Correios – 350 Anos Aproximando Pessoas
Entrevistado por Isla Nakano
Depoimento de Jonathan Luke Hannay
São Paulo, 11 /06/ 2013.
Realização Museu da Pessoa
HCV_012_Jonathan Luke Hannay
Transcrito por Cristiana Sousa
P/1 – Jonathan, primeiro eu queria agradecer por você ter tirado um p...Continuar leitura
Correios
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350 Anos Aproximando Pessoas
Entrevistado por Isla Nakano
Depoimento de Jonathan Luke Hannay
São Paulo, 11 /06/ 2013.
Realização Museu da Pessoa
HCV_012_Jonathan Luke Hannay
Transcrito por Cristiana Sousa
P/1 – Jonathan, primeiro eu queria agradecer por você ter tirado um pouquinho do seu tempo para essa entrevista para fazer parte do nosso acervo e para fazer parte do projeto. Para começarmos, eu queria que você falasse o seu nome completo, onde e quando você nasceu.
R – O meu nome é Jonathan Luke Hannay, eu nasci em 15 de Fevereiro de 1968 na cidade de Bruxelas na Bélgica.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai é David e da minha mãe é Julian.
P/1 – E dos seus avós? Você sabe?
R – Aí você me pegou...
P/1 – Eu queria saber um pouquinho da história da sua família.
R – É uma família britânica, o meu pai é filho de escocês, a mãe dele era judia inglesa. Ele foi criado até certa idade na Escócia e depois foi para a Inglaterra. A minha mãe é inglesa, do norte da Inglaterra, foi criada primeiro lá e depois no sul da Inglaterra. Os meus pais se conheceram no Iran e se casaram lá.
P/1 – E como eles se conheceram no Iran?
R – O meu pai é diplomata e a minha mãe também estava trabalhando no “Itamaraty” britânico na época.
P/1 – Jonathan, conta um pouquinho do trabalho deles para gente.
R – A minha mãe foi uma esposa profissional, na época em que eles casaram não era possível marido e mulher trabalharem juntos, ou um, ou outro, aí a minha mãe desistiu da vida profissional dela e sempre acompanhou o meu pai na vida diplomática dele, desempenhando o papel de esposa profissional.
P/1 – Você tem irmãos Jonathan?
R – Tenho três irmãos, dois mais velhos, o Richard e Phillip e um mais novo, o Alexander.
P/1 – Me conta um pouquinho como é essa coisa de pai diplomata, como foi a sua infância?
R – Eu nasci na Bélgica, vivi lá até os meus oito anos de idade, com oito anos eu fui para um colégio interno na Inglaterra, os meus pais ainda moravam na Bélgica, depois eles se mudaram para Londres, ficaram lá por sete anos. Depois foram para os Estados Unidos e depois voltaram para Bélgica. Então, apesar de o normal é ter muitas viagens, foram poucas viagens, mas eu estudei em colégio dos oito aos 18 anos de idade.
P/1 – Jonathan, apesar de vocês ficarem na Bélgica, o seu pai viajava bastante a trabalho?
R – Nem tanto, ele trabalhava por longas horas, eu via ele principalmente no final de semana, no domingo, mas não muito mais do que isso.
P/1 – E você tinha contato com o trabalho dele? Com a rotina dele?
R – Nenhum, eu me lembro de uma vez que ele me levou para o escritório dele, eu tinha uns seis, sete anos, mas não tinha muito contato com o trabalho dele. Quando eu era criança, pequeno, ele trabalhava na comunidade europeia, não diretamente para o Governo Britânico, era cedido, aí depois, ao voltar para Londres, ele voltou para o serviço diplomático britânico até o fim da carreira dele.
P/1 – Jonathan, você se lembra um pouquinho da sua infância na Bélgica? Do que você gostava de brincar lá? Como era?
R – Eu era muito de ir para parque, andar, correr, subir na árvore, andar de bicicleta, sempre nos parques de Bruxelas. Eu saía com a minha mãe, fazia compras, ia para padaria, para o açougue, no açougue se comprava manteiga porque a manteiga era dois blocos gigantes, era com sal ou sem sal, aí eles pegavam uma pá para tirar e pesava.
P/1 – E tinha alguma comida, alguma coisa que tenha marcado a sua infância?
R – Ah nem tanto porque a gente comia muita comida variada em casa, mas o que era bom era lebre, que é uma comida típica da Bélgica, duas vezes por ano nós íamos a casa da diarista dos meus pais, que ficava no interior, para almoçar, um almoço tradicional que ela oferecia, geralmente era lebre.
