O "Nó da Correia - Minha história na fotografia"
Minha história na fotografia começou bem cedo, quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Mesmo nunca tendo nenhuma afinidade familiar com a profissão – minha família era quase toda de funcionários públicos –, só meu ...Continuar leitura
O "Nó da Correia - Minha história na fotografia"
Minha história na fotografia começou bem cedo, quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Mesmo nunca tendo nenhuma afinidade familiar com a profissão – minha família era quase toda de funcionários públicos –, só meu pai que era um fotógrafo amador dedicado. Em nossos passeios pelo Parque da Luz, em São Paulo, me lembro quando ele pendurava sua Yashica ‘J’ em meu pescoço e dava um nó na correia de couro para que eu não arrastasse a câmera pelo chão. Depois jogava amendoins para os pombos e eu ficava com a câmera tentando fotografá-los. Essa cena ainda é viva em minha cabeça como uma pintura. E o foco pelo nariz então? Era fascinante.
Acho que foi o instinto curioso que havia em mim que me fez explorar aquele universo mágico da fotografia. Me encantava ‘congelar’ momentos e torná-los eternos. As asas da pomba alçando voo, congeladas com um click era algo que me fascinava, mesmo aos cinco anos. Queria fotografar tudo. Meu pai percebeu esse encanto e, aos sete anos, em 1971, ganhei uma ‘Xereta’ da Kodak. Essa era a minha primeira câmera e eu a carregava para onde ia, seja na bicicleta na qual passava horas pedalando nas minhas férias na casa de meus avós em Dourado, interior de São Paulo, seja na minha mala de escola onde estudava, na periferia da capital paulista. Minha ‘Xereta’ dividia espaço na mala com livros e cadernos, sempre! E tenho essa câmera até hoje.
Com essa ‘Xereta’ minha inclinação para o fotojornalismo já dava sinais. Quando tinha alguma notícia por perto eu pedia para o meu pai parar o carro e ia correndo fotografar o acidente, o incêndio, o muro que havia caído ou outra ‘desgraça qualquer’ que estivesse acontecendo. Diziam que eu gostava de fotografar desgraças. E foi exatamente fotografando uma delas que publiquei minha primeira foto em jornal, em 1975, aos onze anos, já com uma ‘Olimpus Trip’ que havia ganhado quando terminei a quarta série do primário, como se dizia na época.
Na véspera do Natal daquele ano pegou fogo em uma fábrica de borracha perto da casa de meus avós, em Ribeirão Bonito. Meu pai me colocou no carro e chegamos lá antes dos bombeiros. Minhas fotos foram para o jornal "O Estalo", que circulava na época. Maior orgulho. Publicava minha primeira foto de desgraça. Mal sabia eu que era a primeira de muitas.
Gás Lacrimogênio
Eu não entendia porque a imagem que eu enxergava pelo pequeno visor da Olimpus Trip não era a mesma que estava no papel depois de ampliada. Só fui descobrir isso depois que comecei a trabalhar no Banco do Brasil como menor-aprendiz, aos quatorze anos, em 1978. Lá conheci aquele que seria meu maior professor e incentivador, o Luiz Carlos Prata. Comunista de berço, Prata ganhou esse nome em homenagem a Luiz Carlos Prestes. Além de explicar o que era paralaxe e me ensinar marxismo em plena ditadura militar, me levou para conhecer e me ensinou técnicas de laboratório fotográfico P&B, onde ampliava as fotos para o jornal comunitário Mãos à Obra, na zona leste de São Paulo.
Fiquei deslumbrado com a mágica da imagem aparecendo no papel sob a luz vermelha. Poucos meses depois já tinha meu primeiro crediário no Mappin, uma câmera russa Practika e uma teleobjetiva 70-200 mm. Não tinha tênis “All Star” nem calça “Soft Machine”, mas já tinha minha primeira câmera reflex. Paralaxe nunca mais!
Foi com ela que, aos quinze anos, comecei a fotografar as famosas greves de bancários de 1979, 1980 e 81. Era o começo da abertura política e os dirigentes sindicais presos e vítimas da intervenção nos sindicatos começavam a voltar à ativa e organizar a retomada de suas entidades de classe. As manifestações de rua eram violentas e fortemente reprimidas pelos militares. Era época do Coronel Erasmo Dias e do diretor da PF Romeu Tuma. O pau comia sem dó. Foi quando senti pela primeira vez o cheiro do gás lacrimogênio. Para mim aquilo sempre serviu para excitar mais as pessoas, e não as desmobilizar. Se tinha bomba tinha boas fotos.
Naquela greve histórica de 1979 eu estava trabalhando. Menor que fazia greve era demitido na hora e eu precisava trabalhar, mas mesmo assim, com uniforme e tudo fui para a rua fotografar um enorme confronto que estava para acontecer no quarteirão da Rua São Bento, Avenida São João e Líbero Badaró. Quando começou a pancadaria e a chuva de bombas de efeito moral e gás lacrimogênio eu me escondi atrás de uma pilha de tijolos e fui fotografando até que um policial da tropa de choque me pegou pelo braço com violência e ameaçou me levar preso. Mostrei meu uniforme e minha carteira funcional e disse que trabalhava no Banco do Brasil, a poucos metros dali. Ele me soltou, mas em seguida fui pego pelo serviço de segurança do BB.
O Cantão e o Derval Fatore pegaram a minha Practika e me levaram para uma salinha no subsolo da agência. Fizeram um baita interrogatório e me liberaram. Minha câmera só fui reaver no dia seguinte e, para meu espanto, com o filme dentro.
Foi assim que descobri minha vocação para o fotojornalismo. Por causa disso, assim como a “Xereta”, eu carregava minha Practika para todo lado. Ia para a escola com duas mochilas, uma para os cadernos e livros e outra com minha câmera. No banco eu já era requisitado para fotografar as festinhas e eventos. Lia livros e mais livros e comprava todas as revistas que encontrava sobre fotografia. A Manchete e a Placar eram um verdadeiro show! Sabia que um dia eu seria um fotojornalista. E já acarinhava um sonho: fotografar uma guerra, o que acabou acontecendo. Em 2003 cobri a Guerra do Iraque.
De São Paulo a Fortaleza, de moto
Em 1984, com 19 anos, resolvi fazer uma viagem maluca. Ir de São Paulo a Fortaleza de moto. Minha ideia teve o incentivo de um amigo que era piloto da revista Duas Rodas. Ele dizia que havia uma grande chance de a revista publicar matéria da viagem com as minhas fotos. Eu já tinha publicado algumas na Folha Bancária, mas na Duas Rodas seria o máximo. E foi assim que coloquei as minhas duas rodas e minha câmera na estrada. Tinha uma CB 400 onde adaptei um bagageiro reforçado para a mochila e uma barraca. Fui com a namorada na garupa e com mais dois casais, um em cada moto. Depois de 26 dias e mais de 4.500 km rodados pela BR 101 entrávamos triunfante pela praia do Futuro em Fortaleza. Muita história e boas fotos para publicar. Ganhamos oito páginas na Revista "Duas Rodas" com chamada de capa e tudo.
Eu já tinha muito claro para mim que queria ser fotógrafo, mas precisava ir à luta. Juntei o material que já havia publicado e mandei currículo para várias redações. Sem retorno algum. Eu sabia que minha dificuldade era maior pois não conhecia ninguém, nenhum fotógrafo que pudesse me indicar para um editor. Sabia que eu estava sozinho nessa empreitada. Se queria ser fotojornalista teria que ser com esforço próprio e sozinho, contando comigo mesmo.
Nessa altura eu já tinha passado em meu segundo concurso no Banco do Brasil e já era escriturário. Funcionário de carreira, para alegria da família de funcionários públicos. Futuro garantido, mas era o que eu queria? Não era, com certeza. Tinha um mundo a descobrir e uma câmera nas mãos. Foi quando apareceu uma oportunidade de trabalhar alguns meses fora de São Paulo. O banco tinha uma grande carência de funcionários em agências localizadas em cidades de difícil acesso, ou muito ruins para se viver. Me candidatei à vaga e fui pra Irecê, sertão baiano, 550 km longe de Salvador. Morei um ano naquele encantador fim-de-mundo e amadurecendo minha vontade de ser fotojornalista. Voltei pra São Paulo no final de 1985 e montamos, eu, meu professor Prata e a amiga Izilda, um estúdio e laboratório fotográficos. Fiz meu primeiro trabalho e ganhei minha primeira grana. Por isso é que considero esse ano como início de minha vida profissional.
