Projeto Heranças e Lembranças
Depoimento de Lázaro Durra
Entrevistado por Diane K. e Karen Worcman
Rio de Janeiro, 02/09/1987
Realização Museu da Pessoa
Revisado por Ana Calderaro
R - ...em 1905. Na época vem guerra e, para não levar a gente como soldado, meu irmão mais velho foi a guerra. ...Continuar leitura
Projeto Heranças e Lembranças
Depoimento de Lázaro Durra
Entrevistado por Diane K. e Karen Worcman
Rio de Janeiro, 02/09/1987
Realização Museu da Pessoa
Revisado por Ana Calderaro
R - ...em 1905. Na época vem guerra e, para não levar a gente como soldado, meu irmão mais velho foi a guerra. Primeiro foi meu pai, sumiu lá em Baçorá, morreu e nem conheci bem. Eu era garoto quando tive que sair da escola, um rebbe, para poder viver vendia tremoços na rua. Cheguei a vender pão, cheguei a vender tudo. Depois fui obrigado a trabalhar como servente de sapateiro, calçados. Depois, nessa época, eu trabalhei bem e ganhei mais ou menos. Aí tivemos que… Primeiro meu irmão veio aí em 1921, porque tinha um tio meu que estava aqui antes da guerra.
P - Aqui no Brasil?
R - Aqui no Brasil. E veio antes da guerra.
P - Veio em que ano?
R - Veio antes de 1914. Eu não me lembro bem, era criança.
P - O senhor tinha quantos anos nessa época?
R - Nessa época?
P - Quando ele veio, o tio...
R - Eu não me lembro. Era criança, ele já estava aqui. Depois ele mandou carta para a família, para o meu irmão vir aqui. Mas meu irmão foi a guerra também, acabou a guerra com a Turquia e os árabes levaram ele também pra guerrear na França, mas depois ele acabou fugindo e veio para aqui em 1921. Depois de dois anos é que nós viemos para aqui. Eu, minha mãe e meu irmão menor, com outra família, com uma família também nossa.
P - Então, o Senhor veio com sua família, com sua mãe...
R - Minha mãe e meu irmão também, menor.
P - Eram três irmãos?
R - Uma irmã tinha falecido e eu nem conheci.
P - O Senhor falou que seu irmão serviu na guerra, me conta um pouco mais.
R - Serviu na Turquia e depois serviu os árabes. Mas ele fugiu depois, fugiu uma porção de vezes.
P - Ele veio ao Brasil para fugir?
R - Para sair de lá, não queria mais saber de lá.
P - Por causa da guerra?
R - Por causa da guerra, naturalmente. Porque eles estão guerreando depois com a França. Depois, quando acabou a guerra, começaram a mobilizar todo mundo para ir guerrear o quê? A França que já está lá dentro? E ele, para não ficar lá, então fugiu. Veio para aqui. Depois de dois anos ele chamou a gente para vir aqui.
P - (pergunta inaudível)
R - Lá os miseráveis até esculhambaram a falecida mãe. "Vai para o Brasil para quê? Pra se queimar?" Imagine uma senhora, um rapazinho. “Para se queimar, por quê?” Porque a gente era quente aqui, o calor, fazia muito calor naquela época, demais. E agora está fazendo. E fui trabalhar como ambulante, você sabe como é.
P - O seu pai era ambulante?
R - Não, meu pai tinha teares lá na cidade, em Damasco.
P - Como era o trabalho dele?
R - Teares, tem um negócio aí, até, de lá.
P - Que ótimo, depois o Senhor mostra para a gente isso.
R - Esse era o trabalho dele. Na ocasião faziam negócio lá de uns jogos pro casamento. Claro, durante a semana outro, vermelho. Mas não tem vermelho aí, tem o branco, uma lembrança. Tinha lá aquela cortina da Sinagoga.
P - A cortina deve ser a que está lá dentro, a cortina do velho?
R - Não a que está lá dentro, mas está guardada em baixo. Esse era o trabalho dele. Tinha três, quatro teares. A gente era criança pequenina, ele criava galinhas mesmo, também lá. E no sábado, depois do almoço, a gente ia para a Sinagoga e, depois do almoço, a gente levava até a loja para trazer pintinhos para brincar. Uma criança. A gente brincava com os pintinhos e depois a gente levava outra vez para cá, para a loja. É isso que eu me lembro dele. Depois que ele foi para a guerra, nunca voltou mais.
P - Vocês eram muito religiosos lá?
R - Não, não era tanto religioso. Muita gente diz que é religioso. Durante a guerra, a gente saiu da escola, não tinha mais. Só ficou o pequeno, que ficou tempo de escoteiro. mas a gente não pode mais estudar. Estudar o quê?
P - O Senhor foi à escola até que idade?
R - Até mais ou menos dez anos, ou menos, eu não me lembro. Que depois que arrebentou a guerra a gente queria sair para poder ajudar a manter a família. Um tio meu, que era irmão da minha mãe, começou a fazer pão e vendia lá para os goyim. Na ocasião foi tudo bem. O é que a gente pode lembrar?
P - O Senhor gostou quando saiu da escola e começou a trabalhar?
R - Trabalhava com ele, levantava de madrugada para vender pão. Depois acabou o pão, e não tinha mais nada para se comer, nem farinha, nem pão, nem nada. Fazia turmus. Sabe o que é turmus?
P - Turmus são tremoços.
R - Vendia tremoços na rua. Enchia o balde, ficava sentado em uma cadeira grande, não só eu, cadeira grande, todo mundo com balde porque em frente onde que a gente vendia tinha uma escola. Na hora da folga, do recreio, saíam para fora para comprar tremoços. Então todo o mundo ficava ali. Mas de vez em quando passa soldado turco esfomeado, querem avançar na gente e então cada um carregava o seu balde, corria e se escondia. Essa era a nossa vida, que levamos tempo. Depois, quando começou, meu irmão... Levaram ele também e ele fugia sempre. Quando fugia, a gente não sabia onde ele estava. Então a gente ficava procurando. Onde é que está, onde foi? Sumia dois, três dias, depois aparecia. Ele não tinha medo. O comandante pegava ele, via ele na rua. Ele andava na rua à vontade, não ligava. Uma vez o comandante viu ele na rua. Passou, viu ele, parou o carro dele, chamou ele, aí ele correu. "Então foge, vai embora, que não apareça mais, que não sei o quê..." Ele era conceituado lá, gostavam dele, ele queria transferir meu irmão para a casa dele, para ficar servindo. Ele não gostava, então fugia. Um dia pegou ele, levou uma surra que não podia nem virar de um lado para outro. Fecharam lá o quarto dele e não deixavam ninguém entrar. Eu aí fui lá com mamãe para ver ele. Aí os soldados, todos eles, gostavam dele. "A gente não pode fazer nada porque o comandante daqui a pouco aparece aí e a gente é castigado.” Ele era, sabe? Esses comandantes turcos eram severos demais. Depois disse: “Enquanto não vem o comandante, a gente sai, a gente fica esperando lá fora." A gente viu ele jogado aí no cimento, todo machucado. Até na bofetada os dedos estavam com sinais dele. "Mas como foi isso?” "Me pegou e acabou..." Daqui a pouco vem o comandante. De longe: “Vem aí, vem o comandante agora.” A gente esperava. Mamãe fica implorando para ele, para não fazer nada para ele. Ele era turco, não falava árabe. "Mas ele foge, não aparece." Depois de um tempo aí soltaram ele. Tornou a fugir. Não adiantava. Ele não ficava lá porque ele… Depois viram ele outra vez na rua. "Agora estamos de festa. Depois da festa, então vai para o quartel." Ele disse: "Depois da festa, eu vou.”
P - E não foi?