P/1 – Você e os seus irmãos brincavam juntos? Tinham amigos?
R – Sim, apesar de que, quando eu tinha quatro anos o meu irmão mais velho já foi para o colégio interno, aí quando eu tinha seis, o meu outro irmão mais velho também foi. Então eu tinha amigos de escola, e o meu irmão mais novo é quatro anos mais novo que eu, então tinha essa questão de não ter tanto contato com os irmãos.
P/1 – Como é que foi essa história de ir para colégio interno? Você se lembra como é que foi essa mudança?
R – Sim, foi a primeira vez que eu andei de avião, eu andei com o meu irmão, nós pegamos o avião, chegamos em Londres, pegamos o metrô, depois pegamos ônibus, para ir a um ponto em Londres para pegar ônibus para o colégio. Foi uma grande aventura junto com o meu irmão mais velho, aliás, com os meus dois irmãos mais velhos.
P/1 – Como foram os seus primeiros dias no colégio interno?
R – Ah, havia quatro anos que eu já estava na expectativa, então era sossegado, era um mundo novo, mas um mundo que eu sabia que era para mim, então eu me adaptei muito rápido.
P/1 – Conta um pouquinho da rotina no colégio, como eram as matérias.
R – No colégio a gente estudava de segunda a sábado; na segunda, terça, quinta e sexta nós tínhamos aula de manhã e de tarde, havia um período grande de almoço e para prática de esportes a tarde, então eu sempre estava praticando diversos esportes e tinha também outras recreações. E de quarta e sábado nós tínhamos meio período.
P/1 – E nessa época do colégio tinha alguma matéria que você gostava mais, alguma coisa que você se identificava mais?
R – Geografia e francês era moleza porque eu já falava francês (risos), eu fazia outras matérias como latim, o meu irmão mais velho fazia grego antigo. Eu não diria que eu gostava muito, mas eu sei o quanto ajudou depois ter estudado isso.
P/1 – Você se lembra dos primeiros amigos que você fez no colégio?
R – Eu me lembro de alguns, como eu gostava muito de ficar do lado de fora, eram mais pessoas que gostavam de esporte também, ainda hoje eu tenho um amigo, ele se tornou muçulmano e hoje é professor de história em uma escola muçulmana em Londres, ele é meu amigo desde aquela época.
P/1 – E tem algum professor que tenha marcado a sua trajetória escolar?
R – Tinha vários porque foi um período muito rico, muito bom; tinha um que era um professor meio maluco, ele nos mostrou a importância do coletivo. Então, ele organizava uma atividade chamada Wombling que é dos The Wombles, uns bichinhos de história infantil do Wimbledon Common, a gente saía do colégio para limpar as ruas da cidade. A gente pegava o saco de lixo e limpava, literalmente, saía um grupo de trinta, quarenta crianças de oito a dez anos para as ruas para limpar quatro quarteirões, pegando todo lixo que estava espalhado, jogado. Lá era o professor que organizava as hortas, a gente podia ter a própria horta, eu tive também lá uma hortinha onde eu pude plantar flor, verdura, qualquer coisa e eu cuidava. Outro professor, o Nick Audrey, era o meu professor principal de estudos clássicos e também da minha sala por dois anos. Eu diria que ele me estimulava mais intelectualmente. Também tinha o professor de francês e de geografia, como nós vivíamos em casas, ele era chefe de uma das minhas casas quando eu tinha 12 ou 13 anos, ele ensinava a gente a cozinhar, deixava a gente fazer comida, esse tipo de coisa.
P/1 – Era um colégio só de meninos?
R – Era só de meninos, esse foi o primeiro que eu fiquei dos oito aos treze anos, aí depois eu mudei para outro colégio e fiquei dos treze aos 18 anos.
P/1 – E tem alguma história, alguma molecagem? Alguma história peculiar, pitoresca?
R – Ah, a gente fazia muita coisa, especialmente dos 13 aos 18 anos. Uma vez no meio da noite pegamos a bicicleta de um professor, eu tinha um colega que sabia abrir o cadeado, aquele que era com números. A gente levou para dentro da escola, onde tinha as salas de aula; as nossas salas foram construídas no século 18 ou 19, a escola tinha três andares. O meu colega mudou a senha do cadeado e a gente pendurou a bicicleta do professor no meio do vão das escadas para todo mundo ver e o professor não conseguia tirar a bicicleta.
P/1 – E como era a punição?
R – Todo mundo sabia, mas ninguém sabia, então não tinha punição porque nem tudo o que se fazia se descobria.
P/1 – E teve alguma vez que você foi descoberto?
