Correios 350 anos
Depoimento de Marcos Antonio de Moraes
Entrevistado por Isla Nakano
São Paulo, 17 de Julho de 2013.
Realização Museu da Pessoa.
HVC036_Marcos Antonio de Moraes
Transcrito por Iara Gobbo.
MW Transcrições
R – Começa?
P/1 – Pode começar.
R – Frase de efeito: eu sou professor e em geral eu preparo a minha aula já imaginando que eu preciso seduzir o meu aluno, inicio a aula com uma frase de efeito e fico imaginando de que modo essa frase de efeito pode me dar os fios dessa minha narrativa que é uma aula. Eu fiquei pensando qual seria a frase de efeito, não encontrei nenhuma para essa narrativa de vida que é a minha em relação à correspondência. Eu sinto que quando eu olho pra minha trajetória, a carta a cada passo vai sendo reformulada, ressignificada, me dando uma série de ideias para pensar a minha própria vida. A carta foi meu objeto de trabalho a vida toda, tem sido e vai continuar sendo, ela também tem um poder de encantamento que eu sempre retomo como uma experiência de vida. Eu queria contar para você três histórias que são muito importantes como uma espécie de fim narrativo, mas também como perspectiva de interpretação da minha biografia. É como eu vejo a carta como um problema, sempre como uma referência muito simples, como um objeto, como um texto, mas com um problema. Um problema, por exemplo, que recupera a questão ética. A nossa relação com a carta, com a nossa própria correspondência e com a correspondência dos outros. Há uns, talvez um pouco mais de três anos, eu estava num sebo, no centro de São Paulo e encontrei uma caixa com cartas. Na verdade essas cartas estavam sendo vendidas por conta dos selos. As cartas já como uma matéria morta que associada ao selo valiam alguma coisa. Cinquenta ou 60 cartas. E eu fiquei muito atarantado porque eu não sabia se eu podia comprar ou não aquilo, porque eram cartas. Fui lá, olhei um pouco, eram cartas dos anos 90, particularmente 91, 92, Plano Collor, me pareceu uma história que se contava que era uma relação afetiva amorosa. Eram umas cartas de um norte americano para uma brasileira. E eu sofri muito porque eu não sabia se eu podia ou não ter aquele objeto comigo, que era aquela vida que estava lá, marginalizada. Eu fiquei durante uns dez minutos andando no sebo. Custava quase nada. Cada carta custava dez centavos. Isso daí é nada. E eu como estudioso da carta, sabendo o que significa aquilo em termos de uma posição viva, comprei. Comprei e está na minha casa, eu guardei. Eu sei que eu não posso mostrar isso pra ninguém. Sei que eu não posso fazer disso uma tese. Eu sei que é só uma vida que eu comprei. O máximo da história diz respeito a essa mesma sensação difícil que nós temos em relação as cartas e o que nós fazemos com elas depois que nós lemos. Elas passam a ser de mais gente, mesmo que a gente não se dê conta disso. Uma vez que você manda uma carta, ela ganha uma dimensão pública, ela parte daquele lugar e adquiri o mundo, porque nós não temos mais controle sobre ela, a não ser que nós a queimemos ou que nós a coloquemos no lixo. Mesmo no lixo é um problema. No semestre passado eu dei um curso que é justamente sobre correspondência, no final do período de aula um dos meus alunos me trouxe um pacote de cartas que ele tinha encontrado no lixo do prédio dele, que eram uma senhora que tinha morrido, eu não sabia o que fazer exatamente com aquilo lá porque havia então uma espécie de presente a ser dado ao professor e eu não podia recusar, ou podia recusar? Eu relutei. Eu falei: “Então você me dá”, está comigo até hoje, mas eu nunca tive coragem de ler esse material porque isso me coloca questões morais muito sérias. O direito de conhecer a vida do outro. Terceira história, ela tem ainda um dado curioso que é a venda da carta. Ela hoje vale alguma coisa. No passado, nas feiras livres, aquelas feiras de rua, ali no Bexiga, no chão, um senhor muito pobre estava vendendo lá as quinquilharias dele, botão, prego, régua e um pacote de cartas. E eu olhei para aquilo lá e disse: “Isso me interessa” e eu olhei um pouco, me abaixei, ele estava no chão e reconheci as cartas que eram de uma [possível conhecida]. Aí ficou muito mais difícil, uma pessoa que eu conheço. Não tenho amizade com essa pessoa, mas sei quem é, mas não podia. Bom, eu comprei esse conjunto, era um ou dois reais, não mais do que isso. E o coitado do homem ficou tão preocupado deu comprar papel velho que ele me deu de presente uma prancheta que compensasse os dois reais que eu paguei pelas cartas. Isso pra mim é um modo como eu estou acompanhando a carta. Parece uma série de ideias soltas, mas eu posso resumir o que eu estou pensando. Primeiro, como que é, qual é a relação das pessoas com as cartas? Qual a reação das pessoas que leem as cartas que são pra terceiros? E como é que nós estudamos essas cartas? Há uma dimensão singular, essa eternidade em uma outra dimensão pública que é o do conhecimento desse material, do estudo dessas cartas. Bom, se isso me dá um problema, isso me coloca de cara em face da minha própria história. Eu vendo as cartas [me pergunto], por que eu escolhi as cartas como objeto de estudo? Então talvez eu fosse recuperando essas histórias como se eu criasse uma lógica falseada, e que aquilo que está contido na minha vida, que são as cartas, pudesse ganhar humanidade. É isso que eu queria contar para você. Eu nasci numa cidade do interior de São Paulo. Chama Porto Feliz. Cidade muito pequena e que a cultura só chegava pelos Correios, quer dizer, nos anos 80, 81 quando eu tinha 12, 13 anos, que eu queria saber mais do que se passava no mundo, que aquele universo pequeno da cidade. O meu espaço do saber tanto da cultura quanto das nações que transcendem aquelas dos amigos mais próximos, da convivência, era os Correios. Os Correios para mim tinham esse conforto de fazer com que o que estava, o que era visível – o que era visível apenas como uma experiência – se transformar numa vivência afetiva. Como é que eu fazia isso? Como é que eu conseguia então transformar a distância em proximidade? Talvez a minha geração que se interessava por ler, do interior, só podia, só vivenciava essa experiência da leitura