R - Não foi. Aí ele ficou onde tinha uma oficina de arte. Trabalham num negócio de... Um desenho que eles faziam, um negócio, como um… Nem me lembro o quê. Bom, ele sabia que ele trabalhava nessa oficina.
P - Oficina de livro?
R - Não era de livro. Era negócio de… Não me lembro bem. Ele sabia que ele trabalhava naquela oficina e que ele sabia desenhar, que fazia esse desenho. Então, depois de uns dias, ele foi lá. Essa oficina tinha uma ordem, podia ir quem quisesse trabalhar, ela podia aceitar. Mas ele, como sempre, o Comandante muito conhecido, radical mesmo, aí ele foi lá e entrou na oficina. De um lado estão trabalhando, de um lado, e de outro ele no meio. Quando chegou perto dele, aí meu irmão viu que era ele e levantou.
P - Bateu continência?
R - "O Senhor disse que vinha depois da festa, não é? E não apareceu, veio aí pra fazer desenho, trabalhando aí. Vamos embora." Levaram ele. E a gente andava atrás dele de um lado para outro. Botaram lá em frente ao distrito. Botaram ele lá.
E a gente debaixo da chuva... Mamãe queria ir até lá, do bairro nosso até o bairro católico. O nosso bairro era separado. O bairro católico era separado. Aí nós fomos, carregamos um cobertor, um travesseiro, aí uma porção de mulheres levaram isso em baixo de chuva para todos os homens delas que tinham sido presos. Fomos lá, estava cheio lá o lugar, uma loja em frente ao quartel, botaram todo mundo lá. E chuva! Naquela época chovia.
P - Lembra do mês, da época? Lembra que festa era?
R - Era. Depois que chegamos, ficamos lá um tempo. Depois de umas duas horas, quase escurecendo, mandou todo mundo embora. "Vão embora, era ilusão. Vocês vão embora, não podem ficar aqui mais. Todo mundo tem que sair. Carrega as trouxas e vai correr feito judeu errante.” Embaixo da chuva, agora, voltamos para casa. Não podia. Depois eles transferiram de um lugar para outro. A gente tinha que saber onde que eles vão para a gente ir lá ver. Depois eles mandaram para fora, mandaram ele viajar, mandaram para a Turquia. Mas meu irmão chegou até lá e depois de um certo tempo fugiu de lá. Fugiu de lá, foi para o Monte dos Drusos Ficou lá uma porção de tempo que a gente não sabe. Não podemos ir lá, não é? Tão longe... Mas de vez em quando ele mandava recado, mandava recado com um camarada conhecido lá no bairro. Depois, quando acabou esse negócio de guerra, vieram os árabes. Quando os árabes saíram, entrou a França. Lá acabou a guerra. Mas nós ficamos uma porção de tempo e não tínhamos nem pão para se comer. A gente não queria comer tremoços, então a gente comprava um pedaço de doce para mitigar a fome e, mesmo assim, tinha outro esfomeado que via a gente com o doce, avançava e apanhava o doce da mão da gente. E o que nós passamos lá, só Deus é que sabe.
P - É, isso a gente quer saber também.
R - Não, só Deus é que sabe mesmo. O que se conta não é nem um décimo do que a gente passou.
P - Essa vida foi durante a ocupação da França?
R - Durante a ocupação da França, antes de chegar quase a França. Quando vem a França, aí já tem tudo. A Alemanha levou tudo o que é trigo porque lá em Damasco tem muito trigo. Mas ela levou tudo o que é trigo, cevada, tudo que é grão ela carregou. Soldados turcos morrendo de fome e o povo também, a mesma coisa. Ela tinha cada cavalo, arrebentavam tudo que é esgoto por lá. Depois perdeu. Perdeu a guerra e saíram. Voltaram os turcos. Quando os turcos estavam indo embora, vieram os árabes atrás deles também, atirando contra eles. A Turquia não tinha nada com isso. Porque a Turquia dominou a Líbia, o Egito, a Síria, o Líbano, dominou uma porção de tempo, até que foi entrar na guerra com a Alemanha e perdeu tudo. Ficou só na terra deles.
P - O Império Otomano.
R - O Império Otomano. Até a Líbia no meio do oceano tem uma ilha que chama Ilha dos Turcos. A gente vivia muito bem, a gente tinha todas as regalias.
P - Quando estavam os turcos?
R - Quando estavam os turcos, antes da guerra. Mesmo durante a guerra, a gente tinha as festas Simchat Torá. Então, na véspera da Simchat Torá, de tarde, o
bairro todo embandeirado e tapetado. Quem tinha tapete botava no chão, no bairro todo. Só vendo o pessoal de Beirute, todo ele ia para lá só para apreciar o Simchat Torá. A noite toda, em todo o bairro, ele tinha coreto cantando em hebraico, não é? Além do pessoal das coisas que se dá corda e outras coisas mais. A noite toda bebendo e cantando. Chegava de madrugada, entravam na Sinagoga, carregavam o Sefer Torá e corriam todo o bairro. Meu irmão menor era escoteiro naquela ocasião. Tinha um professor, era não sei se polonês, eu não sei, e era professor dele. Na ocasião, não tinha ordem de carregar, porque botava um canivete grande, carregava ali, andava na rua, em todo lugar. No dia de Simchat Torá, então, mandou eles carregarem e deu a vontade de ir fora na rua, lá no bairro muçulmano. Então brigaram com um cristão fardado. Foram brigar com as crianças muçulmanas, machucaram o rapaz, um menino. Aí prenderam ele. Prenderam diversos deles. Aí o professor foi lá na justiça e pediu a eles para soltarem. "São crianças, não sabem nada." "Ah, mas eles estão carregados com canivete, é proibido." "Bom, vou mandar tirar, tirar tudo." Tirou tudo e ele brigou lá com eles, admoestou eles. Mas nas festas que a gente passava lá, goy não entra. Mas podia entrar porque tem no último dia de festa, eles trazem cada bandeja de tudo que é doce. Os amigos dos goyim, muçulmanos, as festas não tinham porque acabou o kasher. Vinha o chametz, cada um tinha amigos e conhecidos. Então levavam de presente. Sabiam que acabou a festa de Pessach, acabou o kasher, agora vem o chametz. Então trazia tudo que é doce, tudo que é salgado. Trazia os comestíveis. Mas depois que começou o negócio de kasher, vinha para lá, dava dinheiro para os árabes, Emir Abdullah dava dinheiro porque eles queriam a Palestina. Por que querem a Palestina? Os goyim não gostaram. Aí começou a pinimba, depois o ódio. Eu, quando cheguei aqui, até tem um camarada, um muçulmano também. Ele trabalhava com nossos patrícios na rua, era vendedor. Ele me conhecia. Vocês pensam que ________________________. Nunca! Por quê? Por que não? O árabe tem uma porção de lugares. Por que os judeus não podem ter a terra deles? Vinham sempre jornais aqui, no tempo antigo tinha "A Vanguarda", tinha "A Noite", traziam uma porção de artigos de Oriente Médio. Escreviam sobre o que estava acontecendo lá, o que não estava acontecendo. Aí, que a gente trabalhou. Trabalhar de ambulante na rua não é brincadeira. A gente arranjava, a gente não tirava licença, andava na rua. Trabalhei com meu irmão.
P - Isso aqui?
R - Isso aqui. Trabalhei com meu irmão. Ele me levava na rua, eu trabalhava aí no Catumbi.
P - Era ambulante e vendia o quê? Livros?
R - Tecidos, fazenda, cortes de fazenda.
P - Trabalhava para quem?
(trecho inaudível)
P - Nessa época as pessoas não estudavam muito…
(trecho inaudível)
P - Lá na escola judaica?
R - Todos eles e tinha Alliance Française também. Mas eu não estudei lá. Estudei na Talmud Torá e na outra escola também.
P - A escola era misturada? Eram crianças, judeus e goyim?