Em 1986 já fotografava para a "Folha Bancária", para algumas entidades de funcionários do Banco do Brasil, ganhei meu primeiro prêmio de fotografia do BB e consegui começar a frilar para o caderno de turismo do "Grupo DCI". Viajava bastante, sempre com duas câmeras Nikon e uma Pentax 6x7. Fazia fotos em P&B e cromo. Carregava mais de 20 quilos nas costas. Acho que foi por isso que, alguns anos depois, precisei colocar cinco parafusos e uma placa de platina em três vértebras da lombar.
Em 1988, incentivado pelo amigo Dirceu Martins, hoje repórter especial da TV Globo em Ribeirão Preto, larguei o curso de processamento de Dados na Universidade Mackenzie e entrei na Universidade Metodista, no curso de jornalismo, e abri meu próprio estúdio e laboratório. Em 1990, depois de muita insistência, consegui frilar para a "Folha de S. Paulo". Já havia mandado inúmeros currículos, mas nunca me chamavam, até que uma desgraça que fotografei me colocou nas páginas do maior jornal do país. De novo as desgraças me atraindo. Dessa vez foi um depósito de gás na Moóca que havia pegado fogo. Estava a caminho do meu estúdio quando vi uma fumacinha subindo no horizonte e fui atrás pra confirmar se era verdade que, onde havia fumaça, havia fogo. E era! Cheguei rapidamente de moto e peguei as explosões ainda no começo. Voava botijão de gás para todo lado. Fiz as fotos, corri para o estúdio, revelei o filme, fiz as cópias e liguei para fotografia da Folha. O editor Homero Sérgio quis ver meu material. Gostou, comprou e publiquei um abre de página com duas fotos. Glória total!
Foi a primeira vez que entrei naquela redação. Me lembro das rotativas no térreo e do cheiro. Se jornalismo tem cheiro era aquele o cheiro da notícia, tive certeza. Fiquei frilando para a Folha até 1994, e nada de contratação.
“É pegar ou largar”
Naquele ano de 1994 eu resolvi planejar uma outra viagem maluca. Queria percorrer os quase 800 km do caminho de Santiago de Compostela a pé. Li uns 10 livros, comprei a melhor mochila, roupas de algodão. equipamentos as passagens aéreas. Iria com meu grande amigo e incentivador Dirceu Martins, que estava morando na Alemanha. Eu faria as fotos e ele, o texto. Venderíamos a matéria na volta. A Folha mesmo se interessou bastante.
Quando faltavam quinze dias para a viagem a então editora de fotografia, Ana Estela de Souza Pinto, que admiro muito até hoje, me chamou à redação e me ofereceu a contratação que eu tanto esperava. Havia surgido uma vaga na equipe da fotografia da Folha de S. Paulo! Mas o que eu faria com minha viagem planejada há meses? Eu tinha lido em algum lugar que qualquer viagem que a gente considere importante começa bem antes, no planejamento. E já tinha experiência disso em minha viagem de moto. Então eu já estava viajando, caminhando pelas trilhas mágicas até Compostela, como desistir agora? Falei para a Ana Estela que não queria a vaga, que esperaria outra chance. Queria fazer minha tão planejada viagem. Ela não se conformou com minha resposta. Me pegou pela mão e me levou para o RH. Abriu um armário onde haviam centenas de currículos de candidatos à vaga de fotógrafo e disse: “Olhe bem para isso aqui. Todas essas pessoas querem a vaga que estou te oferecendo. Pode não ter outra oportunidade. É pegar ou largar”. Foi assim que meu amigo Dirceu ficou furioso comigo, mudou seus planos também e acabou indo sozinho fotografar um safari na África, que depois virou matéria de turismo na Folha. Eu fiquei com a vaga e sem a viagem pelo "Caminho das Estrelas".
Poucos dias depois morria Ayrton Senna, no mesmo dia em que fui contratado. Primeiro de Maio de 1994. A cobertura do enterro foi especialmente marcante para mim. Por ser novato, me colocaram do lado de fora da Assembleia Legislativa, onde o corpo foi velado. Fiquei horas empoleirado em cima de um muro aguardando a saída do cortejo. E depois ainda tinha a missão de correr para o cemitério, no Morumbi, e fazer a chegada. Ao entrar no cemitério os pontos de cobertura já estavam apinhados de fotógrafos e cinegrafistas. Simplesmente não havia lugar para eu ficar. Por ser baixinho e sem atrapalhar ninguém tentei me posicionar na frente de um grupo de profissionais que estava no último ponto de foto antes do túmulo. Um colega do Diário Popular me tirou dali quase a tapas. Novato sofre. Como o cortejo já estava próximo, acabei me ajeitando de qualquer jeito em cima de uma pedra, ao lado do ponto reservado à imprensa, completamente fora de posição para uma boa foto. Mas a sorte estava do meu lado. Quando a guarda de honra estava quase chegando ao túmulo, eles viraram o caixão bem na direção da minha câmera. Fiz uma foto bem fechada, enquadrando perfeitamente os quepes brancos da guarda com o caixão coberto pela bandeira do Brasil. Ganhei o prêmio da melhor foto do ano com aquela imagem, além da capa e contracapa do caderno especial.
((FOTO 01))
Na minha primeira grande cobertura depois da contratação já me dei bem. Os elogios vieram e o respeito também. De uma hora para a outra comecei a dividir coberturas com meus ídolos Antônio Gaudério, Juan Esteves, Matuiti Mayeso, Jorge Araujo, Luiz Carlos Murauskas e outros. Com o tempo fui crescendo na equipe e conseguindo pautas melhores. Fiz um bom trabalho com coberturas políticas até que, no mesmo ano de 1994, Lula Marques, então coordenador da sucursal da Folha em Brasília me convidou para assumir uma vaga na Capital Federal. Em menos de duas semanas vendi meu estúdio, pedi uma licença não remunerada do Banco do Brasil, de onde vim a sair de vez em 1995 numa demissão incentivada. Estava de partida para uma jornada que seria definitiva em minha carreira: trabalhar em Brasília, para desespero geral da família.
“Vamos cair”!
Entretanto um acidente aconteceu e atrasou minha ida à Brasília, e quase interrompeu bruscamente minha carreira e minha vida,
As desgraças que eu fotografava quase que se voltaram contra mim. Poucos dias antes de minha ida à Brasília fui pautado para fotografar o então governador eleito Mário Covas. Ele havia vencido as eleições naquele ano e sumido. A reportagem da Folha descobriu que ele estava em um SPA em Campos do Jordão, recluso.
Imediatamente o jornal alugou um helicóptero para ir para lá, na tentativa de fotografar Covas no interior do SPA. Só que nos alugaram um helicóptero pequeno, um Robinson 22, para dois passageiros, inadequado para aquela viagem e menos ainda para transpor a Serra da Mantiqueira. A ida já foi bem nervosa. Paramos em São José dos Campos para reabastecer e depois seguimos em direção às montanhas. Era um paredão verde que ia crescendo à medida que nos aproximávamos. Algumas nuvens escuras deixavam o cenário mais amedrontador ainda. O piloto tentou várias vezes passar por cima das montanhas, sem sucesso. Ora eram as nuvens que impediam a visão ora era demasiada altitude, intransponível para aquela pequena aeronave. O helicóptero simplesmente sacudia e não subia, ainda mais de tanque cheio. Aquilo já foi um sinal de que algo mais grave estava para acontecer.
