P/1 – Boa tarde dona Nancy, eu gostaria...
R – Sissi.
P/1 – Ah, sim, Sissi, então tá bom. (risos) Boa tarde, dona Sissi, eu gostaria que a senhora, pra iniciar, eu queria que novamente a senhora falasse o nome, local e data de seu nascimento.
R – Meu nome é Nancy de Souza, eu tenho o a...Continuar leitura
P/1 – Boa tarde dona Nancy, eu gostaria...
R – Sissi.
P/1 – Ah, sim, Sissi, então tá bom. (risos) Boa tarde, dona Sissi, eu gostaria que a senhora, pra iniciar, eu queria que novamente a senhora falasse o nome, local e data de seu nascimento.
R – Meu nome é Nancy de Souza, eu tenho o apelido de Sissi, como todo mundo me conhece, eu nasci em 2 de novembro 1939 no Rio de Janeiro, eu moro atualmente na Alameda das Américas, segunda travessa, número 8 casa 11.
P/1 – Em Salvador...
R – É, chama-se, o local, Engenho Velho de Brotas, em Salvador, porque é um local bastante cheio de causos, cheio de histórias e lá tinha dois engenhos. Um era o engenho velho da federação, do lado direito de quem vai e o outro era o Engenho Velho de Brotas, do lado esquerdo de quem vai, né, ou sobe para o centro, e eu tô bem próxima da casa onde viveu Castro Alves, que chama-se Solar Boa Vista.
P/1 – Me diz uma coisa, dona Sissi, eu queria que a senhora me dissesse agora a profissão de seus pais e os nomes deles.
R – Meu pai chamava-se Ademar de Souza e Silva, era (correieiro?), porém ele tinha como profissão oficial sapateiro e minha mãe sempre foi dona de casa desde pequenininha, nem sei se dá... Eu não quero nem que ela escute isso, que ela assista em algum momento, porque a minha mãe, o pai dela era espanhol, minha avó muito negra e ela não foi aceita na comunidade dela porque ela nasceu com a pele clara, muito clara, olhos castanhos claros, então ela teve que ser entregue a uma família pra que cuidassem dela, então ela sempre trabalhou desde pequenininha, não é, então levou toda vida até um certo tempo, depois que ela se tornou comerciante daquilo que ela aprendeu, se tornou comerciante, depois não teve mais necessidade de ser comerciante.
P/1 – E ela nasceu aonde...
R – Ela nasceu, na época dela, na localidade no interior do Rio de Janeiro chamado Rocha Leão.
P/1 – E eu queria que a senhora falasse um pouquinho da sua infância, onde a senhora morou, como eram os costumes do seu dia a dia enquanto criança...
R – Bem a minha infância foi muito feliz, pra idade que eu tenho hoje, eu fui uma criança que tive todos os brinquedos que vocês possam imaginar, meu pai sempre trabalhando e minha mãe também, eu considero uma mulher, pra idade dela hoje, uma feminista porque ela ia trabalhar, pra trabalhar, eu ficava em casa com minha irmã. Então eu fui feliz porque eu tive todos os brinquedos que você possam imaginar, e eu tive coisas na minha vida, por exemplo, eu tive uma tia que era governanta de uma família alemã, essa família eu lembro que morava em Santa Tereza, um bairro que tem no Rio e se eu quisesse alguma coisa tinha que pedir em alemão e eu aprendi. Em 46 eu vou pra escola e eu falava as 2 línguas, então eu tinha que esquecer o alemão pra falar português e é cheia de aventuras a minha vida. E eu lembro, em pleno a guerra, eu fiz aniversário, é uma coisa muito forte na minha vida, eu fiz aniversário e meu disse: "Eu não vou te dar um bom presente porque nós estamos em guerra, mas vamos na sapataria", e comprou uma coisa pra mim que poucas pessoas tinham, sapato de verniz que chamava-se boneca, hoje, então eu tinha um sapato boneca, eu tinha, eu fui criança que tinha luvas, fui criança que tinha chapéu, fui criança que tinha conjunto de argola com colar igual, então eu fui uma criança muito feliz. Eu tive... Uma das coisas mais interessantes na minha infância, eu tinha a primeira boneca que a estrela fez que tomava mamadeira e fazia xixi, primeira boneca, eu tive… Eu tinha uma bonequinha de corda, alemã, lembrança de minha mãe alemã, era uma, eu chamava ela Mutter Meiner, então a gente dava corda na boneca, a boneca tinha espelho e um “blushezinho”, aí quando dava corda ela fazia assim... No rosto. Então o primeiro livro de história que eu ganhei chamava–se Pinóquio, uma tia minha chamada Leni me deu o Pinóquio, eu não gostei muito porque o livro era grande e grosso e criança é preguiçoso, quer brincar, né, ainda mais que eu tinha todo tipo de brinquedo, graças a Deus. Então essa infância muito feliz que eu tive, ela me deu muitas forças quando eu me tornei adulta e passei as adversidades da vida, eu tive muita força com isso, porque a minha infância foi feliz.
P/1 – E voltando um pouquinho, que é assim, a senhora comentou um pouco da sua mãe que ela era filha de espanhol com... Aí a senhora disse que ela não era muito aceita na comunidade dela e ela foi criada por uma outra família?
R – Foi, foi!
R – E essa outra família da onde era?
R – Essa família era de uma cidade chamada, que chama-se Macaé e ela conta que ela foi ser que ao tempo dela chama-se ama seca. Ela ia brincar com crianças, brincava com crianças... E essa família criou minha mãe, colocou na escola, tudo direitinho, depois, quando ela tornou-se adulta, ela não quis mais ficar lá, ela foi ser empregada de uma senhora chamada Maria Eduarda (Malais?), não, Maria Eduarda de Souza Botelho que era a tia e mãe que criou o meu pai. Aí essa minha tia, ela tinha uma pensão que botava estudantes e a minha mãe conta que ela tinha 42 inquilinos, um grande casarão, aí ela já morava no Rio de Janeiro e a minha avó, ela sempre, em todas cidades em que ela viveu ela fazia logo, alugava logo uma grande casa e tinha esse trabalho de pensão, então ela tinha muitas pessoas e ela também tinha o hábito de adotar crianças e sempre tinha empregadas que era pra cuidar das crianças e mais adiante eu contarei uma dessas histórias que contaram pra papai e a mesma que contaram pra papai, papai contou pra mim.
P/1 – E ela foi trabalhar nessa pensão quando ela...
R – Foi ser empregada da minha avó.
P/1 – E aí foi quando ela conheceu o seu pai, que ele gostou dela, agora ele era diferente dela porque ele não gostava de estudar, ele não gostava, então contam que ele era terrível, como a minha família viajava muito, a família do meu pai, no caso ele era muito... É o seguinte, a mãe dele morreu quando ele nasceu e ele criou-se uma criança muito revoltada, então contam que a minha avó, eles eram militares, estavam sempre de cidade em cidade, então quando chegava essa família eles diziam logo: "Cuidado que tem um menino que tem apelido Dedê, que é perigoso". Então as pessoas ficavam logo de má vontade com minha avó e doida pra que ele se retirasse da cidade porque numa dessas vezes meu pai não pode entrar no circo porque sabiam que ele era muito pintão, aí ele foi, diz que ele botou fogo, assim na lona do circo, embaixo, foi uma coisa horrível, então ele aprontava, meu pai era “aprontador”, mas quando ele se tornou adulto foi bem diferente, aí sabe o que minha vó fez com ele? Entregou ele a um senhor italiano: "Já que você não quer escola, você vai ser alguém, você vai aprender a fazer alguma coisa" Foi quando ele aprendeu a ser sapateiro e trabalhar com toda arte do couro.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente, dona Sissi, como os dois se conheceram, eu queria que a senhora falasse um pouco desse encontro dos dois, se a senhora sabe alguma coisa...
R – Olha, é muito interessante, porque a minha mãe, nem meu pai não eram de falar essas coisas, eu vou lhe dizer o porquê. Porque a minha mãe sempre trabalhou, ela pro lado dela, com a pensão dela e ele fazendo os sapatos dele. Então a mamãe nunca gostou dessas histórias. A minha mãe, ela é muito interessante, ela vai fazer 92 anos, agora dia 20 de dezembro e há dois anos atrás ela estava com 89 anos, eu cheguei pra minha mãe e: “Ei, mãe, a senhora lembra de uma dança chamada lundum?” Imagina a senhora, heim, eu com 56 anos, minha mãe com 89 anos... Eu disse: “Mamãe, a senhora conhece uma dança chamada lundum?” Mamãe disse: "Me lembro sim, de quando era criança". Eu digo: “Mãe, como é que era que dançava?” Eu nunca tinha visto minha mãe dançar na minha vida, eu tinha ouvido mamãe cantar, mas dançar não. Aí minha mãe dançou, eu não sabia que minha mãe tinha o corpo tão bonito pra dança... Depois sabe o que foi que ela disse? “Hum, que maluquice é essa de negócio de escravo!" E virou as costas, eu não consegui tirar mais nada dela.
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – Ela dizia, é a forma da qual ela foi criada, que ela não foi criada com a comunidade dela, entende, ela adquiriu toda a cultura da comunidade da qual ela foi criada, da dela era visto como uma coisa pejorativa e ela é um pouco difícil pra essas coisas...
P/2 – Mas ela sabia dançar o lundum?
R – Sabia, mas bonito, viu, porque o lundum era uma dança de escravos, quer dizer, o escravo dançava imitando a corte, sim imitando a corte, mas a negra, por o corpo diferente, os brancos olhavam, sem uma discriminação que eu sou contra qualquer tipo, eles olhavam, assim, e não gostavam porque, principalmente a sinhá, porque o jeito da negra ia ser muito sensual, né, porque... Você conhecem o minueto? Todo mundo aqui sabe como se dança o minueto, um grupo pra lá e outro pra cá, e a negra imitava, mas quando ela ia pro lado do negro, ela ia toda se acabando, né, aí quando Gracinha via aquilo, ela ficava danada com aquilo e mamãe quando era criança ela deve ter visto, eu nunca vi lundum e eu disse… Eu sei que eu trabalho com muita gente que faz dança, muitos pesquisadores, então eu perguntei por curiosidade à mamãe, pela primeira vez eu vi, mas ela não quer saber de nada que se refere a escravo, a negro e a essas histórias, eu sim, eu gosto.
