Santa Cruz do Rio Pardo - Todo lugar tem uma história para contar
Depoente: Wilson Tito Soares Júnior
Entrevistador: Stefânia Maria Lorenzetti
18/10/18
Santa Cruz do Rio Pardo - HV 08
P/1 - Juninho, conta para mim um pouco da sua história. Sua infância, quem foi você lá na sua infância, com...Continuar leitura
Santa Cruz do Rio Pardo - Todo lugar tem uma história para contar
Depoente: Wilson Tito Soares Júnior
Entrevistador: Stefânia Maria Lorenzetti
18/10/18
Santa Cruz do Rio Pardo - HV 08
P/1 - Juninho, conta para mim um pouco da sua história. Sua infância, quem foi você lá na sua infância, como era, o que você fazia.
R - Eu sempre fui sozinho. Não tive meu pai nem minha mãe porque se separaram por motivos pessoais. Fui criado desde uns tempos de vida pela minha avó e pelo meu avô. Eu nasci prematuro de seis para sete meses, quase morri. Tive que receber vários cuidados especiais, tomar remédios especiais para não acabar morto. Então meu vô e minha vó praticamente são meus pais de criação, mas sempre tive a presença do meu pai e da minha mãe. E minha infância, como eu disse, fui sempre sozinho. No começo eu brincava sozinho, até entrar na creche. Participei da creche do Frei Chico, Centro Social São José, e lá comecei a fazer várias amizades. Lá nós brincávamos, na época da páscoa ganhávamos ovo de páscoa. No dia das crianças tínhamos um almoço especial que era lá na BB, onde tinha frango, tinha brincadeiras. E tínhamos os nossos padrinhos da Itália, que sempre ajudavam o Centro Social. Também tinha a época do natal, que nós ganhávamos sacola de natal com vários presentes. Então foi uma fase muito importante para mim o Centro Social. Se hoje eu sou o que eu sou também tem um pouco do Centro Social em mim, porque ali é um lugar que ajuda várias pessoas, - recebem doações, essas coisas - e ajudava muitas crianças.
P/1 - Quando você ganhava, por exemplo, ovo de páscoa, ou quando tinha esses almoços do dia das crianças, como era para você?
R - Era uma alegria. A gente que é humilde nem sempre tem o que nós queremos, porque os pais não têm condição de dá o que a gente precisa. Toda criança quer ter sempre o melhor brinquedo, tudo que é melhor, mas nem sempre os pais podem dar por falta de dinheiro e a humildade que tem. Tem dificuldade. Você sabe como é o Brasil hoje em dia, e naquela época também. Sempre quem é humilde não vai ter o dinheiro para gastar com a criança, mas sempre tive amor, carinho, que é o que vale mais que qualquer brinquedo.
P/1 - Desses almoços, você lembra alguma coisa de especial que te marcou, ou lá na creche?
R - Teve uma vez que a gente esestava almoçando, e lá na BB tem as piscinas, daí os moleques saíram escondidos e foram pular dentro da piscina. E nós almoçando. Tinha uns moleques que eram sócios do clube, chamaram nós para jogar bola no campinho de areia. Foi o que mais me marcou, que eu me lembre.
P/1 - Com quantos anos você está, Juninho?
R - Estou com vinte um, apesar de não parecer, mas vinte um.
P/1 - Tem alguma coisa que você lembra de onde você morava, como era sua casa, como era seu quarto?
R - Meu quarto... onde eu durmo era o quarto do meu tio, da minha tia e da minha mãe. Quando eu nasci eu ficava no quarto do meu vô e da minha vó, que me criaram no berço. E hoje em dia meu quarto... não sei explicar, porque eu nem fico no meu quarto. Como eu gosto de assistir televisão, eu fico dormindo na sala. Mas eu tenho meu quarto lá jogado, sozinho.
P/1 - E na sua infância, o que você gosestava de fazer?