Depois de várias tentativas conseguimos atravessar e sobrevoar a linda cidade de Campos do Jordão, cheia de chalés e muito verde. Uma visão deslumbrante, só que era quase impossível acharmos aquele SPA no meio da cidade. Minha única referência era uma folha de fax preta e branca, enviada pelo repórter à redação, onde só se via um monte de chalés e árvores. Por isso o piloto disse que ia tentar achar um local para pousar e perguntar a localização exata do refúgio onde Covas estava. Seriam um pouso e decolagem difíceis por causa da altitude e da pouca potência do aparelho. Lembro de ter dito que a decisão cabia a dele, pois envolvia nossa segurança. Depois de alguns minutos de sobrevoo ele decidiu pousar num heliporto da Águas Minalba, que ficava em uma encosta e que não seria tão difícil de decolar depois. Engano total.
Pousamos em uma área gramada, ao lado da fábrica e corri para a portaria onde havia um ponto de taxi. Mostrei o mapa para um dos taxistas que reconheceu o local de imediato. Paguei a corrida e disse que nós o seguiríamos. “ Em qual carro você esta?”, ele perguntou. Mostrei o helicóptero e falei “Vamos te seguir do céu”. E seria fácil. O cara tinha uma Brasília verde abacate.
Corri para o helicóptero e o piloto começou a subir. Quando estava a uns 20 metros ou mais ele acelerou para ganhar velocidade e o aparelho não respondeu. Começou a tocar um alarme horrível na cabine e começamos a cair. Só deu tempo de ouvir do piloto: “Vamos cair”, e fomos para o chão com tudo. Batemos no alambrado que cercava o heliporto e o helicóptero capotou num rodopio, destruído. Do meu lado um jorro de combustível saia a poucos centímetros da minha cabeça e empoçava no gramado. Foi a sorte. Se o piso fosse de material mais duro teria havido um incêndio e seríamos queimados vivos. Na ânsia de sair dali terminei de quebrar o grosso acrílico da cabine cortando fundo as duas mãos. Minha lente 300 mm que estava no assoalho tinha voado longe. Consegui sair engatinhando dos escombros, troquei a 70-200 que estava na câmera por uma grande angular, fiz a foto do aparelho caído de lado, todo destruído e cai de costas, desmaiado. Tinha ferimentos na cabeça também.
Fomos levados, eu e piloto, para o Pronto Socorro da cidade onde nos atenderam. De lá liguei para o jornal e avisei do acidente. O resultado é que acabei virando notícia, coisa que todo jornalista deve evitar. Não tive ferimentos graves, por sorte. Voltei de carro para São Paulo e, no dia seguinte, o jornal teve sua foto do Mário Covas. Enquanto a gente caia do céu o governador eleito saia para caminhar tranquilamente pelas ruas de Campos do Jordão, rodeado de fotógrafos e cinegrafistas.
((FOTO 02))
Bem, voltando à Brasília, no dia em que cheguei já fui escalado para fazer plantão na QI 5, Lago Sul. Era ali que estava morando o presidente eleito e ainda não empossado Fernando Henrique Cardoso. Estávamos no apagar das luzes do governo Itamar Franco. Após os acontecimentos marcantes que aconteceram nos dois últimos governos de vices, o de Sarney, que assumiu após a controversa morte de Tancredo Neves, e o de Itamar, que assumiu após o impeachment de Collor, FHC chegava com novas esperanças para os brasileiros.
Vivi em Brasília por quase cinco anos e aprendi, como diziam meus amigos, a ‘tirar leite de pedra’ todos os dias. Uma fresta que se abre, um segundo no meio de horas de espera pode significar você fazer a grande foto ou perdê-la. E, falando em fresta, dois anos mais tarde foi uma fresta que me ajudou a fazer uma das fotos mais impactantes da minha carreira.
Brasília era um lugar difícil de trabalhar. Te consagrava ou te aniquilava. Era assim. A gente vivia no limiar entre ganhar o Prêmio Esso ou ser demitido por perder alguma foto importante. Aquele meu fascínio infantil quando congelava as asas de um pombo ali se transformava em uma fronteira entre um bom trabalho e o fracasso. Conheci inúmeros jornalistas que foram pra Brasília e não suportaram a pressão. Aquilo não era pra amadores, com certeza. E eu tinha que sobreviver e fazer um bom trabalho, afinal tinha conseguido o que tanto desejara.
"Furada? Isso é para você ver como o presidente é pobre"
Em Brasília fiz as maiores coberturas da vida, tirando a Guerra do Iraque. Foi lá que comecei a viajar pelo mundo em grandes coberturas, a fotografar grande líderes mundiais como Bill Clinton e sua esposa Hillary, Yasser Arafat, Fidel Castro e Tony Blair, além de reis e imperadores. Circular pelos corredores e plenários do Congresso Nacional, Ministérios, STF e Palácio do Planalto era para mim um enorme privilégio.
No Palácio do Planalto a rotina normal era cobrir a agenda do presidente, e quase sempre não havia novidades. Quase sempre. Foi numa dessas agendas corriqueiras e "quase" sem novidades que aconteceu algo que animou o dia e salvou a primeira página. Era um dia de marasmo total no Comitê de Imprensa da Presidência da República. Na agenda de FHC nada de importante a não ser algumas visitas rotineiras. Mas éramos chamados pela Secretaria de Comunicação mesmo se a agenda fosse fraca. E foi assim que subimos ao terceiro andar onde fica o gabinete do presidente. Como sempre, a gente ficava amontoado em frente à porta de entrada aguardando que ela fosse aberta para entrarmos e fazer as fotos, nunca por um tempo maior do que um minuto ou dois. Tínhamos que ser muito rápidos para fotografar o encontro, ‘fechar’ no rosto do presidente e convidados e sair rapidinho.
Nesse dia entrei logo atrás do Airton de Freitas, o “Freitinhas”, que trabalhava no jornal O Globo. Fiz uma foto aberta mostrando FHC e os convidados e percebi que o Freitinhas se agachou rapidamente e começou a fotografar alguma coisa perto do chão. Foi aí que também vi o enorme buraco na meia do presidente, que estava sentado. Quando eu corri e me agachei para fazer a foto FHC percebeu nossos movimentos e perguntou o que havia ali. Respondi que sua meia estava furada. Ele olhou meio incrédulo e justificou: “Isso é para vocês verem que o presidente é pobre”, e descruzou as pernas encobrindo o rombo na meia. Quem fez, fez, e só eu e o Freitinhas havíamos feito aquela foto divertida que acabou virando o assunto do dia. Brasília é assim, do nada surge uma grande e inusitada foto. E quem não fez, teve que comprar nossas fotos.
((FOTOS 3a e 3b))
Olhei pela fresta e vi o corpo de PC farias com o buraco da bala no peito
Era uma tarde ensolarada de domingo, junho de 1996, e eu estava de folga em meu veleiro cheio de amigos no lago Paranoá. Tomávamos umas cervejas quando tocou meu celular. Era o Lula Marques, meu chefe: “Juca, assassinaram o Paulo Cesar Farias. Você precisa estar às 17 horas no hangar da Líder Taxi Aéreo. A Folha alugou um jatinho para levar você e o Lucas Figueiredo pra Maceió. Voa!”
Fiquei tão desesperado que liguei o motor do barco e saí sem levantar a âncora. Olhei para o relógio e eram 15h30. Em uma hora e meia eu precisava atracar o barco no Clube Naval, ir para casa arrumar mala, preparar laboratório fotográfico e transmissora, passar no jornal e estar no aeroporto.
Fiz a maior correria e cheguei no jornal para pegar a transmissora e me encontrar com o Lucas. O Valdo Cruz, diretor da sucursal, estava indignado. “Como é que o jornal vai gastar um dinheirão desses? Absurdo! O que vocês farão em Maceió ainda hoje que justifique todo esse gasto?”
Essa pergunta nos acompanhou durante as duas horas de voo até a capital alagoana. Foram vários milhares de reais para nos colocar na cena do crime três horas antes de chegar o primeiro voo comercial vindo do eixo SP-Rio-Brasília. Teríamos apenas três horas para garantir alguma informação exclusiva ou, o que era pior, uma boa foto.