R - Não, todos judeus.
P - Mesmo na Alliance Française eram todos judeus? Tinha Alliance para os não judeus?
R - Dentro no bairro.
P - Mas por quê? Era uma lei?
R - Não, era lei. Era nossa, do bairro. Não tem, não aceitavam goyim. Eles tinham lá a escola deles, porque eles estudavam outra coisa. Tem um professor de hebraico, professor de Torá, professor de árabe. Depois de certo tempo botaram um para turco, mas pouco tempo durou.
P - Os professores eram judeus também?
R - Todos eles.
P - O Senhor calcula que estudou até que idade?
R - Eu? De nove a dez anos, porque depois, durante a guerra, eu tive que sair.
P - Porque fecharam a escola?
R - Não, eu tive que sair pra trabalhar. Quem vai sustentar a casa? Só tinha eu e o menor.
P - Mas aconteceu isso com a vida de muita gente, amigos, parentes?
R - Muita gente. A gente não tinha nada para comer, a gente catava no lixo casca de ervilha, casca de... Como se diz? De fava! Lavava cozinhava e comia.
P - Os outros, os vizinhos também foram ficando pobres?
R - Tinha muita gente que comprava. Outra coisa: a gente fazia até quibe de tremoços para a gente comer.
P - E não havia entre os judeus os que continuaram com dinheiro e que ajudavam, ou era cada um por si?
R - Cada um por si e Deus por todos.
P - O Senhor se lembra de alguns nomes de famílias de lá, algumas pobres, outras ricas?
R - Não me lembro bem, a gente quase não se dava e nem conhecia. Um garoto não pode saber. A gente sabe que tem muita gente de bem, outra gente remediada. Além disso, de lá não sei nada.
P - Mas na sua casa moravam então, antes da guerra, o seu pai, a sua mãe e os filhos?
R - Mamãe e nós.
P - E os tios?
R - Moravam em outras casas.
P - Perto?
R - Todos no bairro.
P - Nas festas as famílias se viam muito?
R - Se viam. No shabat cada uma está em um bairro, tem uma Sinagoga, tem uma porção de sinagogas, tem um cheder, né? Todo o sábado vão para a sinagoga. Tem um negócio, tem um camarada que pede, se diz mazon, mazon quer dizer que a gente dá um pão para dar, tudo para dar para os pobres. Ele bate na porta da gente. Quem tem, ele dá. Dá para dar aos pobres. Isso no sábado.
P - E esse bairro em que o senhor morava, que só tinha judeus, era do tamanho do quê, de que bairro, por exemplo?
R - Um bairro muito grande.
P - Aqui, como seria o bairro? Há um bairro do mesmo tamanho no Rio? Um bairro de três quarteirões?
R - Muito mais.
P - Como a Tijuca, menor do que a Tijuca, Botafogo, um bairro menor, ou Flamengo?
R - Mais ou menos Botafogo.
P - Um bairro grande.
R - É, grande, mas lá porque tem, como se diz... É redondinho, digamos, redondo. Uma área bem grande e redonda, em volta toda dela tem goyim e cristão, e nós estamos no meio.
P - Então era redonda a cidade?
R - A cidade era redonda.
P - E os judeus ficavam no meio.
R - É isso aí.
P - E tinha vários bairros de judeus ou era um só?
R - Era só esse, mas cada um pedaço chama-se um bairro.
P - Como era o nome? Lembra o nome?
R - Não me lembro.
P - Como era o seu? O Senhor se lembra da população que tinha lá?
R - Não, não sei. Tinha diversos, mas eu não sei a quantidade.
P - E nomes dos vizinhos ou de alguns que vinham vindo para o Brasil?
R - Que vieram para o Brasil? Vieram já muitos. Antes da gente que eles vieram. Tem um até que tem um parentesco com a gente. Chama-se Alfredo Shamma. Já falecido, também. Agora vai fazer sete anos de falecido. Veio com meu tio e tem outro...
(pausa para troca de fita)
R - … a gente esquece.
R - Tem também Jacob Dalali. Esses são do mesmo bairro quase da gente.
P - “Dalalí” ou “Daláli”?
R - “Daláli”.
P - Ele também era do seu bairro e veio até aqui e ficou no Rio?
R - Depois da gente ele veio. Ele e o irmão.
P - O Senhor mantém contato com essa gente?
R - Esse tive, sim. Esse é já falecido também mas tem uma porção de filhos aqui, da mesma Sinagoga. Eles são da nossa Sinagoga porque depois que a nossa Sinagoga acabou a gente se juntou a eles.
P - Onde era essa Sinagoga aqui?
R - Na Rua São Pedro, não sei bem o número.
P - Essa Sinagoga acabou por causa do Presidente Vargas?
R - É, acabou. Depois se espalharam cada um para um lado, não é? Aí cada um vai rezar para um lugar, onde é mais perto.
P - Agora, nessa época que o Senhor veio, vieram muitos do seu bairro para cá, para Brasil?
R - Não, depois. Antes de nós só vem esse que conheço e esse tal de...
P - Ah, só um pouquinho...
R - Esse, o pai dele também era vizinho de onde eu trabalhava. Esqueci o sobrenome.
P - E o Senhor sabe porque vinham para o Brasil? O que é que deu, o que vinham fazer?
R - Nós viemos aqui porque estava meu irmão aqui e estava meu tio aí.
P - E porque vieram pra cá.
R - Vieram porque calhou, desceram aqui, ficaram aí. Nós, se a gente soubesse, a gente ia para Buenos Aires, não vínhamos para cá. Mas como aí estavam eles, nós tivemos que ficar aqui.
P - Vieram por acaso?
R - Sei lá se era por acaso, talvez seja por acaso.
P - Mas o senhor falou que ele veio procurar o pai do senhor no Brasil.
R - Quem? Meu pai? Meu pai faleceu na guerra.
Filha - Na guerra então que ele faleceu. Mamãe falava que tinha vindo para procurar ele.
R - Como procurar ele?
P - Vai ver seu pai fugiu. Conta essa história direito. Vai ver seu pai fugiu e não apareceu nunca mais mesmo.
Filha - É tudo na guerra. Ninguém soube se ele morreu ou se não morreu. Mamãe contava isso. Agora não sei.
R - Tua mãe não sabe de nada. O que a gente conta, tua mãe sabe. Tua mãe o quê? Ela estava aí, não sabe de nada.
Filha - O pai dele contava, ora. Era irmão dele.
R - E daí? Ele não sabe de nada!
Filha - Ela contava pra gente…
R - Ele faleceu, sumiu lá em Bassora, que estava na guerra. E daí, ele está aqui? Ela contava pra gente ali, na Palestina. Eles estão em Bassora. Bassora era deserto naquela ocasião. Gente que fugiu e voltou pra casa, disseram que ainda está vivo, talvez venha. Vêm outros depois e disseram que viram, e ele morreu. Como é que a gente pode saber? Sumiu depois, não aparece. Onde podia ter… Morreu ali mesmo. Mamãe… Mamãe não sabe de nada!
R - Fala um pouco da mamãe. Como conheceu, como se apaixonou?
Filha - Ela nasceu aqui.
P - Ele veio de lá. Como foi o namoro?
R - Morava junto, na Rua Eugênio Câmara.
R - Rua São Pedro, Paralela. Era a Prefeitura ali. Onde está agora a biblioteca, a Biblioteca Estadual. Ali na Prefeitura antiga. E a gente morava mais adiante um pouquinho, era a Câmara e Rua São Pedro.
P - E todo mundo quando veio de lá morava no bairro.
R - Morava por aí. Rua da Alfândega, Rua Senhor dos Passos… Esse bairro que chama-se hoje Saara. Ali, todos os judeus moravam por ali, misturados com os católicos.
P - Os árabes...