R – Sim, várias vezes, mas eu estava com 14, 15 anos, com um amigo que não era interno, ele vivia com os pais perto da cidade e os pais dele viajaram e a gente organizou uma grande festa para 60 pessoas durante a noite no final de semana, todo mundo foi e voltou sem ninguém descobrir nada, só que um que era chamado prefeito, entregou a gente para o chefe da casa onde morávamos.
P/1 – E o que acontecia? Eles ligavam para a sua família? Como que era?
R – Não, eles nunca ligavam para a família porque a escola era responsável, não tinha essa coisa: “Eu vou ligar para os seus pais” eles assumiam a responsabilidade pelos alunos, só que nessa ocasião, como foi uma coisa um pouco mais séria, eu acabei recebendo uma suspensão de uma semana.
P/1 – Jonathan, desde os seus oito anos de idade para frente, como você se comunicava com a sua família?
R – Era sempre com cartas. Na primeira semana em que eu cheguei na escola, com oito anos, eles nos ensinaram a escrever cartas, como endereçar e como escrever, aí todo domingo nós tínhamos a obrigação de escrever carta para os pais, todo domingo eu escrevia carta para os meus pais e recebia, obviamente porque eu só os via nas férias, então a comunicação era assim.
P/1 – Qual era o fluxo de tempo das cartas, você se lembra? Quanto tempo demorava para chegar?
R – Ah, uns dois ou três dias e quando eles passaram a morar na Inglaterra, era de um dia para outro. Eu colocava no correio em uma segunda, na terça já chegava na casa dos meus pais, aí eles mandavam e um dia depois já chegava, da Bélgica geralmente levava dois dias.
P/1 – E teve alguma carta que você tenha escrito ou que você tenha recebido e que tenha te marcado?
R – Eu recebi dois cartões postais do meu pai quando ele viajou e eu não entendi a letra dele, então tive que pedir para o professor ler o cartão postal, disso eu me lembro bem.
P/1 – Você se lembra de onde eram esses cartões?
R – Eu acho que um era do Peru, mas eu não me lembro exatamente.
P/1 – Jonathan, você já contou dos professores que marcaram a sua trajetória, como que foi o processo de escolha profissional?
R – Eu ia ser uma coisa, mas acabei me tornando outra porque eu me preparei para entrar no exército como oficial, eu passei por um processo de escolha, de entrevistas com o regimento porque lá tem que ter uma vaga para depois entrar na escola dos oficiais. Eu tinha feito tudo isso e com 17 anos e meio eu estava jogando bola e quebrei o joelho, aí morreu de uma vez a possibilidade de entrar em uma carreira militar. Saindo da escola eu consegui um emprego através de um amigo porque lá é normal, você passa um ano fora da escola antes de entrar na faculdade. Eu tinha conseguido um estágio em um hotel cinco estrelas em Miami, eu ia para lá, alguns meses antes de efetivamente ir, o gerente geral do hotel que estava dando essa vaga foi enviado para Dubai, isso em 1986, então era no meio da guerra Iran e Iraque, Dubai não era aquela coisa que as pessoas veem hoje (risos), era bem simples, só tinha cinco hotéis. Eu acabei passando um ano lá e lá eu disse: “Nossa, essa é uma vida boa, eu acho que vou entrar no ramo de hotelaria”. Eu entrei uma faculdade para fazer hotelaria, só que depois de seis semanas, eu achei que seria muito chato e voltei a trabalhar, acabei trabalhando com esse ramo de atividade por uns dois, três anos em Londres. Foi lá que eu comecei a trabalhar com brasileiros que me convidaram para vir ao Brasil, para viajar, conhecer. Então, em 1989, eu vim para cá pela primeira vez, passei sete meses andando pelo país e aprendendo a falar português. O meu pai foi enviado em 1990 para Nova Iorque, foi o último trabalho dele, ele ficou lá até 1995. Como um bom pai ele falou: “Eu acho que seria importante ter faculdade, essas coisas, pode ajudar depois”. Eu acabei fazendo faculdade de antropologia na Universidade de Columbia em Nova Iorque, eu fiz três anos lá, depois eu descobri que eu poderia fazer um ano aqui no Brasil e transferir os créditos, aí eu fiz um ano, de 1993 a 1994, aqui na USP [Universidade de São Paulo]. Foi em Nova Iorque que eu comecei de fato a fazer o trabalho que eu faço até hoje, como voluntário eu trabalhava em um abrigo para famílias sem teto em Nova Iorque, trabalhando com as crianças, eu fiz isso durante três anos. Quando eu vim ao Brasil para estudar na USP eu comecei a trabalhar na Pastoral do Menor da região Sé com crianças de rua.