P/1 – E dona Sissi, conta um pouquinho, a senhora falou que tinha uma tia que trabalhava numa família alemã. Como que era essa convivência? A senhora ia pra lá, porque a senhora aprendeu alemão também, né, eu queria que a senhora contasse um pouquinho de como era essa...
R – Como era? Era o seguinte, porque a minha mãe também trabalhava fora, então às vezes a minha tia me levava, eu ia junto, e ela tinha dois filhos, o menino chamava-se Piter, quer dizer, a pronúncia alemã é Piter, o nome aqui chamam Piter e outra é Johanan, não é, eram meus irmãos de coração e ela chamava Mutter Meiner, que dizer mamãe, agora o marido eu chamava Herr Meiner, ele não era muito, eu me lembro bem, ele não fazia muita graça comigo, quem fazia mais era ela. Então foi muito bom essa época, então a primeira coisa que eu aprendi a falar em alemão foi apfel, que é maçã, se eu quisesse maçã ela me mostrava maçã, mas se eu não dissesse apfel, ela não me dava. (risos)
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – Se eu quisesse água eu tinha que pedir: ___ ___ ___, dizendo: “Mamãe, água, por favor”, entendeu? Algumas coisas eu fui aprendendo porque, com eles, é o que eu me lembro, com eles nós brincávamos muito. Eu lembro que de Santa Teresa foi-se para um bairro que chamava-se... Perto de uma rua, próximo à Praça Sáenz Peña, ainda há poucos anos eu passei lá, uns dois anos, e a casa estava lá, aí eu contei tudo como era dentro da casa à época que eu vivi lá... Quando ela estava na Alemanha, eu nunca sei o porquê ela não ficou. Tinha um piano de cauda e eu desafinava muito esse piano porque eu levantava o pano, abria e começava tocar e eu me lembro que a minha tia, isso me traumatizou muito, levou o sobrinho dela, levou dois sobrinhos, um chamava-se, acho que chama ainda, Haroldo e o outro chamava-se Aris e então a gente não podia subir para o segundo andar, só podia ficar embaixo e então nós subimos e começamos com aquela sinfonia de desafinar piano, então uma das pessoas que tomava conta da casa, porque a minha tia era governanta, mas tinha uma moça que era responsável pela limpeza da casa, ela foi e se escondeu atrás da cortina e na hora que a gente estava fazendo a sinfonia, ela foi atrás da cortina e foi fazendo assim (barulho) lá era escuro, então nós nos assustamos e descemos e caímos da escada onde Aris ficou sem falar por muito tempo e isso ficou muito forte na minha vida, nas nossas brincadeiras, ele perdeu a fala, mas teve momentos quando eu tinha a Mutter Meiner, eu era muito feliz. Um rosto que guardo também até hoje.
P/1 – Eu queria que a senhora começasse contar um pouquinho pra gente qual eram as brincadeiras que a senhora tinha nessa época, as cantigas que a senhora aprendeu nessa época...
R – Tinha às vezes aquela história: menina brinca com menina, menino brinca com menino. Tinha o anel, a brincadeira do anel, as meninas sentavam todas, né, tinha uma que ficava na cadeira, lá, e um grupo de quatro aqui, suponhamos, aí todo mundo botava a mão, aí vinha a chefe, a mestra da brincadeira com as mãos e numa daquelas mãos colocava o anel, e aí perguntava pra outra: "Com quem está o anel?" Aí ela olhava, a mestra olhando pro rosto de todo mundo porque não podia dar o sinal qualquer, aí a pessoa dizia: "Está com fulano", aí se estivesse com aquela pessoa, ela sairia do banco e a que estava com o anel ia e sempre a mesma coisa até passar todos. Tinha também a berlinda, não sei se vocês conhecem... Berlinda era uma brincadeira que a gente botava no banco, então a gente pegava____ aí quando terminava ela dizia, a mestra dizia: "Maria tá na berlinda..." Aí ia dizendo… Uma pessoa diz porque ela é antipática, a outra pessoa diz que é porque ela é amiga, a outra pessoa disse que é porque ela é bonita, aí aquela da berlinda escolhia o que lhe agradou mais, então ela dizia: "Quem disse que eu estou na berlinda porque eu sou bonita?" Aí a a menina se levantava, ela passava pra berlinda e ela voltava. Tinha também passaralho.
P/1 – O que era passaralho?
R – Passaralho, faz uma fila de meninos, aí bota a mão assim, um de lá e outro de cá, aí a gente canta: “Passaralho, passaralho se me deixes eu passar, se não for o da frente há de ser o de trás, trás, trás, trás, trás, trás, se o derradeiro não passasse ligeiro a gente pegava ele…”
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – Aí ele ia pra trás até passarem todos, esse é o passaralho. Tinha também, quer ver roda, a tinha roda aí... Deixa eu ver, deixa eu lembrar bem desta... Essa a gente fazia uma roda bem grande e não segura as mãos forte não, viu, o segredo é segurar a mão forte, mas sabia-se que tinha que segurar a mão de leve, a gente cantava: “Tango, tango, tango maninha é de carrapicho, vou botar fulana na lata do lixo” Chegava, empurrava ela ia pro meio da roda, daí de novo: “Tango, tango, tango maninha é de carrapicho, vou botar fulana na lata do lixo”. E empurrava outra. No final, aquele que estava sozinho, só sobravam, ele e todo mundo juntinho cantando: “Tango, tango, tango maninha é de carrapicho, vou botar fulano é na lata do lixo”, aí todos se abraçavam e cantavam: “Tango, tango, tango maninha – todos abraçados – é de carrapicho, já saímos todos da lata do lixo!”.
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – Ah, tinha, tinha muita brincadeira, tinha, deixa eu ver… “O pião entrou na roda, o pião – botava uma menina – o pião entrou na roda, o pião, o pião entrou na roda, o pião”. A menina do meio: "Roda pião, bambeia pião, roda pião, bambeia pião, afina a sua cintura ô pião, afina a sua cintura ô pião roda pião, bambeia pião, roda pião, bambeia no chão. Sapateia no tijolo, ô pião, sapateia no tijolo, ô pião, roda pião, bambeia pião, roda pião, bambeia no chão..." Tinha, enfim, tinha ciranda e tem uma que é muito curiosa, essa existe na Alemanha e me perguntaram onde eu aprendi, eu disse: “A minha mãe, mamãe mesmo, conhece essa cantiga”. É assim... Me parece que ela vem daquela história de... A Bela Adormecida, é uma cantiga assim, deixa eu ver, como eu lembro, meu Deus, um pedaço dela diz assim: “A bela Rosa juvenil, juvenil, juvenil, a bela Rosa juvenil, juvenil. Vivia alegre num solar, num solar, num solar, vivia alegre num solar, num solar. Onde uma feiticeira má, muito má, muito má. Onde uma feiticeira má, muito má, muito má. Adormeceu a Rosa assim, bem assim, bem assim, adormeceu a Rosa assim. O mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor, o mato cresceu ao redor, ao redor . O tempo correu a passar, a passar, a passar, o tempo correu a passar, a passar. Um dia veio um belo rei, belo rei, belo rei, um dia veio um belo rei, belo rei. E despertou a Rosa assim, smach, bem assim, bem assim, smach, e despertou a Rosa assim, smach, bem assim, smach…”
P/1 – (risos)
P/2 – Que lindo! (risos)
R – E muitas outras...
P/1 – Dona Sissi, conta um pouquinho que escola que a senhora estudou, como que a senhora foi pra escola e conta um pouquinho como que era na escola.
R – Bem, eu fui pra escola por força da pessoa, de Mutter Meiner querer ir pra Alemanha e me levar, aí mamãe disse: "Se a senhora fica no Brasil, ela fica, mas pra senhora levar eu não deixo", aí eu fiquei com ela até as vésperas de ir embora e voltei pra minha casa, então em 1946, me parece, ou 45, eu não me lembro... Acho que 46 eu fui estudar numa escola chamada Escola Francisco Cabrita e a minha primeira professora chamava-se dona Célia, era muito meiga, mas quando eu fui pra escola eu já sabia ler, que eu já tinha aprendido a ler e a contar...
P/1 – Quem ensinou pra senhora?
R – Mamãe, mamãe, eu já sabia ler e escrever e nesse ano quando eu passei pro segundo ano primário, eu recebi um livro que infelizmente eu não consigo lembrar a história toda, a história da formiguinha, o meu era fininho, a formiguinha que sempre perguntava até ela chegar a Deus, então quando ela chega a Deus ela entende a vida, isso eu tinha de sete pra oito anos quando eu ganhei.
P/1 – A senhora não lembra o nome do livro...
R – A formiguinha.
P/1 – Ah, A formiguinha. E como era essa escola dona...
R – Ah, era uma escola antiga que tinha dois andares, a primeira parte da escola muito grande, o nome da rua é Avenida Melo Matos, na Tijuca e no fundo tinha, então, várias salas, várias salas, tinha um grande refeitório, tinha um grande pátio, tinha muita fruta, mas não podia pegar nenhuma, não se tocava em nenhuma. Foi boa a escola, mas quando eu mudei de professora, ai, ai... Eu não queria passar de ano pra não deixar a professora, problema...
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – Aí ela disse: "Mas se você passar eu vou estar com você." Mas que nada... Eu passei e ela continuou com a turma dela e dali a gente vai crescendo, vai passando por tantas histórias, né, tantas histórias, mas parece que eu comecei mesmo a que a vida não era aquilo a partir da escola, quando eu queria ficar com a professora, eu gostava muito dela, aí disse: "Não, você vai passar pra outra turma, vai passar de ano, mas você vai passar..." Eu disse: “A senhora vai comigo?” "Claro que eu vou." Aí começou as decepções, mas eu já sei que era uma coisa importante, hoje eu sei que quem labuta com criança, o que é a pessoa que a criança faz uma imagem, né, então eu tenho muitas crianças hoje, mas elas criam vínculos e o pior também e que a gente também cria vínculos com eles, é muito triste, é muito triste... Quando criou vínculos, nós temos lá na Fundação Pierre Verger 150 crianças e se faltar um, ah, eu fico mal, fico mal, como me faz falta aquela criança, e cada um com problema pior que o outro, então eu vejo que esse primeiro problema pra mim, essa primeira decepção já foi pra me fortalecer pro resto da vida, nem sempre a gente vai ter toda a vida aquele que a gente quer ali junto, né?
P/1 – E como é que foi? A senhora continuou estudando nessa escolas...
