava cheinho até em cima, e a gente tinha água para trabalhar o dia todo, para limpar as coisas o dia todo. Era um presente preciosíssimo, e por toda vida eu pensei que o mundo não existiria sem solidariedade. Veja bem, é, então, essa joia, ideia que eu persegui toda vida, pensando: “Como levar esse pessoal lá, como levar isso para a educação?” Pô, isso foi evoluindo, evoluindo, evoluindo até minha tese de doutorado. Minha tese de doutorado na realidade foi autobiográfica, e eu falo de inúmeros momentos em que as pessoas foram solidárias comigo e devo levar isso para a escola. É porque o caminho foi muito… Acho que seis meses não dariam para contar, mas a gente tem que sintetizar essa história. E, além do povo do subúrbio, onde eu morei, depois eu aprendi muito isso com a lição do terreiro. Então, eu pensava que uma educação tem que ser feita com acolhimento, a possibilidade de formar sujeitos autônomos, solidários e coletivos, sim, mas têm que ser exatamente isso, não necessariamente nessa ordem, mas de um jeito caótico, que essas possibilidades elas pudessem estar fazendo e desfazendo, fazendo e se desfazendo, e criando sujeitos de fato, que podem ser na vida aquilo que ele é sendo cada dia, sendo a cada dia alguém que pensa em ser solidário, alguém que pensa em ser coletivo, alguém que pensa em construir, fazer junto. E eu consegui, consegui levar essa ideia, pensando nessa minha itinerância. Na realidade, foi uma caminhada heurística. Eu fui vivendo e aprendendo a fazer educação, aliás, continuo aprendendo a fazer educação, mas essa é a forma que eu penso. Então, eu aprendi de acolhimento também muito do que vi. Se alguém chega doente no terreiro, tudo para e se acolhe aquela pessoa. Se alguém vai fazer, na hora da iniciação, a iniciação é feita em barcos, o grupo se chama barco, porque nesse grupo tem pessoas que podem mais, que podem menos, que podem coisa nenhuma ou que podem muito e só juntos. Isso se realiza porque tudo é coletivo. Do que se precisa é muito coletivo, e o cuidado também é coletivo. Todos os mais velhos, como numa “revivência” de família ancestral africana, todos os mais velhos são como pais, todas as mais velhas são como mães, e cuidam dessa pessoa, que está feita ou iniciada, como falam os antropólogos, com cuidado absoluto. Então, esse acolhimento eu aprendi também, esse jeito de ser coletivo, de se fazer coletivo. Não há nenhuma possibilidade de individualidade no fazer os deveres. Tudo é feito de uma maneira coletiva. Tem coisas que somente eu posso fazer como filha de Oxum, tem coisas que, hipoteticamente, só você pode fazer como filha de Ogum. Então, vai ser sempre necessário que eu esteja junto em você para fazer coisas que são coletivas. A necessidade de ser autônomo, de pensar por você mesmo, pensar por si mesmo e pensar com o outro, quer dizer, é uma situação que parece difícil de acontecer. Pensar por você mesmo e pensar com o outro, fazer por você mesmo aquilo que você tem que fazer e fazer com o outro. Foi a lição maior que eu aprendi, a lição do jeito de agregar-se, estar junto. Eu juntei a minha experiência de historiadora, minha experiência que eu fui vivendo e olhando em diversos lugares e, inclusive, por exemplo, na feira. Na feira, você não sai da feira sem tudo que você quiser. Se a pessoa que tem uma barraca que, do lado, não tiver, ele vai aqui do lado, pega ele, ajuda você e ajuda aquele outro, que ele vai vender com ele, ele vai estar com ele. É muito importante para mim que eu esteja atenta a tudo e a todos os movimentos que passam por mim. Claro que tem coisa que foge, isso sempre é possível, mas, à medida que eu estou atenta, eu aprendo com esse movimento ou com esses movimentos, com essas ações dos outros. Eu aprendo como fazer melhor aquilo que eu faço, deixar de fazer aquilo que não é para fazer, e vou aprendendo, me formando, me reformulando. Todo o tempo, sempre nesse sentido. Então, juntar a história com a vivência seria, por exemplo, pensar nesse sentido agregador do povo negro, que, no navio negreiro, quando um era completamente diferente do outro na sua etnia, às vezes até inimigo, se eles brigavam muito por conta dos limites e, de repente, eles se olham e passam a ser “malunos”. “Malunos” é uma palavra que significa “companheiros”. E, aí, eles foram se juntando no navio, na senzala, nos terreiros, nas associações, nas irmandades, Irmandade de São Benedito, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Irmandade de Santo Antônio de Categeró, as irmandades negras juntando para fazer as grandes igrejas, enchendo de obras de arte, de ouro, como tem na Bahia, mas pelo jeito de estar junto. Nos quilombos e hoje nos blocos afro, nas escolas de samba, o povo quilombola ensinou a liberdade no Brasil, ensinou para a gente o que é ser livre, ensinou para a gente o que é estar junto, sair de uma situação difícil e criar um jeito livre de viver. Toda a minha experiência de vida, vivida, minha experiência de ouvir história, de contar história, de vivenciar histórias, de ver pessoas saírem de situações de solidão, entrar de solidariedade, de estar junto, de crescer junto… Bom, isso.