P/1 – Jonathan, eu quero saber alguns detalhes de cada um desses períodos que você foi relatando agora. Mas antes eu queria saber o que mais te chamou a atenção, o que te marcou durante esse ano em Dubai?
R – O que me marcou em Dubai foi trabalhar com pessoas do mundo inteiro, apesar de que eram oito nacionalidades principais. Eu vivia dentro de um mundo completamente diferente, eu chegava, entregava o passaporte para o meu entregador, não tinha muita liberdade, trabalhava feito um cão, nunca trabalhei igual na minha vida, era em média, 100 a 105 horas por semana, por quê? Porque tinha um limite para o número de pessoas, então no hotel, se tinha evento, todo mundo trabalhava também. Um exemplo, quem trabalhava como camareira também era garçonete, todo mundo dobrava, isso era normal. Mas foi muito bom, foi muita responsabilidade, eram pessoas diferentes, mundos diferentes. No mês da Ramadan [nono mês do calendário islâmico], que o hotel quase fecha, eu viajei para visitar colegas nas Filipinas. Para mim foi a minha primeira experiência de conviver em um país em desenvolvimento com pessoas bastante pobres, eu ficava na casa dos meus colegas de trabalho. Então, pela situação lá, eles tinham uma condição melhor porque o trabalho no Oriente Médio remetia dinheiro para lá, mas todos tinham que deixar filhos e tudo para trás, aí eu andei pelas Filipinas de casa em casa de amigos, durante um mês. Foi bem diferente das minhas experiências, mas uma coisa que não era tão complicada, no sentido que eu sempre fui criado no entendimento de que cada ser humano é igual a outro.
P/1 – Nesse ano em Dubai você chegou a receber alguma carta ou enviar alguma carta para a família, para algum amigo?
R – Sim, a gente continuava escrevendo, mas eu diria que nem tanto, foi o ano em que a minha avó materna faleceu, enquanto eu estava em Dubai, mas eu não retornei.
P/1 – Você contou um pouquinho da sua volta para a Inglaterra, eu queria que você contasse um pouquinho das suas primeiras impressões aqui no Brasil, quando você veio aqui pela primeira vez, você falou que andou por todo lugar, para onde você viajou? Conta um pouquinho para gente.
R – Eu vim para São Paulo porque eu tinha alguns amigos, fiquei hospedado no apartamento do irmão de um amigo. Eu descobri que no Brasil você não tem que conhecer diretamente qualquer um, o outro fala: “Não, pode ir lá que está ótimo assim” o que para mim foi muito estranho porque eu imaginava que ficaria com um amigo, aí ele falou: “Não, eu não tenho espaço, mas o meu irmão tem, você fica lá com ele que está bom”, então o acolhimento é extensivo a família, vamos dizer. Eu fiquei por um mês em São Paulo, me ambientando, começando a aprender a falar português e aí eu fui para Foz do Iguaçu, depois para Brasília, depois para Manaus, fiquei um mês em Manaus, depois fui descendo para Santarém, de barco, onde eu encontrei com outro irmão de um amigo que estava no Projeto Rondon, trabalhando com famílias ribeirinhas, era na época de Sarney com hiperinflação e eles não tinham recebido. Então a gente fez um combinado, era páscoa, a gente foi para Monte Alegre, era o único morrinho no meio da bacia do Amazonas, é um lugar muito bonito. A gente foi lá de barco, sendo que eu ia pagar para todo mundo, chegando lá eles esperavam que receberiam o salário depois do final de semana. Só que o barco chegou três e meia da manhã e deixou a gente dormindo até seis horas da manhã para desembarcar, quando nós acordamos estávamos sem mochila, sem nada, estávamos simplesmente com um chinelo, um calção, uma camiseta, minha rede e uma coberta, mais nada, todo resto tinha sido roubado. Depois descobrimos que as pessoas que roubaram pegaram outro barco e estavam saindo, já tinham se mandado. Aí passamos uma páscoa juntos, nós tínhamos dinheiro para cada um comer um sanduíche de queijo por dia e o dono do barco não ia sair, então ele deixou a gente dormir lá. Voltamos para Santarém, ali ficamos por duas semanas, até que um amigo em São Paulo conseguiu comprar uma passagem para eu poder voltar, eu paguei a minha hospedagem jogando xadrez com o dono da pousada todos os dias, esse era o pagamento que ele queria (risos), ele me deu comida, tudo. Voltei para São Paulo, consegui documentos, dinheiro, cheques, passaporte etc. Depois voltei a viajar por Manaus, Santarém, Belém, desci para Fortaleza e subi para Jericoacoara, isso em 1989, alguns amigos tinham ido para lá em 1986 de moto, eles me deram um nome de um pescador que hospedava e acabei ficando por três meses lá.
