Correios 350 anos Aproximando Pessoas
Depoimento de Paolo Parise
Entrevistado por Isla Nakano
São Paulo, 04/06/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_002_Paulo Parise
Transcrito por Francisco Guilherme Ribeiro Ruiz
P/1 – Bom, primeiro eu queria agradecer ao senhor por ter tirado um pouquinho do ...Continuar leitura
Correios 350 anos Aproximando Pessoas
Depoimento de Paolo Parise
Entrevistado por Isla Nakano
São Paulo, 04/06/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_002_Paulo Parise
Transcrito por Francisco Guilherme Ribeiro Ruiz
P/1 – Bom, primeiro eu queria agradecer ao senhor por ter tirado um pouquinho do teu tempo, dar essa entrevista para a gente e participar do projeto. E para começar e, a gente deixar registrado, eu queria que o senhor falasse seu nome completo, onde o senhor nasceu e, quando o senhor nasceu.
R – Então, meu nome Paulo Parise, eu nasci dia 29 de janeiro de 1967, em Marostica, uma cidadezinha medieval do Norte da Itália.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – Meu pai se chama Antônio Parise, minha mãe Josefina Garzolla.
P/1 – E o dos avôs, o senhor sabe?
R – Então, os avôs do lado da mãe, Assunta e Marco, do lado do pai, Paula e Luigi.
P/1 – E qual é a história dessas famílias?
R – Olha, se eu paro do lado do pai [se eu falo por parte de pai], fugindo [eles fugiram] da Revolução Francesa, de Paris. E fugiram com uma mula, carregando um pouco de pertence, um pouco de ouro escondido, chegaram no Norte da Itália, onde compraram terras e tudo e, se instalaram. E, interessante é que depois de tantas gerações, estão ainda naquela região, depois de séculos, podemos dizer. Do lado da mãe são da região mesmo, também Veneto, mas porém na direção de Veneza. Então essas são as duas colocações, um pouco do lado do pai e mãe. Agora, o lado talvez da mãe, dá para lembrar um acontecimento: no final da Segunda Guerra Mundial, os alemães estavam se retirando, fugindo de volta para a Alemanha e, uma por incompreensão entre os italianos e os alemães, os alemães mataram toda a família do lado da mãe. Bisavós, tios, todo mundo, crianças de três meses, foi massacre, mesmo tendo terminado a guerra. Eles tiveram medo de serem mortos, enquanto fugiam para a Alemanha e então se vingaram e mataram. Eu tenho essas páginas também misturadas de sangue.
P/1 – E o senhor sabe como é que seus pais se conheceram?
R – Então, eles se conheceram em Marostica, aos poucos. Até engraçado, eu te falei que faleceu, durante a Segunda Guerra Mundial, no finalzinho, o lado da mãe, todos os parentes [parentes assassinados, história mencionada anteriormente], ficaram bastante perto de onde meu pai ia morar. E era aonde minha mãe muitas vezes ia porque achava um lugar mais seguro de guerra e, aquele dia, interessante, ela não foi, uma coincidência, quem foi morreu, todo mundo. Então, mas isso porque eram crianças, ela tinha seis, sete anos. Mas aí entrou uma possibilidade; as festas, e assim começaram a se conhecer e depois veio o casamento com o tempo.
P/1 – E o senhor chegou a conviver com os seus avôs?
R – Sim.
P/1 – Pode falar um pouquinho deles para a gente?
R – Olha, os avôs... É interessante porque infelizmente é uma região marcada pela guerra. Do lado de pai e mãe, todo mundo participou da guerra, seja da Primeira Guerra Mundial, seja da Segunda Guerra Mundial, quem fez experiência de campo de concentração, quem fugiu da Alemanha a pé chegando na Itália depois de um mês e dez dias. São histórias marcadas por isso, mas histórias marcadas também por uma região que, antigamente foi muito marcada pela miséria, pela pobreza e, que a partir dos anos 60, explodiu economicamente. É uma região que se tornou muito bonita, referência na Itália. Então eles viveram, os avôs, a fase de sofrimento, a fase agrícola, muito dura, e depois a fase da explosão da micro indústria, das pequenas indústrias, foi isso que deslanchou a região.
P/1 – E, pode falar um pouquinho das atividades dos seus pais? O que eles fazem, faziam?
R – O pai, no fundo, é filho de pequenos agricultores, com toda terra deles. Ele deixou a uma certa altura a parte da terra com meu tio, começou a trabalhar no começo como pedreiro, depois também em uma firma,
ele foi [trabalhava] como operário mesmo. A terra ficou sempre nossa, mas do outro lado deixando o tio cultivá-la. Do lado mãe, ela sempre trabalhou em casa, a mesma empresa do pai, que lá na Itália onde nasci, era muito utilizado o jeito de levar o trabalho até o trabalhador, para o trabalhador não passar todo o seu tempo na firma. Então eles levavam as máquinas em casa, você tinha um quarto, onde você tinha várias máquinas e a firma trazia 30 mil, 40 mil peças por mês, a pessoa trabalhava em casa. Eu também lembro, criança, a gente brincava trabalhando montando interruptores de eletricidade, fazíamos isso como fosse uma brincadeira. A gente cresceu assim, pode-se dizer, com a presença da mãe muito forte em casa. E também os colegas, amigos, como tinha muito espaço, eles vinham brincar lá,
eu lembro que toda a minha infância até a adolescência, foi toda uma fase vivida junto com colegas em casa.
P/1 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho duas irmãs.
P/1 – Duas?
R – Uma 22 meses mais nova e outra de 11 anos mais nova.
P/1 – E eu percebi que o senhor conhece bastante da história da tua família. Eu queria perguntar, o senhor gostava de ouvir história quando era pequeno? Quem contava essas coisas? Como é que o senhor foi aprendendo isso?
R – Olha, história, eu achava muito bonito, por exemplo, dos avôs, tios mais velhos, de ouvir contar pedaços. Por exemplo, o tio que dizia que na guerra de 1915, 18, tinham momentos que o inimigo, os austríacos, guerra de trincheira... Que até se trocava cigarros com o inimigo, depois chegava a ordem, o momento da briga, da guerra mesmo e eles se matavam, o absurdo da guerra. Eles contavam o lado humano, ninguém estava lá para matar outro, do outro lado a obrigação, senão eles eram mortos. A irracionalidade da guerra. Essas coisas eu gostava muito de ouvir falar, por exemplo, na região onde nasci, também tem o castelo onde nasci, imagina, o castelo tem mil e 100 anos, caminhar no castelo, olhar as muralhas, tudo isso. Quando era criança, a igrejinha onde nasci, onde fui batizado, está construída e ainda não tinham sido feitas as escavações, em cima de um templo romano dedicado a deusa Diana. Então imagina, brincando encontrei até pedaços sepulcrais, que agora estão em museus em Vicenza, com escrito em latim, “Aqui veio a viúva Fulana fazer todos os rituais funerários do marido romano que faleceu em guerra contra”, isso no 114 antes de Cristo, mais ou menos. Então, eu sempre gostei de história, é muito bom isso. Ia no verão caminhar nas montanhas, montanhas consideradas sagradas porque são marcadas pela história. Tudo isso sempre adorei. Acampar também, ia com meu pai acampar em dois mil metros de altura. Eu cresci conhecendo a região, gostando da região, fazendo estas trilhas que tem 800, 900 anos, para ir nos Alpes, passava o verão nos Alpes, na divisa da Áustria. Isso faz parte da vida, a gente está muito acostumado lá.
P/1 – E agora, é bacana que o senhor falou um pouquinho da tua infância, as coisas que gostava de fazer. Era exatamente isso que eu queria te perguntar, qual é que era a tua brincadeira preferida de criança, que você mais gostava?
R – Eu gostava muito de animais, até tinha muito animal em casa, desde coruja, tartarugas, todo tipo de animal. Mas a gente fazia brincadeira de grupos com os amigos, então dez, 15. Agora uma coisa que muito gostava eram jogos de grupos, com o kart, sabe aquele carro para dirigir? Eu comecei a dirigir com nove anos de idade, kart à 80 por hora, adorava fazer isso, a gente cronometrava o tempo, fazíamos competições entre amigos, tudo isso e, futebol, vôlei, depois começou tênis e, ainda patinação no gelo. É uma região muito boa para mountain bike, bicicleta e muita coisa. Pescar, adorava ir nos rios lá nos Alpes para pescar, depois uma coisa que aqui não tem, por exemplo, encontrar cogumelos na mata, levantar às três da manhã, subir nas montanhas, procurar o cogumelo, aprender aquele que é mortal, aquele que é bom, aquele que é o melhor. Muito bom isso, saudades.
P/1 – E o senhor até contou para a gente, onde a casa que o senhor morou foi construída. Eu queria que o senhor, o senhor lembra como é que era dentro da casa? A divisão? Os quartos?
R – Oh, uma casa muito pequena, três andares. Então, o andar de baixo, estacionamento com dois carros, uma lavanderia, um banheiro, um lugar só para o vinho maior, onde tem só vinho, porque isso é obrigatório, estamos na Itália, o pai faz vinho também. Depois uma sala para o aquecimento de toda casa, dos três andares e uma cozinha no andar de baixo que a gente usava no verão quando fazia calor, a gente descia. No andar do meio, três quartos, banheiro, corredor, sala, outra cozinha que a gente usava no inverno. E no andar de cima, terceiro andar, banheiro, quarto para visitas e, uma, duas, três, outros quatro quartos que a gente colocava coisas que não usavam, era bicicleta que não usava mais, pôs então um depósito lá no terceiro andar. Depois fora [na parte de fora] tinha ainda um espaço, onde ao lado da casa tinha todo parreiral à três metros de altura, mais ou menos 20 metros onde no verão a gente colocava mesa e a gente jantava fora, tomava um copo de vinho com amigos, um café. Espaço não faltava e não falta.
P/1 – E como é que era, assim, a rua, os vizinhos, a relação com o pessoal da região?