P1 – E quando foi que você começou a ir ao terreiro?
R – Ah, o terreiro (risos). Eu era católica, praticante, de nascimento. Aquela história de o meu pai me levar para a missa, os bailes pastoris. Eu era bem pequena quando, no Natal, meu pai me ensinou a cantar. Imagine, bem pequenininha. (Cantarola.) E por aí vai,
cantando na noite de Natal. E depois eu eu fui cursilhista, fiz encontros de casais com Cristo, curso de igreja, todos os movimentos da igreja eu fiz. Aí, meu primeiro marido morreu, que também era cursilhista comigo, também era encontrista. Eu percebi uma coisa. Quando ele morreu, eu tinha, acho, que 40 anos, parecia que tinha ainda menos, e eu percebi que, com todas as mulheres, os maridos morriam e elas continuavam no encontro de casais, mas eu notei que as pessoas não estavam querendo que eu ficasse. Um dia, eu estava conversando com uma pessoa, ouvi a filha chamando: “Meu pai, meu pai, vem atender o telefone.” Eu disse: “Ai, não tem telefone chamando. Acho que está feio eu estar conversando com ele aqui, eu sou viúva.” Comecei a achar assim. Aí, eu vi que não era mais, que aquele lugar passou a ser o “não lugar” para mim, um lugar que não me acolhia. Bom, coincidentemente eu fiz essa viagem para Nova York, coincidentemente eu conheci Estela, coincidentemente eu tinha… Pode ser coincidentemente ou sincronicidade (risos). Então, eu não estava bem com a minha orientadora do mestrado, e eu fui fazer esse trabalho lá, e eu conheci o Carlos. A gente começou ajudando minha mãe. Primeiro, ele foi escolhido como ogan de Ogum, ele era homem de Ogum, e ele foi iniciado, e eu fiquei lá ajudando, fazia coisas, ganhei o direito de lavar pratos, porque, no terreiro, você ganha o direito de lavar pratos, não é assim fácil, não. Você ganha o direito de varrer a casa. Então, você vai ganhando o direito de pôr a mesa, de ficar mais perto da mãe de santo, das pessoas mais velhas. As pessoas começam a te ensinar as coisas sem você perguntar, porque, se você perguntar, você não aprende, quer dizer, não vai dito para você. É só uma questão de atenção, você fica atenta para ver como é que as coisas acontecem, como que são feitas. Finalmente, a mãe me chamou e disse que eu precisava ser iniciada. Eu fui, eu já tinha cinco anos que estava para lá por causa das várias coisas. E, aí, eu fui iniciada. E, bom, é isso, sou filha de Oxum.
P1 – E a tradição oral? Como você começou a se envolver, o que você acha das tradições orais?
R – Tradição oral, para mim, foi uma coisa que eu vivi toda a vida sem saber o que era. Então, eu acho que tudo isso que eu faço, era como se eu tivesse vivido todo o tempo embaixo da água. Minha casa ficava em frente da feira lá em São Felipe. Em frente da feira, tinha uns senhores que se reuniam, tinha umas senhoras que vendiam panela, eles ficavam juntos, e, lá para a estrada, eles começavam a cantar uma coisa que eles diziam que eram “tirandas”. Cantar “tirandas” é assim: alguém começa a cantar um verso, é como repentista, mas é sempre mexendo com o outro, bolindo com o outro, não tem instrumento nenhum. Ele vai só cantando, canta e ri muito. Cantava alguma coisa que bolia com algum acontecimento engraçado, talvez, e começava a rir, um ria muito do outro, e eu achava muito interessante aquilo. E eu ficava na janela e ficava vendo aquelas pessoas brincarem com a sua própria voz, com seu próprio canto. Tinha uma senhora, que é Eulina, que era linda. Eulina era tão negra, tão negra, tão negra que a gente passava a mão assim no braço de Eulina, e era macio o braço de Eulina. E Eulina contava histórias para a gente, geralmente eram histórias de assombração, e a gente gostava, adorava ouvir as histórias de assombração, mesmo que, depois, todo mundo ficasse morrendo de medo, muito medo das histórias de assombração. Então, ouvir histórias, ouvir cantigas, brincar de roda, isso toda a vida. E, no terreiro, a gente não tem. Hoje, tem muitos livros escritos, tem muita coisa escrita, muitos livros, até porque a civilização letrada entrou para os terreiros, os antropólogos, e eles, muitas vezes, inventam coisas que botam na boca dos pais de santo e parece que foram os pais e mães que falaram, mas não é. Muitas vezes, é pura invenção, interpretação, o que é horrível. Eles vão interpretando o que eles veem lá e terminam dando interpretações muitas vezes inadequadas. Mas o que a gente aprende mesmo é junto com o outro, e, assim, sentam duas, três