R - Os católicos, não tinha árabes, muçulmanos.
P - Agora que estão vindo para cá.
R - Estão fugindo, vêm pra cá. Mas o mais católicos, católicos e maronitas. Os maronitas, eles gostam da gente. Mas o sul do Líbano está protegido por Israel. Eles são culpados também. Culpados porque, quando entrou Israel pra lá, podiam ter ajudado ele e acabavam com os palestinos dali. Mas não, ficaram ali e ok, eles não queriam. Saíram, saíram e ficaram no ataque. Até hoje estão brigando ali. Os xiitas por lá. Sidon pertence a Israel, mas está no Líbano. As Sinagogas de Sidon. Eles que estragaram os judeus aqui. Porque aí começaram a vir todos juntos à Sinagoga. Até fizeram Sinagoga. Não, não fizeram Sinagoga, alugaram o Ginástico Português na Rua Buenos Aires. Alugaram ali e Todo mundo rezava ali. Depois eles começaram a espalhar, aumentaram eles, todos vieram para cá de Sidon. Aí separaram para fazer a Sinagoga deles separada. Cada um separa, então. Aí começou a separação.
P - O pessoal do que faz o Templo União veio de onde?
R - Eles são de Alepo. Alepo na Síria.
P - Também se separaram.
R - Separaram.
P - Eles vieram antes? Vieram depois?
R - Não, vieram misturados, vieram uns na mesma época... Quando nós chegamos aí, tinha pouca gente. Começou depois, depois que nós chegamos, aí começou a aumentar a população. Veio muita gente, não ficou mais ninguém lá em Sidon. E em Alepo quem podia fugir, fugiu, e não ficou ninguém. Quase não tem ninguém lá mais.
P - O Senhor podia contar pra gente como foi que veio?
R - Como eu vim?
P - Contar sua viagem, como saiu...
R - Saímos de Damasco e fomos para Beirute.
P - O seu tio mandou uma carta chamando?
R - O meu tio e meu irmão. Ele já estava aí, não é? Ele mandou chamada para a gente, a gente tirou o passaporte e viemos de Beirute, porque foi em Beirute foi que a gente apanhou o navio. Até apanhar o navio é que a gente tem que ir de barco, para apanhar o navio. Ficamos dois dias lá em Beirute, lá no Consulado, para assinar o nosso passaporte, e aí viemos de navio. Viemos até com uma prima, que também faleceu depois, que veio também com outras primas. Não ficou ninguém deles, morreram todos, até um primo.
P - O Senhor foi para Beirute de trem, de ônibus?
R - De Damasco para lá é de trem. Pegamos o navio lá.
P - O Senhor se lembra o nome do navio?
R - Não sei bem se… Não sei bem, era um navio...
P - Era italiano, era francês?
R - Acho que francês. Viemos até Marselha. Em Marselha apanhamos outro navio.
P - Quanto tempo demorou a viagem?
R - Quase trinta dias!
P - Só até Marselha.
R - Não, de Marselha ao Brasil. De Beirute até lá acho que foram sete dias.
P - Aí chegaram aqui e foram morar com esse tio. Sobre a viagem ainda. Em que classe viajaram e em que condições foi a viagem?
R - Classe terceira.
P - Conta um pouquinho isso.
R - Classe terceira. A gente ia ao porão, ficava lá. No dia, de manhã, a gente levantava. Todo mundo lavava o rosto, tomava café e saía fora. Ficava o dia todo lá no tombadilho, até chegar a hora do almoço. A gente ia almoçar e ficava lá. Eu não gostava nem de descer. Dormia até no tombadilho, lá em cima. Botava duas cadeiras, cobertor e dormia lá em cima. Não ficava lá em baixo. Quando chegamos a Dakar - que parou em Dakar -, desceu todo mundo e eu fiquei lá em cima. Não descia e mamãe também. Aí o meu primo foi comprar um peixe, um peixão. Pra quê? A gente ia fritar, vai cozinhar lá em cima, lá no navio? Ficou o peixe, ficou porque eles esqueciam o peixe lá em baixo. Quando subiam lá em cima, não vão carregar, não vão pensar no peixe. Não podiam mais descer porque fecham o portão, não deixavam ninguém descer. Ficou o peixe lá em baixo. Dia seguinte, a mesma coisa. Ficou três, quatro dias. Depois pegaram o peixe e jogaram fora. Compravam também manga. Diziam que isso era comida, fruta de preto, de Dakar. Aquela manga deste tamanho... Como não sabiam, compraram, cada um, uma. Ficou guardada. Eu vou comer isso? Sei lá por que isso...
P - Não tinha manga na Síria, não?
R - Não.
P - No Egito tinha?
R - No Egito não sei também. Em Beirute não tem. Em Beirute só bananinha. Acho que só banana ouro.
P - Nanica...
P - As frutas que vocês mais comiam lá na Síria...?
R - Lá era outra coisa. Lá tem uma porção de qualidade de damasco, que vinha para toda a parte do mundo, vinha damasco. O mais vagabundo caía sozinho. Você entra numa fazenda, tá cheia, atapetada de damasco. Quando amadurece, cai. Eles requisitam mulheres para catar, para fazer uma espécie de ____________. Esse é o que se chama damasco kalb. Kalb já era o cachorro. (Kalb quer dizer cachorro em árabe). Agora está custando um dinheirão isso, uma tábua de tamarindo. Tem aquela amêndoa verde que é uma gostosura. Amora tem... Tem duas qualidades de amora. Tem tâmara... Vem de fora, vem da Argélia ou desses outros países ou vinha do interior.
P - Tem tamarindo também?
R - Tamarindo também tem. Tem pêra, tem maçã, tem uma porção de fruta. Tem tangerina, tem laranja, a laranja muito boa, muito gostosa. Tem também nessa época uma melancia muito boa e gostosa. Tem melão que lá é uma gostosura, parece deste tamanhinho, chatinho. Só o cheiro dele, a gente… Não é essa porcaria aí a gente come um pedacinho e quando põe dentro d'água já tem outro gosto. Nem gosto mais dele. Tem muita fruta em Damasco, tem.
P - E a comida, fora fruta? O que era a comida? Que nem no Brasil? Tem arroz e feijão?
R - Que arroz e feijão? Lá nem tem arroz. Arroz comia gente que tem grana. A gente comia mais o trigo. Tem trigo fininho para quibe, que é o que eu gosto. Faz o trigo...
P - Como arroz?
R - É, no lugar de arroz.
P - E o quê mais? Fazia tipo kasher? Em Damasco fazia tipo kasher?
R - Não, kasher não é usado lá.
P - Então o que fazia com arroz ou trigo? Não entendi, não conheço.
R - Fazia com grão de bico. Botava carne e fazia recheado.
P - Tipo comida árabe?
R - Recheado com folhagem de acelga, de tremoços, de folha de uva também.
P - A carne que se comia lá era de quê?
R - Mais é carneiro. Quase toda de carneiro. Na véspera da festa você vê, festa de noite. O shohet matava não sei quantas cabeças de carneiro, um em cima do outro.
P - Carneiro se come inteiro ou também tem a parte kasher e a parte não kasher, que nem boi?
R - A parte não é kasher, a traseira tem gente que cortava e limpava. Então tudo que é chametz tirava fora. Aqui não tem, infelizmente. Não tem ninguém que crie. Por isso a gente come a parte de segunda e terceira, que é a parte traseira. Não jogava fora, vendia de graça. Tinha lá. Carregava sempre um gancho. Cortava os pedaços...
P - Se o senhor se cansar de falar, avisa. A gente pára.
Filha - Quer parar um pouquinho? Vamos descansar um pouquinho? Quer tomar um cafezinho?
P - Mas qual era a diferença principal da comida dos goyim?
R - Quase toda.
P - Era muito diferente a comida.
