Já se falou e escreveu muito sobre o êxodo rural ocorrido na Região Norte do Paraná. É uma marca de nosso tempo, é uma marca de uma geração. Um divisor de águas no nosso tempo, em nossa região. Marcou profundamente a vida de toda uma população: economicamente, psicologicamente, soc...Continuar leitura
Já se falou e escreveu muito sobre o êxodo rural ocorrido na Região Norte do Paraná. É uma marca de nosso tempo, é uma marca de uma geração. Um divisor de águas no nosso tempo, em nossa região. Marcou profundamente a vida de toda uma população: economicamente, psicologicamente, socialmente e simbolicamente. Quero aqui neste espaço relembrar esta ferida, este trauma, esta história do êxodo rural, ocorrido na região em que nasci e vivi até os meus doze anos de idade, em lugares que em que conheci e vivi este movimento de deslocamento em massa da população rural, devido o fim do ciclo do café, a mecanização da lavoura, o uso intensivo de fertilizantes, venenos, a chegada especialmente da lavoura da soja e o surgimento de grandes propriedades, onde antes só havia minifúndios, o fim de inúmeras comunidades, patrimônios, vilas, o esvaziamento de distritos e pequena cidades, até então pujantes e vivas.
Os agricultores sem opção, sem ajuda de nenhuma espécie, abandonados a própria sorte, são engolidos por esta nova realidade "modernizante" da agricultura capitalista e da expansão do capital na lavoura, até então comunitária, familiar, de subsistência, em pequenas propriedades familiar. Agora torna-se mercado para a venda de máquinas e equipamentos, adubos, calcário, venenos de todo tipo, com o surgimento de uma nova agricultura, que não precisa mais da mão de obra humana em massa, como era necessário na lavoura do café.
A máquina faz tudo, o homem é dispensado do trabalho na lavoura, ali ele não é mais necessário, esta sobrando, não tem mais espaço neste novo modo de explorar a agricultura, de explorar a terra, é substituído pela máquina, pelo veneno, vira uma mão de obra sobrante e vai ser empurrado pela fome, pela miséria, a procurar outro lugar para tentar sobreviver, vai ter que forçadamente migrar. Sem nenhuma saída ali no campo, porque seu espaço foi ocupado por outra realidade que ele não tem como concorrer ou mesmo resistir a tudo que invadiu seu espaço no campo. Foi expulso do seu meio.
Na terra não dá mais, encerrou-se um ciclo, contra sua vontade e desejo. Muitos vão rumo aos centros urbanos, rumo principalmente das cidades polos, para tentar sobreviver, vão ser na verdade mão de obra de reserva. Vão inchar estas cidades polos ou outros vão em direção a cidades maiores como Curitiba. Lembro que quando estava estudando na cidade de Curitiba, no início da década de 1980, visitei muitas vezes bairros da periferia da cidade ou favelas e muitos, quando ficava sabendo que eu era do interior do estado do Paraná, se identificavam comigo e diziam "eu também vim de lá, depois do fim do café".
Outros foram para São Paulo capital a procura de emprego na industria, até porque corria a fama que lá tinha emprego para todo mundo. Ilusão, mas sem ilusão o homem não vive. Outros ainda foram para cidades como Campinas e Jundiaí no estado de São Paulo. Alguns foram também para a Região Norte de Brasil, como para o estado de Rondônia e Mato Grosso, eram novas fronteiras agrícolas que estavam abrindo. Alguns chegaram a migrar em direção ao Paraguai, tornando-se os chamados brasiguaios. Esta foi a dura realidade do êxodo rural ocorrido na nossa região, região em que nasci e pude, ainda menino, acompanhar um pouco tudo isto, este movimento, fazer parte dele, viver esta dura realidade, junto com minha família, que mudou-se no ano de 1974, para a cidade de Maringá.