R – Não, ali só estudava até a quinta série, depois a senhora ia fazer quatro anos de ginásio, depois de quatro anos de ginásio fazia os três de clássico ou científico pra depois ir lutar na vida.
P/1 – E a senhora escolheu fazer o clássico ou o científico?
R – Não, foi o clássico porque eu queria sociologia e eu nunca fui muito boa de matemática, de física, de biologia... Sempre nas minhas aulas de biologia eu começava fazer os desenhos, eu começava estudar sempre descobria uma coisa mais que a ciência não conhecia, sempre. Ó, tem um negócio a mais… “Mas criatura, como você achou isso?" Eu não sei que eu fiz uma coisa aqui e nasceu mais um... E era esse problema o tempo todo, entendeu, então eu disse: “Olha, eu tenho dom um pouquinho pra língua”... Eu cheguei a um ponto na minha vida, quando eu estudava no Calabouço, eu dominava, essa época eu fui trabalhar num colégio numa escola chamada Júlia Kubitschek, naquele tempo era escola normal, e eu já tinha facilidade, naquela época, hoje não, tinha países que se eu fosse eu não ia me perder, eu nunca fui boa de inglês, mas francês, italiano, espanhol. Hoje o alemão pra mim é uma língua familiar, mas que eu não me dedico, porém eu disse: “Eu vou fazer um desafio”, eu já estava no Calabouço estudando, onde tinha um menino, um jovem na escola normal que ia fazer naquela época, chamava-se Itamaraty, diplomata e ele já dominava várias línguas, eu disse, eu olhei assim, vi o menino no intervalo com um monte de livros, aí eu vi um com uma letra muito interessante, eu digo, chamei ele e disse... Olhei, olhei e disse, o nome dele é Alexandre: “Alexandre, venha cá, isso daí não é grego…” Ele disse: "Não, é cirílico, é russo." Eu disse: “Então você vai me ensinar”, vocês acreditam que eu aprendi russo?
P/2 – É...
P/1 Olha...
R – Hoje, infelizmente eu não consigo mais ler porque eu perdi o valor da letra, a letra escrita, de imprensa e uma, a dificuldade está no manuscrito. Eu lia, eu li uma revista chamada (Ganioque?)___ aquele tempo, então eu não tinha dificuldade, agora eu sempre fui fechada para o inglês, eu nunca consegui nada, eu só sei fazer: “Hi!” e nada mais (risos)
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – E fiquei, há pouco tempo, a minha vida... Sim, faça uma pergunta antes de chegar esse ponto...
P/1 – (risos)
R – Enfim, como se diz, eu conseguia dominar esses idiomas, mas com o negócio da revolução, eu fiquei de um jeito que eu queria estudar, mas não podia, não podia, sempre tinha uma coisa que acontecia que tinha que sair correndo prum lado, correndo pro outro e a minha família começou ficar apreensiva: "Olha, se acontecer alguma coisa com você eu não posso fazer nada". Foi uma época terrível, a pior época pra mim na minha vida foi essas, e toda minha geração que passou por isso deve ter a mesma história, alguns conseguiram superar, outros não conseguiram e outros ficaram no caminho e eu então tive problemas na minha vida e eu não conseguia trabalhar, não conseguia nada, porque eu não consegui me formar, não consegui entrar numa universidade, isso pra mim era um problema sério. Foi quando me surgiu, eu fiz uns cursos aí, e fui trabalhar na escola que eu falei anteriormente na parte administrativa, voltei a estudar um pouco de línguas depois eu perdi meu pai, fiquei muito doente, entrei em depressão e vim finalmente embora pra Bahia, que eu tinha parentes aqui, e fiz minha iniciação no candomblé e tô aqui até hoje. Vivi pouco tempo no Rio, meu cabelo ficou branco aqui. Não posso dizer que eu quero morrer aqui pra não magoar algumas pessoas, mas aqui acabei de encontrar o lado que me faltava, porque a gente nunca sabe, a gente sabe onde nasce, mas não sabe onde morre, ninguém sabe, só Deus, né, porque cada um tem seu destino e o destino tem me ensinado toda hora. Então a partir da minha iniciação em candomblé, a minha vida mudou totalmente.
P/1 – Por que dona Sissi?
R – Porque muda, né, como em qualquer religião você, se você não é de uma religião, que eu digo, mater mesmo, que você não vai conhecer outra e que vai ficar dentro daquela, você vai ter todas as características dela, mas quando você começa a sair, achar que seu caminho não é aquele, não é que tenha saído, mas você vai ver, conhecer outras coisas, hoje em dia minha família toda é protestante, todo mundo é protestante, mas eu não sou, eu respeito eles, eles me respeitam, eles me respeitam e eu, através da minha religiosidade, aprendi muita coisa, através de meu conhecimento com Pierre Verger eu aprendi muito mais, entendeu, então uma das coisas mais interessantes da minha vida foi conhecer, entender as pessoas: porque ela é assim, ela é assada, porque uns têm isso, outros têm aquilo, outros não têm nada, por que um tem o toque de Midas, toca o dedo e tudo se transforma em ouro, outro arrocha, arrocha, arrocha e não consegue... Então hoje eu fui aprender tudo isso, depois que a gente entende um pouco a vida é bem melhor da senhora carregar, entendeu, então tudo eu fui aprender depois que eu fiz iniciação no dentro do candomblé.
P/1 – E por que a senhora começou fazer iniciação, por que a senhora foi procurar o candomblé?
R – Bem, eu fui procurar o candomblé, porque aí é muito duro de falar, eu já falei pra todos estrangeiros, pra brasileiro é a primeira vez... De estrangeiro eu sou tese de muitas pessoas em muitos sentidos, mas é o seguinte: o meu pai, quando ele faleceu, ele teve arteriosclerose múltipla de último grau e ele não podia comer praticamente nada e uma das coisas que ele comeu fez muito mal, então ele passou a viver com uma sonda e numa das noites que ele estava num estado muito terrível, eu estava tomando conta dele. Ele conseguiu tirar a mão de uma argola de algodão, que segurava a mão dele, e a primeira coisa que ele fez foi puxar a sonda do estômago, era a noite que eu estava tomando conta dele. Aí o meu subconsciente, o meu sexto sentido, não sei dizer qual dos dois me alertou e eu fiz assim, quando eu fiz assim que cena, dizem que eu vi uma cena maior do que foi real, daí eu comecei a gritar, daí minha família levou meu pai, chamou, botou no carro, levou meu pai pro hospital e eu todo dia, no outro dia meu pai não voltou, meu pai não volta, que meu pai tem... Ele está bem, botou a sonda no lugar, mas não voltava, mas o choque que eu tomei foi muito grande, muitos dias sem dormir, muito cansada e finalmente ele foi embora, no dia que ele tinha que ir, e dias depois eu tinha a impressão que eu olhava pros lugares e ele estava em pé me olhando, mas isso me levou a um estado terrível, eu comecei a tomar remédio, fui pra psiquiatria, fui pra isso, fui pra aquilo e sempre aquela visão, eu olhando aquela visão e eu disse: “Ah, eu tenho que procurar uma coisa!” Ia pra igreja e a igreja não deu certo... Aí, eu tava tão mal no centro do Rio de Janeiro que um carro quase me pegou quando uma mão muito forte me segurou e me botou pra lá, e aí quando eu olhei assim, era um monge do Ceilão. Vocês conhecem esse povo, sabe a cor da pele como eles são? Eles têm uma pele escura, dá licença, um cabelo, a cabeça toda raspada e ele só usa, eu vou botar aqui que eu sinto frio à toa, eu estranhei aquela fisionomia, aquele rosto, aquela roupa cor de laranja... Ele falava inglês misturado com português... Olha gente, eu estava num estado tão mal, tão mal, que tinha um edifício no rio, lá na Praça Tiradentes chamado Ducal, no 12º andar, é onde o elevador ia, tinha a última parte, que a gente podia dizer o 13º era onde havia um telheiro e ali era o templo zen budista. Ele me levou até lá, e eu toda daquele jeito, mas me lembro bem, ele me mostrou dois figuras, ele disse assim: Siddhartha, Jesus. Brama, Deus. E eu comecei fazer, então, meditação. Eu fazia meditação, eu fechava os olhos e não sei pra onde eu ia, aí aprendi a fechar os olhos e me desligar das coisas, aí um dia, não sei se dá pra ver, não dá mais pra ver uma marca por aqui no meu braço, eu disse: "Você não sente nada?" Eu disse: “Não.” "Então como você faz isso?" Eu disse: “Não sei.” Eu vou pensar numa coisa, aí quando eu tô assim, eu disse um mantra e fiquei em silêncio e aí pegaram o isqueiro e colocaram aqui no meu braço aceso, eu senti um cheiro, hoje eu não tenho por motivo de doença, um cheiro de pelo queimando, só cheiro de pelo queimado, mas dor, nenhuma...
(pausa)
P/1 – Dona Nancy de Souza...
R – Então eu passei, entre aspas, a ser zen budista, mas a visão, ela continuava, aí eu disse: “Eu que não vou mais nesse templo, eu quero deixar de vê-lo, eu não quero ver essa figura do meu pai!” Aí, minha senhora, quando eu achava que eu estava vindo, num determinado local eu comecei a atirar coisas em cima, aí quebrei tudo da minha mãe, aí foi de fato para a psiquiatria, para psicólogo, tomando todo o tipo de remédio, fiquei num estado terrível! Foi quando alguém disse: "Ela não tem doença, tem que tratar era de outra forma." Aí, contra a vontade de minha mãe, eu tive me iniciar, foi quando Balbino da União de Paula, Obaraí João Ilê Axé Opó Afonjá, passou no Rio e teve a coragem de me trazer, para me iniciar, então o que foi que aconteceu? O meu pai pequeno que é médico disse: "Olha, ela vai quebrar a sua roça de candomblé todinha, quando ela procurar o remédio deve não achar, você não vai ficar com nada certo lá." Aí deu uma documentação dizendo dos meus problemas, não é, o nome real da minha doença, as receitas e disse: "Qualquer coisa eu vou buscar." Que é meu pai pequeno: "Eu vou buscar." Mas, não foi assim que, por um processo todo especial que eu não posso falar aqui, eu fiz orixá e quando acordei eu era outra pessoa. Foi essa pessoa que vocês estão vendo aqui na sua frente, tranquila, calma, entendeu, mas o que foi? Foi a transformação da qual quando há necessidade acontece porque não se faz por ser interessante se faz na real necessidade e graças a Deus comigo deu certo.
P/1 – E a senhora tinha quantos anos dona Sissi?