por meio do reembolso postal. Por exemplo, havia uma revista da Brasiliense, a “Primeiros Toques”, havia uma revista de livros da Record, o “Círculo do Livro”. E essa matéria que era o livro, quer dizer, que eu podia saber o que estava acontecendo, talvez não entendesse muita coisa. Por exemplo, dessa forma eu pude ler os livros que me marcaram muito, mas eu não sabia muito bem o porquê. Por que como a Ana Cristina Cesar, o Caio Fernando Abreu estavam nessas coleções da Brasiliense? Ou naquelas coleções dos “Primeiros Passos”, “O Que é História”, “Encanto Radical”, “A Geração BIC”. Tudo isso era outra coisa tão distante, mas eu acho também que por não ter uma, por não responder diretamente coisas, muito pelo contrário, perguntava coisas que eu não sabia responder, dava então essa vontade de ler e de conhecer esse universo. Isso é de um lado. Quer dizer, por outro lado, talvez hoje ainda exista, a Folha de S. Paulo tinha o caderno chamado Folhinha. A TV tinha também uns programas infantis que diziam dos clubes para trocar correspondência. E eu fiz as duas coisas. Tanto antenado na TV que então tinha lá os clubes de correspondência e no jornal. Fui escrever para essas pessoas, meninos como eu, de lugares que até hoje não conheço, nunca fui e que, então, criava vínculos a partir da correspondência. Eu trouxe dois exemplos de coisas que eu guardei. Eu guardo cartas. Eu acho que eu sou a geração que viu a carta morrer, a carta que não se conhece hoje, com o papel, a escrita, o envelope, a escolha do papel, os desenhos, o selo, a coleção de selos associada à correspondência, receber a carta e guardar o selo, não o selo do colecionador que vai e compra, mas o selo que constitui uma passagem na nossa vida. Eu tenho dois momentos em que eu participo dessa amizade postal, um deles é exatamente dos anos 80. Havia então um grupo chamado Guerra nas Estrelas, dizia um pouco dos meus interesses. Eu escrevi para dois clubes, um era Amigão Corintiano. Eram os dois. Retomando isso um dia desses, eu percebi o que significava essa grande brincadeira. Por exemplo, a primeira carta que eu recebi desses meninos lá de Ouro Fino, Minas Gerais, em 80:
“Caro amigo, o meu nome é Deolinda, mas o meu apelido é Dina. Quanto aos meus sócios um chama Luiz e o outro Luciana. Fico feliz em receber sua carta. Não é todo clube que recebe muitas cartas. Quanto ao clube, a história começa assim. Nós resolvemos fundar um clube. Nesse clube queríamos pôr um nome. Mas que nome? Nisso resolvemos fazer uma votação. Só que nesta votação era só pôr nome de filme. Então ganhou Guerra nas Estrelas.”
Bom, cartas de criança, os assuntos se esgotavam muito rapidamente. As notas na escola, os seus amigos, pôr a foto. O clube Amigão Corintiano dava para gente uma credencial e também dizia assim, o meu colega de São Paulo dizia que ia mandar também um calendário com todos os dias das reuniões do grupo. E aí havia lá:
“Logo que recebemos sua carta começamos a lhe escrever. Gostamos muito da sua carta, do seu jeito também e de você ser corintiano. Estamos mandando pra você dois calendários. Um está marcado com bolinhas em todas as terças feiras que são os dias da reunião. Todo dia três, ou dia mais próximo, fazemos uma festinha em comemoração ao dia da fundação no nosso clube; três de agosto de 31. Estamos mandando dois selos antigos. Queremos trocar muitos outros. Queremos que você fique sócio do nosso clube, mesmo que seja por correspondência. Temos três filiais. Na verdade são os três sujeitos que participam. Os três de São Paulo, e o endereço dos três, mas a correspondência vai para a sede, no meu endereço.”
Tudo isso que é uma grande brincadeira, dá para esse menino do interior a sensação de que ele participa de uma rede de amizades que dá a ele um certo status, inclusive, de ter amigos fora da própria cidade.
P/1 – Vou aproveitar o gancho. Você lendo um pouquinho para a gente me fez querer perguntar Do que você gostava de brincar? Fala um pouco da sua infância.
R – Eu talvez pudesse chegar até essa ideia porque eu pensei isso ontem. Será que essa busca em relação a outras amizades fora da minha cidade viria da minha solidão? Imagino que não. Primeiro porque eu tinha o meu grupo de amigos lá. Eu jogava futebol com os meus amigos. Mas só que talvez a diferença era que eu gostava muito de ler. O meu universo de leitura, eu lia Alencar, lia Machado, “O Cortiço” do Aloísio de Azevedo, que pra mim, foi uma espécie de revelação da vida. Eu tinha então além desse grupo, essa amizade presencial, essa amizade que buscava se estender pela distância. Uma coisa muito curiosa na carta é o sentimento que nós temos quando esperamos uma carta. Talvez não seja tão, sei lá, vamos pensar que mesmo do SMS, das coisas mais imediatas. Nós esperamos e a resposta é quase imediata. Quer dizer, existe um tempo muito curto entre escrever e mandar. Eu acho que os jovens hoje escrevem e-mails, existe outras formas de criar uma sociabilidade. O Facebook, a sua rede está aí no mundo virtual. Mas a noção de tempo permanece mesmo assim, porque você envia, mesmo que o tempo seja muito breve, a angústia da espera. Qual é a resposta do outro para minha intervenção? Para minha fala? Se hoje você é saciado muito rapidamente com a resposta, se demora você fica muito magoado porque o outro não respondeu. Uma carta, quando se escreve uma carta e envia uma carta, quer dizer, há um período em que ela não está mais na sua mão nem na mão do outro, está nos Correios. Quer dizer, esse tempo do correio é um tempo de angústia, tempo da espera da carta. Quer dizer, quando eu escrevo uma carta escrevo para o futuro, quem vai ler. Quem recebe tem memórias do passado. Por isso que às vezes escrevemos uma carta e nem mandamos mais. Perdeu o momento de mandar a carta, ela fica velha. Ficou velha. Não vai mais, nós guardamos. Mas a espera de uma carta está associada a uma quantidade de afetos impressionantes. Quer dizer, me lembro, isso é muito curioso, que eu esperava muito. Quer dizer, o carteiro passava às duas da tarde na minha rua. Eu esperava que o carteiro passasse e uma angústia de que talvez ele pudesse subir a escada da minha casa e deixar a carta. E todo dia eu ficava esperando o carteiro chegar. Um certo momento o carteiro começou a demorar muito para trazer a carta e, até hoje minha mãe não sabe, eu falei: “Mãe, eu vou pintar o número da nossa casa, está muito apagado.” Imaginava, ficava imaginando aos 12 anos que o carteiro não estava encontrando o endereço para trazer a carta. Então quer dizer, eu estou associando essa vontade de receber a carta com essa benção