P/1 – O que te chamou a atenção lá? O que te fez ficar lá?
R – Como dizem lá, a água (risos). Tomar água, na época não tinha energia, não tinha água, não tinha banheiro, não tinha nada dessas coisas, tinha cacimba e mato, era bem simples mesmo. Eu gostei das pessoas, da simplicidade, eu ia pescar com o pescador, eu vivia e acabei estabelecendo relações familiares lá, eu me tornei padrinho de uma criança, eu tenho essa relação lá porque anos depois eu fiquei por muito tempo lá, eu estudava nos Estados Unidos e passava as férias de verão lá no Ceará, quatro meses por ano e ainda hoje eu continuo.
P/1 – Nessa época você já pensava que talvez você pudesse morar no Brasil?
R – Sim, eu fui vendo ainda em Jericoacoara, comecei a pensar: “Ah, eu vou abrir um restaurante, alguma coisa assim” e na época não tinha comunicação, tinha os Correios na cidade próxima, mas lá foi muito impressionante porque eu chegava a receber carta da Inglaterra em cinco dias, eu mandava carta, cartão postal porque eu passava meses lá, eu mandava ou para os Estados Unidos ou para a Inglaterra e funcionava, chegava
na cidade ou alguém que vinha da cidade trazia todas as cartas que chegavam para as pessoas do povoado e ia distribuindo.
P/1 – Como você fazia para receber carta? Qual endereço você dava?
R – Não, era só o nome e o lugar, com CEP e aí ou você ia aos Correios ou alguém vinha, como eu disse, quando abriu um posto telefônico as cartas iam até lá e as pessoas iam lá buscar encomendas, cartas, qualquer coisa, dependia de você ir lá.
P/1 – Jonathan, além das cartas, teve alguma encomenda, alguma coisa que você tenha recebido talvez de comida? Alguma coisa que tenha sido especial e que os seus pais tenham te mandando?
R – Não, de fato só cartas porque eu acho que é uma questão familiar, a gente sempre se adapta onde a gente estiver, então essa coisa de mandar coisa de casa, nunca fez parte da nossa cultura familiar.
P/1 – Me conta um pouquinho como que foi essa sua ida para Nova Iorque e a decisão de você estudar antropologia em Columbia.
R – Não foi muito pensado, eu estava vendo que não tinha como montar um restaurante, eu não tinha dinheiro, então eu disse: “Ah, então eu vou fazer” e na parte da universidade que eu estava, como eu era mais velho do que o normal para começar a faculdade, eu estudava com outras pessoas mais velhas ou que tinham sido transferidas de outras faculdades, até senhoras de 60, 70 anos, fazendo a sua primeira faculdade e todo mundo trabalhava, foi nesse momento que eu decidi então: “Todo mundo trabalha, eu também vou trabalhar” como eu não precisava financeiramente, eu me dediquei a trabalhar por tempo integral voluntariamente. Eu estudava, fazia todas as aulas até uma e meia da tarde e aí atravessava o Harlem para ir para este abrigo, eu trabalhava lá de segunda a sábado até a noite.
P/1 – E como foi essa decisão de trabalhar no abrigo? Por que você escolheu isso?
R – Eu escolhi de fato dois programas, um que eu fiz durante um ano e meio que era ensinar inglês para jovens hispânicos recém-chegados, imigrantes, e outro que era nesse abrigo com as crianças, quando eles chegavam da escola, às três horas, eu ficava, ajudava a fazer lição de casa, passeava e outras coisas. É porque a universidade é muito bem montada tinha cerca de 25 a 27 programas diferentes que os estudantes podiam aderir, tinha toda uma organização dentro da universidade voltada para voluntariado.
P/1 – Conta mais como era o trabalho.
R – Lá era basicamente isso, era após a escola, era com crianças de cinco a 15 anos, a maioria, as famílias eram alojadas nesse abrigo de seis meses a um ano para serem reestruturados e aí saíam para a moradia. Eu trabalhava com as crianças, ajudava na lição de casa, fazia atividades, praticava esportes, basquete, e tinha um número razoável de passeios, íamos para o Museu, eu levava para o parque, para o cinema, esse tipo de coisa.
P/1 – Teve alguma criança em que você tenha se apegado? Tem alguma história que tenha te marcado?