R – Tinha 30.
P/1 – E aí a senhora ficou na Bahia, ficou morando em Salvador?
R – Eu vim antes, de vez em quando eu vinha porque eu tinha uns parentes que moravam aqui, que não, em Salvador, num lugar que se chama Baixa do Bonfim para distrair a cabeça, mas quando fiz o meu orixá... Não, eu fiz Santo aqui, voltei fiquei lá um ano e vim embora, não conseguia ficar no Rio de Janeiro por isso eu vivo mais aqui do que vive lá, se for contar os anos que eu já vinha e que eu vivo hoje, depois que eu fiz orixá levei praticamente 20 anos sem ir ao Rio de Janeiro, falava pelo telefone, conversava e tudo, mas a minha vida se transformou. Eu queria um trabalho, fui trabalhar, fui ser, como se chama, aqui, chama cobradora de ônibus e ali comecei a passar por muitas histórias, muitas experiências, conviver com muitos tipos de pessoas, conhecer todas as reações, entende, e o motivo da vida da pessoa, que não era o meu, né, eu não tive essa vida que eu vim ver aqui de muita fartura, tudo bom tudo bem, aí foi quando coloquei meu pé no chão realmente, entendeu, eu fui um conhecer o valor do ser humano porque antes era tudo as coisas do sul que você sabe melhor do que eu...
P/1 – Dona Nancy, a senhora disse que tem várias experiências no trabalho da senhora, que tipo de experiência que marcou a senhora de uma forma muito forte?
R – Como a senhora diz?
P/1 – A senhora disse que quando começou a trabalhar como cobradora, senhora vivenciou várias experiências...
P/2 – Histórias...
P/1 – Várias histórias.
R – Ah, muitas histórias, umas muito interessantes outras muito tristes, não é, uma das coisas que eu achava horroroso, da criação que eu tive quando a pessoa, eu cobradora de ônibus aí, o cidadão dizia: "Fulano, avisa sua mãe que eu vou dormir na casa dela hoje.” Ah, aquilo me danava, que negócio é esse... Mas a Bahia, entendeu? Uma vez eu vi uma criatura, isso já tem anos, foi pelos anos 75, eu vi uma criatura com menino no colo, eu nunca tinha visto como essas pessoas têm vários filhos de pais diversos, isso é terrível! Então eu lembro que vinha uma mal humorada, como já estava tão acostumada, já inteirada, eu disse: “Hum, hoje é dia 30, foi buscar o dinheiro do menino e o homem não deu”, aí ela entra no ônibus com o menino. Eu olhando, estou de pé assim, não estava sentado num banquinho, ela começou a andar no meio do ônibus com ônibus em movimento, aí virou para o menino, o menino assim, aí ela vira para o menino e diz assim… Pode dar nome aqui? Virou para o menino e disse: "Se segura, seu porra." Eu disse: “Êpa, você, uma mulher velha com esse pedaço de saia não está se equilibrando, como que um menino de três anos vai se equilibrar?” E disse assim: “A gente está aqui em São Cristóvão e a delegacia de polícia está ali, se você der mais um tranco no menino e xingar o menino, eu vou mandar parar o carro na delegacia.” Ela me tirou de cima abaixo e não disse mais nada. Foi aí os primeiros passos que eu fui entrando para essa realidade de mães que batem na criança sem necessidade, porque está com raiva, de crianças que passam o dia inteiro na rua... Outra coisa interessante que eu vi na avenida Vasco da Gama, antigamente tinham uma sinaleira que se vai para o Dique do Tororó, aí vai para Lapa, então eu passei observar, eu passava por ali três vezes no dia no mesmo local, tinha uma porção de jovens ali, com uma porção de crianças, quando elas viam que a sinaleira fechava, ela pegava as crianças e chegava no meio dos carros pedir esmola. Aí um dia eu prestei atenção e chamei o motorista: vamos observar uma coisa que vai acontecer ali, eu já vi duas vezes, vamos ver se é real e expliquei a ele, e foi de fato real, as crianças estavam brincando e quando a sinaleira vinha tinha uma que pegava o bebê, botava no ombro e dava uma palmada nele, aí quando dava palmada nele, ele ficava todo mole no ombro dela ali no sol, e ela pedia dinheiro porque o filho estava morrendo de febre, o bichinho todo mole, e aí quando a sinaleira fechava, ela soltava o menino e o menino começava correr e ia brincar. Isso tudo foi me amadurecendo, tudo isso foi fazendo eu entender melhor as situações, a irresponsabilidade delas, a irresponsabilidade da mãe que tem aquela filha, o não futuro das crianças, então foi muito interessante para mim quando eu não pude mais cobrar carro, tive que me aposentar porque fiquei com problema nos dois joelhos e fui trabalhar primeiramente com meu pai Fatumbi Pierre Verger, foi trabalhar com fotografia a partir de um projeto de
ngela Lühning, que é diretora da fundação Pierre Verger, e eu tive a oportunidade de trabalhar com 11 mil fotos com ele, ele tem 62 mil e se eu pudesse eu queria que ele estivesse aqui agora vivo, mas todo trabalho que eu pudesse ter com ele aprendendo, porque novamente uma outra fase da vida foi quando eu entrei naquele mundo de pessoas antigas que eu comecei identificar quem eram e outras que ele começou a me ensinar quem eram e quando eu entrei na África, eu digo: “Entrei na África com ele”, comecei a foto número um, tem o título: The Arrival, a chegada, a foto número ele começa na África pelas antigas colônias, é (Angieri?), Argélia, aí ele está assim, o navio para entrando no porto, aí ele pega a máquina dele, conforme o navio vai se aproximando de começa fotografar, a número um, ele vai para as primeiras colônias francesas. Aí ele começa a trabalhar comigo, começa a me ensinar, eu dizia: “Meu pai, como é que o senhor fazia…” Ele já era conhecido, eu já conhecia ele pelo livro d'Afriqué. Então ele era um homem, desde 46 aqui, e ele tinha os títulos do terreiro do qual eu sou neta, que é Ilê Axé Opó Afonjá. Então eu dizia assim: “Meu pai, venha cá…” A família dele, ele era de uma família burguesa, e toda sua família já tinha morrido, então o que foi que ele começou a fazer? Começou a trabalhar com fotografia e saiu da França e, ele vendia as fotos para turismo no caminho então eu comecei a primeira coisa, antes de chegar a minha natureza, eu fui aprender sobre a África do Norte, eu fui aprender sobre os Casbá, eu fui aprender sobre os Tuaregues, eu fui aprender sobre Máli, foi aprender sobre Senegal, primeiramente Argélia, toda aquela parte da África do Norte, primeira parte, África do norte, aí ele disse: "Aqui está a Ilha de Goé onde tinham forte que se botava que se botava escravos.” Aí, toda a visita, toda aquela coisa, aí eu fui sobre Tuaregues, que era Tuaregue, aí ele me mostrava a foto, eu ficava, com uma lente deste tamanho, olhando o rosto, os olhos, e aí até chegar na mistura, como é que misturavam com a cor do outro, como se aí aquele tipo um... Isso tudo eu aprendi, tudo, um já sabia identificar quando era um túmulo no deserto, quando era um casbá, tudo, aquela coisa é impressionante, aquela vida... Tem uma coisa importante que quando a gente está na África do Norte, ele conta, uma noite de Natal viu chegar a cinco mil camelos trazendo sal, ele nunca tinha visto aquilo e coisas para trocarem cinco mil em Níger, e aquela gente, e aquelas mulheres... O camelo chega com sede. Gente, aquelas mulheres com os braços fininhos, aquela pele toda queimada do deserto, ninguém sabe de cor ela tem... A foto, com o cabelo em pé, ela segura aqui e vai abaixa o camelo devargazinho para ele beber água, aquelas crianças enchem aqueles tanques de água e elas trabalham, trabalham. Aí eu comecei a ver a situação das pessoas, as necessidades de cada qual, o costume de cada qual, isso tudo é escola para mim, foi o meu melhor professor... Aí quando eu saio da África do Norte, eu entro no antigo Congo, hoje eu nem sei dizer o nome, porque no tempo que eu trabalhei com ele eu sabia muito bem, Congo belga e Congo francês, o que hoje são republiquetas, que eu chamo, eram umas cidades à época que ele esteve lá, agora, claro, hoje eu sei dizer porque virou republiqueta, porque as etnias mais fortes declaravam guerras às etnias mais fracas, tudo eu aprendi com Pierre Verger. Aí decidi tudo aquilo para poder chegar, então, naquilo que hoje eu falo, é a África do Oeste, da qual fez, que formou esse povo da Bahia, a maior concentração de negros fora da África. O negro baiano, sua composição maior, maior historicamente é no final do século 18 com povos que vieram a maioria da Nigéria, que foi para abastecer, abastecer a cidade, o povo da Nigéria começa a ser jogado no mundo através de um negreiro chamado Francisco Félix de Souza que sai do Rio de Janeiro e 1810 que torna o maior negreiro de todos os tempos, ninguém vendeu mais escravos para o mundo do que ele, mas em todo mundo ele vendeu, ele dizimou a cidade nigeriana de Ketu, todo aquele povo foi vendido como escravo e a cidade de Ketu foi anexada ao Daomé, antigo Daomé que hoje se chama Benin. O povo do Benin, então, vendeu o povo de Ketu, o povo Yorùbá, de várias etnias no caso para este negreiro que vivia no Benin em Porto Novo e ele se tornou tão importante, tão rico que o próprio rei teve medo dele. Veio também o povo de Gana, tem o Yorùbá, tem o próprio povo do Daomé, que vem em menor número, que é o povo Fon. Povo de língua ewe, que é o povo do Tôgo eu povo de Gana. Então nós temos primeiramente, antes do século 18, os primeiros que chegam são: Congo e os sudaneses, porém por esses povos, o Congo vem com os portugueses de suas posições, mas os sudaneses, o nome está dizendo, vem do o Sudão, era parte da África do Norte e tinha que ser comprado na mão dos árabes, então eles vinham em situação pior do que aqueles que eles pegavam a pulsos e colocavam no navio negreiro e trazia. Então uma parte mesmo fundamental da cultura baiana vem desses 4 povos: o povo de Gana, que você já ouviram dizer negra Nina, porque eram negras que tinham Congo... Gana é um país que tinha muito dinheiro, muito dinheiro, a gente diz muito ouro e ao tempo que eu estudei chamava a Costa do Ouro e aí traz Ninas, as negras e os negros Ninas, traz o povo do Togo, o povo Yorùbá e finalmente por motivos políticos aí chega o Fon, o povo Fon chega muito no Rio de Janeiro pela Pedra do Sal, né, que é chamado, a gente conhece como povo Jeje, de culturas diferentes, mas que dentro das senzalas todos eles foram juntados, né, colocados juntos porque para o colonizador e à época, eles falando línguas diferentes não fariam levantes, então coloca pessoas de línguas diferentes, por isso os que sobrevivem têm suas crenças e ela são adaptadas diferentemente de uns para os outros, não é, mas toda a nossa história está calcada nesses quatro países, a parte mais forte aqui.