R - É, só recheios, daí que fazem recheios diferentes porque o goyim faz até em carne kosher. Eles pedem e o shohet mata para eles, e tem o carimbo que a gente
compra lá na terra também. Lá o carneiro, a traseira dele é desse tamanhinho, não é rabo, não. Aqui tudo é rabo. Eu, até quando cheguei à Marselha, vi uma porção de carneiros, mas tudo ainda com rabo. Eu disse: o que é que tem isso? Carneiro com rabo nunca vi. Essa parte daí, gordura, eu não gosto. Se comer um pedacinho de carne já fico até enjoado. Meu pai criava aquelas galinhas, quando vinha a quinta feira, acabava de fechar a loja, levávamos quatro ou cinco galinhas. Tinha uns fregueses especiais para elas. E deixava uma sempre para a gente no sábado. Quer dizer que para a gente quase não faltava carne. Não gostava...
P - Quer dizer que a comida de sexta feira...
R - De sexta para sábado, era galinha. Galinha com macarrão. Chama-se treia com batata, com berinjela. E de noite, à sexta-feira de noite se fazia canja.
P - Canja e o quê mais?
R - Sei lá.
P - E a comida que se fazia sábado, ele ficava cozinhando a noite toda?
R - Ficava a noite toda, até outra noite de sábado de noite. Ainda ficavam umas brasas porque tinha uma, como se diz... Uma espécie de... Para cobrir o fogareiro no meio, não é bem fogareiro, chama-se mode de barro, furado de um lado pro outro pra sempre ventilar. E botava, enchia de carvão e botava a chávena ali, tampava e botava um porção de... Tem até a travessa grande aí, cobria e ficava até... Às vezes sobrava luz velha para se acender outra vez à noite. Ficava quente, ficava quente.
P - Vocês respeitavam o shabat? Sua mãe cozinhava no shabat? Não trabalhava?
R - Não, ninguém cozinhava.
P - O Senhor tem alguma coisa da época, de cozinha? Tem alguma coisa que foi da sua mãe? Algum instrumento?
R - Não, não.
P - Instrumento de cozinha da época?
Filha - Não, não, nada disso. Mamãe não tinha nada disso. Você quer com açúcar ou quer sem?
R - Mas assim você fica amarga. (riso)
P - Amargo é gostoso.
P - Vocês almoçam que horas?
Filha - Nós não temos hora para almoçar, uma hora, uma e meia. Não vai atrasar nada, não.
P - Não tem cerimônia. A gente interrompe e depois volta.
Filha - O café é feito à moda da terra. Não se coa, não. Ele não gosta que coe.
R - Eu não gosto de coar.
P - Fica gostoso, fica forte.
P - É o café turco.
Filha - É isso aí. A gente chama de café turco.
P - Tem razão, coando perde tudo.
P - Você tem o aparelho de fazer o café turco?
Filha - Faço café, o pó dentro do bule, a água, deixa ferver e depois só deixa assentar.
P - É muito gostoso, muito bom café.
Filha - As colegas da minha irmã vinham aqui: "Quero café com pozinho."
P - Você sabe ler a sorte depois?
Filha - A minha mãe falava: “Ah! Tem que ler sorte depois.” Ele me ensinava mas não adiantava.
P - Gostoso, tem o pozinho, depois se vira a xícara no pratinho...
Filha - A minha mãe aprendeu com o pessoal da terra mesmo. Ela era nascida aqui, a mãe dela era brasileira, mas ela vivia no meio, então aprendeu até a falar. Quem via ela falar pensava até que ela era mesmo de lá, da terra. Ela falava muito bem.
R - É, falava bem.
P - Vocês não aprenderam, não.
Filha - Eu não aprendi nada.
R - Não aprenderam porque não quiseram!
P - Em casa, entre os dois, eles falavam como?
Filha - Quando eles queriam falar alguma coisa que a gente não podia ouvir, então falavam em árabe. Então, para conversar conosco era português mesmo. Então a gente ficava naquela.
R - A minha senhora, coitada, ela nem viu a mãe dela bem. Faleceu a mãe dela em 24 horas. Deixou ela e outro.
Filha - Ele ficou com três anos, o irmão com um, e grávida de três meses. Pneumonia dupla. Naquela época não tinha...
R - Depois vai ver o retrato dela.
P - Se o Senhor quiser ir vendo os retratos das coisas, a gente podia dar uma pausa na gravação, a gente via um pouquinho.
(interrupção)
P - Ele se formou em quê?
R - Engenheiro.
P - A formatura de quem?
R - Meu filho.
P - O seu filho? Tá bem, deixa eu ver também.
R - Essa minha filha, também professora.
R - Essa minha filha mais velha, no Banco. Trabalhava no Banco.
P - Esse daqui, de quem é e de quando é?
R - Esse eu nem sei de quem é, nem escreve. A gente não pode saber.
P - Este daqui é retrato antigo mesmo a cor posta depois.
R - É antigo.
P - Colorido.
R - Colorido posteriormente, não existia a cor da foto.
P - Você não sabe de quem é? De que família?
R - Não sei, este é muito antigo.
P - Esse é de lá ou daqui?
R - Esse é daqui.
R - Naquela ocasião a gente casou em casa.
P - Como era? Conte um pouquinho do seu casamento para a gente.
R - Eu casei até na casa do meu sogro e depois eu e meu sogro viemos para a casa. Na ocasião minha prima foi casar com meu tio, não deviam ter casado porque era filha da irmã dele.
P - Ela casou com o próprio tio, era sobrinha dele.
R - Aí que tá. E não devia. Mas como na casa dele há pouco tempo tinha morrido a mulher dele, ele nem estava pensando em casamento, mas ela forçou, que ela não achou quem casasse com ela.
R - Porque, ela era muito feia?
R - Não, ela era bem bonita.
P - Vai ver ela gostava do tio.
R - Gostava dele e não arranjou outro, então casaram. E eu, quando cheguei aí...
P - Ah! Então quando o senhor chegou ela já estava casada com ele?
R - Não, não, ela veio com a gente.
P - E aí, quando o senhor chegou, conta um pouquinho mais do casamento.
R - Moramos com ele. Depois de muito tempo é que eu me casei com ela.
Filha - Depois de quase dez anos, com 25 anos.
P - Ele chegou com catorze anos.
Filha - Ah! É.
R - Essa minha filha.
P - É essa aqui?
R - É essa aí.
P - Escola Afonso Pena.
P - No casamento armavam o altar ou não?
R - Em casa mesmo.
R - É de lá a família de minha senhora. Brigaram com ela, não queriam que eu casasse com ela, a madrasta. Eu fazia gosto e ela não queria, então a família sempre brigava.
(troca de fita)
R - O casamento foi na casa do meu sogro... Casamos lá e fomos de lá para minha casa, onde era a Sinagoga nossa, Rua São Pedro. Já tinha arrumado lá. Então foram para minha casa. Foram para minha casa, foram lá e tiramos um retrato grande. E de lá fomos até Petrópolis.
P - Em lua-de-mel?
R - Em lua-de-mel.
P - Que idade o senhor tinha? E ela?
R - Vinte e cinco anos, eu. Ela era menor, era menos.
P - Mais ou menos vinte anos ela tinha?
(interrupção)
P - O nome do furador de abobrinha.
R - Abobrinha.
P - Fala em árabe.
R - Nahura.
(interrupção)
P - Vamos gravar mais um pouquinho. Quando chegou ao Brasil, foi logo à casa de um irmão ou tio?
R - Moramos junto e aí comecei a trabalhar com meu irmão. Ela me levou depois de um certo tempo, me levou com ele para ensinar as ruas.
P - O senhor tinha uns quinze, dezesseis anos?