R – Uma região que eu chamaria quase muito semelhante ao interior, apesar de que tem tudo o que a cidade tem, então se misturam as duas coisas. Você quer piscina, tem piscina, você tem campo de vôlei, de futebol, de futebol de salão, de basquete. E com os vizinhos, quer dizer, a realidade então de bairro, muito unida no organizar festas, momento de solidariedade, a religião muito unida, a vivência da religião, uma proximidade com o padre da região. Tem a pequena escola onde a gente cresce junto, é tudo um ambiente familiar, definiria [assim define] a pequena cidadezinha, o bairro, melhor.
P/1 – E tinha algumas festas que eram perto da cidade ou da região?
R – Tem, o bairro onde eu nasci tem a festa, que é o primeiro final de semana de maio, é a Festa de San Floriano, que é o nome do bairro, que era um soldado romano que morreu em uma perseguição na Áustria, pelo fato de ser cristão, penduraram uma pedra de moinho e afogaram em um rio da Áustria. Tem esta festa com todos os seus elementos típicos, de uma festa de primavera. A Prefeitura chama Marostica e, o bairro faz parte disso, ela tem uma tradição que é conhecida em nível internacional, o jogo de xadrez ao vivo. Então cada dois anos, os anos pares, então 2014 é a próxima vez, em setembro, o segundo final de semana de setembro, se faz a festa, se lembra o mito, história se junta. O dono do castelo de 1100 anos atrás tem uma filha linda que todo mundo quer casar, os dois que se sobressaem pedem ela em casamento, o dono do castelo não quer que se desafiem com espada, não quer ver sangue. O que ele faz? Ele faz construir um tabuleiro na frente do castelo e calcula mais ou menos 30 metros ou mais, o tabuleiro enorme de mármore e, aí os dois se desafiam no nobre jogo de xadrez. Quem ganha casa com a filha do castelano, como se fala, Eleonora, chamada. E acontece todo esse desafio, cavalo de verdade, torre de verdade, peão de verdade, tudo e, no final tem a entrega da menina. A reconstrução mitológica é através de mais de 500 roupas da Idade Média, atrai muito turista porque é uma daquelas representações culturais, não se usa italiano, mas dialeto de Veneza de 1100, 1200, a terminologia, os costumes, o ambiente com o castelo, o incêndio do castelo, homens armados, toda a reconstrução, é muito bonita. Uma vez fiz a parte do, como se chama, do Alfiere e do Lo Scudiero, que é aquele que representa a família. Fiz esta peça também, participei, equipe com a gente fazer participarem uns dos 500 personagens desta representação.
P/1 – E como é que era a preparação para essas festas, quando participava?
R – Ensaio, ensaio, ensaio. Muito ensaio, os últimos ensaios com todas as roupas, armaduras, tudo e lente de contato, nada de óculos, tudo isso. Depois começa a apresentação ao público, quinta-feira à noite, sexta-feira à noite, sábado à noite e três apresentações no domingo. É uma coisa muito bonita que atrai pessoas e que fazem também no mundo, já fizeram no Brasil, em São Bernardo do Campos, já fizeram no Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, no Japão. Então isso, eles fazem também vários lugares, até porque a música, é música medieval também. Instrumentos a corda, é tudo, o ambiente é muito bonito.
P/1 – E além dessas festas, você contou uma festa para a gente típica, eu queria saber das festas na sua casa. Era comemorado Natal? Aniversário?
R – Ah, havia as festas normais de aniversários, as festas dos parentes, dos avós, dos tios mais próximos, depois festa do Natal, de Páscoa. Todas as grandes festas, agora lá tem a festa que não tem aqui, que é do nomastico, a festa do nome da pessoa, por exemplo para mim, o dia de São Paulo. Então aquela é uma festa como festa de aniversário, da coisa que aqui tem só o aniversário, mas lá tem duas. Então quem tem o nome Ana, no dia de Sant’Anna, no dia de São José, cada um com o seu nome faz a festa de nomastico também. Normais todas essas festas, mas também acho que em casa, pai e mãe também tinham aquelas coisas as vezes de transformar um dia normal em festa, sem nenhuma razão especial, inventava, comprava aquele doce e fazia festa.
P/1 – Tinha alguma comida especial, assim, dessas festas que as avôs faziam, que marcou ou tenha marcado a sua infância?
R – Olha, cogumelo, polenta brachola, que é um tipo de carne. O feijão feito com um tipo de molho típico da região que na festa que fazem em maio, se faz esse tipo de feijão com esse tipo de molho, no molho tem sardinha, carne de porco, alcaparras, toda uma série de coisas que faz um molho que é uma delícia. Depois tem doces, não sei, os doces das montanhas, com mirtilo, com aqueles frutinhos de montanha típicos também, muito bons. O pai ao redor de casa, ele plantou muitas árvores, então tinha todo tipo de fruta, cereja, maçã, pera, pêssego, então é só ir na planta. Minhas sobrinhas agora, tenho seis sobrinhas, elas vão lá na casa dos avós, se penduram na planta e pegam o tipo de fruta que querem, é algo bonito até porque o pai não usa venenos, é natural 100%. Além de ser gostoso é saudável.
P/1 – E agora eu queria perguntar para o senhor. O senhor lembra quem é que entregava a correspondência na sua casa? Como que isso funcionava na cidade?
R – Então, lá na Itália tinha il postino, como se chama lá, tem até um filme Il Postino. Ele entregava, claro, em cada casa todo dia, todo dia de moto, ainda hoje continua assim, todo dia ele dá volta em todas as ruas. E até meio dia ele termina de dar a volta. Então ainda hoje de segunda a sábado funciona assim, como quando nasci, entregando as cartas, entregando os cartões. Ainda hoje quando o pessoal vai no verão, ou vai viajar, o costume é mandar um cartão para as pessoas mais próximas, apesar de ser a era da internet e tudo, de outras formas de comunicação, o cartãozinho daquela praia aonde vai, ou daquela montanha, ou daquela cidade, todo mundo escreve duas linhas e manda para aquelas sete, oito pessoas mais queridas, isso ainda se faz. Ainda aqui, estando no Brasil, recebo isso ainda hoje as vezes daquela praia no sul da Itália, lá em Gargano, ou da Óstia, ou de outros lugares.
P/1 – E como é que é a sensação de receber ainda hoje, assim, nos dias atuais, um cartãozinho?
R – É sempre um efeito, acho, parece mais cheio de vida que um simples e-mail, que um torpedo. Você percebe, eu por exemplo, todos os dias me comunico com a Itália com voiper, então as vezes até não preciso nem de e-mail, me conecto. Mas o cartão parece que é um pedaço de uma experiência que está chegando, é a experiência que está fazendo você de férias naquele lugar e lhe arranca aquele pedaço e te chega, está cheio de vida, carne, não é um pedaço frio, diria isso.
P/1 – E o senhor lembra que tipo de correspondência dos seus pais recebiam? Se comunicavam com alguém de longe?
R – Então, meus pais se comunicavam com, por exemplo, a mãe, com uma tia que não morava mais na região, que tinha ido morar em Perugia e, com um tio que morava em Bolzano. Dois tios, minha mãe, eram dez, ela tinha nove irmãos, com ela dez, e dois se espalharam em outros lugares da Itália, então com eles eram cartas. Enquanto o pai, sendo que todo mundo ficou mais ou menos na mesma região, era menos isso e mais a visita, eles davam pulo, domingo a tarde para fazer uma visita. Então foi assim, agora quando eu vim para o Brasil, a primeira vez em 92, aí sim, era com cartas. E aquela demora, esperava uns 15 dias para a carta chegar, ou para eles receberem, ou com os amigos da Itália, vários lugares, de Roma, de Loreto, de Piacenza, de vários lugares da Itália, todo este tempo. Teve um tempo atrás que arrumando as caixas encontrei, foi tão bonito olhar, as vezes nem abria a carta, mas olhava só quem tinha escrito. Essa fase de 92 à 95, que estava estudando no Brasil, a primeira vez que vim aqui, era já aquela demora para ver a carta chegar ou a demora para eles receberem, a carta escrita pela mãe, pela irmã.
P/1 – E teve alguma que você tenha recebido que tenha te surpreendido, que tenha marcado mais do que as outras?
R – Eu acho que em nível de cartas, porque também na época era tudo por carta, a não ser as notícias principais que eram por telefone, aquela coisa, minha irmã: “Estou grávida, vai nascer o primeiro, o seu sobrinho”. Então era tudo por carta, mas eu acho as partilhas mais, as vezes marcadas pelo sofrimento, alguém da família que estava passando por algum momento mais complicado e que desabafava na carta, isso me marcaram. Uma tia que estava com câncer, que depois acabou falecendo, que morava ao lado da casa dos meus pais. Essas cartas são muito cheias de significados, acho que aquelas me marcaram muito.
P/1 – Agora eu queria perguntar para o senhor um pouquinho, só voltar um pouquinho, a sua família tinha uma tradição religiosa? Vocês iam bastante a igreja? Como é que era isso?
R – É, do lado, eu diria a família não só pai e mãe, mas também os avôs, os bisavôs, os dois lados, do pai e da mãe, tinham essa raiz bem forte religiosa. A igrejinha que lá era referência, eu nasci em uma região onde calculo que tinha um padre a cada mil habitantes, a relação também com o padre era muito próxima. Ele era um amigo, um companheiro de casa, as vezes vinha almoçar em casa, jantar. Tem essa relação de proximidade. No verão, por exemplo, se sai junto, as vezes, ainda tem o primeiro ano na escola, o segundo, o terceiro, junta, pegam três, quatro pais juntos com o padre e vão em uma montanha, vão na praia por uma vez semana. Tem ainda hoje e continua esta proximidade interessante. Acho que o ambiente era um ambiente religioso, eu diria.
P/1 – E o senhor até falou, mencionou um pouquinho da escola da região, da escolinha. O senhor lembra do primeiro dia de aula?