P/2 – Deixa eu tirar uma dúvida, então os sudaneses, os africanos sudaneses eles eram comprados das mãos dos árabes, eram os árabes que escravizavam africanos sudaneses para os negreiros trazendo para o Brasil...
R – Para quem quisesse comprar...
P/2 – Entendi!
R – Quem quisesse comprar, porque às vezes eram escravos, vendiam escravos e que já tinham sido escravos de outras pessoas, já os outros não, os outros, coitados, nunca eram livres, nunca tinham sido escravos de ninguém e era apanhados, entende, como escravos, quer dizer: o mais forte à época, politicamente dizem, fazia uma coisa de boa vizinhança que quem invadiu primeiro Benin foram os Nagôs, os Yorùbás, eles então com um ódio mais tarde, pegaram toda aquela área, invadem a Nigéria, e toda aquela área, é porque não tem um mapa aqui agora, ela é dominada, eles acabam com uma cidade inteira e anexam ao território e o território cresce, e aqueles que não vieram se adaptaram à cultura Fon, os terreiros que tem na Bahia chamado Jeje-Nagô, que é a mistura dos dois, do Fon e do Yorùbá. Esse sobreviveram, tiveram coisas o menor, mas que não sobreviveu dentro da nossa cultura. Alguns ritmos, sim, de outra cultura, mas as cerimônias não. E tudo foi adaptado e dali se fez todo esse conhecimento que nós temos. Agora através dele eu aprendi demais, a gente fala até amanhã de manhã.
P/2 – (risos) Deixa eu perguntar: então assim, Pierre Verger, e ele sai da França, passa pela África e como que ele chega ao Brasil?
R – Bem, eu vou explicar à senhora, e não vem diretamente para o Brasil, ele vai em outros, muitos países, mas é muito interessante se a gente pega o livro 50 anos de fotografia, quando está falando da chegada deles na África, não é, ele contando das coisas que ele viu na África do Norte: essa famosa expedição que tinha cinco mil camelos, e um padre que deixa de ser padre para casar com uma negra muito gorda que tem muitos filhos... Tudo isso é interessante porque ele... a Costa do Ouro era uma colônia inglesa, o Togo é uma colônia francesa e o Benin, hoje, que era o antigo Daomé, também era uma colônia francesa, a Nigéria era uma colônia inglesa. Ele falava também muito bem inglês e falava espanhol. Então ele queria tirar umas fotos, ele ia do Togo pra o Benin, então serviram um motorista a ele, então ele sempre muito simpático, agradeceu ao motorista e perguntou o nome do motorista e o motorista deu o primeiro nome, que eu não me lembro, mas deu o segundo nome: de Souza. Aí ele: "De Souza... Português?" "Não, brasileiro”, ah, foi o primeiro contato com a palavra Brasil que ele teve foi esse, de Souza. "Ah, Brasil!" Aí ele chegou ao Brasil, ele fez muitas reportagens, ele esteve no Vietnã, hoje Vietnã, Antiga Indochina, ele me ensinou de mais, aí foi uma fuga porque eu trabalhei mais na parte negra com ele, porque inclusive pra ele identificar cerimônias passadas lá se encontrava similaridade aqui, e por incrível que pareça, sim. Foi, muitos e muitos, eu pego o livro e mostro. Então eu trabalhei muito nessa parte, fiquei presa nessa parte. Agora, de vez em quando, como eu gosto muito da Ásia, eu trabalhava um pouco com Ásia, com China, foi maravilhoso o trabalho que eu fiz com ele na China. Ele era um repórter, as fotos dele, ele era um fotógrafo e um repórter ao mesmo tempo, porque a foto dele, ele não fala, vocês veem a foto, vocês entendem logo, em todos os países vocês logo entendem. Então ele foi contratado para fazer umas reportagens no Peru e Bolívia, na América do Sul, e depois então ele é contratado pra trabalhar, ele e as fotografias deles, pra trabalhar na revista O Cruzeiro, em 46.
P/1 – Ele fazia as fotografias e o Jean Manzon fazia...
R – Sim, sim, Jean Manzon era francês, era de meu tempo. Tem um que ainda é vivo, que trabalhou com ele, ele vive no Rio Grande do Sul, não é francês, é de origem alemã, é Flávio Damm, inclusive é muito interessante, eu não posso falar uma certa coisa... Ele, eu conheci Flávio Damm, ele me fez muito prazer por saber que ele também pertence a minha religiosidade, eu fiquei muito feliz, ele é de origem alemã e fala muito bem de minha avó senhora que foi a primeira pessoa que deu caminhos a Pierre Verger. Foi, minha nossa senhora, quando ele chega a Bahia, em 5 de agosto de 1946, ele vem no navio chamado... Eu conheci esse navio... Eu vou lembrar, veio do Rio e nesse navio está o professor Cid Teixeira, aí ele fotografa, sabe, o professor Cid Teixeira tá lá na Fundação para vocês verem, já tava cabeludo naquele tempo, usava cabelão, usava cabelão, ele fotografou. Então quando o navio começa a chegar... Comandante Capella é o nome do navio, Comandante Capella, quando o navio está se aproximando da Baía de Todos os Santos, tudo ele anotava, ele começou a ver o rebuliço, aí ele saiu para ver o que era, quando ele chegou na proa do navio ele disse: "É África de novo." Que ele vê a cidade, é ___ ____ das República do Togo ___ (os achantes?). A entrada da cidade é igualzinha, alta e baixa, e aquele rebuliço de gente pra lá e pra cá e aquele monte de gente com coisa na cabeça, ele disse: “É África de novo." E uma coisa que as pessoas dizem que eu sou folclórica, eu falo o que eu sei é que tenho prova que aconteceu, eu não sou folclórica, então eu nem gosto dessa palavra: folclore, não gosto disso, cada um tem seu costume, sua autenticidade, entende, a pessoa é aquilo que sua cultura fez que ela parecesse, que ela fosse. Conta, e isso é verdade, toda primeira quarta–feira do mês no Opó Afonjá, a pessoa vai aos pés de Xangô , que é o orixá dono daquele axé, faz oferendas e se joga o orobô, que é a semente sagrada de Xangô, pra perguntar se Xangô quer dizer alguma coisa, se faz perguntas através da caída do orobô, com caídas próprias que quer dizer: sim e não. Então quando foram fazer perguntas a ele, ele perguntou: "O senhor quer falar mais alguma coisa, tem algum recado pra algum filho de santo?” Ele disse que sim... Deu sim. Aí perguntou se ele estava presente: não. "Ele vai chegar?" "Vai." Aí a ialorixá ficou até quatro horas da tarde e não chegou ninguém... Quando ela está fechando... Vocês conhecem o Opó Afonjá?
P/2 – Não.
P/1 – Não.
R – Não conhecem, é uma pena, é uma referência dentro do Candomblé, é uma cidade africana dentro de um bairro.
P/2 – Que bairro?
R – São Gonçalo do Retiro. Então, ela, naquele tempo, aquela luzinha fininha, ela gostava de ouvir a novelinha dela, aquela luz quase muito tênue, o que foi que ela fez? Ela viu que não chegava ninguém ela fechou a casa de Xangô e foi se recolher, quando ela está fechando a casa de Xangô, quem vai subindo? Meu pai Fatumbi acompanhado de Caribé e de Jorge Amado.
P/1 – Nossa!
R – Ela pegou, olhou assim, entrou de novo e perguntou a Xangô se era aquelas pessoas que ele estava esperando, porque Jorge Amado já era de lá, Caribé também era, só podia ser Fatumbi, aí perguntou se era o Aledjo do meio, Aledjo quer dizer o estrangeiro, aí Xangô diz: "Sim", aí, naquele momento ele já estava protegido por Xangô, muitas gente pensa que meu pai Fatumbi, Pierre Verger, era de Xangô, ele não era de Xangô não, ele era apenas muito abençoado e dizem: "Ah, isso é história sua..." Mas não é não, isso é real, é o destino da pessoa que leva a pessoa a determinada coisa, quer dizer, ele fotografou São Paulo, ele fotografa Rio de Janeiro e ele vem fotografar a Bahia e aqui ele fica, até hoje está aí com a gente!
P/1 – (risos).
P/2 – (risos).
R – Com certeza!
P/1 – É verdade, com certeza! (risos)
P/2 – E, dona Nancy, esse trabalho quando a senhora foi fazer com ele, eu queria que a senhora falasse assim, os objetivos, quais eram...