Chegamos no aeroporto de Maceió às 19h30. Pegamos um taxi e fomos direto para o IML, para onde os corpos já haviam sido levados. Minha missão naquela altura era ver quem tinha feito alguma foto, compra-la e transmitir para a Folha. Na porta do IML falei com vários fotógrafos, mas ninguém havia feito foto alguma, nem a saída dos corpos da casa de praia em Guaxuma, onde tinha ocorrido o crime e nem a chegada ao IML. Os jornais não funcionavam de domingo em Maceió. Não havia edição de segunda-feira! Por isso todos os fotógrafos estavam de folga. Liguei para o jornal e expliquei a situação. O editor na época era o grande João Bittar, profissional de excelência que conhecia a fundo o trabalho de campo, e também concordou que seria quase impossível pagarmos aquele voo com alguma foto ou informação exclusiva. Nenhuma perspectiva de uma boa imagem se vislumbrava.
Continuei no meio do tumulto de jornalistas que se acotovelavam na porta do IML em busca de alguma informação, ou imagem. Inquieto como sempre fui, depois de quinze minutos ali, parado, resolvi fazer alguma coisa. Analisei o entorno daquele prédio antigo onde ficava o IML e percebi que havia um terreno nos fundos, com acesso por um enorme portão que estava aberto, e tive um palpite. Me lembrei dos casarões naquele estilo que existiam em Dourado, onde eu passava as férias na casa do meu Vô Chico. Essas casas costumavam ter uns janelões. Resolvi arriscar. Liguei novamente para o João Bittar e falei sobre meu palpite. Ele de imediato deu carta branca para eu decidir o que fazer.
Sai então daquele tumulto e entrei no terreno que havia visto, na esperança de encontrar alguma visão da parte interna do IML. A essa altura já se
passava das 20 horas e eu ainda não tinha absolutamente nenhuma foto para mandar. A situação estava alarmante. Caminhei alguns metros na escuridão e enxerguei quatro janelões, exatamente como aqueles que via da minha infância. Fiquei observado alguns instantes e notei que em dois deles havia um plástico preto cobrindo as janelas. Na hora imaginei que ali poderia estar a minha foto.
Fui me aproximando em silêncio e percebi uma grande movimentação de pessoas do lado de dentro. Eu ouvia vozes e barulho, mas não via nada por causa do plástico preto. Deixei a bolsa no chão e, com a câmera em punho com uma lente 24 mm, subi em uma saliência sob a janela, me segurando com uma das mãos na grade de ferro para não cair. Na outra mão, a câmera. Por uma fresta entre o plástico e a parede vi a cena que jamais imaginava. O corpo nu de PC Farias sobre a mesa de necropsia, rodeado de legistas e assistentes. A cena era impressionante, mas percebi que estava com a lente errada. Tremendo diante daquela visão, desci da saliência, troquei a lente por uma 24-70mm e voltei a subir. Regulei a velocidade e a abertura no ‘olhômetro’ pois não conseguia fazer medição alguma do jeito que estava pendurado, e fiz uma sequência de fotos. Voltei a olhar pela fresta e vi que um assistente estava limpando exatamente o buraco da bala no peito de PC, e que atingiu seu coração.
Naquele momento fui puxado pelas pernas por um fotógrafo do jornal O Globo, da sucursal Recife, que me ouviu falando com o João Bittar ao telefone e me seguiu. Ao invés do cara tentar fazer sua foto de outra fresta na outra janela, ele decidiu me derrubar dali. E começou a fazer suas fotos sem nenhum critério ou cuidado, conmpletamente desnorteado. Eu havia feito minhas fotos no modo como chamamos, de "câmera cega", sem ver o enquadramento. E ele fez o mesmo, só que ao me derrubar da pequena marquise fizemos um barulho que chamou a atenção de quem estava dentro da sala de necropsia. Imediatamente apareceram policiais militares que, aos solavancos, nos tiraram dali. Mais uma vez a famosa frase: “Quem fez, fez”.
Corri para falar com o Lucas sobre a foto que possivelmente eu havia feito. Digo possivelmente porque ainda eu precisava revelar o filme para confirmar. Nosso colega, o finado Ari Cipolla, ligou para o jornal e ‘cantou’ a foto, entes mesmo de eu ver se tinha conseguido fazê-la ou não, e alertou a todos na redação.
Fui correndo para o táxi que havíamos alugado e partimos em disparada para o hotel. Entrei esbaforido no quarto com um laboratório em uma mão e a transmissora Leafax na outra, e corri para o banheiro. Preparei o revelador com água quente do chuveiro pois não havia tempo para ligar o ‘banho maria’, que aquecia o revelador lentamente. E o pessoal do jornal ligando: “Cadê a foto?” E eu não sabia se tinha ou não alguma coisa que prestasse. Havia muitas variáveis em jogo. Fiz com câmera cega, sem controle no foco ou fotometragem,
e ainda com velocidade bem baixa. A chance de ter dado merda era enorme. Como o Ari Cipolla já tinha ‘vendido’ a foto, a pressão estava muito grande.
Quando eu estava no final da revelação, com o filme no fixador, o Josias de Souza, secretário de redação em São Paulo, me ligou: “Juca, preciso da foto agora!” Interrompi a revelação rapidamente e, com o celular na orelha, comecei a ver o filme com uma pequena lupa, o conta-fios. Cada fotograma que passava ou estava desfocado ou tremido. Eu estava começando a ficar desesperado e suando frio quando, lá pelo décimo fotograma, percebi que eu tinha a foto. Sim, eu tinha a foto! - “Josias, tenho a foto. Tá aparecendo o saco e o pau do PC, mas tá fácil de encobrir com o Photoshop”. Meio estressado o Josias fala “Juca, são quase nove da noite e eu tenho que fechar esta merda, dá pra publicar ou não?” – “Dá sim Josias, em meia hora a foto estará aí!” Respondi.
((FOTO 04))
Na ânsia de transmitir, arranquei a guarda de madeira da cama que encobria os fios do telefone. Liguei a Leafax e depois de 21 minutos lá estava a foto do PC morto no IML. Furo espetacular. Liguei pro João Bittar e falei: “João, o jatinho tá pago!”
E o cara dO Globo? Nada! O cara me derrubou do muro, fez o maior barulho e não fez a foto. É amigo, a vida de fotógrafo é dura mesmo.
"Melhor sobrar do que faltar"
Naquele tempo chegar até o local das desgraças era muitas vezes difícil. E caro. No mesmo ano de 1996, dezenove sem-terra foram brutalmente assassinados pela Polícia Militar do Pará, no triste episódio que ficou conhecido como o Massacre de Eldorado dos Carajás. Mais uma vez a rapidez para chegarmos logo ao local da notícia fez com que a Folha alugasse um avião. O modelo era o mesmo que caiu e matou o ministro Teori Zavascki, relator da Lava-Jato, um bimotor King Air. Foi um voo compartilhado entre a Folha e o jornal O Globo. Nele foi meu grande amigo e compadre Roberto Stuckert Filho, que depois viria a ser o fotógrafo oficial da presidente Dilma Rousseff, o e mais dois repórteres. Fomos os primeiros a chegar ao local das mortes, mas já haviam levado os corpos para Marabá.
Passamos o dia no local da tragédia entrevistando familiares e sobreviventes do massacre. Havia rumores de que mais corpos estavam espalhados pela mata, por isso ainda tinha muito trabalho a ser feito por ali. Uma outra equipe foi enviada à Marabá, onde estavam os corpos. No primeiro e segundo dia a notícia se dividiu entre o local do massacre e o IML de Marabá, havia informação a ser apurada nos dois locais. No terceiro dia de cobertura a expectativa era a chegada dos corpos a Curionópolis, onde seriam sepultados. Várias equipes permaneceram à beira da rodovia esperando a passagem do caminhão que conduziria os dezenove caixões. Eles passariam pelo mesmo local onde foram executados, na Curva do “S” da BR-155.
Naquele dia, inclusive, tive o enorme prazer de trabalhar com um dos maiores fotógrafos documentaristas da atualidade, Sebastião Salgado. Ele estava trabalhando em um projeto aqui no Brasil e tinha o apoio da Folha de S. Paulo. Por causa do massacre ele se deslocou até o local e trabalhamos juntos no velório dos sem-terra.