R – No primeiro? Acho que cancelei, quem sabe. O primeiro, lembro de alguns detalhes da creche, por exemplo, algum detalhe quando ia na creche de quatro, cinco anos. O primeiro dia de aula na escola que a gente chama escola elementário, lá confesso que o primeiro dia mesmo, não lembro. Lembro outros detalhes, mas não gravei, até porque gostava de ir.
P/1 – E o que é que o senhor mais gostava da escola?
R – Da escola gostava dos passeios que a gente organizava. Imagina uma escola, o número, nove estudantes para um professor, não é como aqui, são 30, 40. Quer dizer, um número muito reduzido e acompanhados, muito bem acompanhados, por exemplo, os primeiros cinco anos. Contato com natureza, passeios, aprendizagens, as brincadeiras, a gente brincava na escola, brincava na rua, brincava em casa com o mesmo grupo. Havia um grande elo, realmente eram várias dimensões da mesma família, a gente se encontrava na catequese na escola, na rua para brincar, na escola para estudar, mas era sempre o mesmo grupo, os mesmos noves unidos em tudo.
P/1 – E tem algum professor que tenha marcado na sua trajetória escolar?
R – Nos primeiros cinco anos, na época eu tive só uma professora que acompanhava a gente, chamava, o sobrenome Farinha. Depois quando fui para a escola média, como se chama lá, que são os outros três anos depois dos cinco iniciais, sexto, sétimo, oitavo ano, lá tem uma professora, que ainda está viva, que acho que tem 96, 97 anos, que lembro de Matemática, aquele de italiano que era do sul da Itália, da Campagna. Lembro vários. Quando entrei no Liceu, cinco anos da escola superior, também lembro muito dos professores de lá, muito exigentes, na época faziam a gente sofrer demais, até porque a escola era muito conhecida pelo nome, famosa e, aí eles exigiam, diziam: “Aqui tem que sair com as melhores notas porque tem tradição”. Na época foi muito sofrido, mas depois a gente reparava que foi uma aprendizagem. A gente tem um método de estudo, de aproximação, de pesquisa, inegável, fruto dessa etapa dos 15, 16, 17 a 18 anos. Na época a gente não agradecia muito, mas depois... Também o professor de Educação Física, muito legal. Tenho boas lembranças da escola, até brincadeiras, tudo.
P/1 – E conforme o senhor foi crescendo, tinha alguma matéria que o senhor foi se identificando mais? Começou a adquirir alguns gostos por isso?
R – Ah, por exemplo, a Educação Física eu gostava muito, depois gostava de Italiano, Literatura, Matemática não gostava, Física não gostava, Latim não gostava, Grego não gostava, Francês gostava, Inglês mais ou menos. Depois Ciências sim, adorava muito, Ciências Naturais, Química. Literatura porém eu adorava, História gostava muito, demais. Mas Matemática e Física eu não gostava.
P/1 – E o que é que o senhor queria ser quando crescesse?
R – Tive várias fases, quando era criança, criança era um circo que eu queria ter, gostava muito de animais, era meu grande sonho. Depois queria lidar com natureza, uma certa altura veio a ideia de ser missionário, padre. Depois desisti, depois dos primeiros dois anos, três, não aguentei muito, tinha que ir longe da família, sai. Depois de um tempo voltei, mas com outro grupo, outra Congregação, que é aquela que me encontro atual. Aí começou esta, diria, aproximação, conhecimento da dimensão religiosa, passando por momentos lindos, momento de crise e tudo, até que amadureci a ideia.
P/1 – E quando que foi que o senhor começou a pensar em ser missionário?
R – Oh, começou já a partir dos 17, 18 anos. Agora depois mesmo sério a partir dos 20, 21 anos, aí começou já a coisa ser mais séria.
P/1 – E conta um pouquinho para a gente o que é que foi mais difícil nessa decisão, o que é que foi mais gratificante?
R – É, o difícil foi sair da família, em vários níveis. Sair da família a primeira vez,
fui morar a sete quilômetros. Depois fui morar a 300 quilômetros, depois foi a 500 quilômetros e, no final quando me pediram de vir para o Brasil, eu estou a nove mil quilômetros. O afastamento da família, dos amigos, do tecido social onde cresci, isso custou muito. E depois, talvez em cada lugar onde morei, me apegava muito as pessoas. Cada vez depois de três anos, quatro anos, ter que sair e a recomeçar tudo de novo em um outra cidade, é o desafio do novo, mas também o sacrifício, dói abandonar, se afastar das pessoas. Isso acho foi um elemento que me fez sofrer bastante na caminhada.
P/1 – E durante a juventude, mais ou menos nesses 17, 16 anos, que é o período de escolha para o senhor, o que é que o senhor gostava de fazer aí? Gostava de passear com os amigos? O que é que o senhor fazia?
R – Ah, gostava, como todo mundo, brincar, jogar bola, jogar vôlei, esporte em geral, tênis sempre adorei, como falei antes, patinação no gelo, esquiar. Todas essas atividades e, também ir no cinema, se encontrar, fazer atividade, subir em uma montanha. Um pouco de tudo, eu acho, o contato com o esporte, com natureza, sempre gostei muito.
P/1 – E o senhor viajava? Chegou a conhecer outros lugares da Itália mesmo? De outros lugares?
R – Sim, seja da Itália, de maneira especial a parte alta das montanhas, subindo, indo na direção de Trento, Bolzano, toda a parte na divisa com a Áustria, toda aquela parte. Depois Itália central, Itália Meridional, a Europa, Alemanha, França, Suíça, Áustria, Holanda.
P/1 – Teve alguma viagem que tenha marcado, assim? Uma viagem ter sido muito bacana?
R – Hum, fora da Itália ou na Itália?
P/1 – Tanto faz.
R – Olha, da Itália, são muitos lugares. Sabe por quê? Por exemplo, eu lembro a primeira vez que fui para Roma e, depois quantas vezes voltei para Roma. Uma cidade bagunçada, antiga, em relação a parte mais organizada onde nasci, o norte mais organizado, mais frio, como é mais bagunçada, mas é linda. Conhecer a parte romana, a parte etrusca. Falando em etrusca, a Toscana para mim foi a grande descoberta, depois de muito tempo que conhecia vários lugares da Europa, conhecer a Toscana etrusca, Firenze, Pisa, Siena, esta parte, a parte para dentro, pré-românica é algo de fantástico. Conhecer le vie cave di pitigliano, um lugarzinho em cima do morro que tem mais ou menos 14 ruas escavadas na pedra, ainda feita antes de Cristo, que vão para frente cortando, você vê as montanhas cortadas e vai para frente, vai em lugares sagrados, onde tem túmulos, tudo isso são lugares muito bonitos, a culinária, o vinho, a geografia. Eu começaria já pela Itália, depois também Europa, lugares muito lindos, mas a mesma Itália, Veneza, que a região é uma hora de trem, de onde nasci dá para ir para Veneza. Entrada em Veneza, nos Palácio do Doge, Palazzo Ducale, muito bom...
P/1 – E o senhor contou da suas primeiras separações da família, dessa dificuldade, você comunicava por carta com a família? Ou por algum outro meio?
R – Sim, não quando fui a sete quilômetros, que era perto, mas quando comecei ir mais longe, 300 quilômetros, 500 quilômetros, além do telefone, com os amigos e tudo existia sempre a admissão da carta. Uma mensagem mais refletida, partilha de alguns momentos. A carta marcou este momento também da vida, seja na Itália, seja como contei quando vim para o Brasil.
P/1 – E como foi que o senhor começou a estudar Filosofia, Teologia?
R – Filosofia eu comecei a fazer em Ancona, mais ou menos na Itália Central e, lá fiz três anos de Filosofia. Depois que fiz um ano de estágio e pediram para eu fazer uma troca internacional, dois italianos virem para o Brasil e dois brasileiros irem para a Itália. É aí que em 92 eu vim para cá e, aqui no Brasil fiz quatro anos de Teologia. Pode-se dizer a Filosofia foi feita na Itália, a Teologia aqui no Brasil. A Filosofia que adorava, realmente, desde a Filosofia Clássica, Filosofia Contemporânea, talvez a Medieval não muito, mas a Contemporânea também muito boa. Também dos grandes filósofos, desde Nietzsche e outros também, Kierkegaard, Sartré, muitos filósofos dos últimos séculos, assim, muito bons.
P/1 – E teve algum livro que tenha marcado esse período, ou algum autor específico?
R – Livro de Filosofia ou livro em geral?
P/1 – Pode ser tanto de Filosofia quanto alguma coisa que você tenha lido que tenha marcado o momento.
R – É, eu posso dizer que Nietzsche foi um autor que me interessou bastante, mas também os clássicos, Platão, Aristóteles, Agostinho, vários autores que eu gostei. Depois literatura italiana, aí sim, desde Montale, Dante Alighieri, Manzoni, toda literatura italiana, muito bom poder ler, acompanhar. E depois também os grandes diretores de cinema, mas aí a gente entra em um outro... O Pasolini, outros autores. Mas na Literatura, acho a literatura italiana, mais poesia do que narrativa, eu gostava muito.
P/1 – O senhor falou do cinema, o senhor ia ao cinema na sua cidade?
R – Sim.
P/1 – E o senhor lembra, tem algum filme também que tenha marcado a juventude?
R – Sim, agora, tem filmes italianos que não saberia, por exemplo, gostava muito de filmes do ator e diretor de La Vita è Bella, o Benigni. O Benigni, gosto muito dos filmes dele, depois tinha autores italianos, Terence Hill, Bud Spencer, filmes até para se divertir assim. Depois Fracchia la Belva Umana, Fantozzi, este aqui são filmes italianos, nem chegam aqui, nem chegaram acho a maioria. Gostava muito, ou também filmes mais internacionais, estilo americano. Mas os italianos também gostava.
P/1 – E essa vinda para o Brasil, como que foi de trocar os estudantes, dois, dois. E como é que foi essa decisão de escolher vir para o Brasil?