pessoas trabalhando junto, e eu sou muito mais nova que as duas outras pessoas, e as duas outras vão conversando, porque é como se elas fossem atualizando o aprendizado. E, nessa atualização do aprendizado, e como quando eu entrei já não era uma menina, já era uma pessoa que tinha quantos anos, 45, por aí. Mas, então, as pessoas esqueciam que eu era tão nova e iam falando coisas. Cabia a mim me manter o mais discreta possível. Não se abala, não se diz uma palavra, não se interfere na fala dos mais velhos, e nesse não interferir na fala dos mais velhos, que é uma herança ancestral, o mais novo escuta, fala o mais velho até o fim, e de cabeça baixa, muitas vezes. E não é um sinal de subserviência, é um jeito de aprender, aprender de fato. Então, às vezes, o africano não leva um pedaço de papel para a escola e fica lá sentado, sentado. Sentado, ele escuta, ele tem uma possibilidade de aprender incrível. Não raro, um africano – eu falo do africano nigeriano, que é o que eu conheço, eu conheço a África no Golfo de Guiné, pouquíssimo o que eu conheço. Aí, tive a oportunidade de ver como eles falam quatro, cinco, seis, oito, 12 línguas, que é um hábito que a gente não tem muito, de escutar. Você vai para uma palestra, e tem gente que parece que escuta a primeira frase do palestrante, anota, e, com aquela primeira frase, ele nem escutou o restante, cuida de desconstruir o que ele não ouviu, às vezes, faz uma pergunta absurda,
desagradável. Então, fica por aí. A tradição oral, para mim, primeiro, que eu sou auditiva. O que eu vejo, se você amanhã passar por mim e colocar um chapéu, com todo o aspecto que você tem diferenciado, eu posso não te reconhecer. Eu não sou nada visual, mas o que eu escuto… Aí, fica. Quer dizer, eu sempre fui uma pessoa movida a audição e a sinestesia, o que eu toco e o que eu escuto. Essa é mais alguma coisa que eu pensei para fazer uma educação diferente nas escolas, levando em consideração a fala, mas não a fala interminável. Mas você falar para a pessoa, dizer coisas à pessoa, de vez em quando criar a oportunidade de falar com cada criança ou cada professor que eu estou formando, que eu estou contribuindo para a formaçao dele. O falar, o tocar, o olhar, o escutar, como possibilidade educativa, como possibilidade de se fazer uma outra educação, que é diferente de dizer: “Olha, leia da página 22 à página 25, e amanhã nós conversamos a respeito.” Isso não é um jeito de fazer educação, é completamente impessoal. “Marque com uma cruzinha a figura que está à direita.” Quando você pode caminhar com a criança, e dizer: “O que está à sua direita, o que está à sua esquerda, mova-se para a direita, mova-se...” É um outro jeito. A gente aprende com o movimento do mundo e não com letras, letrinhas.
P1 – Tem umas coisas na tradição oral que, como você falou na questão dos terreiros, eu também já ouvi e li. Algumas coisas, conversas, que eles não passam para os outros. Tem algumas coisas que eles não passam para os outros, que, quando você pergunta, se tem uma salvaguarda… Isso existe mesmo? Como acontece?
R – Olha, educação tem que ser vivenciada. O tradicionalista africano, ele pensa educação como iniciação, quer dizer, não a iniciação do jeito ocidental que a gente pensa, mas uma educação iniciática seria que o que você vai aprender vai te servir para a vida. Se eu for te falar de vegetal e falar de uma maneira, só o que está no livro, é uma coisa, mas falar de vegetal como: “Hoje, pela manhã, nós tomamos um suco verde, o que contém, quais são as ervas que estão naquele suco e para que é que serve?” Uma pessoa no terreiro, ela não te daria assim: “Olha, tem tais ervas, e ela serve pra isso.” Você teria um tempo para ir convivendo e escutando, já que a iniciação é iniciática. Tem uma coisa muito interessante que conta de um estranho que chegou na aldeia e disse: “Eu quero saber sobre circuncisão.” E o mestre perguntou, mandou perguntar: “Pergunte a ele se ele quer ser circuncisado.” Ele respondeu: “Não.” “Então, mande ele entrar.” Ele entrou, e tudo foi feito de um jeito que ele não percebeu o que é que foi feito. Então, a educação no candomblé é iniciática. Lá, você tem realmente uma iniciação de coisas que te servem para a vida. Você tira isso que a televisão mostra todo dia, como filhos do Satanás, como filhos do Diabo. Afaste tudo isso e pense em um lugar que foi feito, que foi formado, que foi estruturado pensando na família que ficou