R - Jogar bola. Meu sonho era ser jogador de futebol. Eu e meus colegas. Nós saíamos da creche, chegávamos em casa, os moleques me chamavam para jogar bola. Começávamos a jogar a partir de umas cinco horas da tarde, e parávamos onze horas, meia-noite. Nós brincávamos de esconde-esconde, polícia e ladrão, várias brincadeiras. Aí reunia vários moleques. Às vezes atravessávamos a cidade para jogar bola do outro lado. Aí íamos no meio da rua zoando, brincando, petecando. Nosso sonho era ser jogador de futebol para dar uma vida melhor para família. Só que infelizmente acabou não acontecendo. Tomei outro rumo na vida.
P/1 - Teve algum momento, enquanto você jogava futebol nessa época, que você lembra? Uma jogada, uma situação?
R - Lembro que eu joguei no São Caetano, que era aqui em Santa Cruz, eu tinha acho que nove ou dez anos. Foi o lance que me marcou, peguei da bola na entrada da área do meu time e saí driblando todo mundo. Só que invés de ter chutado para o gol eu passei a bola, e o moleque esestava impedido. Fez o gol, mas não valeu. Aí eu fiquei brabo.
P/1 - E depois, à medida que você foi crescendo, você foi ficando mais velho, o que você lembra? Da sua adolescência, como foi essa fase de adolescente?
R - Teve os momentos ruins e momentos bons. Vamos ver. Momentos ruins foi tipo... minha cabeça esestava meio fora de si, eu pensei muitas vezes em entrar para o mundão, sabe? Por causa de várias fitas que acontecem.
P/1 - Você passou por dificuldades?
R - Não dificuldade financeira de não ter o que eu queria, porque meu vô e minha vó sempre proporcionaram o que eu queria, mas não era sempre. É que tem aquela fase de adolescência que você sabe, ainda está se descobrindo, você não sabe ainda o que você quer da sua vida. Daí recebi propostas de entrar para o mundão. Pessoas chegaram a mim e falaram: “aí mano, guarda o bagulho para mim que você vai ganhar um tanto, só para você guardar”. Só que como eu pensava no meu vô e na minha vó, eu nunca aceitei. E meu pai sempre falou para eu não entrar nesse mundo, porque se ele soubesse que eu entrei ele ia brigar comigo. Eu também penso, como eu falei, no meu vô e na minha vó, porque eles são tudo para mim. Mas mesmo assim as pessoas ainda me julgavam, e me julga até hoje. Por causa de estilo e tudo, falam: “ele deve fumar maconha, é do tráfico, é não sei o que”. Onde minha mãe trabalha hoje em dia, e trabalhava, muitos amigos dela falavam, eu ficava na pista de skate com os moleques. Falavam que eu estava usando droga, chegaram a falar que eu estava traficando. Daí eu falei: “mãe, mas como que eu trafico se eu não tenho dinheiro, porque se eu traficasse”...
P/1 - Você chegou a experimentar algum tipo de...
R - Já. Já, mas...
P/1 - Não gostou? Não era...
R - Não era o que eu queria. Experimentei porque na adolescência você experimenta várias coisas. Experimentei, falei: “não, isso aqui não é para minha vida, não. Não quero”. Porque se você se viciar é dinheiro jogado fora. Então o que você pode gastar, comer um lanche ou comprar o que você quer, você vai lá vender em troco de droga, que vai ser segundos, minutos de prazer. E depois você vai ficar à vontade de novo, vai querer fazer várias fitas. Eu não... não via.
P/1 - Você falou para mim que você ficava ali na pista de skate, como que era? O que era a pista de skate para você? O que você fazia lá?
R - Eu andei de skate dos nove até os dez, só que acabei, como eu disse, acabei indo para outro rumo que era jogar bola. Mas sempre gostei do movimento do hip-hop, de andar de skate, só que eu não me entreguei de cabeça para andar de skate. Mas eu ficava ali com os moleques conversando, tenho uns amigos que andam de skate, tudo. Ficava ali, apenas conversando, andando de skate, normal. Só que você sabe, se você não é do padrão que a sociedade quer, você sempre vai ser tarjado de vagabundo, usuário de droga. Se você anda com uma peita larga e bermuda: “ah, não quer nada da vida, só quer saber de bagunçar tudo”. E não é, sabe, nós só queremos ser o que nós somos, mas isso não significa que somos vagabundos, que nós não queremos nada da vida. Muitos moleques que estão ali na pista de skate estão atrás de serviço. Mas o que falta é oportunidade, porque querendo ou não, aqui em Santa Cruz o povo tem mente fechada. Eles não sabem distinguir o que é o certo e o que é errado. Não querendo julgar que eles não podem ter esse pensamento, porque eles foram criados desse jeito, mas eu queria que eles abrissem a mente deles, entendessem que tatuagem, piercing, isso não interfere no teu desempenho no serviço. O que conta é você, não seu estilo. Mas eles acham que estilo significa... sei lá.