R – Posso dizer que foi contra a vontade no início, eu nunca iria ver, até estava pensando de largar tudo, de largar a caminhada da vida religiosa, de me tornar padre, porque não queria. Como nós fazemos, durante o processo de formação já tem momentos de estágio, a gente era treinado também para viver a questão de se deslocar de lugar para outro, tudo isso, no começo eu não queria. Não queria mesmo, foi muito sofrido e, também os colegas, ninguém na nossa turma queria, porque alguns foram para a Filipinas, outros foram para Chicago no Estados Unidos, outros aqui, outros em Buenos Aires, então fomos pulverizados pelo mundo. Ninguém tinha noção de onde ia, mas talvez era vontade de ficar onde a gente nasceu, na terrinha, na Itália. Agora depois do primeiro ano que foi sofrido, pela saudade, porque acho que entrar em uma realidade é morrer uma parte da gente e renascer para apreciar a cultura e todos os detalhes, comecei a gostar. O primeiro ano foi um ano sofrido, depois não me arrependo de ter topado vir ao Brasil. Tanto é verdade que agora para mim Brasil, Itália... Me sinto em casa nos dois. As vezes vou morar em Roma por dois anos, volto aqui, me sinto em casa realmente. Claro que agora morando mais no Brasil, quando a gente volta, as vezes sente que a Itália, claro, como todo país, a gente fossiliza na cabeça o país de origem e, o país vai pra frente e, a gente fica sempre um pouco defasado. Mas é típico da migração, isso, de sair de um país.
P/1 – E como é que foi essa chegada aqui no Brasil? Aonde que o senhor veio morar? Conta um pouquinho para a gente.
R – Oh, o primeiro impacto foi no Aeroporto de Guarulhos, quando desci do avião e a polícia pediu exames médicos, todos os exames médicos para verificar se estava bem de saúde para poder entrar. Tinha todo pacote, só que não entendia a palavra chapa, o policial me pediu a chapa de pulmões, eu fiquei: “Chapa? Chapa?”, fiquei boiando, até que teve uma pessoa que me traduziu para outro idioma, aí eu consegui entender. Até estava se irritando o policial [policial ficando irritado]. Depois a coisa estranha, por exemplo quando eu fiz o visto em Milão, eu não entendia porque tinha que escrever que não teria entrado em questões sociais, não teria entrado no Brasil em território indígena, tudo isso tinha que assinar, pena expulsão. Então era coisa que eu não entendia na época, mas que eram resquícios da época militar, no fundo existia isso. Agora, chegando aqui, depois foi uma surpresa uma atrás da outra, aprender a questão do idioma, que não conhecia, a culinária, a cultura. Tudo isso foi uma descoberta atrás da outra, os primeiros meses estudar o idioma, ir na escola para aprender falar, então foi bem interessante, gostei.
P/1 – E aonde que o senhor veio morar aqui?
R – Vim morar no Ipiranga. Então morei quatro anos no Ipiranga e, estudava lá também no Ipiranga, depois fiz escola também de idioma Euro School, na época existia, onde estudei Português, então foi tudo lá. E depois na mesma escola precisaram de professor de italiano, aí eu dei por três anos italiano na mesma escola onde estudei português e, aí fiz os quatro anos de Teologia lá, até o Bacharel. Depois fiquei em Vicente de Carvalho perto de Santos, um ano, de lá precisava de professores, me pediram se podia me formar, fazer Mestrado. Aceitei, fui para Roma onde fiz dois anos e meio de Mestrado, voltei, só que eu pedi, se tinha que dar aula, eu gostaria de morar em periferia e, não morar no Centro de São Paulo, minha escolha foi morar no Grajaú. Morei nove anos no Grajaú, do Grajaú dava aula no Ipiranga dois dias por semana, então fiz isso. E lá no Grajaú foi um lugar fantástico, ainda hoje metade do coração está lá, em nove anos conhecia praticamente a região inteira, iniciamos todo um trabalho contra violência, que ainda hoje continua, chamado Evento Pela Paz no Grajaú e, realmente foi toda uma experiência linda, de maneira especial com os jovens da região, contra a violência. Aí nasceu, depois que mataram um jovem dentro da igreja, de 14 anos, uma série de atos de violência, nós começamos a nos movimentar, daria para gravar horas e horas quando narcotraficantes derrubaram a porta de casa para entrar, para me procurar, para me bater. Quando o chefe do tráfico mandou dois de motos para me acertar, porque estava atrapalhando, tem cada coisa lá que daí vai fazer um livro só sobre esse capítulo de atuação pela paz no Grajaú.
P/1 – E porque é que o senhor escolheu morar no Grajaú?
R – Porque, no fundo o que movimentou estava, eu não diria o fato principal, mas junto com a vocação era poder ajudar em lugares de mais necessidade. Quando vi todas as possibilidades que me ofereceram, São Bernardo, Santo André, Ipiranga, Vila Prudente, tudo, quando eu vi que, e teria também Grajaú, mas só que aí ninguém queria. Quando veio isso, eu falei: “Quero ir”, nem conhecia, “Eu quero a Grajaú”, mas aí aceitei e foi muito boa a experiência, o contato com as pessoas. Quer dizer, seja a religião de uma maneira diferente, por exemplo, em uma semana eu passei mais de 40 Igrejas Evangélicas, batendo a porta, para ver se a gente podia fazer um trabalho junto com jovens, sem jogar as pedras uns com outros, mas a gente atuar em favor da vida, da vida do jovem que estava morrendo por causa de droga, de violência, de tiros. Então, coisas, experiências muito bonitas, com organizações da Sociedade Civil, ONGs, foram nove anos lindos lá.
P/1 – E quais é que foram os principais frutos desse trabalho?
R – Olha, eu diria, primeiro que muitos daquela garotada, hoje em dia atua em projetos sociais, ONGs, com protagonismo extremo. Você percebe desde a região sul e outros lugares de São Paulo onde estão espalhados, como eles estão atuando, aqueles valores que eles receberam, aqueles ideais estão vivenciando hoje em dia. Isso para mim... Já é suficiente ver isso. E depois, foram as pequenas conquistas, não sei, o grupo do Circo Escola do Grajaú, de Street Dance, que nós vimos crescer e tudo, ver ganhar o primeiro lugar em São Paulo por dança contemporânea, com as melhores escolas do Morumbi, do Alphaville, tudo, garotada de favela. Foram tantas coisinhas, muito bonitas as conquistas na época e, depois também hoje em dia, quando a gente se encontra, a gente se fala, se manda um e-mail. Uma fase muito bonita.
P/1 – E como que foi essa resistência do lado do narcotráfico? Porque na verdade o senhor também estava atuando, ajudando a região a desenvolver a parte social.
R – É, a questão era, a regra básica claro era não atacá-los diretamente, essa era a regra básica. Agora eu fiz, acho que o segundo Evento Pela Paz, eu não sabia, um chefe de um bairro, eu fiz o evento muito próximo da favela onde ele tinha o quartel geral, isso incomodou. Eu fiquei sabendo depois, ele tinha matado 48 pessoas e, ele tinha mandado me dar uma lição, só me bater, ele sabia de tudo, onde eu morava, horários que chegava, tinha mandado dois de motos para me acertar. E aconteceu que naquele dia ele matou dois policiais e, sabemos que quando mata policiais se movimenta todo o grupo, até que encontrar não sossegam. Circundaram a favela com dois helicópteros, parecia cena de filme, com fachos de luz e, o Exército, a polícia, casa por casa. Ele fugindo no telhado, até que encontraram ele, levaram no quartel, encontraram enforcado, claro que a polícia matou. Depois que aconteceu isso, um dos dois que tinha sido enviado para me dar a lição, ele me falou: “Paolo, se cuida porque, olha, aconteceu isso, isso. Então ele morreu, mas pode ser que outros, também você atrapalhe outros”. Então foi um dos fatos, depois teve outros também, acho que um dos pequenos acontecimentos ligados. Depois teve outras tentativas de conciliar brigas entre grupos para não ver mortos, esconder, eu cheguei a esconder até adolescentes, tinham matado dois, um tinha sobrevivido, escondê-lo atrás do carro e, leva-lo para outro lugar para que não seja morto. Então tem um monte de acontecimentos, realmente daquela época.
P/1 – E padre, me conta um pouquinho então, depois como é que, durante esse seu período no Grajaú, você continuou teus estudos de Teologia?
R – Continuei como professor na época. Dei nove anos de aula e, ao mesmo tempo morava lá, então era as duas coisas. E ajudei a criar uma rede de já entidades que atuavam na região, a gente chamou Rede Grajaú, tinha mais ou menos 13, 14 instituições, de várias entidades, religiosa ou não religiosa. Falei antes do Circo Escola Grajaú, mas depois o Projeto Anchieta, Comunidade Cidadã, Fé, Alegria, Centro Comunitário Nossa Senhora de Fátima. Todos esses grupos... Começamos a trabalhar em rede, isso foi todo um tipo de atuação e esse Evento Pela Paz no Grajaú, que chegou ao 13º ano, esse ano foi o 14º já de existência deste evento.
P/1 – E como que se deu o contato do senhor com a Imigração, com a Casa do Imigrante, como o Centro de Estudos?
R – Esse foi depois que voltei do Doutorado.
P/1 – Ah.