do outro lado do Atlântico. Os que chegaram aqui vieram isolados, e veio de lá o que tinha de melhor, porque a peça que foi mais cara no mundo, nada foi mais caro no mundo do que um negro ou uma negra para ser escravizada. Vieram os melhores. Primeiro, vieram reis, rainhas, princesas, porque desestruturava o lugar. Então, todos podiam vir, artesãos, ourives, o que tinha de melhor é o que veio para aqui. Quando essa gente chega aqui, completamente isolada, vão aparecendo alguns líderes, tipo uma Iá, que significa “mãe” na língua deles. Iaiá, como a gente canta hoje: “Cadê sua Iaiá, cadê sua mamãe?” Essa pessoa vai agregando outros como família, como filhos, outros mais velhos vão se agregando com pais, outras mais velhas como mães, e vai se formando a família que está na senzala, essa família que um dia resolve fugir toda para o quilombo e lá novamente se forma outra família. E a gente sabe de histórias, por exemplo, de Palmares, de que, na hora da guerra, que durava 20 minutos, escondiam todas as mulheres, todas as crianças, todos os velhos. Quer dizer, o sentido de procriar, o sentido de crescer, o sentido de ensinar ficavam guardados, escondidos, e os homens brigavam. Os que morriam, morriam, os que não morriam ficavam. E chegavam outros quilombolas, e, quando chegavam outros quilombolas, eles eram redistribuídos e iam criando novas famílias. Então, essa é a lição básica de onde surgiu essa religião, e porque surgiu essa religião, e porque os ensinamentos são iniciáticos, e porque os ensinamentos têm que servir para a vida. No momento em que eu sou feita, e a mãe diz assim: “Você é uma filha de Oxum.” E ela começa a me contar histórias de Oxum, e eu começo a ver: “A minha essência é água.” Se a minha essência é água, eu me pareço com a água, como que eu me pareço com a água? Eu me pareço com a água em todos os estados que a água está na natureza. Eu sou uma água pessoa ou uma pessoa água, alguém que pode ser tranquilo, barulhento, que corre sem parar ou que pode ser também parado como num lago, que pode sair derrubando tudo com um tsunami. Isso me faz ter uma autonomia, um jeito de pensar, e pensar assim: “Bom, eu não posso ser tão durona, a minha essência é água, e água é antes de tudo flexibilidade, ela pode tomar formas diferentes.” Foi isso que Jung aprendeu e colocou na psicologia moderna, foi isso que Edgar Morin aprendeu e hoje declara que ele aprendeu com esse povo que pensa a educação de um jeito tradicional. Esses ensinamentos são ensinados no momento que você precisa. Se você chega e não vai ser iniciado, como o sujeito que não queria ser circuncisado, você só precisa saber o que você é naquele momento. Naquele momento, você é o que? Um visitante. Como é que a gente trata uma visita? Senta na sala. Você não leva para o quarto, para a cozinha, não. Uma visita, você é uma visita, você fica ali. Agora, à medida em que você consegue, até um ano você sabe alguma coisa, três anos você sabe mais alguma coisa. Quando você faz sete anos e você tem todas as suas obrigações rituais prontas, então, você pode se tornar também um pai ou uma mãe. Você já precisa ter o domínio, um domínio razoável, porque a gente aprende, aprende, aprende a vida inteira o que é essa religião, mas tudo é passado no momento exato que você precisa, e é por isso que você aprende. Se, hoje, sua necessidade é um banho de folha, eu só vou dizer para você que você precisa desse banho e quais são as folhas que você vai tirar e macerar. Se amanhã você precisa de alguma coisa a mais, então, eu vou te ensinar essa alguma coisa a mais. É à medida que você precisa. Na escola, a criança não aprende muito, porque a gente ensina demais. Você quer que a criança aprenda História, Geografia, Ciências, Matemática, Língua Portuguesa, tudo num dia só. Você quer que a criança fique quatro horas sentada na sua frente, quando você sabe que uma criança não tem mais que 15 minutos de atenção absoluta por alguma coisa, se for de fato interessante. Você quer que ele passe quatro horas? Então, é melhor fazer como no terreiro: “Você agora só precisa disso. Eu só te dou isso.” E você vai aprender para sempre aquilo. É muito melhor do que eu te ensinar um montão de coisas, e entrar por aqui e sair por aqui.
P1 – Com certeza. E o que você acha que é importante de uma tradição oral, de uma visão de mundo mesmo? Por que a gente tem que conservá-la, incentivá-la, respeitá-la, tentar agregar mais valor?