((FOTO 05))
Ficamos horas e horas esperando a chegada daquele caminhão que traria os corpos. A tarde avançava e nada. Não havia foto alguma para transmitir, e o jornal precisava de uma boa imagem para a primeira página. Em Marabá a situação era a mesma. Nenhuma foto importante naquele dia. A espera angustiava. O tempo passava e minha inquietude aumentava. Foi quando me deu um estalo e pensei: “Se dezenove sem-terra morreram, em algum lugar devem estar cavando dezenove sepulturas, e essa foto é importante”. Peguei o carro que havia alugado e sai em disparada até Curionópolis, onde seriam enterradas as vítimas.
Dirigi mais de 60 km de estrada de terra sozinho. Havia abandonado o local por onde passaria o caminhão com os corpos, mas estava arriscando. O dia-a-dia de repórter fotográfico é de riscos. Acertei muitas vezes, mas perdi outras também. Naquele dia resolvi arriscar. Pelo jeito que chegavam as informações os corpos só chegariam ao local do massacre à noite, e eu precisava mandar uma foto antes disso, para o primeiro fechamento.
Curionópolis, terra do major Sebastião Curió, responsável pela execução de vários integrantes da Guerilha do Araguaia, era uma cidade quase fantasma. Na época do garimpo de Serra Pelada era onde os garimpeiros se abasteciam e a cidade vivia seu apogeu. Muito ouro e muita gente. Na época do massacre já estava em completa decadência. Atravessei a pequena cidade e cheguei ao cemitério no final da tarde, mas ainda a tempo de ver a cena que eu havia imaginado. Várias pessoas estavam cavando muitas sepulturas em um balé macabro.
Era um sobe-e-desce de enxadas e pás cavando sem parar, freneticamente, em meio a um silêncio sepulcral, literalmente.
((FOTO 06))
“A foto está aqui”, pensei. Agora precisava arranjar o melhor modo de registrar aquela cena. Sai pela rua e consegui emprestar uma escada. Encostei no único poste que havia no cemitério e fiz a foto. Enquanto fotografava contei vinte e duas covas. Mas até onde eu sabia eram dezenove os mortos. Desci e fui falar com o coveiro, que me respondeu: “Moço, nessas horas é melhor sobrar do que faltar né?”. Fiz mais algumas anotações e corri para o hotel transmitir a foto, que no dia seguinte estava na primeira página, e dentro uma matéria assinada abrindo com a frase emblemática do coveiro. E ainda deu tempo de voltar para a Curva do “S” e esperar o caminhão, que só passou por ali por volta das 23 horas. Nessa hora a edição Nacional da Folha já estava sendo impressa e com a foto das covas na primeira página.
"O delegado pediu para te avisar que seu piloto tá preso"
Mais uma vez um voo fretado. Alguns jornais foram convidados a participar de uma operação da Polícia Federal, FUNAI e Aeronáutica no combate ao garimpo em terras indígenas. O alvo da operação era a aldeia da tribo dos Tiriós, em Roraima, quase na divisa com a Guiana Francesa.
Saímos de Brasília em um avião Bandeirante que já havia sido de traficantes de drogas e que na época tinha sido incorporado à frota da Polícia Federal. A viagem de Brasília até Boa Vista já tinha sido uma aventura. Várias paradas no caminho para reabastecimento e manutenção. O avião estava caindo aos pedaços. Na hora do pouso, não se sabia o porquê, minava água pelo teto do avião e pingava sobre as costas do copiloto. A função de quem sentava no banco mais próximo da cabine era segurar um pano de chão e não deixar que a água gelada atrapalhasse as manobras de pouso. Sentei na frente e fiquei com essa missão, que cumpri com êxito. Faltavam agora somente as boas fotos.
Chegamos à Boa Vista ansiosos em partir para o território Tirió mas tivemos a infeliz notícia de que não poderíamos ir até a área em conflito por causa dos riscos. Nem o pessoal da Polícia Federal e nem da Aeronáutica quis nos dar carona em seus aviões. Uma decepção. Não tinha o menor sentido ficar em Boa Vista e acompanhar de longe as operações. Podia até funcionar para os repórteres de texto, mas para profissionais de imagem não, de forma alguma. Seria melhor voltar à Brasília.
Liguei para o jornal e expliquei o que acontecia. Sugeri que fretássemos um avião para nos levar até o local da operação, que ficava a duas horas de voo de Boa Vista. A gente podia dividir o fretamento com o Estadão e o Correio Brasiliense. Todos toparam e embarcamos eu e os repórteres-fotográficos Ed Ferreira e Sérgio Amaral, do Correio rumo à aldeia dos Tiriós. Aluguei um bimotor e o piloto quis pagamento adiantado. Dei um cheque meu no valor de R$2.200,00. Era quase meu salário inteiro que eu recebia na Folha em Brasília. O jornal se incumbiria de cobrir o cheque e dividir o valor com os outros jornais.
O combinado era irmos no outro dia bem cedo e voltarmos à tarde, a tempo de revelar os filmes e transmitir as fotos. Os repórteres de texto ficaram em Boa Vista. Decolamos logo que o sol nasceu. Depois de uma viagem maravilhosa sobre o imenso tapete verde da floresta amazônica, princilpalmente depois que o piloto, gentilmente, me deixou pilotar o bimotor por quase meia hora, depois que eu disse a ele que eu tinha brevê de ultra-leve. Quase igual né?Pousamos na pista da pequena aldeia onde já estava aquele avião-que-minava-água, dois helicópteros da aeronáutica e mais de uma dezena de agentes federais fortemente armados, além do pessoal da FUNAI.
A história era que havia mortos na floresta, tanto de garimpeiros quanto de índios. E nós estávamos lá para cobrir essa operação de resgate e ação contra os garimpeiros invasores.
Depois do pouso fomos para a aldeia e nosso piloto ficou no avião aguardando nossa volta, que seria no final da tarde. Caminhamos por cerca de dois quilômetros. Chagamos lá e começamos a fotografar a movimentação dos agentes fortemente armados, interagindo com os índios. Tentamos de todo modo que nos levassem nos helicópteros até o local do conflito e na busca pelos corpos, se é que existiam e, claro, não nos levaram. Teríamos que ficar na aldeia esperando o retorno da equipe que foi para a selva. Não demorou muito veio um agente em nossa direção pisando duro. Chegou e disse: “O delegado pediu para te avisar que seu piloto tá preso. Interceptamos transmissões de rádio do avião dele informando a garimpeiros detalhes da nossa operação. Ele vai ficar detido aqui e o avião preso até o final do nosso trabalho”. “E nós, como voltamos a Boa Vista? Vocês nos dão carona?” perguntei. - “Vocês vieram por sua conta e risco, não podemos dar carona a vocês”, respondeu o agente.
Ficamos um olhando para o outro sem saber o que fazer. Estávamos com a roupa do corpo, sem água e sem comida, a duas horas de voo de onde estavam nossas equipes, e agora? Nada! Não podíamos fazer nada a não ser esperar.
E assim foi. Todos os dias no final da tarde o pessoal da FUNAI se comunicava por rádio com sua sede em Boa Vista. Esse era nosso único meio de comunicação. Avisamos nossos repórteres o que havia ocorrido e que não tínhamos como retornar. Ficaríamos ali convivendo com os índios não se sabia até quando. Combinamos de mandar pelo avião-que-chovia-dentro que voava diariamente a Boa Vista para buscar mantimentos e fazer a movimentação do pessoal, nossos filmes e nosso relato sobre as atividades do dia. Por sua vez, os repórteres pegavam nossos filmes no aeroporto os levavam para a "Folha da Boa Vista" para que fossem revelados, e nossas fotos transmitidas para nossos jornais.