Lá pelo fim da década de 1960 e inicio da década de 1970, começa este movimento. Surge no cafezal da região em que eu morava, os sinais das primeiras pragas nos cafezais, como a ferrugem amarela. A folha do pé de café ia amarelando e tinha uma mancha parecida com uma ferrugem, secava e caía, o pé de café ficava totalmente sem folha e secava. Além de ter aparecido outras doenças na lavoura. Esta realidade obrigava o agricultor, no desespero, de tentar salvar seu cafezal, a se endividar nos bancos e a se contaminar com o veneno, que ele desconhecia, como o BHC. O lavrador não tinha nenhuma orientação de como se proteger com um produto tão perigoso, muitas vezes usava máquinas costais e saia pulverizando o cafezal sem nenhuma proteção, respirando aquele veneno tão agressivo, que em outros países já era proibido há muito tempo e era desovado aqui no Brasil, com a anuência das autoridades. Muitos agricultores morreram ou ficaram com sequelas para sempre. Este veneno só foi proibido muitos anos depois, muitos agricultores o enterraram em sua propriedade. Além disto se endividavam comprando adubos, máquinas, equipamentos e outra ferramentas necessárias para aquela nova realidade no campo, que antes ele não utilizavam.
Depois alguns agricultores começaram a arrancar os cafezais doentes e velhos e plantar outras lavouras como a soja, o algodão, o milho, mas ai era necessário mais terra, adubos, venenos, máquinas. Se endividaram nos bancos, pois muitos, para adquirir estes produtos, máquinas e equipamentos, necessários para tocar a nova lavoura, vão até aos bancos para financiar os mesmos e o pior, a terra é dada como garantia dos empréstimos nos bancos. Como dizia meu tio Valdomiro Caleffi: "Ficamos com o rabo preso no banco, debaixo da mesa". Muitos perdem sua propriedade familiar para o banco por não conseguir saldar a dívida. Ficaram totalmente desamparados e entram em desespero. Alguns morrem de tanta tristeza, outros ainda chegam ao limite de se suicidar, a tirar a própria vida. Outros, chegam ao um ponto, de ter que vender a sua única propriedade, fonte de renda para sustentar a família, para quitar a dívida no banco. A saída foi o êxodo. Muitas vezes sem rumo, a esmo, por ouvir dizer que este ou aquele lugar, esta ou aquela cidade ou região era melhor. Famílias inteiras saem de suas propriedades rumo a um outro destino desconhecido. Comunidades inteiras são esvaziadas, somem do mapa de repente. Muito triste. É a dura realidade histórica de um tempo.
Lembro que no sítio do meu avô Santo Caleffi, onde nasci, no município de Marialva, que ficava na Gleba Aquidaban, no quilômetro quatorze da estrada carana e do quilômetro dez da estrada Marialva, ele ficava num vale lindo, o sítio de meu avô fazia cabeceira no espigão, onde passava a estrada carana e fazia fundos com o rio Marialva, como todos os sítios dali. Ali havia uma verdadeira colônia, na sua maioria de moradores descendentes de italianos, todos moravam nas margens do rio Marialva, eram muitas casas, uma perto das outras, no mesmo alinhamento, cada uma em seu sítio, era uma vida pulsante, tudo muito vivo, alegre, cheia de contentamento, segura, em paz, era muita gente circulando toda hora, todo dia, especialmente nos fins de semana, gente conversando, era um ambiente saudável, cheio de muita alegria, havia muitas festas, danças, campo de futebol, até time dali havia, havia muita generosidade, solidariedade, ajuda mútua, havia uma identidade entre todos, todos se conheciam profundamente e se respeitavam, havia laços profundos de amizade. Não passava pela cabeça de ninguém pensar que tudo aquilo iria acabar, desaparecer, desmoronar de repente, que aqueles laços tão fortes de amizade, solidariedade e generosidade iria se desfazer, pois já moravam ali próximos uns dos outros há tanto tempo. Mas de repente tudo acabou.