R – Eu trabalhei com algumas famílias, com duas famílias em particular, durante três anos, apesar de terem entrado e saído, eles continuavam morando perto e continuavam usando os serviços do abrigo. Então sim, as duas famílias: Brooks e Parsons eram famílias grandes com que eu mantive contato durante muito tempo.
P/1 – E nesses três anos pensava em voltar ao Brasil?
R – Não, de fato era para ser no terceiro ano, eu descobri no meu terceiro ano que existia, eu convenci a faculdade a me deixar a fazer o último ano e então foi meio no pulo que eu vim, não foi muito planejado, eu sou uma pessoa que deixa bastante a vida levar. Enu nunca planejei muito as coisas, eu vou interagindo com a vida, com as pessoas, com o que vem acontecendo.
P/1 – E como foi a sua chegada à FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas]?
R – No meu tempo na USP também tinha um programa especial de algumas matérias específicas que não contavam pontos nem nada e foi muito bom, eu tive o privilégio de fazer aula com a Lilia Moritz Schwarcz. Eu me lembro da estagiária dela de antropologia, Letícia, que estava fazendo o mestrado dela sobre capoeira, então ingressamos no mundo de capoeira logo e como eu fiz aula de sociologia, de geografia, de história, fiz um pouco de tudo porque eu já tinha matado a minha obrigatoriedade lá nos Estados Unidos, foi bastante livre. O que mais me impressionou foi o nível dos professores porque eu tive aula com os melhores professores da Universidade, já em uma faculdade americana, na graduação, as aulas são dadas por professores juniores ou alunos de doutorado, só tinha um professor bem de ponta na Columbia que eu me lembro, ele era belga, era um arqueólogo, ele dava aula na graduação, mesmo sendo um pesquisador de ponta. Então, essa foi uma diferença muito grande para mim ter esse nível de professores e a USP na época, eu espero que ainda hoje, reprovava por erros de português e apesar de que como estrangeiros nos era permitido um nível de erro de português, eu me determinei que eu não me deixaria, na USP eu realmente aprimorei a minha capacidade de escrita em português e teve greve, então eu só tive cinco meses de aula mesmo, depois ficou por três meses de greve, mas nessa época eu já trabalhava de noite no abrigo para crianças de rua.
P/1 – Onde era esse abrigo?
R – Era dentro do Viaduto Dona Paulina e do outro lado de onde é a funerária, antes de ocuparmos lá era usado para guardar os caixões da funerária. Então era um abrigo noturno para crianças de rua, funcionava das oito da noite às oito da manhã, isso em 1993 ou 1994, só durou seis meses, depois fechou. Lá tinha chuveiros, colchonetes, cobertas, nós oferecíamos uma refeição a noite, café da manhã, lugar seguro, banho, eles dormiam e faziam curativos, isso era o que eu fazia, éramos geralmente em três ou quatro pessoas que dormiam lá com cerca de 80 a 150 crianças e jovens.
P/1 – E como você chegou nesse abrigo?
R – Foi através da Pastoral do Menor, através da USP, eles me encaminharam para o Padre Júlio que já não estava na região central, já tinha aberto outras duas casas para crianças HIV [Vírus da Imunodeficiência Humana] positivas no Brás, mas aí ele passou para o pessoal da Pastoral do Menor da região Sé que estava com o Padre João André que estava na liderança na época, ele estava com o serviço de educador de rua, estava com esse abrigo, aí eu já comecei a trabalhar. Eu comecei a trabalhar no dia sete de setembro de 1993.
P/1 – E o que era mais difícil no trabalho?
R – Era tudo muito desafiante, muita violência, muita violência policial, tinha uma coisa no abrigo que ninguém podia entrar, a não ser criança ou nós; nós barrávamos a porta, então policial e pai não podiam entrar. Era um espaço seguro mesmo, ninguém podia entrar com droga, nem com produto roubado, nada dessas coisas, nós verificávamos criança por criança na entrada, o que é engraçado é que a gente fazia exatamente o que a Polícia faz, mas as crianças aceitavam e não era invasivo, não era uma violência, mas era uma condição de poder entrar.
P/1 – Nessa época você já começou a refletir sobre quais seriam os próximos passos?
R – Ah não (risos) que isso! Fui vivendo a vida, eu passei por algumas questões, sofri uma tentativa de linchamento na Praça da Sé em dezembro de 1993 e tive que fugir...
P/1 – Mas por conta do trabalho?