R – Parece-me que o importante da tradição oral é, antes de tudo, o encontro. É você olhar para o outro, é você falar para o outro, é você considerar a presença do outro, a essência do outro, o olho do outro. No momento que você me escuta, eu me sinto uma pessoa importante no mundo. Eu posso não estar falando verdades absolutas, com certeza, não. Mas há uma consideração por mim. Essa consideração que eu preciso ter por cada pessoa que passa por mim, responder olhando para a pessoa. Quem conta a história, ele não olha para o lado, ele não se distrai, ele conta para você, você é importante. Ele juntou o melhor do seu saber para dar para você, ele juntou o melhor do seu acúmulo, tanto do seu patrimônio intelectual como do seu patrimônio espiritual, para dar para você naquele momento. Esse é o encontro. Ele dizia que o mundo se resume a caminhos, encontros e celebração, e se a gente pensar qual é a magia desse momento, de a gente ter caminhado, olha de quão longe eu vim, São Felipe, olha de quão longe veio a tua ancestralidade – imagina, coreana –, e, de repente, a gente está aqui diante do outro, uma diante da outra, se amando, se respeitando, se entregando. A gente está entregando o melhor que a gente tem um do outro, a atenção do outro. Isso, levado para a educação, imagine que eu vou entrar na minha sala de aula pensando nas minhas crianças ou nos educadores que eu formo como as pessoas mais importantes do mundo. É para elas que eu devo dar todo o meu acúmulo, tudo, o melhor que eu juntei em toda minha andança, para aquelas pessoas. E vai que aquelas, essas recebam com um presente esse tempo todo que eu andei, que eu estudei, que eu pensei, tudo que eu escrevi, tudo que eu li. Então, tudo isso eu juntei para cada pessoa que eu estou encontrando, porque eu encontrei também tantas outras que me deram, que qualificaram a minha presença. Educação precisa ser algo não só pensado, mas sentido. Eu agora faço um trabalho no Baixo Sul e, para chegar lá, eu tenho que atravessar o mar. E, às vezes, o motorista que vai comigo fala: “A senhora vai descer?” Eu digo: “Não, eu fico aqui.” E eu fico pensando como que eu estou me sentindo, como que eu me sinto, e se eu estiver triste, digo: “Não, mas eu tenho que dar um jeito nessa tristeza.” Então, eu me pergunto como que eu me sinto, se eu estou cansada, mas essas pessoas esperam o melhor de mim. “Como que eu me sinto? Estou insegura?” Mas, se eu estou insegura, talvez eu não deva falar disso que está me causando essa insegurança, mas falar de alguma coisa que me faça absolutamente segura com aquelas pessoas. E eu vou me perguntando: “Como eu me sinto? Como eu me sinto? Como eu me sinto? Como estou me sentindo?” Mas é sempre pensando em um jeito de reunir, porque não é à toa que eu estou viva com 65 anos. Imagina quantas vezes eu escapei de morrer. Escapei de morrer no navio negreiro, escapei de morrer no quilombo, escapei de morrer vivendo numa comunidade pobre de subúrbio com mínimas condições de saúde, de saneamento básico. Quantas vezes eu já escapei de morrer, mas eu estou viva! Mas eu estou viva e com um bocado de coisas que eu consegui ganhar de outras pessoas, que foram me ensinando às vezes tão despretensiosamente. É isso, eu acho. Eu acho que eu ainda não sei direito como fazer da minha vida um ato de educar, mas estou tentando, estou tentando.
P1 – E como foi que você começou a conhecer a Ação Griô? A sua vida, a sua luta, tudo o que você já fez está sempre muito ligado à educação, à transmissão de conhecimento, oralidade, cultura. Mas e a Ação Griô, como é que você foi chegando perto disso, ou ela foi chegando perto de você?
R – Ah, menina, foi. Eu acho que é dessas sincronicidades, porque, uma vez, uma pessoa chegou lá em casa e começou a... Uma vez, uma pessoa me falou, chegou na minha casa e falou, uma minha amiga, uma artista plástica, Lilian, falou da Ação Griô, que é uma amiga de Lilian, e aí falou de mim. E disse que eu trabalhava, que nós trabalhávamos com cultura africana, com histórias da cultura africana. E falou que nós trabalhávamos assim, aprendendo mitos com os mais velhos, mitos africanos, histórias mitológicas, e que a gente estava trabalhando valores, princípios e valores com crianças, dentro de formação de educadores. Aí, Lilian me convidou. Era no principiozinho ainda, não tinha Ação Griô, tinha Grão de Luz Griô, e eu me lembro que uma vez ele disse: “Mas, Lilian, você podia expandir esse trabalho para a Chapada.” Ela falou: “Não, não, nem pensar, não, na Chapada, não. Olha, deixa isso aqui em Lençóis que, enquanto estiver aqui, está muito bom.” Então, se encantou por ancestralidade, mas ele deve estar dando belas gargalhadas de ver Lilian correndo o Brasil todo, né? Pensando a Ação Griô Nacional. Então, hoje, eu sou completamente encantada com o sonho de Lilian, e cada vez eu fico mais feliz, e a esperança também não é esperança de esperar toda vida, mas de pensar. Eu acredito que a Ação Griô vai fazer de fato nascer uma política pública importante para o Brasil, vai nascer uma política pública onde nós vamos nos ver num Brasil cirandado, nós todos vamos nos olhar, e vamos nos respeitar, no jeito de ser de cada um, e vamos respeitar nossa criança no jeito de ser, e vamos não ensinar para essa criança, mas nós vamos fazer vivências educativas. Nós somos o penúltimo país na educação, o Estado da Bahia é o