A beira do rio Marialva ficou despovoada, vazia, triste, tudo virou uma grande plantação de soja, um mar de soja, sem gente, sem vida. A máquina sem coração, nem sentimento, ali bastava-se, caminhava sozinha, no meio daquela vastidão de soja vazia, onde antes caminhava gente, pessoas, vida, muita gente, homens, mulheres, crianças com seus sonhos e esperanças, ocupando aquelas terras que era deles, agora ela era da máquina e da soja sem fim. Muitos triste. Casas foram arrancadas, tulhas desmanchadas, terreirão destruídos, mangueiras desfeitas, paiol posto abaixo, chiqueiros abandonados, galinheiro a esmo, poço enterrado, fornos sozinhos jogados ao chão, pomar derrubados, nascentes morreram ali sozinhas indefesas com o trator passando por cima dela sem dó nem piedade, acho até que nem notou ela ali, minas de água soterradas, sumiram fundo na terra debaixo das rodas poderosas do trator, tudo para abrir caminho para o trator passar e a soja dominar em cada centímetro de terra vermelha, não sobrou nem um espaço para ela respirar, não ficou nem um vestígio de memória guardado ali, um resto de casa, de um paiol, de um forno, de uma tulha, de um chiqueiro, de um poço, de um pulador, de um terreirão de secar café, uma caixa de lavar o café, de uma porteira, nada, nem sinal de que ali viveu alguém, um ser humano, até o rio Marialva foi assoreado, virou um filete de água, sei não até quando ele vai aguentar, resistir sozinho ali no meio de tanta fome de dinheiro. Pode ser que até ele um dia atrapalhe e ai não há nenhuma dúvida até ele, ou o que lhe resta do que foi o rio Marialva, vai também ser sacrificado, vai desaparecer daquela paisagem, pois ele é o único sinal que ainda resiste do tempo passado de vida que pulsava ali. Até quando?! Acabou tudo, agora só há soja e o trator passeando sozinho, dominando tudo, por aquela paisagem que era nossa, que era o nosso mundo. A onde foi parar aquela terra vermelha, roxa de tanto vermelha que era, fértil, cheirosa, linda, nossa?! A onde ela estará?! A onde ela estiver estará triste com certeza sem nós. Lá sozinha coitada, indefesa, acho que ela sente falta de todos nós, também dos meninos e das meninas, que andavam descalços com seus pezinhos, pisando nela, atrás de passarinhos, ela feliz vendo tudo, sentido tudo. Será que ela sente falta de nós caminhando sem maldade sobre ela, acarinhando ela com nossos pés e mãos, nosso canto, com nossa máquina manual portátil de plantar, cheio de cerimonial, meu pai na frente plantando, eu atrás com meu pequeno pé de menino, carinhosamente passando sobre a terra vermelha, acariciando-a, encobrindo a semente para os passarinhos não comer. Depois o broto surgindo rachando, empurrando a terra vermelha, abrindo caminho para nascer, verdinho, bonito, viçoso, epifania. A enxada deslizando sobre ela carinhosamente, o arado simples puxado por um animal manso lento, no seu tempo, nós também, rasgando sua pele levemente, ficava mais bonita ainda. O que será que ela sente?! Que saudade! Mas sempre há esperança. Lembro do dia que fui despedir de minha avó Maria Uzae Caleffi, no dia de nossa mudança para a cidade, na porta de sua casa simples de madeira, no alto de uma escadinha, ela com um lenço na cabeça e uma avental, me abraçou forte, me beijou, me olhou nos olhos, há!, aqueles olhos negros me acompanha até hoje!, e disse:" Meu menino está engrossando a voz. Vocês vão voltar".