R – Então, terminado a experiência no Grajaú, começou uma certa insistência para que eu desse uma paradinha, fizesse um Doutorado, aí fui para Roma e praticamente fiquei 2007, 2008, 2009, fazendo o doutorado na Gregoriana em Roma e, quando voltei
me falaram: “Seria interessante se você viesse aqui”. Aceitei, comecei, continuei dar aula em uma faculdade no Ipiranga, dar aula na Paulista, em outros lugares, assessorar e tudo e, ao mesmo tempo eu comecei aqui. Entender aqui, como funciona o Centro de Estudos Migratórios, a Casa do Imigrante, marcando presença, conversando com as pessoas e, depois ampliando o projeto que foi o trabalho do ano passado, criando um projeto de mediação e fomos ampliando com o Centro da Pastoral e toda parte que está aqui em baixo, onde além da documentação, advogada, se ampliou a presença da advogada de um a quatro dias, a presença da psicóloga, presença de assistentes sociais, Eixo Saúde, Eixo Trabalho, que foi a novidade do ano passado. Então começamos a aumentar tudo isso e, também um pouco de incidência política, marcando um pouco presença em Brasília, no Ministério do Trabalho, Ministério da Justiça, participando em reuniões de parceria com o IM das Nações Unidas. Começou todo este trabalho local, mas também de interligação para que a política imigratória seja baseada nos direitos humanos e não na Lei de Segurança Nacional, que é a que infelizmente ainda está em vigor atualmente.
P/1 – E como que foi esse processo de voltar para fazer o Doutorado, depois voltar para cá? O senhor sentiu saudades daqui quando estava lá?
R – Sim. Oh, a verdade é, quando eu sai do Grajaú, eu sai chorando. Fiz a despedida, o último dia, meu Deus, foi de infarto mesmo, um teste de coração porque depois de nove anos, lotaram, foi uma despedida muito bonita que a turma organizou, muita gente, várias horas lá de despedida, passava gente, tudo. Então senti muito a saudade, realmente chegando em Roma, até porque o ritmo foi diferente, comprometido no ambiente social e, de repente passa um ritmo de biblioteca o dia inteiro. O choque foi grande, documentos, biblioteca, livros. Imagina, estar direto em contato com as pessoas e com as problemáticas sociais, passar de oito, nove horas de biblioteca por dia. Mudou radicalmente, os primeiros meses foram difíceis, até me acostumar no novo ritmo... Aí começou, o professor que me acompanhava era um alemão, começou todo o trabalho de montagem do projeto de estudo de pesquisa, até no final dos três anos ter o estudo preparado e, tudo. Depois que terminei tudo, voltei, vim para cá.
P/1 – E qual é que foi o tema da tese do senhor?
R – a minha tese, a minha área é a que se chama Teologia Sistemática e, a área minha do Doutorado, é de Cristologia e, a tese é “As Cristologias das Cinco Conferências do Episcopado da América Latina” e, entre aspas, podemos dizer nas entrelinhas, não está no título “Um diálogo com as Cristologias da Libertação”, então tem esta duplicidade. Então praticamente um arco de tempo que vai de 1955 até 2007, pego isso, as visões no mundo católico ou também no mundo protestante em geral, as visões ligadas a Jesus Cristo e como isso foi modificando de 55 até 2007, em diálogo com documentos oficiais e com a sociedade. Tem tudo isso, mais quase 600 páginas sobre isso, publicadas em italiano, mas não português. Estou preguiçoso de traduzir tudo.
P/1 – Padre e, quando que o senhor voltou, esse contato, eu queria que o senhor falasse, quais é que foram as primeiras questões que o senhor identificou?
R – Voltando aqui?
P/1 – É, do universo dessas pessoas que estão em fluxo, em movimento, que chegam, que vão?
R – É, a primeira coisa foi a percepção que talvez aqui onde nós estamos hoje, na Missão Paz, nesta estrutura, que nasceu em 1939 para acolher a migração italiana, aqui é um lugar onde se sente a migração, mas o Brasil, quer dizer, ainda muito pouco a migração, acostumado na Europa milhões, milhões de imigrantes, aonde chega a sete, 10% da população local, chega no Brasil, então, que falei a questão migratória é quase insignificante, esse foi o primeiro impacto. Dentro do Brasil, claro São Paulo recebe 50% dos imigrantes do Brasil, metade está em São Paulo. Apesar disso, ainda são poucos. Os grandes grupos que se destacam, os bolivianos quando cheguei, agora são os haitianos, mas na época eram os bolivianos. Depois outros dois grupos, os do Peru e do Paraguai, que eram bastante consistentes. Foi essa percepção, acompanhar essas migrações, começar a ter contato e aí já tinha outros, o Padre Mário aqui que acompanhava os bolivianos há muito tempo, fui começar com estas migrações. Depois começaram a chegar um pouco mais de africanos e, o ano passado quando chegaram muitos haitianos, que tivemos que acertar, preparar também espaços de emergência porque não tínhamos lugar. No salão colocamos colchões no chão, tudo isso para que eles pudessem descansar, dormir, se alimentar, a gente preparava comida. Foi uma fase de emergência, fevereiro, março do ano passado.
P/1 – E quando que o senhor entrou em contato com essas cartas do seu estudo?
R – Oh, as cartas, de interessante foi a monografia, o TCC de bacharel. Então quando estudei de 92 a 95, naquela época, o final do quarto ano de Teologia, como TCC apresentei este trabalho, esta monografia. Depois de alguns anos, no ano 2000, aqui pelo Centro de Estudos, pediram de fazer uma pequena publicação e autorizei, transformaram em livro: “Um Rosto de Deus: Cartas de Famílias de Imigrantes”. Mas o trabalho foi um trabalho acadêmico realmente, que porém peguei as cartas aqui do Centro de Estudos onde nós estamos, do acervo.
P/1 – E como que foi, quando que o senhor encontrou e viu tudo aquilo?
R – Eu queria pegar um assunto, não refletir sobre a dimensão religiosa em abstrato, mas queria dialogar com produções do povo. E peguei a ideia quando eu fiquei sabendo que tinha cartas que não tinham sido estudadas e que estavam aqui, selecionei 160 cartas da década de 80, de 82 à 88, que tinham sido recolhidas por alguns agentes daqui, na região Leste, na Vila Industrial, no lugar que era chamado, uma favela conhecida como Favela Iguaçu ou Favela da Ilha, porque tinha um córrego que fechava todo o redor. E a coisa incrível foi que eu comecei estudar o material sem ainda conhecer o lugar, quando estudei todas as cartas, li uma por uma, transcrevi tudo isso, fui conhecer o lugar, com quem recolheu as cartas anos antes, que era o Alfredo, foi interessantíssimo, porque a pessoa se apresentava, eu sou Fátima e, eu lembrava a carta que tinha estudado, as duas, três cartas destinadas a Fátima lá de Pernambuco escritas. Então era conhecer a carta e depois conhecer as pessoas destinatárias das cartas foi uma experiência incrível. Era ver o rosto do que a gente via nas entrelinhas. As cartas que foram escritas naquele período, mais da metade da região de Pernambuco, de onde eles vinham, eram os familiares que escreviam e, outras regiões do Brasil também, outras partes, mas em geral Nordeste. Eram imigrantes que chegaram naquela fase que São Paulo recebia muito imigrantes, imigrante interno, na expansão urbana, havia realmente uma concentração de pernambucanos, de outros lugares neste lugar e, eu analisei estas cartas. Tive que analisar o fluxo migratório daquela época, dos anos 70, 80, da urbanização, a explosão. Depois estudar um pouco o instrumento de comunicação que é a carta, que é diferente do telefone, de outro instrumento, como ele funciona. Tive que perceber que muitas cartas tinham o intermediário entre quem escrevia e quem ditava a carta, tipo o filme Central do Brasil, tudo isso, tinham pessoas que escreviam, pessoas que liam aqui em São Paulo. A carta que dava para ler cheia de erros de português, mas isso até era difícil a transcrição, passar tempo para transcrever, tentar entender. É linguagem falada que fica escrita, então você lê, mas parece linguagem falada. E depois de fazer isso, que vê o conteúdo da carta, escrita as vezes por causa de um falecimento, comunica que faleceu o pai, as vezes ligada a um casamento, ligada a questão de saúde, a chuva, a seca, momento de saudade, “Como está lá em São Paulo?”, “Você vai voltar?”, “Quando você volta?”, “Manda a benção para o meu afilhado”. Os assuntos são os mais variados, dessas 160 cartas, comecei a ver qual era o conteúdo e aí o meu interesse como teólogo era ver, se Deus estava presente, como estava presente e ligado a quais assuntos. Isso aqui foi o foco principal. Agora da carta me chamava a atenção que eram escritas em várias conjunturas pessoais, momentos de alegrias ou de tristeza e, como elas retratavam o lugar de onde elas vinham e, aqui o destinatário. Agora outro detalhe que me chamou atenção, foi olhar as datas das cartas. Eu comecei a perceber que haviam duas concentrações, dessas 160, uma junho, julho e outra dezembro, janeiro. Aí foi claro, festas, época das festas juninas e das festas de Natal. Ou seja, naquele momento a saudade era muito grande, aí a necessidade de entrelaçar os laços com aquele que estava distante, que a migração tinha afastado. A carta como uma ponte para se aproximar da pessoa, tem trechos até, muito interessante que você percebe na época da festa junina, a pessoa que pergunta, por exemplo,
na festa de São João, uma mãe escreve para a filha que estava nessa favela da Ilha, “Peço que você venha fazer a fogueira aqui comigo para nós comermos galinha e arroz”, aquela que eu fichei como carta número 81 para não colocar nomes de pessoas. Ou depois uma irmã que faz o convite para outra irmã e diz: “Dia 31 de maio, ele vai vir fazer pamonha e canjica aqui. Você venha também com nós que vai ser a maior festa do milho novo”. E do outro lado quando é irrealizável a aproximação, a volta, a viagem, aí é que aparece a decepção, “Sim comadre, eu estava muito alegre pensando que você vinha passar a São João, mas nos mais você”, aqui questão de transcrição, “Mas você só faz trato e nunca vem”. E aí, o dia da fogueira, outra carta, “Esperava a volta da filha, mas não veio”. Então são uma série de cartas, você percebe esta concentração, festa juninas, é festa de Natal. E a carta que tenta restabelecer este vínculo que a migração quebrou. E os assuntos, questões de saúde, questões relativas a namoros, falecimentos, colheita, seca, criança que cresce. São temas muito presentes nestas cartas.
P/1 – E o senhor chegou a manusear o envelope, o selo, o carimbo?