último. Então, é porque está tudo errado. E, para mudar, há de ser talvez uma grande cirurgia na educação. A educação na Bahia, não sei se em outras partes do Brasil, enviou um grupo de educadoras para Israel para aprender educação para fazer no Brasil, e eu vejo aqui a força de pessoas, do lugar, da terra, que fala do mesmo jeito que a criança. E eu vejo a criança como ela fala, como ela se comunica, como nós vimos hoje, quer dizer, é um jeito de ser natural, um jeito de ser que brota dessa terra. E eu vi no Rio de Janeiro um jeito de ser que brota da terra, que brota do jongo. E eu vi em cada lugar que a gente está indo, a gente vê um jeito de educar, de estar no mundo, que significa e que não pode ser trocado por um jeito de ser ditado por Brasília, dizer: “Tem livros que são adotados pelo MEC, recomendados pelo MEC para o Nordeste.” Um absurdo, um absurdo. Para escolher o livro para o Nordeste, tinha que ir a professora nordestina para lá, um grupo de professoras que fossem de cada uma dessas regiões e, aí sim, a gente ia escolher o que é que serve para nossa criança. Uma criança, antes de saber do Rio Tocantins, do Rio Amazonas, do Rio Paraná, ela tem que saber o São Francisco, a problemática do São Francisco, o que isso significa na Geografia, na História, nos costumes, na tradição oral, na vivência política, social, econômica desse lugar, ou de todo lugar que o Rio São Francisco molha, caminha. E acho que precisa fazer uma educação menos racional e mais poética. Eu fico contente quando eu trabalho com os trovadores, os repentistas, os cordelistas. Se a criança tem um jeito de ouvir, de ler o tempo todo o que é o cordel, por que não pode se ensinar História, Geografia, Ciência, Matemática a partir do cordel, a partir dos repentes, a partir da linguagem do lugar? Por que tem que ser a partir de uma linguagem que ela não domina, que ela nem sabe? Uma vez, foi feito um projeto chamado Gestar na minha escola do terreiro, onde falava em Alphaville, onde falava na Matemática, tinha que trocar um patinete por uma Barbie, mas a criança não sabia o que era patinete nem o que era Barbie. Falava em quarteirões, mas lá não temos quarteirões. As crianças moram nas invasões. Quarteirões? Que nem eu falo da vizinha, da rua da vizinha, é no máximo falar em transversal, mas quarteirões, o que é quarteirão? Então, a gente está ensinando para as crianças com uma linguagem inadequada, uma linguagem que não é apropriada, um conhecimento também não apropriado, um conhecimento inadequado, um conhecimento que não caminha nem para que ele aprenda nem para que ele seja. Tem um poema do Leopoldo Sédar Senghor que eu não me lembro todo, mas tem uma coisa que ele diz assim: “O negro não assimila, o negro se assimila.” Ele fala que o Descartes, ele fala: “Penso, logo existo.” Mas o negro pode dizer: “Eu danço, canto, encontro, eu sou.” E antes de a gente existir, precisa ser, porque o ser é ser um para o outro, é estar no encontro, é olhar no olho do outro. Embora a gente falando o outro escutando, mas o outro tem que fazer uma leitura total, uma leitura total do corpo, do jeito como você está. Eu penso que educar é conhecer, aliás, a palavra conhecer parece que a significação semântica é “nascer junto”. No terreiro, a gente nasce junto, a gente não se conhece, e de repente cinco pessoas nascem junto naquele lugar. Então, nascer junto não tem que ser necessariamente no terreiro. Nós hoje nascemos juntos. Eu nunca vi vocês, mas eu, com certeza, jamais vou esquecer de vocês, pelo tempo que a gente está, essa reciprocidade, de atenção que a gente está tendo. Educar não é isso que a gente está fazendo, não é isso. Acho que a gente não precisa de grandes escolas, acho que a gente precisa de uma escola que fosse do bairro, que a pessoa abrisse a porta, e todo mundo fosse entrando, como quem entra para uma casa todo dia, e que todo mundo se conhecesse, e que a merendeira girasse. Lá, na Eugênia Anna, é assim. Lá no terreiro, entrasse na sala, saísse, conversasse também, desse palpite nas coisas que estão acontecendo, sem perder de vista a necessidade formativa, a necessidade também do aprendizado, mas que não seja uma instrução, seja um aprender para a vida, né? Porque o aprender para o vestibular não está dando certo, a gente continua sendo um país deseducado. Então, não é isso, não é instrução que a gente está precisando. Eu não sei como fazer, mas eu acho que tem tanta gente pensando em outras coisas, em outro jeito que, com certeza. Eu olhava hoje o griô, o Velho Griô dançando, cantando, e olhava a postura do Guitinho, e, onde o Griô ia, o Guitinho ia também, tocando o pandeiro, e ele ia e voltava, e eles estavam juntos, não era uma coreografia, não era uma coisa ensaiada, mas um não tirava o olho do outro. Quando não era o olho, mas era o jeito, um estava atento para o corpo do outro, para onde o corpo do outro estava indo. E a gente está deixando a criança da gente ir para todo lado, e a gente não olha ele, a gente não acompanha ele com o olhar, mas um olhar de amparo. A criança está precisando ser amparada, e ela está saindo por aí afora, e a gente não sabe para onde. Se a gente não ampara, aí de repente ele recebe outras formas de amparo, que às vezes é somente dando arma para ele, que é um poder incomensurável, mas é que a gente não deu o poder de ele ser um sujeito da sua própria existência, da sua vida.