Lembro das comunidades ali perto de nosso sítio, na água Marialva. A máquina de beneficiar cerais, arroz, trigo e milho dos Megiatos, ali perto de nosso sítio, um pouquinho mais abaixo, descendo pela beira do rio Marialva. Ficava bem na beira do rio, onde eu ia com meu pai Inisio Caleffi, de carroça, pela beira do rio Marialva, nós levávamos sacas de arroz em casca, trigo em casca, milho em grãos, para serem transformados na máquina dos Megiatos em arroz limpo, em farinha e em fubá. Lembro que a máquina de beneficiar cereais ficava bem na beira do rio, logo abaixo das casas dos Megiatos. Era uma construção grande, alta, de madeira, fazia um barulho danado e muita poeira da farinha de trigo, que ali era beneficiada. Era uma poeria branca, que grudava na gente. Também tinha ali, no rio Marialva, uma pequena represa, onde havia uma roda de água enorme, que girava e gerava energia elétrica, para fazer funcionar a maquina de beneficiamento de cereais e para as casas deles. Só eles tinham energia elétrica naquele tempo por ali, lá no meio do mato, produzida por eles mesmos. Estes italianos eram engenhosos! Chegava eu e meu pai, com nossa carroça puxada por um burro, cheia de sacas de arroz, trigo e milho bruto. De repente, saia lá de dentro da máquina um senhor loiro, alto, magro, careca, forte, todo coberto de branco da farinha pelo corpo todo, dava só para ver os olhos claro de italiano, era o senhor Sarturninho Megiato, de uns sessenta anos de idade e sério. Descarregávamos a carroça e deixávamos as sacas ali com o produto bruto, em casca e levávamos a farinha de trigo, o arroz descascados e o fuba, era feito uma troca, sem uso de dinheiro, era um escambo, produto por produto, deixávamos um pouco mais, conforme o combinado. Era feito na base da confiança.
Lembro que na estrada carana, no quilômetro nove, havia uma venda, uma máquina de beneficiar cereais, uma barbearia, uma escolinha, uma capela, um campo de futebol e muita festa. Fui ali também várias vezes com meu pai Inisio Caleffi, íamos sempre de carroça, era um local muito movimentado, cheio de gente, muita alegria, principalmente nos fins de semana. Hoje só tem uma construção velha de madeira na beira da estrada, resistindo sozinha, ali perdida no meio da soja e mais nada, sem ninguém por ali. Por onde andará toda aquela gente, que eu um dia vi por ali?!
Na estrada Marialva, no quilômetro dez, havia um pequeno patrimônio bem movimentado, bem maior do que o do nove da estrada carana. Ali havia uma venda de beira de estrada muito movimentada, ficava bem na curva da estrada, num lugar um pouco mais alto, havia também uma escolinha, a Escola Rural Municipal Isolada Getúlio Vargas, que também ficava na curva da estrada, a onde eu estudei, havia também uma capela, a Capela Santa Luzia, uma cancha de bocha, um grande salão de festa ao lado da capela, uma casa de madeira enorme, um bonito campo de futebol e um cruzeiro enorme. Hoje está tudo vazio, deserto, onde havia tanta gente, tanta vida, tanta alegria. Ainda na estrada Marialva, agora no quilômetro oito, também havia uma máquina de beneficiar cereais, uma venda, uma casa de madeira grande, onde morava uma família enorme, pertencia ao senhor Clemente Carabelli. Tudo ali era cheio de vida e movimento, hoje ali não há mais nem vestígio do que foi, só soja a perder de vista. Triste. Os distritos de Aquidaban e de São Miguel do Cambuí também diminuíram muito, mas ainda estão lá resistindo. Aquidaban era enorme, já São Miguel do Cambuí sempre foi um pouco menor que o de Aquidaban. Ali havia muita gente, muita vida. Hoje está lá no meio da soja. Tantos outro lugares ali por perto que que diminuíram muito ou até desapareceram. São tantas histórias.
Em toda esta região, esta é a realidade provocada pelo êxodo rural ocorrido ali , restou pouca coisa, poucos resquícios, quase nada, a não ser na nossa memória, memória dos que ali viveram. É preciso contar, narrar. É uma forma de amor aos que viveram ali. Narrar, contar, é também uma forma de resistência, para viver, para não esquecer.
Contar para não esquecer.Recolher