R - É, essa idade. Fomos andar, trabalhar, mostrava fregueses aqui, fregueses ali… Comecei a andar com ele. De vez em quando ele dizia: "Vai um freguês aqui, vai para outro." Aí já me conhecia, me mandava… Uma vez aconteceu um caso comigo lá em Catumbi. A gente trabalhava em Catumbi, Saúde, uma porção de lugares. Um dia me levou até o Catumbi. Ele subiu uma ladeira, uma Rua Padre Miquelina lá. Me deixou na esquina para não subir a ladeira. Ia fazer a volta para não voltar outra vez, de outro lugar. Tinha bonde na Rua dos Coqueiros, tinha bonde Coqueiro mesmo, onde hoje é o Túnel Santa Bárbara. Aquela rua chama-se Rua dos Coqueiros. Então ele voltava, fazia a volta, voltada do outro lado. Eu vi ele demorar e, como eu estava de calça curta, todo mundo olhava para mim. Eu com vergonha. Fiquei um porção de tempo, depois aí: "Bom, tá demorando, não vem, não vem, eu vou andar." Fui andar, fui subindo a Rua dos Coqueiros, aí vi que já estava perto do morro. Digo: “Não é este caminho.” Queria ir embora. Aí voltei. Tinha uma igreja na esquina com Itapiru, tem o Cemitério de um lado e de outro lado tem uma igreja. Digo: "Quem sabe é esse caminho?" Fui subindo a Rua Itapiru. Quando cheguei no meio da Itapiru, então, eu via cada vez estar chegando o alto do Corcovado. Eu digo: "Ah! Esse não é o caminho. Vou voltar.” Fui voltando. Na volta fui a outro lugar, caminhando para descer. Aí desci a rua toda Catumbi e Marquês de Sapucaí, onde é o sambódromo. Quando cheguei perto do canal: "Já sei, eu vou pra casa". Fui caminhando, fui até para casa. Quando eu cheguei perto da Prefeitura, já sei. Alí já eu, como sempre a gente estava, ia por ali. Quando fui pra casa, subi lá em cima, todo mundo olhando para mim. "Cadê teu irmão?" "Eu não sei, eu não vi. Fiquei esperando, esperando e ele não veio. Eu vim." "Mas como é que você veio sozinho?" "Eu vim." Aí todo mundo ficou: "E agora, ele vai te procurar" "Vai procurar, não sei." Aí, passando uns quinze minutos mais ou menos, vinte minutos, aí ele chegando: "Lázaro está aí? Tá aí?" Aí começou o escândalo. Eu estou sério, o que ia fazer? "Ué, me deixou lá plantado na esquina e foi-se embora, demorou, eu voltei." "Mas como é que acertou?" "Fui num lugar, fui noutro, e depois só tem este caminho. Quando cheguei à Praça Onze, ali perto do canal, já sei que estava em casa. "E aí começou a me mandar sozinho. "Vai pra aí, vai pra aqui, leva encomenda aí."
P - Era tecido que o senhor levava?
R - Era fazenda. Começou depois, aí eu carregava a trouxa e andava sozinho. Levou um tempão. E depois acontecem uma porção de coisas na vida da gente. Dinheiro a gente não via. Ele era ambicioso, só queria para ele, não dava para a gente nada. Nem eu, nem o outro falecido, o menor. Aí nós nos voltamos contra ele.
P - Ele era o mais velho?
R - É. Aí: "Quero trabalhar sozinho." Aí minha tia quis dar a mão à gente. Ela apresentou umas casas que fornecem para a gente para começar a vender. Eu e ele andamos na Saúde, Gamboa, Livramento, por aí afora. Fizemos freguesia, mas ele sempre chorava e voltava, quase não deixava a gente, não queria, queria que a gente voltasse. Voltava e não voltava, até que tivemos que voltar. Até a gente fica com pena. Ele, mais velho, ele batia até no outro, no menor. Brigava
com ele, batia nele, e por isso nós voltamos também. Não é só pelo dinheiro. Não dava. A gente era novo, não podia ficar na esquina, e eu ficava na esquina, tinha um botequim em frente à Prefeitura. Não podia ficar ali, não conversava com colegas, amigos conhecidos. "Não pode ficar ali. Vai pra casa." "Eu não vou pra casa. Eu vou ficar ali." Fica, não fica... Ele brigava, não podia bater em mim. Gritava comigo, mas eu dizia: "Não adiantava, pode gritar a vontade." "Não adianta porque eu quero, vou com outros colegas. Estamos conversando, não estamos fazendo nada. Se fica em casa, a gente chega da rua cansado, não podemos ficar na esquina conversando com ninguém, ficar em casa preso para quê?” Uma vez por outra, tornamos uma vez a sair e trabalhar sozinhos. Aí alugamos uma casa, tiramos a mamãe de junto dele, fomos morar juntos separados e começar a vender. Aí fizemos negócio e trabalhamos sozinhos. Mas ele sempre vinha chorar. Eu dizia: "Não adianta nada." Chegou o casamento dele. Eu, no casamento dele, eu disse: "Não vou para o casamento." Veio família da minha cunhada, todos, aí ela implorando para mim: "Mas é teu irmão mais velho, que não sei o quê.” Eu digo: "Meu irmão mais velho, mas ele é contra a gente. Ele não quer nada saber da gente, só quer saber dele. A gente trabalha para ele, não somos nem escravos, nem nada.” Não me lembro mais se fui no casamento ou não fui. Não queria de jeito nenhum ir ao casamento.
P - E com seu irmão, o senhor falava em árabe ou em português?
R - Em árabe.
P - Mas aqui o senhor aprendeu logo português?
R - Já sabemos português mas, mesmo assim, dentro de casa, se falava em árabe.
P - E quanto tempo levou para aprender?
R - Não levou muito tempo, não. No primeiro mês a gente já estava na rua sozinho. Algumas coisas que a gente falava. Depois não teve problema.
P - O que o senhor achou aqui do Brasil quando chegou? Chegou direto no Rio?
R - Chegamos direto no Rio. E o que podia achar? Não sabia de nada.
P - Achou mais bonito, mais feio, muito diferente?
R - Naquela ocasião era muito diferente desta época de agora.
P - Mas era muito diferente de lá?
R - Bom, naturalmente a gente gostava de lá. Mas devido as circunstâncias que estavam, não queria saber da guerra. Saímos de lá, graças a Deus. A gente ficou gostando daí.
P - Gostava de lá?
R - A gente gostava de lá mas, nas circunstâncias que estavam, não deu, não podia ficar lá, nem podia gostar. Embora até hoje eu goste de lá. Damasco... Quem não sabe o que é Damasco?
P - Muito bonito?
R - Deve saber mais ou menos. Damasco é a cidade mais antiga do mundo, não é?
P - Lá o senhor morava numa casa.
R - Numa casa. Depois do negócio da guerra, arranjava qualquer lugar.
P - O senhor tem vontade de voltar?
R - Não, nem podia. Hoje nem pode, nem podemos ir lá. Ainda mais que eu tenho passaporte ainda sírio. Senão… Se for lá o Consulado não carimba o meu. Não tenho mais. Não tem mais.
(interrupção)
Agora está esculhambado. Já não ligam porque não tem mais… Estão agora... A população está andando na rua, gritando. A inflação lá está pior do que estava em Israel. Em Israel estava muito ruim, como aqui. Mas lá agora… Mas fazia dinheiro antigamente. Hoje ninguém mais quer sair. Estão fugindo de lá.
P - O senhor saiu do Brasil esses anos todos?