A partir daquele dia começamos a conviver com os índios e os missionários alemães que viviam na aldeia. Nos alojaram em um barraco que era usado como enfermaria. O forro do teto era de isopor e dormíamos em redes. O piloto foi colocado em um outro barraco, sozinho. Logo na primeira noite eu, Ed e Amaral percebemos que seria difícil dormir ali. Ouvíamos uns barulhos estranhos no forro de isopor. Pareciam pequenos bichos andando pelo teto. Foi assim até que a primeira barata despencou. Acendemos uma lanterna e vimos baratas por todo lado! No chão, nas paredes e no teto. Filme de terror total. Pegamos nossas redes e fomos dormir do lado de fora, em uma enorme oca que ficava no meio da aldeia. A companhia dos mosquitos e pernilongos era muito melhor do que aqueles bichos nojentos.
No dia seguinte começamos a organizar nossa rotina de trabalho e de sobrevivência. Bem cedo tomávamos café com leite e bolachas junto com os agentes da PF e da FUNAI. Íamos com eles até o aeroporto acompanhar as saídas dos helicópteros para as operações, voltávamos para aldeia e esperávamos seu retorno com informações sobre as buscas. Dia após dia e nada acontecia. Não encontravam garimpeiros, nem corpos e nem sinais de conflito. E nosso piloto continuava detido e esbravejando a todo instante, dizendo que nós teríamos que pagar pelos dias que ele ficou parado, sem voar. Já percebemos que teríamos problemas em voltar com ele depois que fosse solto.
((FOTO 07))
Os dias passavam e nossa rotina era a mesma. Tomávamos banhos de rio duas vezes por dia, circulávamos pela aldeia e almoçávamos com os índios. Geralmente era carne de caça e peixe, e à noite jantávamos com o pessoal da operação. Pedimos que os repórteres que haviam ficado em Boa Vista nos enviassem mantimentos. A alimentação era escassa na aldeia e mal dava para os índios. Os agentes levavam seus próprios mantimentos e tínhamos que garantir nossas refeições. No segundo ou terceiro dia nossa cesta básica chegou pelo avião-que-chovia-dentro.
Os banhos de rio eram uma diversão à parte. Todo mundo pelado em um rio maravilhoso. Não fossem as nuvens de mosquitos que nos devoravam eu diria que era o paraíso perfeito. E foi assim durante quase uma semana. No sexto dia os agentes e delegados fizeram uma reunião e decidiram acabar com a operação. Dias e dias de busca e nenhum indício de conflito em parte alguma. No sétimo dia de manhã liberaram o piloto que saiu xingando todo mundo e nos deram carona no avião-que chovia-dentro até Boa Vista, de onde voltamos a Brasília, com um vôo comercial.
((FOTO 08))
Notícia mesmo não teve, mas aqueles dias foram memoráveis. Nossas tatuagens de seiva de jenipapo que as índias nos presentaram eram incríveis. Não rendeu uma boa história, mas voltamos felizes.
A Copa da França de 1998 e minha demissão
No começo do ano de 1998, em uma de minhas idas a São Paulo para ver a família, meu editor João Bittar me chamou na redação e disse que tinha me escalado para cobrir a Copa do Mundo de Futebol na França. Fiquei atônito porque eu nunca fui um fotógrafo ‘boleiro’, como se dizia. Não cobria futebol com frequência e nem gostava muito de futebol. Por outro lado, eu sempre procurei atuar mais como jornalista do que somente como fotógrafo. Em pautas mais complexas eu sempre procurava agregar informações às apurações dos repórteres, sugeria e desdobrava pautas e buscava bons personagens e informações exclusivas. Dois anos antes, no caso PC, por exemplo, havia dado vários furos com informações exclusivas, além da foto do corpo de Paulo Cesar Farias que foi um furo espetacular. Com ela ganhei o prêmio de melhor foto do ano. Assim, fui me credenciando para atuar em pautas cada vez mais complexas e de importância. Foi por esse motivo que a direção do jornal me escalou para tão importante tarefa na França, fui mais como jornalista do que como fotógrafo.
Só que surgiu o primeiro problema. Em Brasília as coberturas eram intensas e um repórter-fotográfico que ficasse dois meses fora de cena seria um desfalque enorme. E isso provocou um grande desconforto com meu chefe, o Lula Marques e com a direção da sucursal. A corda estava ficando fraca para o meu lado. Diziam que eu havia feito lobby em São Paulo para cobrir a Copa do Mundo. Eu nunca gostei de futebol e nunca fui boleiro. Guerra eu queria cobrir, mas Copa do Mundo e Olimpíada nunca esteve em minhas prioridades. Por uma série de falhas na comunicação da direção em São Paulo com a sucursal a situação foi se agravando. Fui requisitado algumas vezes para cobrir amistosos antes da Copa, e toda vez minha liberação era um problema. A situação foi se tornando crítica a ponto de não me escalarem mais para nenhuma viagem. Só me passavam pautas de menor importância. Enfim, me colocaram na geladeira, ou melhor, no freezer.
O dia do meu embarque foi chegando e a situação chegou a tal ponto que eu até entreguei o apartamento onde morava e mandei minha mudança pra São Paulo. Não havia mais clima para que eu ficasse em Brasília. Eu faria a cobertura da Copa e depois não voltaria mais. A chefia da sucursal ja tinha sinalizado nesse sentido. O João Bittar era um extraordinário editor, mas não funcionava bem em resolver conflitos dessa natureza. Apesar dos meus alertas ele deixou que a situação chegasse ao extremo. O jornal havia comprado equipamentos digitais de última geração para aquela cobertura, e mandou um kit para mim em Brasília. Era com esse equipamento que eu deveria viajar para a França. Quando chegou o dia de minha ida a São Paulo levei o equipamento novo. Foi a gota que faltava. O copo entornou. Lula Marques e Valdo Cruz, diretor da sucursal, me ligaram dizendo que eu estava demitido e que não voltasse mais a Brasília. Que resolvesse minha vida em São Paulo. Foi nesse clima que viajei para cobrir Copa do Mundo na França, "quase-demitido" por telefone. Antes de viajar o João Bittar me garantiu que quando eu voltasse estaria tudo resolvido, afinal seriam quase dois meses de trabalho e haveria tempo de sobra para me recolocar em São Paulo. Grande engano.
Embarcamos para a França eu, o Toni Pires coordenando a equipe, Jorge Araujo, Eduardo Knapp e Ormuzd Alves. Foi um momento muito importante para mim. Eu olhava para um passado relativamente recente e me via batalhando por uma vaga na grande imprensa, principalmente na Folha, e agora, quatro anos depois, estava cobrindo uma Copa do Mundo com dois dos meus grandes ídolos. Jorge Araujo e Ormuzd Alves. Para mim aquilo era um sonho realizado. Uma difícil conquista com meus próprios méritos. Mas esse sentimento de vitória se misturava com a angústia causada pela confusão criada. Eu acordava lembrando das palavras do Valdo Cruz me demitindo pelo telefone. Como isso pode ter acontecido? O que eu fiz? Nada, eu não havia feito absolutamente nada, a não ser ter acatado a decisão da direção da Folha para cobrir a Copa na França. E agora lá estava eu, trabalhando em uma cobertura extremamente difícil e intensa, com a demissão ecoando na minha cabeça. Se o Ronaldo Nazário estava mal do joelho e não conseguia jogar, eu estava mal da cabeça e não conseguia trabalhar direito.
A cobertura em si foi um tremendo sucesso. A Folha estava entre os cinco jornais do mundo que cobriam a Copa cem por cento com fotografia digital. Até entrevista o Ormuzd deu contando a maneira como trabalhávamos. Depois de cada jogo a gente editava e transmitia as fotos, ia embora e nossos colegas do Estadão, Globo e outros ainda estavam com filmes no revelador! Me lembro de uma vez em que estávamos de saída de um jogo que aconteceu à noite, os jornais aqui no Brasil já estavam fechados e o Wilson Pedrosa, do Estadão, ainda chacoalhava um tanque de revelação com dez filmes dentro! Realmente não havia dúvidas. A fotografia digital havia chegado para revolucionar de vez o fotojornalismo.