R – É, em decorrência do trabalho, eu tive que sair corrido de São Paulo, na época eu estava com a guarda de uma criança, eu tinha trabalhado com ela para ela sair da rua, chegamos ao Fórum de Santo Amaro, lá a equipe técnica procurou um abrigo e não tinha vaga em lugar nenhum e o juiz disse: “Então por que você não assume a guarda enquanto a gente espera para tentar resolver?” e aí eu acabei ficando com a guarda de uma criança de dez anos que frequentava a USP comigo, uma criança que tinha vivido durante anos na rua e ia para as aulas comigo lá na USP, foi muito interessante, ninguém reclamava, nenhum professor achou ruim. Aí aconteceu isso, um pouco antes do natal em 1993, eu tive que sair corrido mesmo, passei três meses lá no Ceará, em Jericoacoara, que era um lugar que eu sabia que era seguro, enquanto se resolviam as coisas em São Paulo. Aí eu voltei para a faculdade, voltei a trabalhar nas ruas, mas era sempre um problema com a Polícia, as crianças começaram a não quererem se relacionar comigo porque quando chegavam perto de mim a Polícia baixava em cima. Eu estava terminando a faculdade e fui trabalhar em Moçambique para as Nações Unidas em 1994, eram as primeiras eleições pós-guerra civil. Como eu falava português, eles precisavam de bastante gente, eu estava em Nova Iorque e fui fazer a entrevista com o Kofi Annan que na época era chefe das forças de paz pelo mundo e aí eu passei, trabalhei por quatro meses em Moçambique, na divisão eleitoral da ONU [Organização das Nações Unidas] e foi lá que eu decidi voltar em 1995 para cá. Lá eu morava junto com colegas em uma casa, nós acolhemos uma criança que estava morando nas ruas, íamos visitar a família no mato, organizei escola, essas coisas para que quando nós fossemos embora ele pudesse continuar na cidade, mas vivendo com a família e tudo isso. Nessa visita eu peguei malária, eu fiquei doente no avião voltando de Moçambique para Nova Iorque, mas ia parar em São Paulo, eu podia optar ou via Europa ou via América do Sul, eu falei: “Não, eu vou optar por via São Paulo” o que foi a minha sorte, eu cheguei ao aeroporto de São Paulo com mais de 40 graus de febre, imaginando que eu estava com malária eu cheguei e achei um lugar perto da Praça da República, me informei quanto ao que eu deveria fazer, me disseram para pegar um ônibus para Pinheiros e ir para o SUCEN [Superintendência de Controle de Endemia], então eu fui e recebi o diagnóstico e o tratamento médico imediatamente, foi espetacular, eu não teria sido tão bem tratado nem em Londres, nem em Nova Iorque, eles demorariam para achar o que era, era um tipo de malária falciparum, que é um tipo que existe até hoje, é um tipo que não vai embora.
P/1 – Jonathan me conta, por que você decidiu em Moçambique que você queria voltar para o Brasil?
R – Então, eu vi que era isso que eu fazia bem, eu gostava de trabalhar com crianças, então eu voltei para fazer isso.
P/1 – Jonathan, eu queria te pedir para você contar um pouco do seu trabalho hoje.
R – Hoje eu lidero uma ONG [Organização Não Governamental], uma organização de desenvolvimento comunitário em El Dourado, Diadema, eu estou junto a essa organização desde 1995. Inicialmente nós trabalhávamos com crianças de rua, mas estávamos embutidos em um bairro, em uma região com muitos problemas, muita violência, no final dos anos 90, era a região mais violenta da cidade e do estado de São Paulo. Então tinha muita demanda, muita necessidade. Nós abrimos um centro comunitário em 2001 e a partir de 2003 uma nova diretoria decidiu que a necessidade era muito grande. Então deveríamos focar no desenvolvimento humano e comunitário daquela comunidade que a gente vem trabalhando até hoje. Estamos desenvolvendo cada vez mais, trabalhando com educação, com cultura, com assistente social, com desenvolvimento econômico, com esporte, com o protagonismo juvenil que é o que fazemos hoje com relações com organizações na África, na América Central, América do Sul, na Europa... Intercâmbio de pensamentos, de construção de bases metodológicas, com diferentes coisas assim.
P/1 – E quais são os principais objetivos do momento do trabalho que você está desenvolvendo?