afetiva, ligada à escrita. Ligada à escrita que representa as ligações de amizade, as ligações de afeto. Não dá pra pensar a carta como um texto. Na minha vida eu fico imaginando um pouco como eu dei importância pra carta, como eu favorecia os diálogos, como eu percebia o significado associado ao texto. Quer dizer, talvez não como eu compreendo hoje, da carta como uma encenação. Você tem uma figuração em face do amigo assim como os escritores fazem, você se mostra como você quer ser visto, a carta é como uma espécie de retrato. Assim mesmo, porque a pergunta que devemos fazer quando se é um escritor é: qual carta tal fulano é guiado, por exemplo. Quer dizer, que medida para cada correspondente ele se configura numa imagem. Nós sabemos muito bem nessa mão dessa estratégia e a carta permite isso para que a gente possa ver a personagem. Somos personagens nessa experiência. Então tem um momento em que a carta me deu muito prazer. A recepção da carta, a presença efetiva da transferência do objeto, estou falando objeto aqui, mas estou pensando sempre que esse objeto tem uma dimensão eu diria anímica, ela não é só um objeto, ela traz com ela uma quantidade de valores, de sentimentos, o próprio objeto que nós recebemos, a carta, que vem pelos Correios, é como se a outra pessoa viesse até nós. Uma espécie de documento que vai ser potencializado por alguma coisa que é experiência do outro, a figura do outro. Me lembro que também foi por conta da carta que eu me formei em Letras e o último ano a Therezinha [Therezinha Apparecida Porto Ancona Lopez], que depois veio ser minha orientadora de mestrado, me chamou para ajudar numa pesquisa que era organização da correspondência do Mário de Andrade. Mário de Andrade quando morreu em 45, pediu para lacrar por 50 anos as cartas dele. É curioso, mas por que eu fecho as cartas por tempo tão longo? Por que eu não permito que as pessoas tenham acesso a essa documentação? No mais por que que eu guardei essa correspondência? Agora vou entrar numa clivagem, porque eu vou começar a misturar coisas. Eu estou falando da minha formação profissional, mas depois eu volto onde eu queria falar. Porque eu queria chegar até a França, em que eu recebi cartas dos meus amigos. Espero que eu chegue até lá... Bom, não precisa contar também os andaimes da minha história. Deixa eu contar um pouco do Mário de Andrade porque eu acho que é importante. Nesse caso é importante porque se ele coloca numa espécie de testamento, uma carta que ele manda para o irmão dele, que ele deixa para irmão dele dizendo porque ele vai fazer com as coisas dele, que ele guardou. Com os livros, os escritos, coisas de artes plásticas, a correspondência, 50 anos. E Hoje eu percebo que existem duas dimensões aí. Uma histórica, o sujeito que está organizando projetos do Modernismo, percebe a importância da carta no que ela reflete de projetos, de interesses, de modos de conceber literatura. Como a literatura se faz não só nos livros, mas nas cartas. Como toda uma formação de uma geração se dá nessa troca de correspondência. Eu mando para você um texto, você me diz o que achou e isso repercute na minha produção. Isso aconteceu muito com o Mário e o Manuel Bandeira, esse tempo todo, quer dizer, até noção de autoria se esfumaça, às vezes, porque a carta permite então que essa troca resulte numa reelaboração de um texto. Quer dizer, aí percebemos a importância. Ou, por exemplo, o interesse que o Mário tem em fazer que a carta chegue em vários espaços do Brasil. Vai chegar no Rio, vai chegar em Paris, vai chegar no Recife. O que vai com a carta não são formas de cordialidade, mas são projetos em que ele quer fazer com que o outro se engaje também nessa experiência modernista. Existem projetos de dimensão histórica, guardar isso significa forjar um gesto de permanência dessa documentação. Que hoje a gente já sabe, recebe mil cartas importantíssimas, mas tem mais. Porque guardar, fechar isso por um tempo tão longo dá também para você diluir aquilo que eram as fofocas, diminuir as tensões, aquilo que talvez depois de 50 anos perde um pouco o calor. Mário foi muito reservado em relação às cartas dele. Isso também desse cuidado, desse dado moral ligado à correspondência. Por exemplo, às vezes, com a Anita, um exemplo que para mim é muito marcante, Anita Malfatti, que para o Mário é a pessoa mais importante do Modernismo, quer dizer, estopim que começa, que expõe 17, que
ensina para o Mário o que é Modernismo. A exposição dela tem essa importância. Enfim, fez uma viagem pra Europa e ela manda uma carta pro Mário, do navio, na qual se declara. Uma declaração de amor. Nós não conhecemos essa carta, nós supomos que seja porque ela vai dizer: “Mário, escrevi pra você uma carta e essa carta é uma carta que lesa a amizade. Quer dizer, eu confundir as coisas. Então por favor, rasgue essa carta”. Então, em nome da amizade, ela pede que ele rasgue a carta. O que ele faz? Ele rasga a carta. Claro. Aí nós perdemos o documento, mas nós conseguimos reencontrar toda uma ambiência, porque a carta em que ela pede pra que ele rasgue, ele rasga. Pouco tempo depois Anita vai assistir a primeira exposição de Tarsila em Paris. A grande exposição dela. A exposição que nós conhecemos com as obras do que depois vão dar Pau Brasil, que vão dar já a tração de vanguarda. E Anita não gosta daquela exposição e faz um relato bastante negativo do que ela viu. Na verdade nós temos aí dois modos de ver a arte moderna. E Anita, depois de uma carta muito longa diz: “Mário, por favor rasga essa carta”. Aí não, aí Mário não rasga. Nós precisamos perceber qual a dimensão desse conjunto. É preciso que a amizade seja preservada, mas em nome da história do Modernismo, essa carta que conta as