P1 – E a relação da Ação Griô com o ponto de cultura agora? O que você acha?
R – Ai, como é bom (risos)! Às vezes, nós ficamos angustiadas. Hoje, depois do almoço, eu fiquei um tempo ali sentada com a Lúcia, eu disse: “Lúcia, fica calma porque eu também estou angustiada.” Porque, se a gente não estivesse angustiada, a gente achasse que está tudo bem, com certeza a gente não estaria fazendo grande coisa. Mas essa angústia é um jeito positivo de estar no mundo, de querer acertar, e as certezas não existem (risos). E não é somente a fala. As certezas não existem, tudo é muito incerto. O que é certo para mim não é certo para Lúcia, não é certo para outra. A gente está na gangorra, mas o equilíbrio da gangorra é essa. Está desequilibrada, e eu acho que é isso que está fazendo a vida, que está dando sentido a essa caminhada, a esse encontro, e a essa celebração que nós fazemos também. A gente celebra, a gente está sempre celebrando o jeito de estar começando. Não é alguma coisa que a gente está celebrando porque a gente já sabe, já finalizou. A gente está celebrando as possibilidades, né? Nisso a gente acredita, mas acredita como caminho, sempre como caminho, acredita sempre no caminho do desconhecido. Esse desconhecido é que é instigante, excitante para a gente. A dúvida, né? A dúvida. E aí eu disse, terminei dizendo para ela, ela já estava saindo para a escola, assim: “Olha, só tem um jeito, juntar as nossas dúvidas, já que ninguém tem certeza mesmo, vamos juntar as nossas dúvidas, e quem sabe é daí que a gente pode ir encontrando caminhos que, com certeza, esse caminho a gente vai fazer com passos muito lentos mesmo, é um andar meio na corda bamba mesmo, juntando todos esses saberes. Você está atenta, é caminhar, é caminhar.” Então, o sentido com os pontos de cultura é isso: é juntar os saberes e as dúvidas, porque todos temos, todos temos. Você pode conversar com todas essas pessoas, todas têm alguma coisa, todas estão buscando.
P1 – Já estamos chegando ao fim, mas eu queria fazer mais duas perguntinhas. Uma é como você se sente sendo assessora de uma região de tantos pontos, que tem uma diversidade cultural grande. Quais são alguns desafios que você enfrenta e já enfrentou nesse tempo de trabalho junto com os pontos? E a outra: eu queria saber quais são as suas estimativas, os seus sonhos e as suas vontades para agora, para frente?
R – Os desafios são todos. Porque, veja bem, a Ação Griô não é uma ação isolada, é uma ação que ela só se efetiva com a anuência, com aquiescência, com o acolhimento da escola, com o acolhimento do instituído. Essa é uma questão delicada, quando o instituinte invade o instituído. Na verdade, a gente está pedindo licença, a gente não está invadindo, seria uma figura exagerada. A gente está pedindo licença, com a lição do Velho Griô, pedindo licença, pedindo a bênção para entrar. Mas a voz instituinte, é preciso que ela tenha um equilíbrio para não ser tragada pelo instituído, porque o instituído é o poder, é a lei. E a lei está lá. Enquanto a gente faz um diário, que é um diário afetivo das coisas que nós estamos fazendo, o que a gente pretende garantir, o que a gente pretende na caminhada, no caminho para a gente, o símbolo da Ação Griô para a gente é muito importante. Mas lá está a marca da mão, quase dizendo: “Pare por aí, pare por aí.” Porque nós temos a lei, nós temos a secretaria, as secretarias nós temos, os boletins a serem preenchidos, nós temos as notas, nós temos as provas, e essas provas são muito importantes lá para o instituído, porque é o que vai valorizar a educação, e essa valorização significa verbas. Então, precisamos de números, precisamos de números positivos. Isso é uma questão que envolve um cuidado muito grande da gente, como chegar nesse instituído sem ser uma coisa pesada. Como chegar com leveza, como chegar com delicadeza, como chegar com cuidado, como chegar acolhendo para ser acolhido. Essa dificuldade existe. Tem uma frase que a gente ouve que é incrível, assim: “Olha, nós já estamos fazendo isso há muito tempo.” Quando você ouve essa frase, significa que não é um sinal verde, é um sinal amarelo. Cuidado, porque a qualquer desequilíbrio o sinal vermelho aparece. Nós já fazemos isso, e aí nós já fazemos o quê? No meu caso, com a educação para as relações étnico-raciais, nós já vestimos crianças de orixás, nós fazemos isso na noite do folclore, as mães de santo vêm para aqui, ensinam as danças, que são noites folclóricas. E a gente morre de medo porque é um grande absurdo, isso não é para ser feito. A história africana não é isso. Na história africana, a religião é um detalhe importante, mas não é para ser feito desse jeito. O Estado é laico, se a gente faz desse jeito, a gente está também indo de encontro a católicos, a evangélicos. Não é isso que se quer. É preciso consciência histórica, é preciso saber de ancestralidade, é preciso pensar em convivência religiosa, é preciso ressignificar