R – Sim, todos. Temos aqui ainda hoje no arquivo, então mexer com a carta, entender a caligrafia, o jeito de escrever, ver a data que tinha. Porque a questão da data no início, não tinha nem percebido, então quanto mais entrava no assunto, mais percebia detalhes que em uma primeira aproximação não tinha visto. Então depois comecei a ver as cartas escritas por mulheres e, carta escritas por homens. E percebi, opa, 80% é escrita por mulheres, a mulher escreve mais que o homem. A mulher que escreve para o marido que está aqui em São Paulo em geral, comecei a ver a questão de gênero, a questão o vínculo de parentesco entre quem escreve e quem recebe a carta e, fui tabulando, colocando todos esses elementos. Fiz uma avaliação geral e um capítulo onde pego algumas cartas e coloco as cartas por inteiro. Também como transcrição para ter uma visão global, aí seleciono cinco ou seis cartas.
P/1 – E o senhor falou que conseguiu perceber essa questão da mediação, tinha uma pessoa escrevendo por outra, sabe, uma pessoa aqui lendo por outra. Como que o senhor conseguia identificar? Quais os elementos?
R – Ah, porque muitas vezes aparecia referência explícita. Você percebia na escrita que havia a pessoa que ditava e a pessoa que estava escrevendo e, até a pessoa que ditava fazia referência, “Olha, é Fulano de Tal, que você conhece, que está escrevendo”. A gente percebia estes lances, ou também a referencia, você percebia de um jeito muito delicado, “Ao receber a carta, leva para fulano que ele vai ler para você”. Sem ter vergonha, mas como um instrumento para poder decodificar a escrita. E depois, porém também, quem escrevia tinha uma certa dificuldade porque não tinha sido alfabetizado, podemos dizer, bem. Era uma primeira alfabetização, eu percebia um domínio da escrita muito complicado, era mais o jeito de escrever, realmente difícil as vezes.
P/1 – Ah, todas as cartas estudadas chegaram em seu destino?
R – Todas elas, até porque foram recolhidas nas famílias. Então foi por isso, teve essa vantagem, cartas que foram recebidas e lidas. Agora tiveram cartas que chamaram a atenção, eu lembro uma que estava escrevendo que tinha que fugir do terreno porque o fazendeiro estava ameaçando de morte. Você percebe, eu diria, não só a dimensão individual, mas até os problemas sociais que estão por trás das cartas. O problema, por exemplo, da ameaça na roça, da prepotência do fazendeiro, que impõe a sua força, que ameaça de morte se não dá a terra para ele. As vezes essas cartas chamavam a atenção, ou aquela que escreve falando da morte do pai, imagina anunciar a morte do próprio pai para o irmão que está aqui em São Paulo. O jeito de escrever, você percebe toda uma pedagogia para dar a notícia. São cartas que chamam atenção, realmente.
P/1 – E além desse lado, teve alguma que tenha tido alguma coisa de alegria, muito bacana?
R – Ah, por exemplo, ver a carta que contava como estava indo o namoro, o namoro que está dando certo, o homem da minha vida, a mulher da minha vida. Geralmente era a mulher que escrevia. Era bonito ver estes momentos de felicidade, esta conquista, o filho que nasceu e que está bem. A criança que está crescendo, a descrição das festas de São João, essas também são bem interessantes, os detalhes, o padrinho de fogueira. Ainda imagina, eram quatro anos que eu estava no Brasil, perguntei: “Mas o que? Padrinho de fogueira?”, tinha coisa que eu nem sabia o que era, tive que correr atrás para entender.
P/1 – E padre, agora eu queria perguntar um pouquinho para o senhor, como é que a Missão utiliza os Correios? Que apesar das pessoas não utilizarem mais cartas, tem outras utilizações de receber encomenda, pacote? Alguma coisa que sinta falta? Não sei, se o senhor tiver mais alguma história, assim?
R – É, então, como você está falando, quer dizer estamos em uma época hoje onde já mudou, a mesma Casa do Imigrante que atuava lá, me comentava que haviam as épocas das cartas, anos atrás, porque a Casa tem várias décadas. Hoje em dia você olha os migrantes, ou vão em uma lan house, ou usam um telefone, há várias maneiras de se comunicar. E atualmente a carta se reduziu, eu diria, primeira questão o uso, o diálogo do banco com o imigrante. Então, chega o cartão chega, questões de banco, se você vai lá agora na Casa do Imigrante, vai olhar o lugar do correio, é Bradesco, Itaú, Banco do Brasil, Caixa, é tudo uma atrás da outra e todos os bancos possíveis e imagináveis. Esse é o grande serviço que a gente encontra lá. Além disso, questão de documentação ligadas a questões de regularização, trabalhos que a advogada faz, tudo isso também, não tudo, mas chega também através da carta. E depois eu vi chegar as vezes alguma encomenda, imigrantes que compraram algumas coisas também, algum produto chega. Chega a caixa [e o imigrante vem] todo feliz para receber, vai ver o que tem dentro, o correio chega, abre. E do outro lado também muitas cartas que ficam, desta aqui por exemplo, dos bancos porque o imigrante muda, até que fica na Casa do Imigrante, mas quando ele sai da Casa do Imigrante, as vezes vai morar em outros lugares de São Paulo, esquece de passar [trocar endereço], então ficam empilhadas. Tem essa dimensão. Agora eu diria está mais ligada neste momento à documentação e a questão de banco, as cartas.
P/1 – E o senhor durante esse seu tempo morando entre Itália e Brasil, teve algum pacote ou encomenda que o senhor tenha enviado ou recebido? Um presente de aniversário? Alguma coisa em especial, que não seja uma carta?
R – Olha, pacote te digo, as caixas que mais gostei, por exemplo, cogumelo seco, calcula um ou dois quilos enviados no pacote, para expedição, então ver chegar o cogumelo, fantástico. Me lembra toda a realidade onde nasci, onde cresci, seco e, aí preparar para fazer um risoto, isso é muito bom. Depois foram livros que não tinha que pedi para me enviarem, isso é também interessante. As vezes é foto, agora não, é enviado tudo por e-mail, mas eram as fotos também que era bom ver que te mandavam. As vezes uma roupa também comprada lá, que a mãe compra, quer me mandar. São sempre coisas que se destacam.
P/1 – E o senhor lembra da primeira carta que o senhor escreveu?
R – Na minha vida ou aqui no Brasil?
P/1 – Não, na sua vida.
R – Ih, vamos ver.
P/1 – Ou que recebeu também.
R – Ou que recebi?
P/1 – É.
R – Eu acho que mais de carta, cartão. Recebia aquelas que falei no contexto de férias, que um ia e mandava a carta um para outro, entre parentes. Isso sim, a gente ia para a praia um mês com a minha família e mandava carta para os conhecidos, “Olha estamos em aqui em Caorle. Aqui está tudo ok, um grande abraço”. Ou quando os outros iam, a gente recebia.
P/1 – E aqui no Brasil o senhor lembra com quem o senhor se correspondia?
R – É, primeira carta acho que foi aquela de dizer, sabe, mais um desabafo, “A cabeça está estourando, só escuto falar em português, estou com saudades de ouvir alguém que fale italiano, ligo tevê, português, ligo o rádio, português, olho para lá é tudo português. Preciso falar italiano”. Esta, por exemplo, ou da comida, no início, quer dizer, “Gente aqui é arroz todo dia”. Assustado dizendo: “Gente o primeiro dia achava normal, o segundo normal, o terceiro, não, não dá”. Então eram estas coisas, curiosidades, comunicar para lá as particularidades culturais daqui. Como quando, agora depois morando em Roma, via os brasileiros se queixarem que é macarrão todo dia, “Cadê o arroz e feijão?”, são aquelas coisas invertidas, que são engraçadas, curiosidades que um escreve para o outro.
P/1 – E padre, conta um pouquinho para a gente então hoje como é que é o seu dia a dia, quais são suas funções aqui na Missão?
R – Olha, dia a dia eu diria, tenho dias que dou aula em uma faculdade de Teologia, na terça e na sexta. Depois na segunda a noite dou aula em um lugar, Instituto de Leigos aqui em São Paulo, na Avenida Paulista, perto do Shopping Paulista, dou isso na segunda à noite. Depois aula ainda, são cursos de um mês, assim, por exemplo, curso no Instituto Judeu-Cristãos na Ana Rosa. Tem vários cursos, sábado estarei na região de São Mateus, tem esses cursos pontuais. Aqui acompanho toda parte de documentação, no Centro de Estudos, onde fico o dia normal, o dia a dia, acompanho o banco de dados, são milhares de dados de imigrantes que temos inseridos no sistema. Olho como estão o seu cadastramento, se está okay, os serviços, se tudo procede bem. Acompanho os artigos para a Revista Travessia também, que o editor passa, as vezes dou uma avaliada, o que acho do artigo e tudo. Além disso, a gente manda, ainda aqui, acompanha pesquisas que estão sendo feitas, por exemplo, eu tenho uma pesquisa nesse momento com paraguaios, fizemos uma em nível nacional ano passado. Acompanho a pesquisa, encontro pesquisadores, vou ver como está a análise, quase são as problemáticas, para onde ir. Depois as vezes [participo] presença em seminários, que convidam, duas semanas atrás foram três seminários um atrás do outro, dois dias em Brasília, dois dias na PUC, dois dias na Secretaria da Justiça, praticamente saía de um lugar, ia para outro. E agora estou preparando um curso para dar em Roma em dezembro e janeiro, dezembro deste ano e janeiro agora no início do próximo ano. São todas coisas que vão se juntando. E tem além disso, depois a parte religiosa, como padre, celebrações, acompanhar a vida, as vivências dos imigrantes, o falecimento, um casamento, desabafo, uma conquista, comer um prato de comida junto, boliviano, do Paraguai. Por exemplo, ontem veio uma boliviana que ajudamos sair do mundo praticamente em situação análoga à escravidão de uma oficina de costura, um dos muitos casos. E ela aceitou gravar também sua história, pelo fato de ter confiança, o ano passado nós gravamos, praticamente ela falou toda a sua história, o primeiro bloco 50 minutos sem parar, desabafando, chorando, contando diante da câmera. Na posição invertida, eu estava na sua posição e, ela olhava para mim e conseguiu esquecer, se libertar e ficar só no contar a história, uma pérola, saber os sofrimentos que se passam no mundo da costura.