R - Não, eu nem ia a lugar nenhum. Até certas épocas, minha senhora, de tanto a gente trabalhar, só trabalhar. Saía de manhã, voltava de noite, o dia todo andando. Até comia na rua, às vezes não comia. A gente começou em maio, todo o mês de maio, depois do dia da Mamãe, ia para São Lourenço. A gente passava dez dias, quinze dias, arranjava muitos amigos lá, paulistas e mesmo cariocas. Jogava com eles, passeava com eles... Tinham carro, levavam a gente e vinham visitar a gente aí. Já vieram. Até o camarada que vinha e ia, levava a gente, faleceu também. Agora a senhora dele está sozinha. Mandava sempre cartão de Boas Festas. No aniversário, então, os filhos todos... Eles sabem, eu não sei, eles sabem. Telefonavam de noite. Na noite mesmo do aniversário telefonavam, falavam um por um. Vieram aqui, ficaram hospedados na minha casa, dormiram na minha casa, amigos sinceros. Se fossem árabes… A gente diz: árabe sincero tinha, mas hoje em dia não tem. A gente pra isso diz, quer dizer, não tem confiança no goyim nem se fosse no cemitério. Não tem. E esse coitado, a gente foi visitá-lo também lá. Levou a gente pra um porção de lugar. Levou a Itú, levou a Serra Negra, uma porção de lugares. Ficamos uma semana lá. Fazia questão também da gente ir lá sempre. Mas não dava. Depois arranjamos mais um outro casal também. Até hoje não sabemos se iam senhores de idade, igual a mim. E esse, eu estou falando, não tinha idade. Acho que nem sessenta e poucos anos. Faleceu, teve um problema lá mesmo em São Lourenço.
P - Eles moravam lá?
R - Morava em São Paulo. Ele vinha de carro com a senhora dele. Não tem filho, não tem nada. Só o casal sozinho. Vinha de carro e a gente ia passear. Brigavam, esses dois paulistas brigavam para levar a gente no carro deles.
P - O senhor joga, é? Joga carta?
R - Eu jogava tudo o que é jogo, mas negócio de buraco eu não sabia. Ensinaram a gente no primeiro ano. "Senta aí." Sentava. “É isso, assim, assado…” Até aprender. Na vez seguinte, no ano seguinte, todo o mundo disputava. Você vai ser o meu parceiro. A gente fazia quatro mesas de quatro. Jogava lá. Um lá, até, filho de sírio também. A gente sempre ia lá. Depois houve uma revolução lá naquele hotel. Não sabiam o que queriam fazer. Queriam ganhar dinheiro. Fizeram clube, fizeram não sei o quê. Ficou pronto o clube mas, no primeiro ano depois, se foi. Fomos para outro hotel.
P - Gamão o senhor
joga?
R - Não, tem toule, não é? Jogava muito. A gente mesmo, depois que a gente acaba o serviço, a gente vai à esquina como antigamente, José Maurício Tomé de Souza, hoje. Antigamente era José Maurício. A gente subia lá em cima. Lá em cima tem toule, tem bilhar, tem cartas, tem de tudo. A gente jogava quando aparecia parceiro, jogava toule ou dominó. Tem uma porção de jogos. Passava lá tempo, a tardezinha, depois do trabalho. Mas depois de casado, nada mais disso. A gente só frequentava o cinema. Às vezes fugia, ia para o cinema. Emendava o dia.
P - Fingia que estava trabalhando até de tarde.
R - Depois dos camelôs...
P - Ela não trabalhava?
R - Eu não aceitava que ela trabalhasse.
P - E quando descobriu?
R - Quando eu soube, eu chorava...
P - Melhor estar no cinema do que estar com outras mulheres.
P - Mas ela achou que era no cinema com outras mulheres.
R - Não, mas o cinema que a gente frequentava era cinema vagabundo.
P - Sei...
R - Antigamente chamava-se “poeira”. Não existe mais. Na Rua Marechal Floriano, em frente ao Pedro II. Chama “poeira”. E tem em frente outro também. Mas a gente frequentava mais o poeira. Uma vez ou outra a gente emendava e ia para o Íris, o Íris já existia. E tem o Ideal em frente, do outro lado. Abre e fecha. Agora não existe mais. E naquele tempo abria e fechava. Hoje não existe. É uma pândega, não? Carnaval, então... Passava a noite toda na rua.
P - E ela chorando aqui?
R - Não, não é com ela. Isso solteiros.
P - Ah! Solteiros.
R - Naquela ocasião a gente podia andar dia e noite e não havia perigo. Hoje a gente não sai nem daqui para daqui pra baixo. Depois da revolução de 1930, quando o Getúlio Vargas entrou, entraram esses miseráveis, esses nortistas que são gente sanguinária, não prestam. Aí escangalhou o Carnaval. Era outra coisa. Naquela ocasião a gente tinha mais liberdade. Hoje a gente não tem liberdade. Quem pode sair? Esses morros e favelas tem todos os nortistas, vagabundos. Teve gente que dizia: "Desde que os nortistas entraram aí, escangalharam, acabaram com a Guanabara.” Era Distrito Federal. Quem não gostava? Uma cidade bonita mesmo. Hoje a gente diz bonita, mas por quê? Naquela ocasião era muito mais bonita. Não existia essa poluição, esses apartamentos muito altos e baixos. A população aumentou demais. Na ocasião que nós chegamos aqui, o dinheiro na mão do povo, milhões de contos, mil réis. A gente fala um cruzeiro, e acabou o cruzeiro. Pior que o cruzeiro. Tiraram o cruzeiro, mas acabaram com o cruzeiro e o cruzado.
P - Diga uma coisa, quando vocês vieram aqui sua mãe tinha algum dinheiro, tinha dinheiro guardado? Veio com dinheiro ou veio com nada?
R - Nada, nada.
P - E como pagaram a passagem?
R - A passagem já mandaram. Tinha alguma coisa e a gente acabou com ela. Não tinha dinheiro nenhum.
P - A casa de lá era de quem, a que vocês moravam?
R - Alugada. Alugada por ano ou, então, quando se tem, a pessoa que tem dinheiro botava o dinheiro na mão do proprietário e com os juros do dinheiro ficava morando lá. Devia saber, conta, seus pais deviam saber mais ou menos isso. Com
o juro do dinheiro o homem está trabalhando com o dinheiro do inquilino, tá ganhando dinheiro. O inquilino pagava juro. Então deixa lá pelo aluguel. Fica morando. A gente morava cinco, dez anos, vinte anos, ninguém saia de lá. Quem pode sair de lá está morando, está a vontade todo o dia. Aqui, quando a gente chegou, trabalhava na rua. Quando trabalha na rua, todo o mês a gente tem inquilino, tem freguesa, já muda de lugar. Procura saber onde que ela mudou, o vizinho não diz, a gente tem que descobrir, saber por nós mesmos, ou no botequim, ou com... Uma freguesa tem mais intimidade com ela: "Fulana mudou."
P - Você vendia a crédito também?
R - Tudo a crédito. Por semana, mil réis.
P - Que ganhavam?
R - Não, toda semana pagava mil réis. A gente dizia: “Dá um mil réis por semana.” Mas tinha muito. Também, um corte de fazenda se vendia por dez cruzados, dez mil réis. Quer dizer, dez, quinze, vinte no máximo. Com três metros de fazenda, quem não quer comprar? A freguesa não podia, comprava. Freguesa boa comprava um mil réis, pagava dois mil réis. Toda segunda feira, já sabe. Segunda feira vai bater, tem dinheiro, carregava. Só se ela não tivesse, aí “passa amanhã”. Senão, vem segunda na semana que vem e paga o dobro. Carrega até no bolso cheio de níquel. Vai no botequim, trocava com dinheiro papel e o botequim dava. Graças a Deus que a gente levava para ele para trocar, que precisava de troco. As vezes, cem mil réis não tinha para trocar. Ia procurar em todo lugar, não tinha para trocar cem mil réis. Também, cem mil réis naquela época era muito dinheiro, grande. Não se trocava cem mil réis.
P - E o senhor ficou trabalhando até...