Nos primeiros dias de cobertura, antes de começar a Copa, nós fotografávamos os treinos da manhã com filme, e deixávamos as digitais somente para as pautas próximas do horário de fechamento. Depois de uma semana desistimos de vez dos filmes. Graças ao trabalho do Victor Shinozaki, um engenheiro elétrico que implantou todo o sistema digital na Folha, e que foi pioneiro no Brasil, inauguramos de vez a era digital na Folha de S. Paulo. A rapidez e a qualidade das transmissões eram impressionantes. Anos antes a então editora de fotografia Ana Estela, a mesma que me contratou, deu treinamento de Photoshop a toda a equipe da fotografia, e isso nos início dos anos 90! Assim, quando chegou o sistema de captação digital, a base técnica nós já tínhamos.
Meu trabalho na Copa foi especialmente gratificante. Eu estava incumbido de fazer os treinos e os jogos do Brasil e outros jogos importantes da tabela. Um dos jogos que ficou marcado na cobertura e que fiz com o grande jornalista e mestre Clóvis Rossi era mais uma cobertura política do que um jogo propriamente dito. Foi a partida Estados Unidos x Irã. Havia câmeras de segurança espalhadas por todo o estádio, tropas de prontidão, revista de público e de jornalistas redobrada. Do lado de fora havia o medo de confronto de torcidas. Não se sabia ao certo se a notícia estaria nas quatro linhas do gramado ou do lado de fora. Mais uma vez eu teria que optar. Resolvi ficar do lado de dentro, para fazer os times posados. Deu certo. Os dois times entraram juntos e posaram juntos para a foto oficial, todos segurando flores, que foram trocadas entre eles em seguida. Foi um exemplo emocionante de integração pelo esporte. No final a foto principal da cobertura nem foi do jogo ou dos confrontos, mas sim dos vinte e dois jogadores todos juntos, misturados, posando com ramalhetes de flores nas mãos.
Quando os jogos começaram apareceram os primeiros problemas com o Ronaldo Nazário, o Ronaldinho. As dores em seu joelho e as consequentes saídas de madrugada para fazer infiltrações começaram a ficar evidentes. Fazíamos plantões intermináveis na porta da concentração e na casa que ele havia alugado para alojar a família e sua namorada, Suzana Werner. Foi assim até a véspera da final, quando passamos a madrugada de plantão na porta da concentração, e a informação de que Ronaldinho havia tido convulsões por causa do excesso de remédios e do estresse circulavam entre os jornalistas e não se confirmavam. A grande final aconteceria à tarde.
Chegamos cedo ao Stade de France. Levamos algumas garrafas de vinho, nacional é claro, para comemorarmos o final da Copa e a esperada vitória do Brasil, mas que foram confiscadas pela segurança na estrada do estádio. Nos garantiram que na saída as garrafas estariam lá, nos esperando. Depois de horas de espera entramos no gramado para nos posicionarmos. Na entrada do túnel dos vestiários era visível uma movimentação estranha, diferente dos outros jogos. Dirigentes da CBF, entre eles Ricardo Teixeira, entravam e saiam com passos apressados, visivelmente preocupados.
Cerca de uma hora antes da partida alguns representantes da FIFA passaram distribuindo a escalação dos times. Surpresa total. Edmundo entraria no lugar de Ronaldo Nazário. Até meu irmão me ligou de São Paulo querendo comentar a importante mudança na seleção brasileira. Uns vinte minutos depois os mesmos representantes da FIFA voltaram e se apressavam em trocar os informativos com as escalações dizendo que o primeiro estava errado e valia a nova escalação que estavam entregando. Nela já não indicava Edmundo, e sim Ronaldo no ataque da equipe brasileira. Um claro sinal de que havia algo muito errado. O que aconteceu no gramado em seguida, todos conhecem.
E nós?
Depois de tanto planejamento e trabalho por quase dois meses não conseguimos ver a taça do pentacampeonato nas mãos dos nossos jogadores, e nem as nossas garrafas de vinho confiscadas na entrada no estádio.
((FOTO 09))
Se deu tudo errado para a Seleção Brasileira a situação do meu lado estava sinalizando o mesmo. A Copa havia chegado ao fim e meu retorno a São Paulo ainda não estava certo. Eu teria que negociar isso assim que voltasse ao Brasil, e seria difícil. Sabia que não havia vaga na equipe em São Paulo. E nesse período o João Bittar não havia avançado em nada. No dia seguinte à minha chegada a São Paulo fui até a redação. Teria que falar com o Josias de Souza, o mesmo que aguardava a transmissão da foto exclusiva do PC para fechar o jornal, dois anos atrás. Josias me recebeu em sua sala e já foi logo dizendo que não tinha outra saída a não ser voltar a Brasília. Se eu não quisesse teria que pedir demissão. Só que informalmente eu já estava demitido pelo Valdo Cruz, que o fez por telefone. Estava num ‘mato sem cachorro’, como dizia meu pai. Na esperança que o tempo ajudasse a resolver a questão, peguei meus quinze dias de folga pela cobertura da Copa e mais trinta dias de férias e fiquei em São Paulo aguardando uma solução. Estava decidido a não voltar mais a Brasília. Não tinha clima para trabalhar depois da enorme confusão que se criou.
Fiquei todo esse tempo vivendo a agonia da dúvida, aguardando uma solução que não vinha, e o dia de voltar ao trabalho estava chegando. Foi numa sexta-feira, a última das férias, que o Valdo Cruz me ligou. Agora mais calmo me pediu para explicar tudo o que havia acontecido, desde o convite para cobrir a Copa. Expliquei em detalhes todo o confuso episódio. Ele pareceu ter entendido que fui vítima de uma falta de decisão e comunicação por parte da chefia em São Paulo e, por isso, tinha voltado atrás em sua decisão de me demitir. Me pediu que voltasse a Brasília e reassumisse minhas funções. Foi o que fiz. No domingo arrumei as malas, enfiei tudo em meu Ford KA e,
às dez da noite estava entrando em Brasília. Fui morar com meu amigo e colega Lucas Figueiredo, parceiro de pautas relacionadas com o caso PC Farias e hoje um grande escritor. Com o Valdo parecia que estava tudo resolvido, para o Lula Marques não. Os meses finais do ano de 1998 foram terríveis. Imagine trabalhar em uma empresa de comunicação onde seu chefe não fala com você. Eu era pautado por colegas, motoristas, secretária, menos pelo meu coordenador. Viagens? Nunca mais. Até que em fevereiro de 1999, poucos dias antes do carnaval, também numa sexta-feira, o Rui Nogueira me ligou. Eu estava na porta do gabinete de FHC para fotografar uma agenda. Rui me pediu que voltasse imediatamente para a redação. Eu disse que estava aguardando para fazer a foto do presidente e que iria em seguida. “Foda-se a agenda, vem agora”.
Sabia que minha estada em Brasília, um lugar que me acolhe, com tanto carinho, onde fiz amigos eternos e onde a família Stuckert me adotou como a um filho, tinha chegado ao fim. Como era meu plantão naquele final de semana haviam decidido me demitir somente na segunda-feira. Foi o Rui Nogueira quem se revoltou e disse a eles que, se minha demissão ja estava decidida, que me demitissem naquele mesmo dia, e por isso me ligou. O Rui foi um dos jornalistas mais competentes, dedicados e éticos com quem trabalhei.
Voltei a São Paulo dias depois. Sem emprego e com a promessa de começar novamente a frilar pra Folha. Teria que começar de novo ou faria minha tão planejada viagem a Santiago de Compostela? Não tive alternativa a não ser recomeçar, com a promessa de ser recontratado na primeira oportunidade. E foi o que aconteceu, seis meses depois. Em agosto de 1999 voltei para a equipe do jornal que havia me demitido.
"Você vai transmitir daqui? No meio do mar"?
Voltei e poucos meses depois já estava escalado para cobrir as Olimpíadas de Sydney/2000. Iríamos em três. Eu, Eduardo Knapp e Ormuz Alves. A mim coube a missão de cobrir a seleção brasileira novamente, agora sob o comando de Vanderley Luxemburgo. Me mandaram cedo para Sydney. Fui para Camberra aguardar a chegada das primeiras delegações brasileiras. Fomos eu e o finado Edgard Alves, então colunista da Folha.