R – Os objetivos? É porque ele foi o antropólogo, pra mim, que através do livro Fluxo e refluxo, que foi o tema da tese de doutor dele na Sorbonne,
ele levantou, inclusive famílias lá, as mesmas de lá e as mesmas daqui... Parentes, ele trouxe parentesco, ele descobriu brasileiros, então ele tinha fotografado muito essa parte de brasileiros e de costumes e de ida, de vinda e de coisa de lá aqui e coisa daqui lá, então a gente começou a fazer, o que eu lhe disse, legendas, eu fui pra fazer legendas primeiramente das cidades da África do Norte, lá tem o caderno, tem tudo ainda, tudo marcado, o número das fotos, a letra dele: "Não, você faça assim, assim, assim." Agora se se deixou um pouco isso porque está com outras coisas, tenho que estudar outras coisas então a gente fez o caderno então a gente começa a fazer legendas para exercitar a memória dele para que ele não se esquecesse, não é, para que ele não se esquecesse. Então tem lugares, tem cidades, tem figuras humanas, não é, pessoas, e eu comecei, então, a anotar, fazer anotações e aprender, não é, era fazer legendas e tem legendas bastante interessantes que eu fiz com ele, por exemplo, através das fotos de Pierre Verger eu conheci um personagem que eu ouvia falar muito quando eu era jovem, foi Chiang Kai-shek, ele era da China e ele vivera até um tempo no Rio. Ele tirou várias fotos de Chiang Kai-shek quando ele pensava em fazer a China ser aquilo que ela achava bom, né, e eu fotografias no antigo Vietnã que uma parte era... Na realidade era francesa até vir as guerras e tudo e aquela separação. Tinha uma foto muito interessante de um príncipe chamado (Balday?) e esse príncipe viveu um tempo no Oriente e um tempo na Europa e então quando o Vietnã estoura, ele viaja pra França e pouco tempo depois, alguns anos, ele viveu 30 anos incógnito... Eu lembro, um jornal francês eu consegui identificar com outro nome o príncipe (Balday?) que vivia com uma outra identidade. Então tudo isso é interessante pra mim. Eu vi as fotos que ele fez no México de Trotsky, eu vi as fotos de Diego Rivera, que eu sou apaixonada por Frida Kahlo, mas ele não fotografou Frida Kahlo, eu digo porque ela não estava bem, por que exatamente a época de Trotsky, a época de Diego Rivera ele estava lá fotografando tudo. Os momentos históricos do mundo, tudo fotografado por ele, mas Europa mesmo eu não trabalhei, trabalhei mais África. Agora quando eu queria distrair a cabeça aí pegava a Europa. Nós tinha uma forma assim de trabalhar da seguinte forma: eu dormia vestida, né, e aí às vezes eu dormia, ele tinha o quarto dele e tinha um outro que eu dormia. Ele chegava, bate a bengala e dizia: "Sissi..." eu disse: “Senhor, meu pai!” E aí levantava. "Vamos trabalhar?" Eu disse: “Vamos”. Isso era duas horas, podia ser três, a hora que ele quisesse, lavava o rosto e vamos trabalhar, se não fosse assim eu não trabalhava com 11.000 fotos, não é, ele às vezes dizia: "Agora você vai dormir." Eu olhava… Aí meu pai... Aí o dia amanhecendo... Aí ele fazia assim: "Um pouquinho só." Eu digo: “Tá bom, meu pai”. Aí ele deitava, eu cobria ele até aqui e aí trabalhava, a arrumar as coisas, entendeu, mas foi muito gratificante, foi muito gratificante, me ensinou demais, aprende demais e todos os tipos de coisas, de dúvidas, de povos, enfim, aprendi muito com ele, foi o meu melhor professor.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse aquela história nas teias de aranha.
R – Qual... Da teia de aranha...
P/1 – É...
R – Bom, Pierre Verger, todo mundo sabe que é Babalaô, ele se tornou Babalaô aos 50 anos de idade, para se tornar Babalaô tem que nascer com cabeça de guardar histórias, de inteligência, porque quando a criança nasce na Nigéria, os pais não podem dar o nome, a criança tem que ir ao Babalaô, o Babalaô vai escolher o nome da criança através do jogo de Ifá e Fatumbi. Foi uma coisa muito interessante porque quando ele vai à Nigéria, com os cordões que mãe e senhora dá, e ele vê o candomblé, ele aprende saldar ações de quando ele chega lá ele faz as mesmas, ele é logo muito bem aceito. Então ele teve que se preparar para ser Babalaô e Babalaô têm de conhecer histórias, na realidade começa com a criança porque a cabeça da criança melhor para guardar. Então o que foi que aconteceu? Ele tinha, assim, uma as teias de aranha em volta da casa dele, ele dizia: "Pode limpar, mas não me mate as aranhas." Eu nunca soube o porquê. Um dia, eu lá na Fundação Pierre Verger, que tem seis mil livros, a biblioteca particular dele tem seis mil livros, então eu disse à uma pessoa: “Venha cá, peguei aqui esse livro para mim, traduza algumas coisas para mim…” Aí eu peguei (Fa de Venation?) que estava em inglês, aí eu apontei o Odú e falei: “Conte essa história aqui pra mim, traduza para mim, eu li, mas não entendi”, então aí ela me contou: "Tinha Obatalá, saiu um dia que não devia – que todos nós temos um dia na semana que as coisas não dão muito certo para nosso lado, então esse dia a gente deve evitar...
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – Agora repare bem, Obatalá, orixá da criação, da criação ia sair... aí vem, Oludum Maré, o orixá do destino que são de uma mesma família e diz: "Meu pai, não saia hoje sem dar coisas para exu, porque se o senhor não botar um agrado para exu, não vai dar certo”. O que é exu? É o equilíbrio do ser humano, é o orixá mais similar ao ser humano. Então ele disse: “Ah, não vou dar não, ele é meu filho, tem que ser obediente a mim." Qual o filho que vai fazer alguma coisa contra o pai? Aí ele saiu para cumprir o destino dele naquele dia e não deu nenhum agrado para exu, aí ele caminhou, caminhou, muito velho apoiando num bastão, aí exu chegou na porta do pai dele e disse: "Ah, meu pai não deixou nada para mim, meu pai hoje esqueceu de mim?" Aí disse: "Tá, ele vai ver." Aí chegou, criou sete meninos coloridos, ora, as coisas de Oxalá é tudo branco, sempre tudo branco, ele bota sete meninos coloridos, que na verdade eram sete pedacinhos de fogo que mudavam de cor e eles saíram na frente do velho, pula para cá, pula para lá, pula para cá, pula para lá... O velho vim aqui e parava aqui e andava mais um pouco, parava aqui e pula para cá, pula para lá que ele já não aguentava mais, ele procurava um caminho e lá estavam os sete (encanzinho?), procurava outro, lá estava os sete (encanzinho?), ele não aguentava mais, então ele parou, olhou assim, quando ele viu uma aranha fazendo o trabalho tranquilamente tecendo, tecendo, tecendo, tecendo, aí ele disse: "Senhora aranha...", porque na minha religiosidade a gente fala com os animais, os animais entendem a gente e eles também têm fala,
aí vira e diz assim: “Desde que eu saí de casa, sete meninos me abusam, será que a senhora poderia me ajudar?” Aí a aranha diz: “Posso.” Aí levantou a teia e tinha um buraco aparentemente pequeno: "O senhora entra aí, entra aí meu pai." Ele não pensou duas vezes, foi com cajadinho dele quando ele entrou falou assim: "Pufff..." aí ele ficou quietinho debaixo do buraco, o buraco aberto, a aranha calmamente jogou a teia e continuou a trabalhar tranquilamente fazenda tem a dela. E aí nisso vem exu, aí o sete meninos desconfiados, né, aí exu olha e disse: "Senhora aranha, a senhora viu passar um velhinho por aqui?" Aí a aranha disse: "Vi." "A senhora viu por onde ele foi?" "Vi." "Foi para onde?" "Foi por ali." Aí, saíram sete (encanzinho?) pulando e exu atrás para encontrar o velho, aí, dado um certo tempo, ele foi, ela levantou a teia diz: "Pode sair, meu pai, ele já foi." Aí Oxalá foi, saiu tranquilamente e agradeceu muito à aranha, abençoou o trabalho dela e disse: “De hoje diante, você será uma das minhas coisas sagradas.” Então a gente sabe que entre as coisas sagradas deu Oxalá está aranha que trabalha e que é símbolo de paciência. E a aranha sempre nos dá coragem para a gente trabalhar e sempre recomeçar, trabalhar e sempre recomeçar, porque Oxalá é um orixá muito velho, muito e muito antigo, mais todas as vezes que precisa, ele sai de sua casa para vim cuidar dos seus filhos e nunca os esquece, agora ele pede sempre calma, paciência e calma para se recomeçar.
P/1 – Que lindo!
P/2 – Vamos trocar a fita...
(pausa)
P/1 – Como que a senhora deu continuidade ao seu processo de trabalho, todo esse aprendizado da senhora, levou a senhora em busca de mais o quê? O que a senhora foi...