divergências estéticas de duas das pessoas mais importantes, isso não pode ser jogado fora, isso não pode ser perdido no legado cultural. Só um outro exemplo que para mim é muito marcante, como ele tá muito preocupado em guardar a carta como documento da história, eu lembro um documento que ele recebe que tinha um dado muito da intimidade, tinha um amigo do Rio escreve pra ele dizendo de uma mulher, não sabe se amante, se amiga, uma mulher, escreve para o Mário dizendo que o marido dela a estava traindo com a empregada. É uma história que enfim, é uma histeria. O que ele faz? Ele pega a carta, ele transcreve a carta tirando todos os nomes, jogando a carta fora. Nós temos então é uma transcrição da carta sem os nomes. Eu me, pergunto “Por quê? Qual o interesse teria, que ele possa imaginar, que essa carta teria para os estudiosos?” De um lado nossa história, do outro lado a nossa intimidade, que é a nossa relação com a carta. O meu trabalho com a correspondência do Mário começa então abrir esse material. Conhecer esse material, aprender as estratégias da carta, perceber como a carta é pouco, tem pouquíssima ingenuidade em relação aquilo que ela tá se propondo como objeto, que moderniza o outro. Como isso significou para o Modernismo uma memória. Justamente essa pesquisa e o encontro com alguma coisa que me interessava muito, que justamente me pareceu que a carta seria o campo de trabalho novo no Brasil e eu me senti muito estimulado a desenvolver essa pesquisa. E eu em 92 fui estudar na França, onde já tem uma tradição muito grande em estudos de carta. Eu na verdade fui como estudante. Foi difícil, não tinha bolsa, mas tinha uma possibilidade de trabalhar com uma equipe francesa que trabalhava com a correspondência do Émile Zola, que é um escritor francês no Naturalismo, correspondência sobre a qual um grupo trabalhava já na emissão das cartas. Quando eu cheguei lá eles estavam trabalhando com a correspondência ligada ao período do Affaire Dreyfus que era um momento muito importante da trajetória intelectual do Zola, em que ele coloca em cheque aquilo que se fazia com esse militar, que estava sendo preso injustamente, e o que havia por trás era alguma coisa, como um antissemitismo, alguma coisa muito mais grave. Quer dizer, trabalhar com essa correspondência me deu o modo de como hoje eu faço a passagem da carta para o livro. Carta e livro são diferentes. No livro, não tem a dimensão mais forte, como a do envelope, do papel, isso se perde, no livro perde isso aí. Meu maior gosto na França era receber carta de brasileiro, dos meus amigos brasileiros. O dia que eu chegava em casa e tinha cinco cartas no chão, debaixo da porta, era pra mim uma experiência em que eu sentia que as pessoas gostavam de mim, que eu tinha amigos e que aquilo lá era o sentido de materialização das relações. Que aquilo lá era uma comprovação do quanto eu tinha, eu era, eu favorecia a construção de laços. E eu levava essas cartas e ficava sentado na hora do almoço, depois que eu trabalhava na pesquisa, ia para uma praça francesa, sentava e ficava lendo e relendo as cartas. Depois eu vou contar para você desse aprendiz de escritor, eu escrevia pra alguns escritores. Vou falar para você depois como funciona isso na cabeça da gente. Quer perguntar alguma coisa?
P/1 – Marcos, deixa eu te perguntar. A sua família sempre gostou muito de ler, você mencionou para gente. Tua família incentivava? Fala um pouquinho da sua mãe, do seu pai, como era essa cultura de leitura na sua casa?
R – Meu pai era professor de história, mas ele tinha outras funções. Fazia muita coisa, era vendedor, era um sujeito... Mas livro era uma coisa que em minha casa nunca faltou, exceto por uma condição que eu nunca gostei que meu pai lia e jogava fora o livro. Em geral, anualmente, ele
fazia uma grande fogueira e todos os livros iam embora. Minha primeira briga com ele, minha primeira e única, foi quando eu recusei esse “manda para uma fogueira”, “isso é meu a partir de agora”. Então, os livros, eles chegavam para nós pelo correio. Até os 14 quando eu não podia pagar, quem pagava os meus gostos e os livros que eu queria comprar eram os meus pais. Minha mãe é uma pessoa que não terminou o curso fundamental, que seria até a quarta série naquele momento, mas ela sempre leu muito e lê ainda hoje. Ela gosta muito do Guimarães Rosa e ela não acha ele difícil. Então o que eu leio ela lê também. Às vezes ela lê e diz: “Ah, você precisa ler aquele livro que eu gostei muito”. Eu não li ainda, preciso ler. Então a relação com a leitura, com a escrita e com o universo da cultura sempre foi privilegiada em vários pontos, para uma família de classe média o livro era uma coisa importante. O livro, enciclopédia, talvez seja uma coisa do interior, de ter na sala uma enciclopédia. Ou mais de uma. Hoje não vejo mais isso, nem é mais uma experiência. Hoje os novos projetos nem tem mais lugar para livro, para biblioteca. Você viu recentemente um comercial, um comercial justamente de acesso à internet, que agora não precisa mais de livro? Eles usam livro para sentar sobre livros. Há uma espécie de geração que se formou e tá uma tribuna, o homem como objeto de cultura. Talvez um documento dessa viagem para França, comecei a mexer nas minhas coisas pra ver o que eu tinha que eu pudesse ler e me dar algum prazer de reencontro comigo mesmo. Uma carta do meu sobrinho que na época devia ter oito, nove anos, em que eu escrevo pra ele contando um pouco como era o livro na França. Escrevi pros meus pai na verdade, pro meu irmão que é um pouco mais velho que eu e ele então certamente entendia as histórias à maneira dele. Uma criança pode imaginar um tio que vive num lugar distante, na França, em Paris, que ele não sabia onde é, mas que sabe que é diferente.
“Das coisas bonitas que nos contou que conheceu, apenas uma coisa nos deixa um pouco assustados. A sua alimentação. Agora eu pergunto: os franceses não têm arroz, feijão, leite, café, carne, frango, enfim, está se alimentando de pão e queijo?
Seriam só essas alternativas para uma boa alimentação? Uma alimentação normal como a nossa? Tio Marcos, aqui tudo está bem, aqui estamos com muita saudade”.