os ritos da escola, viver as manifestações culturais como a chave que abre a memória e a história de um povo. Essa é outra coisa. Essa é uma coisa importante, né? E os meus sonhos? Todos os sonhos. Eu sonho com uma escola que seja diferente da escola que eu tive, eu sonho com a escola que acolha a criança do jeito que ela é. Uma escola em que as escolhas pessoais da professora não impliquem educação dessas crianças, que as suas escolhas afetivas, que as suas escolhas religiosas não impliquem nenhum desastre para a criança. Que a criança seja uma criança, como uma flor que brota na frente da gente, que precisa ser regada, cuidada, ajeitada, que seja mostrando sempre para ela que existe o lado do sol, para que ela brilhe. Que ela não tenha nenhum lado escondido, que ela seja vista por inteira, que se mostre para ela, que ela seja mostrada nas suas diversas faces, nos diversos jeitos que ela está no mundo. Que ela não seja uma criança da fotografia, que tem o pai, a mãe e o filho, que ela não seja uma criança fotográfica, mas uma criança que está no mundo, que às vezes ela muda de pai, ela muda de mãe, ela muda de família, ela muda de religião, ela muda de jeito de ser no mundo e que a gente tem que estar sempre amparando. Amparando essas pessoas, esses jovens, essas crianças. Meu sonho é que isso não seja só responsabilidade da gente, educador, mas uma responsabilidade do poder público, das políticas públicas. Uma professora, para trabalhar dois turnos, ela tem que deixar o filho dela em casa. Uma empregada doméstica ganha um salário mínimo, a professora ganha pouco mais que um salário mínimo. Como ela vai ter paz para trabalhar? Como ela vai ter paz para cuidar do filho do outro, se o filho dela não está sendo cuidado? Como ela vai ensinar, como ela vai cuidar dessa criança que está na escola se a perspectiva do filho dela acaba ali? Ela tem quase consciência que o filho dela não vai passar no vestibular nunca. Algumas exceções, mas a grande maioria não. Eu tenho a esperança de esperar, num futuro próximo, que a escola pública seja o lugar, aí sim, eu como uma professora do ensino fundamental, eu posso fazer bem feito porque eu sei que a minha criança, o meu filho, também dali por diante, vai ter um primeiro grau, um segundo grau, um terceiro grau bonito, vitorioso. É preciso que essa professora que está aqui na ponta tenha essa esperança. É imprescindível que ela tenha essa esperança. Então, o poder público vai ter que garantir à professora do ensino fundamental que o filho dela também vai ter. Acho que essa é uma grande questão. Acho que talvez o professor ainda nem tenha pensado nisso. Se não pensou, graças a Deus, porque assim ele vai. Ele não pensa nesse desastre que está sendo a perspectiva da educação, se a gente não marchar para uma virada mesmo. É uma revolução amorosa, irresponsável. Eu sinto que isso tem que entrar na cabeça de quem dirige esse país porque, senão, o país vai ficar inviável, seja para quem for. Se essa juventude que está aí não se formar, criar uma forma cidadã, o que é que vai ser de todo mundo? Porque a marginalidade atinge a todos. A marginalidade atinge a todos, não somente quem está na marginalidade. A gente começa a se trancar, a ter medo de tudo e de todos. Então, não é esse pequeno grupo que detêm todo o poder, toda a riqueza desse país, que vai dar o equilíbrio para esse paisão que está por aí, precisando ser educado. Naturalmente que precisa se pensar uma educação com saúde, com cultura, com meios econômicos, e não é com uma bolsa aqui, com uma bolsa ali, não é com um pró-jovem aqui, um pró-jovem ali que a gente vai resolver. Formar esse país é uma missão de todos. E a gente está vendo uma coisa significativa. Olha quem está na Ação Griô, olha quem está educando! Gente, isso é uma coisa significativa demais. Isso é o país dizendo: “Se vocês não estão sabendo educar meus filhos, somos nós mesmos que vamos fazer essa educação, somos nós mesmos que vamos cantar, dançar, brincar e pensar nesses sujeitos como solidários, como coletivos, como gente que pode pensar com autonomia, como gente que está disposta a caminhar, caminhar até rasgar as sandálias, mas caminhar para encontrar uma coisa que a gente não sabe o que é, mas deve ser um lugar que não tenha tanta fome e tanto medo.” Eu acho que a gente tem dois inimigos nesse momento que a gente precisa se libertar: da fome, e que inclui essa forma de saber, essa fome de viver junto, essa fome de ser livre. A gente precisa se libertar dessa fome. Essa fome não vai sumir com uma sacola. Essa fome precisa de muito mais, precisa de coragem e precisa da gente pensar nessa imensidão de gente que a gente encontra pela rua, não é só nas escolas, que está pela rua, que não está vivendo, que não tem esperança. A gente precisa se livrar do medo e da fome.
P1 – Pelo Museu da Pessoa, eu queria agradecer muito, e muito mais ainda. Obrigada.
R – Eu agradeço também.Recolher