R – Ah, foi esse trabalho, mais tarde ele começou a ser catalogado, quando ele faleceu, esse trabalho passou a ser todo colocado no computador, todas aquelas fotos... Era muito interessante que meu pai Fatumbi dizia, ele já tinha quase 94, 94 anos, quando a gente trabalhava ele dizia: "Mais tarde a gente vai fazer uma determinada coisa." Meu deus, eu nunca entendia o que ele queria dizer "mais tarde", porque ele fotografou muito, mas tinha de colocar as fotos em ordem, por exemplo, tinha as cerimônias que eu conhecia eu dizia: “Essa foto está numerada errado, tem que ser assim, assim, assim, assim…” E nós não conseguimos continuar esse trabalho porque faleceu. Então vieram pessoas que começaram a pegar as fotos e colocar no computador para não se manusear mais os negativos, porque eu trabalhava com uma caixinha de negativos, ou ele botava no colo, ou botávamos numa mesa, eu com o caderno olhando e então ele dizia: "Você conhece isso?" Era quando eu trabalhava com as lentes, eu disse: “Conheço”. Então, esse trabalho parou, identificava detalhes, detalhes por detalhes de cada coisa, não é, então foi tudo colocado no computador, num grande arquivo computadorizados, então coisas ali ficou para pesquisa, então eu trabalho muito com pesquisadores de fora, pessoas que vêm para fazer pesquisa, tem gente de candomblé que não quer formar, não gosta, não interessa, e as pessoas então sabem de mim, que eu trabalhei com ele, principalmente nesses tipos de informações que ele sabia muito, sem dúvida. Agora a gente fazia checar, né, porque eu sabia com que ele já tinha anotado lá e então continuamos esse trabalho de pesquisa, trabalhando com muitas pessoas, com muitos livros: “Olha, uma pessoa me disse isso, assim, assim…” “Conhece, a senhora conhece isso?” Eu conheço dessa forma assim, assim... E aí vai se formando teses, trabalhos e idéias. Porém, a partir de dois anos para cá, três anos, que se teve a idéia de se por em prática aquilo que ele queria, biblioteca e cultura para todos, aí eu já fui saindo um pouco da pesquisa, já foi porque eu já li muito, e tenho que ler todos os dias, pesquisar todos momentos, porque esquece, acabei se esquece, para mim tem que estar sempre lendo... Foi criado então no Centro Cultural as oficinas. Primeiramente ao oficina de fotografia, a oficina de dança e passam pouco da cultura afro para as pessoas, porque a partir da lei de 2005, é a lei ensinar a cultura afro na escola, mas todo mundo sabe que aqui é difícil, eu digo que jamais o Brasil será como Cuba, Cuba é ensinado dentro da escola a origem, cultura daquelas crianças, aqui se esconde, se a senhora coloca um atabaque ou qualquer tambor debaixo do braço e passa, a pessoa aponta: "É macumba." Ele não sabe nem o que quer dizer macumba, o que é macumba, o que é uma macumba? Macumba era o nome de uma pedra que tinha num lugar que chamado Goméia de São Caetano, porque a antiga capital do Daomé era Agomé, como tinha muita gente jeje em São Caetano chamavam de Goméia, que de Agomé. Goméia tinha uma pedra... É Congo, existia uma pedra lá que botavam muitas oferendas e diziam: macumba, pedra da macumba: "Menino, onde você bota isso?" "Lá na pedra da macumba.” Quer dizer, não venha com cervejas, não bote aqui, bote lá na pedra da macumba, que lá é a pedra da macumba. Aí uma pedra, o nome que deram a uma pedra, como a senhora chega em Salvador, a senhora vai ver nomes muito engraçados: Rua do Cabeça, não é, Rua dos Aflitos, Rua da Forca... Nomes que foram assim, coisas, cenas acontecidas naquele determinado local e que ficou para sempre. Então, mas não, o pessoal generalizou tudo uma coisa só e diz: "É macumba." Entendeu, então isso eu acho que vai ser muito difícil, se não começar de uma forma delicada, se não começar com história... Tem que aprender história, tem que aprender o mapa da África, tem que saber sobre religiosidade, tem que saber como entrou a religião, como chegaram os pastores, as primeiras igrejas protestantes, como entrou o muçulmanismo até chegar aqui eles encontraram pessoas, cada grupo tinha a sua deidade, tinha sua crença, os que vieram pra cá tinha sua determinada crença e não ficar dizendo: "Candomblé, não sei o quê..." Isso é errado, tem que ensinar que o mapa da Nigéria é grande, tem cidades, cada cidade tem um grupo étnico, cada grupo zela por um orixá, o dessa cidade muitas vezes não conhece o orixá daquela cidade, são coisas próprias dos locais, costumes próprios do lugar, tudo isso tem que passar pra criança até chegar ao transe, à pessoa de candomblé que é preparada, que entra em transe... O que é orixá? Tem que contar história, tem que explicar que o povo e o rei é uma diferença, eles dão ao rei a origem divina, não é, porque quem faz a festa é o povo, mas quem patrocina a festa é o rei, por que é o rei? Porque aquele orixá que está se cultuando é orixá da família real. Então um exemplo, a senhora chega em (Oxodobô?) (Oxodobô?) é a cidade de origem do culto do orixá Oxum. Sabe-se que o rei pertence àquela família, como o rei pertence àquela família e a cidade é desse orixá, todos que nasceram naquela cidade serão filhos daquele orixá e deverão cabeça aquele orixá e ao rei, então o povo faz a celebração e o rei dá tudo pra celebração de seus ancestrais. Porque na família real, ninguém entra em transe, quem vai entrar é alguém do povo, a pessoa mais velha vai entrar em transe e aquele momento, então, aquela entidade que está naquele corpo vai dançar na frente do rei
e o rei vai então se ajoelhar perante aquela pessoa do povo que está em transe de seu ancestral divino... Tem que explicar isso pra criança... "Mas é porque é candomblé, porque é isso, porque é aquilo..." Nada, não pode ser assim, entendeu, tem que ir devagar.
P/1 – Quanto tempo a senhora trabalhou com Pierre Verger?
R – Olhe, trabalhar de ficar dentro da casa dele foi 5 anos, até ele falecer, agora antes não, antes eu estava sempre com ele, sempre com ele.
P/1 – Agora me diz uma coisa, a senhora estava comentando agora que para a criança tem que se contar história de toda essa cultura pra que a criança consiga entender, compreender e aprender sobre essa cultura negra sobre tudo que está ligado a essa cultura, desde a religião como as festas e tudo. Eu queria que a senhora falasse um pouquinho como a senhora trabalha hoje e o que a senhora tem feito, trabalhado nesse sentido pra que as crianças absorvam essa cultura e o que a senhora acha que é necessário fazer pra que as crianças também aprendam essa cultura?
R – Eu penso assim: primeiramente a criança tem que saber que cor ela tem, de que raça ela é, porque ela não sabe. A senhora pergunta, ele diz que é vermelho, como já disse pra mim, o outro disse que amarelo, outro negro bem preto disse que era branco. Então a gente primeiro tem que falar, sempre a professora, a escola tem que estar presente, tem que explicar sobre raça, tem que explicar sobre a história da história, não é, então quando eu pego uma criança eu não conto só a história da minha cultura porque o Brasil não é só cultura negra, a cultura, é claro, é discriminada. Agora o Brasil tem influência da cultura árabe, tem influência da cultura branca européia e tem influência da cultura negra, então o que eu faço... Ah, tem a indígena que é importantíssima porque eles são donos da terra e nós, nós viemos de fora, entramos aqui, entendeu, então temos que contar o que se faz, se se conta história de índio, se se conta história da cultura afrobrasileira, se se conta história dos bichos que falam... Então o que acontece? De vez em quando se conta história de santo da igreja, que as pessoas contam, que falam, entendeu, tudo é história, porém o que eu mais conto a eles é mais, é coisa ligada à cultura afrobrasileira, as crianças pedem história de bicho, não é, eles gostam muito, eles gostam de história de índio, mas infelizmente é uma cultura pouco difundida, então eu conto as minhas história e uma das coisas que eu quero que eles aprendam é a respeitar, também, as pessoas de outras raças porque isso é importantíssimo, a gente saber respeitar todas as pessoas e cada qual tem a sua história, não é verdade, então eu começo contar a influência de outras raças dentro da nossa cultura. Então eu explico sobre orixás, eu explico sobre escravos, eu explico sobre o senhor, eu não dou aquela visão: “Ah, o negro no tronco e o branco batendo, o negro no tronco e o branco batendo…” Não, não é por aí não...
P/2 – E a senhora transmite esse conhecimento através de histórias?
R – Ah, muitas histórias, e não é só dessas histórias, não, tem história fé também que eu conto, tem história da realidade da vida, a história da realidade da vida, tanto dentro da cultura afrobrasileira, quanto dentro do cotidiano, não é, por exemplo, eu vou lhe contar uma história bem rapidinho, bem rápido. A história de, por exemplo, a criança hoje vai pra escola, aí vem uma coleguinha com uma porcariazinha na mão: "Chupa essa bala, pega isso, olha isso, vê como que é interessante..." E muitas crianças se deixam levar e de pequenininho fica muito difícil de tirar, não é, então eu contei uma história a eles de um menino, um jovem caçador chamado Oxóssi que tinha um irmão que era um grande guerreiro chamado Ogum, então esses dois irmãos são caçadores, agora um é diplomata, é alegre, fala com todo mundo, chama-se Oxóssi, ele quer saber se a senhora está bem, se a senhora comeu bem: "Comeu bem? Eu vou caçar, eu vou trazer algo que vai lhe agradar..." E o outro, o outro é sisudo, o outro chama-se Ogum. "Vamos trabalhar, eu vou lhe ensinar a plantar, eu vou lhe ensinar a colher..." E cada um equilibrava o outro. O sisudo não era de muita graça nem era de estar fazendo carinho, mas o outro era. Então, um dia de manhã... Todos os dias eles falavam com sua mãe que chama-se Iemanjá, então a mãe dizia: "Então vocês vão juntos e voltem juntos”, e assim eles faziam. Existia um pé de Iroco, que é um ancestral muito antigo que tem a forma de uma árvore, e eles, o que chegasse primeiro de suas andanças esperava o irmão no pé do Iroco e um dia a mãe levanta muito esbaforida e os dois irmãos estão em pé para sair, e a mãe diz: "Ogum, você pode e Oxóssi, você não." Aí ele disse: "Por que, minha mãe?" "Porque eu tive um mau sonho, um mau presságio, você não deve sair hoje." Aí ele disse: "Ô, minha mãe, que mal vai me acontecer?" "Não, hoje é o dia de seu destino, não saia." "Ah, minha mãe, e meu irmão?" "Ele pode porque o que eu sonhei é com você." "Ah, eu vou sair sim." Aí os dois saem e a mãe fica chorando. Ogum vai ajudar o homem trabalhar, vai ajudar o homem progredir e Oxóssi arma seu arco, sua flecha e vai procurar caça. Não acha nenhuma e ele fica assustado: "Oh, eu sempre cacei, sempre achei..." E procura, procura, procura e não acha nada. Quando ele está desanimado, a atenção dele, o faro de caçador é chamado por alguma coisa que se movimentou dentro do mato e quando ele olha assim, ele vê uma figura jamais vista. Tinha um lado humano e não tinha o outro lado, aí ele estranhou e foi para mais perto e a figura foi pra mais distante, aí se escondeu na folha e disse: "Quem é você?" Aí a figura disse: Eu? Eu sou aquele que conhece todos os mistérios das folhas, eu sou aquele que foi colocado aqui desde que nasci, eu sei a fala dos pássaros, eu entendo tudo e sei todos os segredos das folhas." Aí ele chega mais adiante e a figura mais pra trás... "Como é o seu nome?" Ele diz: "Ossaim" Aí ele chega mais adiante... "Mas eu nunca ouvi falar em você." E ele chega mais pra trás, nisso ele está entrando pela floresta onde ele jamais tinha ido e nem tão pouco conhecia, aí ele diz: "Você é muito estranho, o que você sabe das folhas?" E disse: "Se você ficar aqui eu te ensino." Aí ele ficou muito desconfiado... "E você realmente fala com os pássaros?" "Sim" E Ossaim canta, os pássaros vêm e ficam sobre o seu braço. Aí ele fica assim olhando... "Você quer ficar aqui?" e Oxóssi diz: "Não." "Então tá bom... E se eu te der uma coisa, você aceita?" Aí Oxóssi disse: "Aceito." Ele tira uma cabaça e dá um líquido... Oxóssi vai e bebe sem saber o que era, aí deu um torpor, um torpor, um bem estar, um bem estar e ele adormeceu e Ossaim desapareceu no mato. Nisso, Ogum chega no pé do Iroco e espera, espera, espera e nada do irmão, aí ele lembra do que a mãe disse pela manhã. Aí ele volta, procura sua mãe e diz: "Minha mãe, meu irmão não voltou." Aí Iemanjá disse: "Eu não disse, hoje era o dia do destino dele, que ele não saísse porque ia acontecer uma coisa muito ruim." Aí ele diz: "Mãe..." Que ele é destemido... "Vamos procurar meu irmão." Aí ela faz assim... Aí ele sai e diz: "Mas eu vou." Aí ele chega, amola o facão dele e diz: “Para o que der e vier eu vou procurar meu irmão até eu achar." Ele amola o facão e vai abrindo caminho pelo mato e vai cantando: “Mariô laoré acorocotô bua, mariô laoré acorocotô bualê…” Ele está dizendo: "Eu vou por esse caminho cortando mato." Até achar o irmão del… E finalmente dentro da mata ele encontra o irmão adormecido e ele chama o irmão pelo nome e o irmão não responde, ele sacode o irmão e meu irmão não responde ele olha em volta dele só vez sombra e silêncio, ele ponho a mão no ombro e não sabe seu irmão está vivo, ele acha que está morto, ele pega o irmão no ombro e saia cantando: "Enipopô ogun irê ire oçó bebé, ossi o comorodé ire irei ogun bobô." Ele pega o irmão, bota no ombro e diz que ia caminhar com o irmão e que nunca ia se separar dele, onde ele fosse ele levava aquele corpo adormecido. Então quando ele passa pelo Iroco, ele encosta o corpo do irmão e chora, mas Obatalá, o senhor da criação, quando vê Ogum chorando, porque Ogum não chora, Ogum é de ferro, mas o amor, apesar do gênio que ele tem, que é um gênio belicoso,
o amor que ele tinha ao irmão, Obatalá se compadece, o orixá da criação, então envia um pássaro com um encantamento no bico e dá a Ogum e Ogum logo entende que é um encantamento, ele olha o irmão, o que ele mais queria era ver o irmão vivo, aí ele vai, abre o axé e faz… Sobre o irmão, imediatamente o irmão se espreguiça, olha, olha pra um lado, olha pro outro e olha firmemente pra ele e entra para o mato e vai embora para sempre. Ele dormiu como ser humano e acordou como orixá...