Ainda continua. Mas eu devia ter contado para eles o quanto a cultura
francesa valoriza o pão. Quer dizer, eu devia contar para eles a qualidade, como aquilo significava. Faculdades pra você se formar padeiro. Pra nós não teria uma formação superior, lá tem. E como as pessoas têm uma relação forte com o pão, como elas compram pão, e ele ficou muito assustado, achando que eu deveria comer só pão e queijo em uma refeição normal. Ficou preocupado comigo. A carta não só ela ensina, ela faz parte de uma troca, de uma partilha, mas há lugar também da compreensão equivocada. Quer dizer, o que eu pensei nos meus cursos é quando nós lemos uma carta, a carta diz muito menos do que a gente pode imaginar porque quando eu escrevo para você, a quantidade de dados que nós temos em comum precisam ser retomados na carta. Quando um terceiro lê, quando ele lê, ele vai ter que encher de significado aquilo que está vazio. Então nós nos projetamos muito nas cartas. Nós damos, atribuímos os significados que às vezes não estão nas cartas. Então aqui mostra muito bem como é que ele estava entendendo aquilo que pra mim era muito claro. Quer dizer, ler a carta do outro significa, e bem lida, cair em armadilhas. Os estudiosos franceses dizem que a carta mais esconde do que revela. Gosto muito dessa definição, porque nos coloca em face do problema que é a leitura de uma correspondência. Feito um romance, onde há uma unidade, você pode interpretar, mas tudo está lá. A carta se compõe de vazios. Nesses vazios é que nós leitores da carta nos colocamos, interpretamos. A carta é o lugar do equívoco. “Você quis dizer isso pra mim?”, “Não, não quis dizer isso, quis dizer outra coisa” e aí a retomada, o desdobramento, a carta favorece essa retomada da escrita, a retomada do “eu quero contar a minha vida”, ou “eu quero avaliar determinado fato”.
P/1 – Eu estava olhando a sua seleção aqui e eu queria te perguntar. Na hora que você selecionou, o que você deixou para trás? Se você pudesse contar para gente uma coisa que você não tenha trazido para cá e que esteja lá junto com todas as outras coisas.
R – Sim, sim. O que eu deixei pra trás? Quando eu mexi nisso daí eu encontrei a carta de um amigo, um grande amigo meu que hoje mora em Paris. Eu achei que eu ia fazer uma coisa simpática, tirando foto de uma carta dele, mandando para ele. E eu fiz isso ontem. Fotografei e mandei, escrevi brincando, rasgando. “Eu estou fazendo uma limpeza nas minhas cartas e aí encontrei essas dizendo um monte de coisas…”
Uma brincadeira. Ele ficou muito chateado comigo. A carta com talvez 20 anos, ou mais de tempo e ele sentiu um pouco como se aquilo lá não fizesse mais parte da história dele. Depois fiquei a imaginar, acho que realmente foi mal. Você imagina que o outro possa ter algum prazer em se reencontrar depois de 20 anos e talvez não. Talvez você possa encontrar um outro sujeito, não mais aquele que você aliás não quer mais encontrar. Então eu fiquei imaginando o quanto dessas coisas que para mim tem sentido hoje, mas talvez amanhã não tenha mais. Eu deixei de lado, por exemplo, o que eu pensei em trazer e não trouxe, são duas cartas que eu mandei e voltaram para endereço. O destinatário se mudou e eu nunca mais abri essas cartas. Estão fechadas lá. Elas voltaram para mim e estão fechadas. “Mas por que você não abre essas cartas?”, falei: “Ah, não vou abrir não.” O que eu tenho para retomar desse tempo? Talvez mais nada”. Que história que ficou fechada aqui? De uma amizade que se perdeu. Então, pelo objeto, por exemplo, a carta fechada que voltou, quer dizer, eu estou lá dentro da carta, minha fala está lá encerrada. A gente sempre traz o que nos toca e o que é pitoresco. Por exemplo, um amigo que foi embora morar em Londres, um sujeito bastante avançado em termos de tudo, eu que na verdade sempre fui muito certinho, então achava aquilo admirável. Ele morou em Londres muito tempo e as cartas dele eram muito movimentadas, cheia de desenhos. Eu trouxe aqui com uma escrita e aqui também uma espécie de quadrinhos. A história vai sendo recontada pelos desenhos. Aqui, por exemplo, a brincadeira. Isso tudo foi muito retomado. As cartas dele foram muito marcantes porque existe um dado que é o que ficou de alguém que morreu. Ele volta pro Brasil logo depois e aqui não é mais possível voltar para o Brasil, para o interior por exemplo, depois de ter vivido em Londres. Aquilo foi para ele uma violência, começou a beber e ele vai morrer num acidente de carro voltando de uma festa. Mas essas cartas são muito bonitas, é de alguém que reverenciava a amizade. Não só em termos de você recuperar um documento como esse, aquilo que é texto ganha uma profundidade. Isso não é só um papel mais, não é só um texto. Aqui existe uma história. Está na cara que é uma história não só das relações afetivas, mas também de um sujeito. Essas cartas daqueles que foram embora em geral, eu presto muita atenção nisso, em geral quando a pessoa morre os parentes jogam tudo fora. Uma espécie de exorcismo, de luto que você fecha a história jogando também as coisas e os papéis e, por outro lado, não é um dado triste essa correspondência. Na verdade é nossa própria história reservada, preservada num documento. O e-mail, por exemplo, talvez não tenha essa dimensão, talvez a imaterialidade do e-mail não garanta para gente esse sentido forte do material. Da carta, da escrita, do envelope, eu troquei de computador duas vezes, e das vezes que eu troquei o Outlook foi embora. Eu perdi talvez dez anos de diálogo com um bocado de gente. O que era antes existe ainda, o e-mail não existe mais. Se bem que a gente pode imaginar hoje que nada se perde mais. E os novos e-mails e outras coisas quando a pessoa morre? O que acontece com essas mensagens? Elas somem? Elas resistem até quando? Será que quando a pessoa morre os herdeiros podem dizer que isso é um legado pra família? Assim como as cartas do Mário ficaram como legado cultural? Os escritores de hoje vão ter memória epistolar? Eu recebi durante um tempo – falando de carta de novo, talvez não estava previsto, mas falar de perda. Eu tive um aluno que foi um poeta admirável. Ele fazia Cinema na USP e me procurou porque queria conversar com um professor
