Me chamo Jonas Fernandes da Silva. Sou de Angico dos Dias (BA). Tenho 71 anos, pratico caminhada todos os dias e vou contar como tudo começou.
Era eu ou a onça pintada. Um dos dois não sairia vivo dessa peleja. Eu tinha apenas 12 anos quando fiquei frente a frente com o felino durante uma caça...Continuar leitura
Me chamo Jonas Fernandes da Silva. Sou de Angico dos Dias (BA). Tenho 71 anos, pratico caminhada todos os dias e vou contar como tudo começou.
Era eu ou a onça pintada. Um dos dois não sairia vivo dessa peleja. Eu tinha apenas 12 anos quando fiquei frente a frente com o felino durante uma caçada. Não era por diversão que eu estava ali. No povoado de Angico dos Dias (BA) dos anos 1960, os períodos de escassez de alimento forçavam homens e meninos a passar dias no mato na captura de tatus-peba, catitus, cotias, tamanduás e outros animais da caatinga para alimentar a família. Era com esse objetivo que eu e mais dois amigos saimos de casa no dia que topamos com a fera. A ação foi rápida. Sem chance de fugir, nós armamos a estratégia. Eu sabia o momento certo de dar o golpe. Quando a onça está se aprumando para atacar, é a hora de cortar. Se perder o tempo, vai para a boca do bicho. Assim foi feito. Seis golpes de facão concluíram a tarefa. Teve mulher que chorou de alegria quando chegamos com a caça para todos.
Naquela época, eu ainda não sabia, mas aquela não seria a pior batalha que eu enfrentaria na vida. Minha saga maior começou quando meu pai foi mordido por uma jararaca e, convalescente na cama, não tinha mais condições de garantir o sustento da família. Filho mais velho de 12 irmãos, ainda menino assumi o posto de pai. Para garantir mais recursos, eu enfrentava 12 horas de caminhada, das três da manhã às três da tarde, até o município de Campo Alegre de Lourdes. Trabalhava na roça e fazia bicos para enviar, semanalmente, o dinheiro para minha mãe. Quando essa tarefa já não dava conta, vendi um jumento e uma porca e parti em um pau de arara para outras terras. Passei por Brasília e Minas Gerais, onde trabalhei pesado na extração de minérios. Ficava com o dedo grosso de tanto bater peneira.
A notícia de que as coisas estavam melhorando em Angico dos Dias fez com que eu retornasse. Eu estava com 30 anos de idade. De volta ao povoado, tratei de construir minha vida. Casei dois anos depois e com a Pequena, apelido de Maria Ferreira da Silva, tive seis filhos - ainda que na minha conta sejam 12, contabilizando os netos, já que eles me consideram como um pai. Criei todos com o trabalho na agricultura.
Mesmo com as felicidades que vieram, os anos mais difíceis pelos quais passei criaram uma espécie de carapaça em mim. Me tornei uma pessoa fechada, que não conversava bem com qualquer pessoa, nem com meu filhos. Nessa questão, eu não era gente que prestava, não. Hoje, eu mudei 100% e sei exatamente quando a transformação começou: 2011.
Nesse ano, fui convidado a participar de uma reunião com a comunidade, promovida pelo Instituto Lina Galvani. Gostei do clima de amizade que tinha na roda de conversa, do contato entre as pessoas e da animação de todos ao falar sobre o que poderia ser feito para melhorar o povoado. Em qualquer reunião eu volto, podem me chamar, eu decretei nesse dia.
Não só cumpri a promessa como me tornei uma das pessoas mais participativas da Rede Social de Angico, Peixe e Região, criada pelos moradores. Me envolvi no grupo da Horta Esperança, um projeto de cultivo de orgânicos. Aprendi com agrônomos e outros especialistas o manejo de uma plantação sem agrotóxicos e também ensinei muito, com base na minha experiência na lida com feijão, milho e, principalmente, mandioca. Tenho prazer de plantar e ver ela verdinha mesmo na seca. Muita gente não sabe, mas a chuva da mandioca é a enxada: tem que mexer a terra para ela não morrer.
Com o tempo, fui perdendo aquela carapaça fechada. Passei a falar nas reuniões, conversar com as pessoas, estar aberto para ouvi-las, interagir com a família e me colocar à disposição de ajudar quem vier pedir meu auxílio. Tornei-me, inclusive, um dos porta-vozes da Rede Social. Quando decidiram fazer um mutirão para construir no povoado a Praça São José, em 2013, eu encabecei a caminhada que bateu de porta em porta, pedindo doações e convidando os moradores para participar. A prosa deve ter sido boa, porque mais de 200 pessoas atenderam ao chamado.
Também foi marcante para mim a viagem que fiz a São Paulo, em 2017, para representar a Rede Social no evento Dialogando – Governança para o Desenvolvimento Territorial, realizado pelo Instituto Lina Galvani. Não apenas porque realizei o sonho de viajar de avião e ver as nuvens soltas como fumaça, mas também pela possibilidade de falar perante mais de 80 representantes de diversos setores relacionados ao desenvolvimento comunitário no Brasil. A Rede Social me deu uma força que nem eu sabia que tinha. Posso dizer que nasci outra vez quando entrei na Rede.
Hoje, o único momento que não tem conversa comigo é durante minhas caminhadas, realizadas quatro dias por semana, religiosamente. Tem que ser calado, soltando o fôlego, sem pensar em outro assunto. A técnica própria eu desenvolvi participando do projeto Diversão Não Tem Idade, da Rede Social, voltado para a saúde e bem-estar do idoso. O grupo se reúne periodicamente para tirar a pressão, fazer alongamentos e partir para as caminhadas pelas ruas de Angico dos Dias e arredores. Eu insisto com todos que não pode ter conversa no percurso, mas no meio de uma turma animada formada quase só por mulheres esse vai ser um pedido difícil de atender.Recolher