P/2 – Que lindo...
R – Quer dizer, ele, o irmão tá morto, onde ele ia, ele carregava aquele corpo, mas o que mais ele queria era ver o irmão vivo e ele vê transformado no orixá Oxóssi. Por isso a gente diz: “Onde há Oxóssi, Ogum bota o pé e tira, Oxóssi põe o dele…” Essas são as histórias, o que a gente aprendeu aí? O menino desobedeceu a mãe, o menino usou uma coisa que não conhecia, o menino travou amizade com estranho. Isso faz parte da nossa cultura, Ossaim é orixá adorado por todos nós como Ogum e Oxóssi, mas essas são coisas de Ifá que é o nosso Griô, o mais antigo Griô da Terra é Ifá que tem suas histórias para o nosso cotidiano.
P/1 – Dona Sissi, eu queria que a senhora falasse um pouquinho pra gente como se deu o convite pra senhora se tornar mestre Griô, já que a senhora falou no mestre Griô?
R – É, o convite na realidade eu sempre gostei de histórias, eu sempre... E o selo do culto de... Eu tenho que explicar o seguinte: a primeira vez que ouvi a palavra, me chamarem de Griô, que calado, o Griô sempre por tradição é homem, eu pertenço a um orixá chamado o Obatalá e sabe-se que Ifá vem da Arábia Saudita, ele adivinhava e ninguém que iria, nesse tempo, uma pessoa que adivinhasse e ele então vem disposto. Isso faz parte da minha cultura até chegar em Ilê Ifé e lá ele vai fazer parte da família mítica de Obatalá, então ele era o orixá que adivinhava da qual cultuamos até hoje e agora. Então o culto de Obatalá, digamos que tem 40% do culto muçulmano, então nós temos o que no culto de Obatalá? Nós começamos a vestir roupa branca, não é, porque eu estou com essa roupa aqui, mas eu só visto branco, vestir roupa branca quando o sol vai embora na quinta-feira, a gente já não come mais isso, não come aquilo, blá, blá, blá, porque já é Oxalá, o dia já é de Oxalá, até sexta-feira então quando dá três e meia da manhã a gente levanta, toma banho e começa rezar. Aí reza muitas horas, muito tempo por quem está doente, todas as mazelas... Dentro do culto do candomblé, as pessoas de Oxalá, que é o orixá da criação, é obrigado a rezar e a pedir, então eu tenho um feeling emprestado, que ele viu muitas vezes eu fazendo isso, viu muitas vezes essas cerimônias, como é que se faz, praticamente deitados no chão, tudo isso que foi que aconteceu, ele disse: "Sissi, eu me lembrei tanto de você no Senegal..." Eu disse: por quê? "Porque eu ouvi sua voz três e meia na sexta-feira rezando… Eu tomei aquele susto e quando eu vi era o (Moezi?) rezando... Sissi, você precisa conhecer..." Aí meu deu o nome do Griô muito famoso, muito... "E eu falei de você com ele" E esse ano a gente falou com essa pessoa de novo e de eu contar sempre história. Ele ouviu eu contar história ligada à minha cultura, então ele dizia: "Você é um Griô..." Eu disse assim: “Não posso ser, eu ter o espírito de um Griô, porque essa não é a primeira vez com certeza que eu tô por aqui, já andei outros tempos…” Então,
ngela, quando eu vi, que eu gosto de contar histórias pras crianças e pergunto na história: “O que foi que vocês entenderam nessa história, qual a mensagem da história?” A criança fala. Agora vamos desenhar... Mas é lindo, vocês devem ter visto um livrinho dos desenhos das minhas crianças, das nossas crianças. Então eu comecei a dizer: “Todas as histórias nós vamos desenhar... " “E eu vou desenhar o quê?" Aquilo que foi mais forte pra vocês, o que tiver na história, não precisa ser o personagem principal, é o que você mais gostou. Então realmente, eu ponho, começamos a desenhar, eu tinha ido em 2005 Estados Unidos, Los Angeles, e lá eu pedi às pessoas, que se tivesse lápis de cor, coisas assim, assim que arrumassem e eu cheguei, eu dei a sorte tão grande, que Obatalá quis, que eu cheguei na Bahia com 90 quilos, ninguém faz isso, ninguém consegue, mas o orixá quais que eu conseguisse, então eu trouxe muito material pras crianças. Exatamente fiz lá o que eu to fazendo aqui, só que eu quero mostrar orixá, não é só história, lá eu fiz com dança, apresentei a história que eu conto aqui através da dança, da representação com as cantigas. Então o que foi que aconteceu? Foi criado, veio essa oportunidade do projeto e
ngela Lühning se lembrou de mim. Ela disse: "Oxente, você gosta de contar história, vamos embora contar história." E eu é isso, estou contando história, começo de manhã, às vezes vou até de noite, tinha as minhas crianças da capoeira, que eu conto histórias também, mas agora estamos com turmas, com projeto que eu estou indo nas escolas contar as histórias e as crianças vão também para o Espaço Cultural ouvir histórias, estão desenhando e agora bordando os personagens, por quê? Porque a idéia, uma das idéias que eu tenho, se ainda der tempo hoje d’eu contar a história, vem do (panô?) do povo do Daomé, é uma história masculina onde os homens bordam as histórias dos reis se e suas histórias épicas. A partir dali eu tive, então a idéia de se colocar no pano e no tapete que, claro, pessoas mais habilidosas do que eu como dona Ana está dando vidas às minhas idéias, a gente então nesse projeto conta-se a história, pinta-se a história e borda-se a história de nossa cultura.
P/1 – Dona Sissi, eu queria que a senhora falasse um pouquinho o que significa pra senhora a Ação Griô, qual é a importância dela?
R – Bom, a Ação Griô pra mim, a importância da Ação Griô é acordar o que estava esquecido, porque infelizmente o povo brasileiro não tem memória, ele lembra uma coisa aqui, daqui uma meia hora ele já esqueceu porque ele não anotou, ele não ensinou, ele não desenhou, ele não pintou... Ele não registrou! Então, com a Ação Griô, o que a Ação Griô faz? A Ação Griô resgata aqueles conhecimentos que estavam adormecidos, mas que na realidade a gente não tinha oportunidade de contar, de falar, porque talvez não interessasse a outras pessoas saber desse conhecimento e querer que o brasileiro continue sem memória, então pra mim a Ação Griô vem resgatar tudo isso, entendeu, não importa, eu não passei na universidade, a minha universidade é a da vida, não é, eu não tenho uma linguagem elaborada, uma linguagem cheia de ésses, cheia de erres, mas eu tenho aquela que a criança me escuta, aquela que eu falo e eles não esquecem, entendeu? Então a Ação Griô pra mim, veio resgatar tudo isso, a forma natural de se aprender a viver.
P/1 – E pra finalizar, Dona Sissi, eu queria que a senhora falasse como é que foi estar nesse encontro com a gente conversando com a gente, falando sobre sua história de vida?
R – Bem, eu não imaginava isso, né, eu não sabia nem se eu ia poder chegar aqui, com esses ossos todos remendados! Eu disse: “Ô, meu Deus, se chegar a um pedaço de Sissi está bom”, mas felizmente Sissi chegou inteira. Então foi um grande prazer para mim conhecer outras partes da minha própria cultura com outras influências e fazer, como se diz, eu não gosto da palavra globalização não, mas a gente pegou um pouco de cada coisa que eu aprendi e o meu caminho é aprender muito mais e quem sabe, se Deus quer, se Oxalá quer e Ifá quer, eu posso participar de uma outra, quem sabe? E eu quero que a Ação Griô cresça por muito, muito tempo, muitos anos e tenha um caminho que não seja só num papel e que depois vire um projeto esquecido, eu quero que seja um projeto, uma escola viva para sempre, que em todos os momentos que poder, que alguém poder apresentar esse projeto e trazer mais pessoas e entrar em mais locais, entrar em mais escolas, será realmente uma coisa pra mim que eu tenho muito amor que é a nossa ancestralidade, é não esquecer os nossos saberes porque um povo sem memória não tem alma.
P/1 – Eu queria agradecer a senhora, obrigado pela oportunidade...
P/2 – De coração...
P/1 – De coração porque foi muito importante ouvir a senhora falar pra gente, essa sabedoria toda é assim... É uma dádiva poder escutá–la, muito obrigado.
R – Obrigada, mas não é muito assim não, tem muita gente aí que tem mais do que essa, eu tô apenas aprendendo, eu quero que Deus me dê mais um pouquinho de vida porque eu preciso aprender muito ainda, tô muito pequena...
P/2 – A senhora quer mais água?
R – Eu quero um pouquinho de água...Recolher