R – Então, a organização atingiu um nível de profissionalidade, uma equipe muito boa, que executa muito bem o trabalho, temos criado dois programas que pensamos em multiplicar, eu pessoalmente estou focando o meu trabalho no trabalho de tornar um programa que funcione em um lugar e possa ser multiplicado pelo Brasil, é um na área de educação e outro na área de assistência social. São programas que criamos a partir de uma experiência em Nova Iorque inclusive, com as crianças de lá, com a dinâmica familiar. Estava tendo uma epidemia de crack naquela época, uma violência gigantesca; esse programa é para apoiar famílias extensas a acolher crianças que o sistema judicial tira dos pais por questões de abuso, abandono, quando os pais estão viciados, então ao invés de irem para abrigos nós apoiamos a família extensa para poder acolher, esse é um dos programas. E outro é de promover o gosto pela leitura com crianças em escola pública, esse trabalho é feito por jovens da própria comunidade; eles realizam imersão de leitura, contagem de histórias e teatro de fantoches no intuito de fazer com que a criança pegue gosto por ler porque se não gostar de ler não adianta querer que leia muito ou estude muito, a ideia é realmente criar esse gosto. Esses programas nós já estamos realizando há um ano e meio com 3.600 crianças de seis escolas públicas, é algo que acreditamos muito e pode ser feito em muitos lugares. É a isso que eu estou me dedicando hoje principalmente, além de captar recursos e manter a organização, aí ninguém escapa.
P/1 – Jonathan, fora o trabalho, o que você gosta de fazer nas horas de lazer? Fala um pouquinho da sua família para gente.
R – Eu tenho seis filhos adotivos, cinco já não moram mais comigo, só o caçula mora comigo, o Gustavo que está com nove anos de idade, os outros tem entre 13, que voltou a morar com a bisavó, até 24 anos de idade, os mais velhos cada um está tocando a sua vida, trabalhando, com ou sem mulher, com ou sem filhos, é isso. Eu gosto muito de ler, eu sempre gostei de ler e de jardim, eu cuido do meu jardim e leio (risos) no meu tempo livre que não é tão grande.
P/1 – O que você considera de mais importante? Quais os seus valores?
R – Honestidade em tudo, transparência no sentido de falar honestamente em tudo e o respeito por todos, isso para mim é fundamental porque é só respeitando que se pode ser respeito, então eu acho que é isso que para mim é importante mesmo.
P/1 – Jonathan, quais são os seus sonhos?
R – Engraçado, eu não sou muito sonhador, eu sou muito de viver e ir fazendo as coisas, então eu diria que o meu sonho mesmo hoje, profissional, é de ver esses dois programas espalhados não por uma questão minha, mas por uma questão que eu vejo que eles podem fazer, podem melhorar a vida de pessoas e é claro que tem muitas crianças e muitas famílias que podem ter uma vida melhor com o auxílio desses programas. Então o meu sonho é no prazo de três a cinco anos os ver operando em outros lugares.
P/1 – Como você utiliza os Correios hoje? Você recebe encomenda? Ainda envia cartas?
R – Eu envio um pouco, eu recebo principalmente do meu pai porque o meu pai não usa computador, é tudo no manuscrito. Eu uso bastante no trabalho para documentos, esse tipo de coisa, mas eu uso muito eletrônico hoje.
P/1 – E tem alguma carta do seu pai de recentemente, dessa última fase que talvez tenha te marcado? Alguma coisa que ele tenha te escrito?
R – Ele manda bastante coisa porque a gente sempre foi muito de discutir política, desenvolvimento, esse tipo de coisa, então quando ele acha artigos interessantes na Inglaterra ele sempre me manda.
P/1 – Teve alguma situação difícil que ele tenha passado, tanto profissional, como pessoal que ele tenha te mandado uma carta? Vocês tem tido esse tipo de comunicação por correspondência?
R – Eu acho que não, porque eu não compartilho tanto com ele esse tipo de coisa, até porque ele tem pouca compreensão, hoje ele tem bem mais, de como funciona uma ONG de fato, a minha família mesmo não entende muito que é sério, que não é voluntarioso, é um trabalho como muitos, mas próximo a uma empresa do que qualquer outra coisa.
P/1 – E o que você de nós resgatarmos esses 350 anos dos Correios através das experiências vividas das pessoas?
R – Eu acho que da forma como vocês estão fazendo é a única forma legítima, porque os Correios é um meio, então quem pode contar não é quem é responsável pelo meio, mas quem usou esse meio. Então eu acho perfeito isso, muito bom.
P/1 – Como foi para você contar a sua história para nós? Voltar lá atrás, se lembrar de algumas coisas?
R – Eu acho sempre interessante porque coisas diferentes aparecem, momentos diferentes aparecem para nós como importantes.
P/1 – Então Jonathan muito obrigada, parabéns pela sua história de vida! Obrigada pela participação no projeto.
R – Obrigada vocês!Recolher