Era 1976 e eu tinha oito anos.
Havia chegado da Bahia a pouco mais de quatro meses.
Eu nunca, em toda minha vida, havia ouvido falar de mortadela.
Morava com a minha avó materna numa cidade do interior baiano.
Eramos pobres, não miseráveis, mas pobres!
Vovó costurava para fora, para sobreviver.
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Era 1976 e eu tinha oito anos.
Havia chegado da Bahia a pouco mais de quatro meses.
Eu nunca, em toda minha vida, havia ouvido falar de mortadela.
Morava com a minha avó materna numa cidade do interior baiano.
Eramos pobres, não miseráveis, mas pobres!
Vovó costurava para fora, para sobreviver.
Era especialista em roupa masculina, especialmente uniformes de todos os tipos.
Em São Paulo tudo era diferente!
Eu, como criança que era, parecia estar em outro mundo.
Para ingressar na escola pública, tive que passar por um teste para saber se tinha condições de acompanhar meus futuros colegas, pois o ensino paulistano era considerado mais forte.
Tinha vindo do primeiro ano (antigo primário), hoje anos iniciais, fundamental I.
Reprovada, fui remetida novamente ao primeiro ano.
A minha condição de vida à essa época, havia melhorado muito!
Digamos que sai da condição de camponesa, para a condição de princesa.
A escola era boa, diferente, um universo novo a ser descoberto, a única coisa que me chateava de verdade eram as piadinhas, hoje denominadas "bulyng".
Mas na verdade, eu nem dava muita bola para isso.
A professora Conceição era um docinho de coco e parecia gigantesca, tão alta e magra ela era.
Também era novidade a instalação de cantinas em escolas, pois as mesmas ofereciam a merenda escolar.
Eis que surge uma dessas cantinas na escola em que eu estudava, aguçando a curiosidade de todas as crianças que la´estudavam.
É claro, que todos aqueles que tinham condições ainda melhores que a minha deixaram de tomar a merenda oferecida pela escola e passaram a trazer um dinheirinho para comprarem as delícias que essas cantinas vendiam, no intervalo das aulas.
Um dia, surge uma novidade.
A professora entra na sala, trazendo junto a seu material de trabalho, algumas fichinhas feitas de papel cartão.
Lembro-me como se fosse hoje.
Todas verdinhas pálidas, recortadas com serrilhados em suas bordas e escritas à mão, contendo ainda um carimbo da secretaria, redondo azulado.
Então, ela nos explicou que aquelas fichas eram para aqueles que quisessem comprar pão com mortadela na cantina.
Quem quisesse, adquiriria uma ficha e quando dez minutos faltassem para o intervalo, formariam uma fila diferente daqueles que não comprassem.
Pura discriminação, penso hoje!
Na época não sabia que o nome era esse e nem que no futuro me depararia com isso no cotidiano da minha vida.
Mas, já a sentia.
Todos os dias, a tortura da fila do pão com mortadela!
O cheirinho da iguaria, parecia invadir as minhas narinas logo que esses dez minutos começavam a se aproximar e a fila ia se formando junto à mesa da professora.
Muitos colegas, se achavam importantes e melhores do que aqueles que não podiam comprar pão com mortadela. Alguns grupinhos começaram a se formar, havia então, a "classe dos pão com mortadela" e a" classe dos merenda escolar".
Lógico que eu poderia ter pedido aos meus pais um dinheiro para comprar uma ficha , para comprar pão com mortadela, mas aquilo foi se transformando dentro de mim em uma espécie de raiva, por causa
dessa divisão de classes sociais.
Sim, porque isso nada mais era do que a divisão de classes sociais se apresentando no ambiente escolar, onde jamais deveria existir, pois escola é lugar de igualdade e portanto não deveriam haver tais distinções.
Às vezes, uma ou outra colega, "classe pão com mortadela", oferecia-me um pedaço, mas eu apesar de sentir aquele cheirinho delicioso invadindo-me o nariz, não aceitava, em sinal de protesto ao que o pão com mortadela causava nos menos abastados ainda, do que eu.
Alguns desejavam que o pão com mortadela do colega caísse, outros que houvesse dentro um bichinho bem nojento e ainda haviam aqueles que só de maldade aproveitavam a brincadeira de pega pega, para mirar na direção de quem vinha saindo da famosa fila do pão com mortadela e esbarrar de propósito, para que o pão caísse.
Eu de longe observava tudo isso e vez ou outra, sentia até uma certa pena daquele que perdia seu lanche particular.
Mas acredite, aqueles que faziam questão de derrubar o lanche do outro, às vezes abaixavam-se e apanhavam o pão com mortadela e o comia, sem a menor cerimônia, enquanto o ex proprietário do lanche, chorava num cantinho ou ia atrás de uma servente que o ajudasse a solucionar seu problema, sem solução.
Nessa mistura de raiva, incompreensão, revolta e pena de alguns colegas tanto dos que podiam comprar, quanto daqueles que não podiam
e até mesmo da situação que se apresentava agora na escola por causa do pão com mortadela, decidi que, pão com mortadela para mim seria algo totalmente dispensável.
Com o tempo as coisas foram se acomodando e eu já nem ligava mais para o cheirinho delicioso do pão com mortadela, que vinha lá da cantina e nem para os minutos em que a professora venderia as pálidas fichinhas verdes com carimbo da secretaria.
Alguns colegas da" classe da merenda" até fizeram amizade com os da" classe do pão com mortadela" para assim, conseguirem metade daquele alimento que causou tantas mudanças comportamentais dentro da escola na hora do recreio.
Olhando por esse lado, até que esse "pão com mortadela", não foi de todo, tão ruim.
Até hoje, não sou fã de pão com mortadela, mas tanto ontem, quando meu filho disse tem pão com mortadela no potinho, quanto hoje em dia, toda vez que sinto o cheirinho de mortadela, logo vem a minha mente a imagem
da fila, da professora, dos colegas,, da cantina e do famoso pão com mortadela.
Beijooooos
E viva a vida!Recolher