Ela depois começou a alugar seu espaço, o marido se tornou pedreiro, também de boliviano. Veio ontem para contar como está indo e tudo, uma conquista, ela, os três filhos. Tem muitos momentos bonitos de partilha de vida.
P/1 – E antes de eu fazer umas perguntinhas finais para o senhor, eu queria que o senhor contasse para a gente um pouquinho da sua trajetória espiritual, assim, como é que é essa coisa do chamado? Isso foi se desenvolvendo? Fala um pouquinho disso.
R –, É um desenvolvimento, não é algo linear. Eu diria, talvez a experiência chave, a primeira é perceber que Deus não é um conjunto de regras, não é um sistema moral, não é uma tradição, não é uma instituição, mas é um ser vivo, é muito mais que tudo isso. O resto são consequências entre aspas menos importantes. Começar a experimentar Deus como alguém com qual posso dialogar, me relacionar em uma dimensão interpessoal, acho que essa é a charada, a experiência chave é esta. A partir daí então começa todo um processo de amadurecimento, será que posso doar a minha vida, me dedicar totalmente a Ele? Será que consigo abrir mão de formar uma família? Quando acontece de se apaixonar por uma pessoa, então, por exemplo, dá vontade de largar tudo, cheguei a pedir um tempo, a pedir um ano de tempo para dizer: “Não, olha, acho que não é por aí. Acho que talvez eu deseja formar uma família”. Então isso é feito de altos e baixos, de abrir mão, não é só questão de abrir mão de formar uma família, mas também a questão, por exemplo, econômica, que a gente faz voto de pobreza. Diferentemente do padres diocesanos, que podem ter sua conta, tudo, nós abrimos mão de tudo isso. Então onde dou aula eu não fico com o dinheiro, nas faculdades e tudo, onde dou palestras coloco no caixa comum, é usado para a Casa do Imigrante, tudo assim. São dimensões... As vezes tem momentos da vida que é mais fácil, as vezes parece até um pouco de egoísmo, a gente se fala: “Por que tem que abrir mão de tudo?”. Então existem estas dimensões. Agora a beleza é experimentar como Deus é ao mesmo tempo presente e, ao mesmo tempo uma presença que não se deixa colocar em uma gaiola nas categorias humanas, “Ah, pelo fato que eu sinto Ele presente na minha vida, agora eu vou conseguir manipulá-lo. Vou conseguir coloca-lo dentro dos meus esquemas”. Não, Ele me deixa para trás, me coloca em xeque, assim. Acho a relação com Deus muito bonita, a proximidade e distância, confiança exige disponibilidade. É uma relação viva como um amigo mesmo, eu diria, na minha experiência foi esta até agora. O futuro eu não sei, mas até agora.
P/1 – E, entre esses seus colegas, os outros padres, que moram longe, alguns que ficaram na Itália, teve uma troca de cartas? Tem uma comunicação?
R – Sim. Tem um grande amigo, eu acho que é aquele que a gente mais se escreveu, atualmente ele é diretor do Centro de Estudos de Paris. Fui visita-lo também lá, tem cartas, que a gente estudou junto, fizemos Filosofia juntos, na Itália, ele ficou em Roma, eu vim para o Brasil. Então nos anos 90 a gente se escrevia muito, contando como ia as coisas lá em Roma, nos estudos, na vida, no discernimento, nos momentos de dúvida e, a mesma coisa eu daqui. Hoje em dia a gente se comunica muito com o Skype, não mais por carta, mas naquele momento era por cartas, ainda tenho as cartas, tenho cartas de minha mãe, de minhas irmãs, as cartas dele, de alguns amigos, amigas. Ele faz parte daquelas coisas preciosas eu diria. Ele não é mais padre agora, ele largou a vida religiosa como opção de ser padre, mas liberdade, existe esse vínculo de amizade muito grande com ele.
P/1 – Padre, fala um pouquinho, hoje quais são os principais desafios da Missão?
R – Da Missão aqui?
P/1 – É.
R – Os desafios são em diferentes níveis, um é, podemos dizer, vamos começar pelo macro, a política migratória do Brasil, acho que hoje em dia o Brasil está diante de, como fala o Paulo Abrão, secretário do Ministério da Justiça, uma fragmentação incrível.
Primeiro há um déficit democrático, a lei é ainda da época da Ditadura Militar, baseada no conceito de Segurança Nacional. Mudar a lei é grande desafio macro. Segundo, a questão migratória está fragmentada, Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho, Ministério das Relações Exteriores, Polícia Federal, a gente fica maluco. Não há algo que unifique, como é em outros países, uma agência de imigração, tudo isso. O terceiro, muitas vezes a política migratória, em nível macro ainda se reduz a fazer entrega de vistos, de autorização de entrada, mas não tem uma política de integração, intercultural no Brasil. Os haitianos, por exemplo, não é suficiente dar o visto para razões humanitárias, e onde eles moram? Onde ele arruma emprego? A saúde, duas semanas atrás um morreu em um canteiro de obras. Nós fomos atrás da questão do corpo por uma semana, nós corremos atrás de tudo isso, para mandar para o Haiti, para a família, tivemos que avisar a família que estava morto, que aconteceu um desastre na obra, muita terra caiu em cima e matou ele, feriu outros dois. É esse nível macro eu diria, sensibilizar para que haja uma política coerente migratória no Brasil e, baseado nos Direitos Humanos. Isso também claro na Esfera Federal, Estadual, Municipal. Além disso, eu diria aqui a gente percebe o grande desafio, primeiro na Casa do Imigrante, é o desafio diário de acompanhar os casos, as pessoas. A pessoa quando começa arrumar o emprego, chegou o tempo de sair da Casa, as vezes tem que ajudar, tem que dizer: “Olha, o seu tempo acabou”, “Ah, mas você está me expulsando?”, “Não, é que a sua vaga agora vamos deixar para outra, que está mais necessitado. Você agora já tem dois, três salários acumulados, guardados, pode alugar o seu cantinho”. Então tem pessoas que entendem, outras pessoas que não entendem, normal. Evitar formas de paternalismo, de assistencialismo barato, olhar o imigrante como um sujeito, como outra pessoa, não como alguém, “É o coitadinho que precisa de ajuda”. Ajudar os funcionários a não terem esta visão, pode ser um momento de fragilidade devido a uma conjuntura de situações, mas ele é protagonista da sua vida, vamos deixar que ele caminhe com suas pernas. Tudo isso são desafios aqui no dia a dia. O desafio de ter sempre os funcionários motivados, de ter paciência, porque as vezes dá para perder a paciência, tem alguns imigrantes, não é porque é imigrante ou refugiado que é santo. Tem cada um, as vezes que enche a paciência, que pelo amor de Deus. Tem tudo isso, desafio com o mundo da mídia, aqui se tornou um lugar muito visado pela mídia, tanto é verdade que tivemos que colocar uma pessoa, uma pessoa só responsável por toda a comunicação daqui da Missão. Você pensa, a semana passada foram quatro grandes TVs (emissoras de TV) brasileiras e outros, é uma atrás da outra, toda semana tem mídia e mídia pedindo. Agora agendamos esta semana para duas, entrevista e tudo. O mundo da mídia as vezes tem visões tão distorcidas, sensacionalistas, que instrumentalizam o imigrante, assustadoras. Eu achava que era só na Europa, mas aqui também, apesar de ser um país, o mito da acolhida, tem cada visão de preconceito por baixo que não é tão acolhida. Só para ver, o último o jornal que publicou isso, acompanhamos aqui perto do Parque Dom Pedro, um mês atrás, um edifício que havia reintegração de posse, um brasileiro que subalugava para haitianos, o prédio tinha 96 haitianos morando. Manchete no dia, nós acompanhamos desde às seis da manhã, hora que veio a polícia, até às nove da noite. Alugamos caminhões, colocamos geladeira, fogão, temos ainda coisas aqui guardadas no lugar. Manchete no outro dia, “Lugar”, não sei se usava clandestino, “República haitiana no Centro de São Paulo foi desativada, tá, tá, tá, e, colocava os imigrantes irregulares”, ou ilegais, pior ainda, acho que usava o termo ilegal, pior. Foram mandados embora de lá, nós cadastramos os 96 na semana antes, não tinha um que não tivesse documentação irregular, eram todos regulares. Estas imagens são jogadas na mídia, é um dos exemplos, sem conhecer. Por exemplo, outro dia falei para uma jornalista: “Sinto muito, para o seu jornal não dou entrevista”, “Mas como, é o preconceito, você está generalizando?”, eu falei: “Não, você conversa com o editor chefe e fala que a última reportagem, como foi feita, a pauta que chegou aqui era para justificar estas teses preparadas de antemão, cheia de preconceitos. A gente exclui”. Então acho que tem que partir para saber dar posturas fortes nestas situações. São muitos desafios, as vezes, também a Casa do Imigrante que não tem vagas e, tem pessoas chegando, uma noite chegaram três famílias da Colômbia, fugindo das FARCS [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], dez da noite a Kombi da Prefeitura trouxe duas famílias, nove filhas e três famílias, dez da noite, com mais nenhuma vaga lá. Se trata de você quebrar a cabeça como arrumar colchões, coloca, vai comprar leite em pó, fralda para as crianças. São situações, desafios um atrás do outro, não existe um dia tranquilo podemos dizer.
P/1 – E agora eu vou entrar em uma parte mais final, que a gente vai tentar começar a encerrar a entrevista. Eu queria que o senhor contasse para gente, diante de todos esses desafios diários, esse trabalho tão bacana, o que é que o senhor faz nas horas de lazer? Tem um tempinho que o senhor relaxa a mente?