R - Trabalhei muito tempo. Depois eu não podia mais de tanta briga com meu irmão. Eu também depois trabalhei. Depois que me casei meu tio arranjou casa para eu comprar e arranjei um sócio até para trabalhar. Um compra, outro vende. Dá ao mesmo tempo. Tinha que ou bem estar comprando, ou bem estar vendendo. É muito tempo, não é? Cobrador tem uma porção de cartão para correr. Muitas vezes não dava pra gente correr todas as freguesas e ficava para o dia seguinte. Então arranjei um camarada conhecido, amigo. Faleceu até, coitado. Ele namorava uma menina. A gente andava na rua e via ela andando na rua, onde ela morava pela janela. Ficou namorando uma porção de tempo, acabou casando com ela. Mas coitado, não demorou muito com o casamento e faleceu. Mas nessa
época trabalhamos pouco tempo até, eu e ele. A madrasta não queria de jeito nenhum que estivesse com sócio. Queria que eu trabalhasse sozinho porque: "Você, o capital é teu, é teu tio que está dando.” “E daí? Ele não está trabalhando, vendendo? Está andando na rua também. Depois a gente vai resgatar todo esse crédito e ficamos só nós dois.” Não precisava mesmo. Não, mas aí ela incutiu na cabeça do meu tio que eu não devia trabalhar com ele. E meu tio tinha medo dela. Ela é fogo na roupa. Aí ele disse: "Bom, você vai trabalhar sozinho e deixa o Fulano já sem mais isso.” Arranjou um bom lugar, a gente trabalhando, até que nós tivemos que nos separar. Não demorei muito tempo também, não podia mais trabalhar porque o crédito caiu. Aí eu tive que apelar. Tinha uma senhora conhecida casada com um iysh também, amiga da gente. Ela disse: "Por que não trabalha no seu ofício? Você tem ofício.” Eu digo: "Mas o meu ofício eu não tenho. Aí tem só fábricas. Como eu posso trabalhar na fábrica? Não tenho nem trabalho na fábrica.”
P - Qual o seu ofício?
R - Calçado.
P - O senhor aprendeu seu ofício onde?
R - Lá na minha terra.
P - Lá na sua terra tinha chegado a fazer alguma coisa em calçado?
R - Sozinho, não. Trabalhava em uma oficina também grande. Uma fábrica, não é?
P - O que o senhor fazia lá?
R - Esse depósito, esse depósito de guerra mesmo.
P - O que o senhor fazia lá em calçado? O senhor fazia toda a montagem?
R - Não, montagem. Depois, há muito tempo que comecei. Mas quando comecei a aprender montagem, viemos para cá. Eu trabalhava à mão, costurava, montagem... Tinha um oficial de montagem, outro oficial de costura e eu fazia a costura e o outro oficial de montagem. Eu trabalhei no bairro muçulmano, que era a maior loja de calçados, na ocasião, lá em Damasco. E mais era um trabalho mais de senhora, depois. E o oficial de montagem era um oficial muito competente. Ele era árabe. O patrão vinha com toda a montagem de Beirute e ele que cortava para ele. Cortava para ele e montava, e eu costurava e acabava, fazia o acabamento.
P - Isso lá, não é?
R - Isso lá. Trabalhamos um bocado de tempo. Depois desse tempo, aí o goyim fecha. Quer dizer, o árabe fecha na sexta-feira e eu não trabalho sábado, aí o patrão que era católico não podia domingo. E aí ele disse: "Vamos, Lázaro, você tem que trabalhar no sábado." "Como posso trabalhar no sábado? Você sabe que eu não posso trabalhar sábado.” “Trabalha, não trabalha, não sei o quê.” Até o próprio patrão, um baixinho, ele vinha só para passear. O pessoal tem um oficial de senhora, outro de criança, outro de homem. Cada um veio numa oficina grande, não só negócio de senhora. Faziam dois pares por dia. Todo dia dois pares. Enquanto a gente acabava de fazer, limpar, tingir, sola e tudo, passava o ferro, o está aumentado. Trabalhei pouco tempo lá e ele aí dispensou. Aí, dispensou. Tive que ir embora. Aí fui trabalhar com um parente meu. Ele tinha uma loja. Esse parente também tem o mesmo nome de um outro parente também, mas foi pra guerra. A irmã dele tem conhecimento na polícia, no Exército, ela tirou de lá. Eles são sócios os dois, os dois chamam-se Adib. Um deles gosta de mim, mas o que é pai da madrasta da minha patroa, esse não gosta de mim. Ele tem um filho, tem dois filhos e cinco meninas. Ele é casado com a tia que é mãe da madrasta da minha patroa. E eu trabalhava lá com ele porque...
P - Isso em Damasco?
R - Em Damasco, tudo em Damasco. Porque aqui não trabalhei a não ser em conserto.
P - Não mexeu mais com isso? Trabalhou só...
R - Trabalhei só para mim, porque eu não tinha mais negócio na rua, tive que trabalhar, não tinha essas casas de brechó. Tinha muito casa de brechó antigamente. Na Rua Regente Feijó e outra rua, na José Mauricio, também tinha. Eles me apresentaram. Essa senhora conhecida minha da mamãe. Ela dizia: “Você está aposentado. Meu marido te dá um dinheiro, você compra material, ferramenta e trabalha em casa. Ele vai apresentar todas essas lojas para você, porque eles compram quase sapato velho, se já tinham conserto, você conserta, você ganha o seu dinheiro, não precisa de ninguém.” Tá certo. Esse negócio não é brincadeira. Agora vai trabalhar em conserto, depois de tanto tempo. Depois ele me deu cinquenta mil réis pra eu comprar ferramentas e comprar material, solas, prego, linha, tudo isso pra eu poder trabalhar. Me apresentou todas as lojas. Toda semana, todo o dia eu ia lá. Um, dois, três, aí eu enchia a saca, mas o trabalho que eles dão é uma porcaria. Tem que botar um salto, tem que botar um só, emenda para ganhar, mas ganhar às minhas custas, mas como precisa, tem que fazer. Fazia uma saca toda, não saía dez mil réis. Ah! Chateado. Mas precisava, trabalhava. Trabalhei uma porção de tempo nisso. Depois muitos deles eu perdi. Teve um que entendia o ofício e queria o serviço perfeito. Fazia uma meia sola, fazia salto, então era só para ele. Não dava mais conta, a não ser para ele. Então toda semana eram duas sacas, fazia salto e meia sola. Só costura que eu não… E tudo costurado e passado a ferro, com cera e tudo, para ficar brilhando, parecer novo.
P - Isso foi antes de casado?
R - Não, depois de casado.
P - Não, você sabe...
Filha - E eu me lembro. Ele tinha o cantinho dele lá com toda...
R - Até de madrugada, sexta-feira à noite ficava até de madrugada, porque sábado eles fechavam ao meio dia. Tinha que correr, levar, correr e apanhar o dinheiro para ir depois apanhar o material para a semana seguinte.
P - Quer dizer que aí o sábado, o shabat...
R - Não tem shabat. Naquela época não se via nem shabat, nem certas festas.
Filha - Só sobrevivência, só sobrevivência nessa época.
R - Eu trabalhei um bocado de tempo nesse negócio. Eu lembro até… Nem me lembro por quantos anos que eu trabalhei nisso.
P - Uns dez anos, mais ou menos?
R - Uma vez, sábado, queria apanhar sapato e correr, e o bonde estava passando, apanhei o bonde andando e acabei caindo, eu e os sacos.
P - Machucou?
R - Machuquei um pouquinho. Mas por pouco não perdi a perna. Mas o fato é ir mais adiante, e daí eu saí daqui. Saiu de bonde, eu estava descendo a ladeira. Em lugar de parar pelo menos um pouquinho, correu e eu caí. Não consegui pegar, não.
P - Ia pegar...Recolher