e ele foi, me procurou, isso já faz dez anos talvez e ele me contou uma história que é difícil, tinha se curado de um câncer, e tinha voltado. E eu conversei um pouco com ele nesse período. Ele me mandou uns poemas admiráveis, alguns textos ensaísticos. Eu o vi uma ou duas vezes e o que eu tenho foi justamente essa correspondência que eu aliás, publiquei uma dessas cartas num dos livros meus, chama: “Lhe escrevo tão logo possa”, justamente como ele fecha a carta. É dele o título do Rodrigo Pontes. Imagino que essa correspondência, não tem em papel, eu tenho o que eu guardei, eu imprimi uma parcela desses documentos que me interessavam para compreender um pouco a produção dele. Eu já peguei esse material, ele desapareceu no virtual. O que eu tenho são cópias impressas de algumas dessas carta e-mails. Mas essas cartas e-mails nem tem a mesma força do documento da carta em papel. Tem um assunto, talvez a vida esteja lá mascarada, há uma diferença. Não sei explicar muito bem, ou talvez eu devesse saber, mas eu acho que essa experiência nova também diz de uma nova geração, eu uso e-mail só para responder questões profissionais, eu confesso a você que eu não tenho amizades a partir do e-mail, respondo alunos, projetos. Muito mais do que eu já escrevi na minha vida, escrevo muito mais, mas tudo isso aí não tem uma seiva que eu pudesse dizer que eu me conto, e que eu possa me contar em que a carta é o lugar da memória, a minha memória, a não ser pelo aquilo que ela conta. E justamente, eu acho que há uma nova geração que está investindo em e-mail num sentido mais forte. Há discussões sobre a poesia, sobre a criação artística, quer dizer, há uma discussão mais ampla que aparece nos blogs, há então um esforço de preservar para esse ambiente muito mais aconchegante da intimidade, embora essa seja só conhecer uma intimidade virtual e material, mais há um investimento no sentido de dar um significado mais humanizador para aquilo que a primeira vista parece desumano. Eu vejo, por exemplo, como alguns dos jovens poetas que eu conheço estão trocando muitos e-mails discutindo, só espero que isso não se perca como se perdeu, porque Mário de Andrade guardou a correspondência dele. O que nós temos lá é retrato, não do Mário de Andrade, mas de uma geração mobilizada por uma ideia. Eu tenho curiosidade de saber o que está se passando com os poetas novos, com os escritores novos. O que eles estão conversando. As coisas que estão acontecendo. Eu fiz isso, eu queria ser escritor também. E o correio foi importantíssimo para mim. Porque o gesto inaugural do jovem escritor é mandar o seu poema, o seu conto para um escritor. Ele precisa se afirmar pela voz do outro, precisa ouvir do outro se é ou não é poeta. E eu escrevi para alguns escritores. Alguns me responderam. Os que não me responderam talvez porque eu já me colocava numa posição até um pouco suficiente dizendo: “Eu gosto muito do que você escreve”, então já tateando um pouco, dizendo que eu sou alguém que conhece um pouco de literatura. Por exemplo, já não é mais um menino, mas um moço, já um sujeito que acho que tem vocação literária, tá enganado, eu imagino, mas tudo bem, escreve poemas. O Caio Fernando Abreu que pra mim ele foi uma referência de geração, “Morangos Mofados”, embora eu não tenha entendido quase nada dos contos. Para mim era um universo a ser conquistado. Eu escrevi, mas você escreve pra quem? A questão da materialidade da carta é superimportante. Escrever ou para o jornal onde ele trabalhe, ou pra editora pela qual saem os livros dele. Então quer dizer, há uma chance enorme de nunca ter chegado na mão dele. Já os escritores respondem, em geral eles respondem, porque há uma espécie de compromisso inclusive com o seu leitor. Eu quero ler um trecho. Eu li isso aqui a semana passada, o Jorge Amado recebeu muitas cartas de leitores, muitas cartas de leitores, muitas mesmo. E tem até matéria sobre isso que a autora cita alguns trechos que os leitores diziam: “Eu sou a Tieta. Como que você descobriu a minha história?” Há uma espécie de aproximação,
o leitor se espelha na personagem e diz para o autor, partilha com o autor essa proximidade. O autor conta a história de alguém efetivamente, sem questionar que a história é dela. Essa é a literatura, a dimensão forte do literário, de contar a história, mas você se sentir envolvido na história, se sentir protagonista. Jorge Amado escreveu a respeito de umas cartas dele numa entrevista que ele dá para uma escritora francesa, Alice Raillard. Eu queria ler, acho importante para pensar o que significa para o escritor:
“Tenho, por exemplo, uma correspondência enorme. Infelizmente aprendi na Europa, nos anos que vivi lá, entre 48 e 52, que se deve responder as cartas. Como todo brasileiro eu não o fazia. Como, não chegou? É por causa do correio. Hoje já não se pode usar essa desculpa, pois o correio funciona relativamente bem no Brasil. Talvez não seja perfeito, mas anda muito melhor do que antes quando era totalmente aleatório, hoje não mais. Eu aprendi isto e é um horror. Recebo diariamente uma correspondência enorme, cartas de todos os tipos e muitas de leitores. Quando estou em viagem as caixas e caixas de papel se acumulam”.
Ele continua contando um pouco essa experiência. Mas eu recupero desse trecho não só a importância do autor, do leitor para o autor, mas como no Brasil há uma tradição não só de largar as cartas, mas não escrever cartas, de não responder cartas. Há grupos importantes como o do Mário que dá um papel decisivo para a carta, em grande medida, manter uma correspondência não é muito fácil, é dificílimo. Precisa sempre encontrar um ponto em que o diálogo possa se desdobrar. Por exemplo, há duas coisas que matam uma correspondência, por exemplo, só falar de você, o outro não tem espaço e não pode responder a carta, o silêncio. Como é que eu posso favorecer o diálogo? Como que o outro pode responder, citar uma outra carta? Como poderá durar tanto tempo? Como que a correspondência pode durar 40 anos? De volta agora ao escritor que eu queria ser. Eu dizia que os escritores geralmente respondem. Às vezes com um certo mal estar. Eu também recebi muitos poemas de alunos e alguns eu não sei também o que dizer. Não são vocações, são experiências quase viscerais, mais do que artísticas e no entanto o que vale é o que o outro possa ler: “Precisava ler, li, gostei”. Eu quero contar dois casos. O escritor Fernando Sabino. Não só porque eu gostava das crônicas dele, mas porque ele tinha publicado “As Cartas a Um Jovem Escritor”, que é um livro que faz referência ao eu, que faz uma espécie de tradução dos jovens escritores que escrevem aos escritores já conhecidos pedindo orientação. “Será que eu sou mesmo escritor?” Talvez por essa dupla possibilidade de um diálogo, eu pressuponho que ele possa me responder assim como o Mário respondeu pra ele: “Você se insere numa cadeia de jovens autores”. E mandei pra ele um conto. Ele foi muito simpático, mas claro que eu andei com essa carta no bolso vários dias. Uma carta do Fernando Sabino, um bilhete do Fernando Sabino, um cartão. Segundo porque ele dizia:
“Rio, 13 de Dezembro de 90.
Meu caro Marcos Antonio de Moraes, entre uma viagem e outra, pondo minha correspondência em dia, embora não tenha competência, nem disposição para julgar trabalhos alheios, não poderia deixar de lhe escrever rapidamente pra dizer apenas que achei o seu conto “O Medo” da melhor qualidade. Tem uma atmosfera e uma linguagem intensa que dá bem a medida de sua vocação literária. Esperando que ela se realize com o sucesso que tanto parece merecer, envio-lhe um cordial abraço com votos de feliz natal, seu Fernando Sabino.”