Logo na chegada a primeira surpresa. Quando fomos até a locadora buscar o carro que o jornal havia alugado para a gente, o atendente nos disse que deveríamos mudar o seguro contratado previamente. “Vocês devem fazer o seguro contra cangurus”, ele nos alertou. – “Como assim, seguro contra cangurus?!”, perguntamos espantados, achando que fosse brincadeira. Pacientemente o atendente nos explicou que, devido às leis de proteção ao canguru, nos últimos anos eles tinham se multiplicado assustadoramente e representavam uma ameaça aos motoristas. Eles circulavam livremente pelas rodovias e matas ao redor de Camberra e havia um enorme risco de atropelamento. Para quem nunca viu um canguru adulto, esses bichos exóticos chegam a pesar quase 100 quilos e atingir 1,70 m de altura. É como atropelar uma pessoa grande. Imagine o estrago que faria em um carro médio. Claro, fizemos o seguro contra canguru.
((FOTO 10))
A cobertura das Olimpíadas de Sydney foi maravilhosa. Cabeça boa, recém contratado, de volta a São Paulo e com casamento marcado. Me casei com a Eliana em quatro de novembro daquele ano. Por causa dessa cobertura ela, coitada, teve que organizar tudo sozinha!
De início fiquei cobrindo a chegada e treinos das equipes de natação, judô e basquete, lá mesmo em Camberra. Depois fui deslocado para Gold Coast, em Brisbaine, local de concentração e treinos da seleção brasileira de futebol. Ficamos no mesmo hotel da seleção, um maravilhoso golf-resort seis estrelas. A cobertura era muito tranquila. Na maioria das vezes Luxemburgo fazia um treino por dia, à tarde. De manhã os jogadores ficavam na academia e isolados da imprensa. Apareciam rapidamente para o café da manhã e depois só no final da tarde. Cobertura ‘mamão com açúcar’, como diziam os colegas. Na verdade Vanderley Luxemburgo era um grande festeiro. Trabalhar duro mesmo não era com ele. Diferente do Zagalo, que acompanhei de perto na Copa da França em 98 e do Felipão, na Copa Japão/Coreia 2002, que tive a oportunidade de cobrir também.
Luxemburgo era mais dado a churrascos, samba e pouca bola. E não deu outra. Perdeu feio de Camarões nas quartas de final. Um verdadeiro vexame para nossa equipe. Assim, cumpri minha missão antes do esperado mas continuei por lá. Luxemburgo voltou sem cumprir a dele.
Despachei a seleção brasileira de futebol frustrado por ter durado tão pouco tempo aquela cobertura. Queria, como todos, ver o Brasil ganhando a primeira medalha olímpica no futebol masculino. Não rolou. Assim, me despedi de Gold Coast e fui pra Sydney, ajudar na cobertura de outros esportes. Fiz a equipe brasileira de hipismo ganhando medalha de bronze, judô e iatismo classe Laser, prova na qual nosso iatista Robert Scheidt era o grande favorito e brigava pelo bicampeonato. Naquele dia, sem eu saber, o fuso horário conspirou a meu favor.
A prova começaria às 10h30 da manhã na Austrália, portanto doze horas mais tarde do que o horário brasileiro, onde eram 22h30 da noite anterior. Por isso não daria tempo de fotografar a prova, que terminaria por volta do meio-dia, cerca de meia-noite no Brasil, já com os jornais brasileiros fechados. Além do mais, estávamos a cerca de 30 minutos mar adentro em uma lancha do Comitê Olímpico Brasileiro-COB, que foi colocada à disposição dos fotógrafos. Enfim, as fotos dessa prova não entrariam na edição daquele dia. Mesmo assim, contrariando o bom senso e lembrando dos tempos em que eu levava minha ‘Xereta’ e minha Olimpus Trip na bicicleta e na mala da escola, levei para o barco uma mochila com computador e os cabos de transmissão por celular. Mais uma vez o grande engenheiro Victor Shinozaki havia pesquisado e implantado um sistema de programas e conexões para que a gente pudesse transmitir fotos por celular, a partir de um Macintosh, o que poucos jornais podiam fazer na época.
Zarpamos por volta da 9h30. Estávamos em um grupo de fotógrafos brasileiros, entre eles Ricardo Chaves, o “Kadão”, da Zero Hora e Ricardo Stuckert, da Revista Caras, além de alguns fotógrafos de agências. Nossa lancha ancorou a pouca distância da primeira boia depois da largada, de onde daria para fazer uma boa foto do Scheidt contornando a baliza. Depois iríamos nos deslocar para fazer nosso campeão cruzando a linha de chegada e conquistando a medaçha de ouro, como todos esperavam, isso se tudo corresse bem. Mas não foi assim. Quando os velejadores ‘montaram’ a primeira boia Scheidt estava lado a lado com o campeão inglês Bem Ainslie, seu principal rival naquela categoria, e na passagem pela boia Scheidt cometeu uma imprudência ao ultrapassar o britânico e foi desclassificado. O barco dele havia se aproximado demais e batido no barco do inglês. Era o fim da tão esperada medalha de ouro.
((FOTO 11))
A foto estava feita. Todos nós fizemos, e aquela seria a notícia principal da prova, talvez a principal do dia, e foi feita por volta de 22h45, ainda a tempo de pegar a edição dos jornais do dia seguinte, só precisava ser transmitida rapidamente. Corri pegar minha mochila na cabine da lancha, tirei o computador, cabos e comecei a editar. Os outros fotógrafos, que não tinham levado equipamento de transmissão me olharam espantados: “Você vai transmitir daqui? Do meio do mar?”, perguntaram. – “Sim, vou. Meu jornal ainda não fechou”. Fui o único a editar, transmitir e publicar a foto feita no mesmo dia na edição da Folha. Foto enorme na capa do caderno de esportes mostrando a desastrada manobra do nosso velejador.
Obrigado mais uma vez grande amigo Victor!
Bom trabalho jornalístico é assim, em equipe.
Depois disso tudo ainda cobri conflitos dos índios Yanomami com garimpeiros (FOTO 13) a Copa do Mundo de Futebol Coréia/Japão – 2002 (FOTOS 14 e 15), a visita do então presidente Lula à Antártica, em 2009 (FOTO 16) e a Fome na Etiópia, 2009 – (FOTO 17).
Morei por três meses em Angola, em 2012 (FOTOS 18 e 19), viajando pelo país inteiro.
Morei também por três meses no Panamá, em 2014, também viajando pelo país todo. Ambas foram viagens a trabalho, mergulhando na cultura, hábitos locais e fazendo grandes amigos.
Em 2003 fui escalado pela Folha de S. Paulo, junto com Sérgio Dávila, para cobrir a Guerra do Iraque (FOTOS 20, 21 e 22). Foram 35 dias de intensa e amedrontadora cobertura. Fomos os únicos jornalistas brasileiros a cobrir a guerra do front, a partir de Bagdá, o que nos redeu o Prêmio Esso de Reportagem naquele ano e a publicação do livro “O Diário de Bagdá”.
Depois voltei mais três vezes ao Iraque: em 2015, pelo Estadão com o repórter Roberto Lameirinhas (FOTO 23); em 2010, também pelo Estadão com o repórter Lourival Santana (FOTOS 24 e 25), quando consegui ‘roubar’ uma foto do túmulo de Saddam Houssein (FOTO 26);
e em 2013, novamente pela Folha e com o querido amigo e colega Sérgio Dávila (FOTO 27), hoje diretor executivo da Folha.
Essas últimas coberturas serão assunto para novos capítulos destas memórias.
Mas ainda me falta uma missão, que tenho a certeza de que um dia ainda a farei, e a pé: o Caminho de Santiago de Compostela, ou El Camino de las Estrellas, que assim era chamado porque os peregrinos que caminhavam até Santiago de Compostela, na Espanha, e depois até Finistere, ou o ‘Fim do Mundo’, se guiavam pela Via Lactea.
Juca Varella
www.jucavarella.com.br
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