R – Hora de lazer, confesso que as vezes a gente deixa um pouco de lado isso, a gente trabalha, trabalha, o perigo é sempre deixar de lado. Quando estava no Grajaú, o que eu gostava de fazer era pegar a bicicleta, mountain bike e me mandava pelas beiras da represa, da Billings, indo de bicicleta. Conseguia uma hora fazer isso, aqui no Centro em São Paulo infelizmente a bicicleta não dá para usá-la. Agora aqui, por exemplo, as vezes gosto de cozinhar, as vezes é receitas italianas, gosto. Gosto de sair com amigos, pessoas aqui, bater um papo, tomar uma cervejinha junto, conversar, assistir um filme. São coisas assim, mas confesso que as vezes sacrifico muito o lazer, tem momentos, por exemplo, agora estas últimas semanas durante a noite, estava olhando as falhas no sistema de banco de dados, me comunicando com os técnicos do Rio de Janeiro, “Olha, foi resolvido isso, mas apareceu outro problema, os angolanos sumiram, os haitianos superaram o número, tem um problema”. Com todas essas questões a gente se deixa um pouco de lado, não é coisa boa.
P/1 – E o senhor falou que tem sobrinhos, tem duas irmãs. Conta um pouquinho para gente a história.
R – Quando consigo tirar aquele mês durante o ano que eu vou para a Itália, esqueço de tudo. Viro o tio babão, fico brincando, passeando com elas, aquele mês recarrego as pilhas mesmo. Tento quando estou na Itália de não assumir compromissos, o menos possível, aqueles que vejo que é importante, mas os outros deixo de lado, todos os convites e, me dedico mais a amigos e família. Passear, caminhar nas minhas montanhas matando saudades de quando era criança, adolescente, brincando com sobrinhos. Ah, aquelas três semanas, um mês, é muito bom, recarrega as pilhas.
P/1 – E agora eu queria perguntar para o senhor, o senhor tem algum sonho? Aspiração?
R – Posso dizer que até agora na minha vida tenho a sorte de que muitos sonhos se transformaram em realidade. São muitos sonhos que foram acontecendo, o último, o ano passado, essa criação de uma nova estrutura aqui dentro, que a gente chama Programa de Mediação, dividido por eixo, Eixo Trabalho, Eixo Saúde, Eixo Educação, Eixo Família, Eixo Comunidade, Cultura. Nesse ponto tenho bastante sorte. Minha atuação com os imigrantes, os sonhos de atuação no Grajaú, na Itália. Até agora as coisas estão indo. Claro que agora um sonho nesse momento é criar, por exemplo, um outro espaço na Casa do Imigrante só para famílias. Não sei se vamos realizar, é um outro sonho, porque atualmente é a área masculina e feminina. E como aumentou a presença de famílias na Casa do Imigrante, criar um espaço onde a família possa permanecer unida no tempo que fica aqui na Casa. São desafios, sonhos que vão surgindo em continuação. O sonho de terminar uma coleção que tinha começado a publicar, escrevi só o primeiro livro, deu certo, está na oitava edição, editora está no meu pé, mas falta tempo para escrever. Pequenos e grandes sonhos.
P/1 – E alguma história de alguém que chegou na Casa que o senhor tenha se apegado muito e que tenha sido uma história muito difícil?
R – Mais que uma, tem várias. Olha, muitas. Talvez só para dizer uma das primeiras, logo que cheguei, lembro de um jovem, não posso fazer referência nem a nacionalidade, nada, porque é refugiado, ele fugiu porque mataram o pai e mãe. Ele ouviu os tiros nesse país da África e, encontrou em um rio de sangue, pai e mãe. Ele foi violentado por uma semana por este grupo, depois ele conseguiu que um do grupo, por pena, permitisse que fugisse, ele fugiu em um navio de containers, sem saber o destino e chegou em Santos. Na hora que mataram o pai e a mãe, os dois irmãos mais novos estavam na escola, então não soube mais nada, ele chegou aqui, chegando aqui, infelizmente todos os dramas que ele viveu, ele passou por um grande momento difícil psicologicamente. Tivemos que interná-lo, não foi o único caso, outros também, nas clínicas na parte de psiquiatria, acompanharam, lembro depois um mês deram alta, ele voltou para cá. Graças à ONG Refugee United, conseguiram encontrar os dois irmãos, onde eles estavam, ele ficou feliz e começou batalhar, trabalhar, começou estudar, agora está na Universidade estudando e trabalhando ao mesmo tempo em um grande hotel aqui em São Paulo. Ver a vida dele das cinzas, como ele chegou, crescer, as conquistas, “Consegui entrar na faculdade”, ou a decepção, “Não consegui entrar na USP. Mas consegui entrar nessa, eu consigo me pagar, agora quero juntar dinheiro para trazer meus dois irmãos para cá”. São histórias que realmente marcam, a gente acompanha, a gente se torna até a família, imagina, ele tinha 20 anos quando ele chegou. Nos hospital, se você não visita ele, não tem ninguém que vá visitá-lo. São momentos muito particulares e, cada história é uma história. A última é uma menina que também teve um grande problema psicológico e tive que interná-la. Eu e uma outra pessoa aqui terminamos a internação no Hospital Mandaqui, quase as duas da manhã. Não tem horário, temos que agradecer os funcionários que estão aqui, porque eles superam até o horário muitas vezes às seis horas, oito horas que trabalham, se precisa eles ajudam. Agora nós estamos aqui 24 horas, não tem momento de folga. Agora os funcionários, realmente são fantásticos, quando uma família cubana veio aqui e uma das duas filhas foi internadas com problema gravíssimo de saúde, a outra menina os funcionários levavam para casa, porque o pai e a mãe tinham que ir para o hospital acompanhá-la e, a outra menina de sete anos ficava na casa dos funcionários. Era bonito ver essa solidariedade, não é o único caso, tem muitos, então que se cria vínculo entre funcionário e pessoa acolhida.
P/1 – E como que se dá esse trabalho de mediação, de no mesmo espaço acolher gente de tantas culturas diferentes? Tantas religiões?
R – Olha, sabe, eu acho pela história da Casa, pelos tantos anos da atuação, acho que os problemas foram muito poucos, tivemos, tivemos, mas... Teve alguns anos atrás que um grupo de estudantes de Jornalismo decidiu fazer um projeto na Casa do Imigrante, uma produção de um documentário, mas onde o roteiro, a gravação e tudo, fosse feito pelos imigrantes e refugiados. Eles montaram tudo, foi bem interessante este vídeo que ganhou um prêmio também aqui em São Paulo, um ano e meio atrás. Eles gravaram tudo, montaram o roteiro e eu achei fantástica a ideia, uma imagem que diz tudo, eram seis horas da tarde quando tocou o sino da igreja, que a gente chama o Momento da Ave Maria, dava para ouvir bem o sino da igreja e, a imagem, a câmera se movimentando, indo no muçulmano, no tapete, rezando na direção da Meca. Esse espaço, onde dois anos atrás estiveram 22 denominações religiosas, já passaram judeus, muçulmanos, budistas, cristãos das diferentes denominações, africanos de diferentes cultos. Então perceber que naquele espaço um respeita o outro, acho que é um pequeno laboratório, claro que as vezes faíscas e incompreensões existem, mas em geral tem uma experiência de convivência inter-religiosa muito boa. Fiz algumas experiências de momentos existenciais, de trocas, conversando com muçulmanos e outras religiões, muito bonita a dimensão sagrada que cada um carrega, independentemente do credo religioso. Eu acho que é um espaço de grande abertura, tivemos até pessoas católicas que não entendem, voluntários que vieram aqui, “Como, vocês tem que evangelizar. Vocês tem que apresentar sua identidade católica”, nós olhamos, ixi, “Já foi a Idade Média”. Então a nossa postura é diferente, não é porque é um espaço mantido por uma entidade católica que é um espaço de evangelização forçada, é o ser humano em primeiro lugar.
P/1 – E agora para a gente encerrar, eu vou te fazer duas perguntinhas só. O que é que você acha desse projeto de resgate, resgatar a história de cartas, como que faz parte da vida das pessoas, como que fez. O que é que o senhor acha? Através das histórias de vida?
R – Acho, como se diz em português, bacana. Ou seja, muito bom porque quem teve durante a vida esta fase, ou quem ainda tem a sorte de ter ainda, acho que muito poucos, mas quem viveu essa fase, é o momento de lembrar, de comparar, de revitalizar a memória. É importantíssimo isso. As novas gerações que não estão acostumadas com isso, que vivem a base da tecnologia somente e as vezes não tem este momento de ler a carta, não tiveram, é o momento de conhecer esta página da história da humanidade que foi importante, que a tecnologia não substitui. A tecnologia tem outras vantagens importantíssimas. A rapidez as vezes que se escreve um e-mail, ou uma mensagem e, o momento mais reflexivo de escrever uma carta, é só um exemplo, acho que é uma ideia boa de manter viva a memória, resgatar o momento e um serviço também que foi feito e que está sendo feito ao longo da história.
P/1 – E como é que foi para o senhor contar essa história para a gente?
R – Acho bom porque, quer dizer, a gente, nós somos o nosso passado, nosso presente, o nosso futuro. A gente olha o futuro de um lado, mas fazendo a memória, como você ajudou de muitos momentos do passado, é perceber, é ter mais clareza da minha identidade, da minha história, dos diferentes fios que foram construindo a minha vida. Eu acho que é sempre uma boa oportunidade, serve não só como memória, como registro, mas também para mim. Acho que isso é importante, para mim é um momento de voltar e pensar sobre muitos acontecimentos.
P/1 – Então muito obrigada Padre Paulo. Muito obrigada pela sua entrevista.
R – Nada.
P/1 – Parabéns pela sua trajetória, história de vida.
R – E obrigado pela escuta. (risos)Recolher