Você percebe como há uma dualidade nessa carta. Eu posso ler em duas perspectivas. A primeira que diz: “Olha, é bom, mas não estou com tempo de dizer que está”. Quer dizer: “Eu tenho tantas atividades para fazer, não tenho nem disposição”. Já há uma coisa dura no início da carta que depois diminui num elogio que é espetacular. Mas acho que você realmente tem vocação, gostei do conto, é bom. A segunda parte da carta me interessou. Nós lemos partes das cartas, nos apropriamos de alguns valores dela. Isso, claro, me fortalece a ideia de que eu podia escrever mais, mas também diz que eu poderia escrever mais pra ele. Não era de bom tom que eu insistisse, ele é um homem tão atarefado, enfim. O outro poeta, o outro escritor, é o poeta José Paulo Paes – os dois já morreram, Fernando Sabino e José Paulo Paes, que pra mim eram os poetas de quem eu mais gostava. E era uma referência. Contemporâneo era José Paulo Paes. E eu tinha recebido um poema na USP no Projeto Nascente, era um projeto que incentiva os alunos a escreverem poemas, escrever cinema, música, de vocação artística dos estudantes e eu venci ele em dois momentos. Em prosa num ano, no outro ano poesia. Fiquei muito contente. Para mim era assim e eu escrevi então com base nesse poema, achando que havia algum reconhecimento, eu escrevi a José Paulo Paes mandando alguns poemas, incluindo um que eu dedicava a ele. E ele respondeu, é uma carta que eu guardo com muito carinho, foi uma coisa muito curiosa porque são duas cartas. Uma se perdeu. Ele mandou para o endereço da USP. Claro, eu era um bolsista, talvez não fosse me achar mesmo. E essa carta se perdeu. Então essa é a segunda carta:
“Obrigado pelo poema que você me dedicou e que eu apreciei. Fico contente de ver que você continua a escrever poesia. Se me permite um conselho de companheiro nesse árduo ofício, tome cuidado com o adjetivo. É um amigo traidor. Cuidado também com a hipérbole, é outra traidora. No poema Golpe de Misericórdia, por exemplo, descomedida e auge, enfraquecem o hiperbolismo de êxtase, cujo sentido é por si hiperbólico. Quando tiver que escolher entre um termo de uso corrente e outro de cunho erudito, opte pelo primeiro, por que não ajoelhado em vez de genuflexo? Para abrandar o excesso adjetival dessa estrofe, por que não oblíquas entranhas em vez daquilo que você escreveu a fundura do corte? Desculpe eu estar metendo a colher na sua culinária, mas faço tendo em vista a desafetação de tradução poema, onde há um predomínio claro do substantivo. Parece o melhor poema conjunto que você me mandou. Juntamente com as desculpas pela intromissão, um abraço amigo. Aqui fica José Paulo Paes.”
O que a carta me traz? É uma dimensão pedagógica, é bem verdade que expôs isso muito mais que poesia, mas podia ter continuado. Havia então um reconhecimento e mais do que isso, a carta como uma experiência pedagógica, o poeta me ensina dizendo: “Olha, por que fala tão empolada se a poesia pode ser uma experiência mais fluida do cotidiano?”, porque tudo isso me dá uma espécie de poética. Alguém que reconhece uma dicção lírica e que diz: “Por que a gente escreve papo e não conversa?”. Porque há uma diferença muito clara para a gente que a carta, a distância, o outro que pondera, que tem tempo, escrever a carta, o meio. Por que nós escrevemos algumas coisas em vez de telefonar, por exemplo? Porque justamente esse espaço na escrita e na leitura da carta, espaço que nós nos damos uma dimensão mais funda de existência. Nós temos tempo pra pensar, pra refletir, pra recuar, pra jogar fora a carta e refazer, pra apagar, pra deletar e poder mandar uma outra. Quando nós pensamos no gesto epistolar, nós pensamos sempre nesse modo como cada um de nós vai se construindo. O que fica é um texto, mas no processo do texto há um sujeito que se constrói. Nas escrituras, por exemplo, eu fico imaginando, quando há uma troca entre dois escritores, o que vale não é apenas o resultado dessa correspondência. É o próprio processo. Como se o que se escreve na carta fosse o exercício da própria escrita literária. Não é literatura, mas às vezes pode ser. Se você pegar, por exemplo, correspondência da Ana Cristina Cesar há um texto muito grande entre carta e literatura. Muitas vezes a carta é literatura. Por exemplo, pra escrever carta é preciso renunciar pela metade a literatura. Bom, dispensa metade, tem mais metade que é literatura. Então se percebe que o próprio escritor é um cargo de exercício da própria escrita. Bom, pelo menos estatística.
P/1 – Eu queria te perguntar. Talvez tenha algumas dessas cartas aí em tenham marcado teu período de juventude em termos de músicas, lugares que você gostava de sair.
R – Talvez fosse uma experiência curiosa essa correspondência que nós recebíamos e delimitar os assuntos que aparecem lá. Eu estava mexendo na correspondência, eu me lembro justamente desses grupos de conversa de carta que dizia quais são as músicas que eu gosto mais nesse momento. E aí fiquei olhando lá e realmente eram músicas, não sei recuperar agora, mas eram músicas que formaram uma geração, Mas, embora eu tenha estudado música, eu acho que música nunca foi pra mim uma algo assim... Não porque estudei música. Foram quatro ou cinco anos de alguma coisa que talvez me dissesse muito. Talvez na dimensão profunda mais potente da arte, me dissesse coisas, mas não sei, não sei. Acho que a literatura sempre tomou conta da minha correspondência. Eu tenho um amigo que é um jovem escritor, depois continuou e hoje é professor como eu, então na nossa correspondência, no próprio envelope vinha uma poesia. O próprio carteiro podia ler se ele quisesse um versinho: “Aquele mar está cercado de garrafinhas de vidro. Todos logram seus amores, só eu os trago no sentido”. Aí Marcos Moraes, Teodoro Sampaio. Havia então o envelope, não podia jogar o envelope nesse caso, porque ele faz parte da mensagem. Ele é uma mensagem, ele é literatura que seria a parte mais pura desses interesses que aparecem na correspondência.
P/1 – Marcos, eu queria te fazer uma pergunta. Podemos recuperar alguma coisa da história da sua família, origens, através dessas cartas que você trouxe ou das que você deixou de trazer?
R – Pensar um pouquinho. Quando você me perguntou o que eu não trouxe. Eu não trouxe, por exemplo, as cartas da minha mãe. Eu acho quando eu recupero essa correspondência, eu tenho um pouco a história familiar. Mas eu não consigo achar uma história. A memória ela tem uma dimensão muito frágil. Retomar essas cartas porque elas trazem aquilo que talvez a gente queira esquecer. Eu não sei. Você me deixa pensar um pouquinho mais, depois a gente conversa?
P/1 – Claro.
R – Não sei, não tem. Nossa, me deu branco. Bom, acho melhor você me perguntar alguma coisa, uma outra coisa.
P/1 – Vou te perguntar outra coisa. Queria te perguntar um pouquinho da tua cidade. Era pequena do interior, como era a relação com o carteiro? Conhecia o carteiro?
R – Quando eu contei pra você que eu esperava o carteiro passar sempre. Passava sempre duas e meia horas da tarde, eu nunca conversei com o carteiro, mas eu conhecia, mesmo porque ele era irmão da minha cunhada. Então eu o reconhecia. Havia uma referência, mas isso nunca significou muita coisa a figura do carteiro. Talvez fosse mais importante quem estava por baixo do uniforme. Eu fico pensando em o quanto essa figura representa para algumas comunidades. O que significa em termos de portador de uma notícia, portador do bem e do mal. Quer dizer, não é só uma profissão. Eu sempre imaginei que ele traz esperança ou que ele traz um certo medo da notícia do que vem. Eu acho que a história da correspondência deve ser contada não só a partir do texto. Isso é uma coisa que eu sempre discuti em sala de aula e com os amigos. Sempre se pensa muito no que se diz, mas não no complexo em torno da correspondência. A figura do carteiro, do correio, do correio enquanto instituição e também as próprias caixas de correio. Eu fiquei pensando nisso também ontem quando eu retomei um livro que saiu já há algum tempo, que seria essencial pra um depoimento como esse que é livro do fotógrafo Mário Rui Feliciani que chama “Quando o Carteiro Chegar”. O que ele faz? Pega a máquina fotográfica dele, vai para a periferia fotografar caixas de correio. As mais improvisados possíveis. O que é possível ter como experiência da carta? Agora vamos imaginar o seguinte: O que faz uma pessoa ter uma caixa de correio? Significa na minha percepção que ela se sente que tem um lugar no mundo. Tem uma caixa do correio, tem endereço. Ter uma caixa no correio, é simbolicamente dizer: “Eu tenho um lugar pra receber notícias”. É quase como um traço. Acho muito curioso que as caixas de correio tem forma de casinha. Por que será que tem forma de casinha? Eu fiquei imaginando o que significa isso. Significa pelo menos duas coisas, há uma espécie de metonímia, a casa e a casa que recebe a carta. Essa casa que recebe a carta é o lugar da hospitalidade, você recebe o outro. A carta é o outro, é a pessoa que chega. Há também, se reconhece a dimensão humana na carta, reconhece o recebimento dessa carta como um espaço de cordialidade, mas também preserva a intimidade porque é só uma fissura, é por lá que entra, não é escancarado. O público e o privado, se preserva então a mensagem, mas eu gosto muito de imaginar como uma pessoa que em geral mora um lugar onde talvez mal o correio possa passar, que ela se proponha a fazer uma caixinha de correio. Tem uma das histórias que o Mário Rui Feliciani conta um pouco, por alto, mas de uma forma muito bonita, é essa caixa do correio aqui. É um bloco de cimento fechada, não há lugar pra entrar correspondência e aí o fotógrafo conta, que ele tá na periferia e ele vê a caixa e vai fotografar e pergunta: “Quem que mora aí?” e ele sabe a história do dono que é já um senhor que perdeu um pouco a condição mental e que ele se recusa o contato com as pessoas. Se recusa a ter contato com as pessoas, então as pessoas: “Não vai chegar lá que você vai sair, vai ser ruim pra você”, então: “Não quero conversar com ele, quero só saber se isso aqui é uma caixa de correios”, e é uma caixa de correio. O modo como o sujeito já ficou transtornado que perdeu a mulher, que a mulher vai embora e os filhos vão embora, como ele lida com o mundo externo, com o mundo que ele não domina mais e se fechou. A única porta de entrada pra esse mundo, na minha percepção, é essa caixa de correio que é simbólica, porque ela existe, está aberta pra comunicação, mas está fechada, não tem nenhuma fissura pra receber carta nenhuma, só uma experiência quase, uma experiência psicológica já bastante degradada, sofrida, que é uma comunicação inviável, é uma comunicação, quase pedindo socorro, quando ele cria uma caixa como essa, sem entrada pro outro. Então quando a gente pensa na correspondência, não só da carta, mas desse universo material associado à carta. Eu acho que um trabalho como esse é exemplar. Eu gosto muito de estudar aquilo que não resultou na comunicação. Por exemplo, as cartas que se perdem. O que significa uma carta que não chega? Eu me lembro de uma exposição na França, no Museu do Correio, que eram as cartas, os resquícios de carta que sobraram de um acidente aéreo, de uma mala postal. Então o que ficou era um pedaço de carta queimado. Está no museu. Quer dizer quantas pessoas não receberam mensagens. Que mensagens eram essas que não chegaram pras pessoas? É só um pacote, um pedaço de carta queimada, mas o que estava lá são diálogos interrompidos. O que estava lá e gente que não soube se eram coisas importantes, estava lá a morte da própria comunicação. A gente pensa então nessa materialidade, pensa por exemplo, pensa no filme sociológico daquilo que eles atribuem pra esse gesto, que nós fazemos tão sem precaução, mas nós sabemos exatamente o que significa aquilo. Nós pensamos pouco sobre isso, mas sabemos como funciona a engrenagem.
P/1 – Marcos, deixa eu te fazer uma pergunta agora, como hoje a gente tem um tempinho um pouco limitado. Eu queria te fazer a proposta de você vir mais uma vez aqui pra gente continuar, porque eu acho que tem bastante coisa pra você falar ainda, você não acha? Ou você acha que quer encerrar? Quer falar mais alguma coisa e encerrar por hoje mesmo?
R – Deixa eu pensar um pouquinho.
P/1 – Pensa um pouquinho
R – Vou pensar um pouquinho. Você quer falar mais alguma coisa especifica?
P/1 – Não, eu acho que foi ótimo, assim, a gente já tem bastante material.