P/1 - Você teve irmãos? Você teve irmãos?
R - Por parte de pai tenho dez.
P/1 - E você convive com algum deles? Qual sua relação com eles?
R - Por parte de pai tem alguns irmãos que moram ali na vila, de vez em quando eu vejo. E agora que meu pai saiu da cadeia no dia quinze, vamos começar a conviver mais. Só que como estou trabalhando agora, de domingo praticamente eu vou só depois do almoço, mas a gente vai conviver. Meu pai sempre nos deu atenção. Mesmo ele ter escolhido um caminho errado por motivos pessoais que a gente não sabe. Se você entra no mundão é porque não teve oportunidade de serviço, de estudo, mas você quer dar uma assistência. Tipo, você é pai de família. Você vê tua mulher, tua mãe, teu filho passando fome. Você vai atrás de serviço. A pessoa não te dá oportunidade por falta de estudo, nem quer saber porque você está atrás de serviço. “Ah, fica aí uns dias, tenta, que sabe você se acostume e não consegue trabalhar?”. Não, mas como eu disse, a sociedade, tanto no Brasil quanto em Santa Cruz, em qualquer lugar, te julga muito de onde você vem. Daí...
P/1 - Você tem alguma história que aconteceu com seu amigo, com você mesmo, que você ficou sabendo?
R - Tem.
P/1 - Conta então.
R - Eu e meus colegas fomos atrás de serviço. Aí o rapaz falou que ia chamar meu colega porque a mãe dele estava com as contas atrasadas, mas o cara acabou não chamando ele para trabalhar. E as contas começaram a apertar. Aí o que ele fez? Acabou indo para o caminho errado e acabou indo preso. Só que aí ele tirou os tempos dele e hoje em dia ele conseguiu um serviço. Mas isso foi por falta de oportunidades, porque uma pessoa falar que vai chamar você porque você falou que está precisando, você está ali disposto a aprender, e a pessoa fala e não chama. Vamos supor, eu sou pai de família. Eu vejo meu filho passando fome. Eu vou atrás de serviço, ninguém me dá oportunidade. E eu não vou deixar meu filho, minha mãe, meus parentes passar fome. Então eu acabo indo para o caminho errado. Digamos, é o caminho errado. Mas é o caminho errado para trazer o bem para sua família. Porque você não vai querer, ninguém quer ver tua mãe, teu pai passando fome, e seus filhos. Por isso que muitas vezes a pessoa acha que quem está no tráfico é porque quer. Não é porque quer. É porque não teve oportunidade. Se tivesse uma oportunidade de estudo, qualquer coisa, e as pessoas não julgassem de onde você vem, às vezes a pessoa não estaria naquele caminho errado.
P/1 - Juninho, e a sua mãe? Ela tem filhos?
R - Tem. Tem um moleque e uma menina. Mas o único que mora com ela é meu irmão do meio.
P/1 - E você se relaciona bem com sua mãe?
R - No passado, não. Hoje em dia até que um pouco, mas como eu não fui muito criado com ela, quando a gente estava junto a gente nunca se deu bem.
R - Não, ela mora lá para as bandas do centro, lá perto do Hotel San Juan.
P/1 - O Juninho, quando que você começou a frequentar aqui o CRAS? Quantos anos você tinha, você lembra?
R - Eu tinha acho que dezessete ou dezoito anos. Acho que foi ano retrasado. Não, eu já vinha uma época, daí eu parei para jogar bola. Eu estava jogando bola aqui no campo do Vinte, que era o treino da Esportiva. Aí estava tendo grafite aqui na parede de baixo. Quando era a Aline ainda. A gente ficava ali vendo os moleques grafitarem. Daí falaram: “vem aqui para você almoçar”. Eu fui com os moleques. Depois disso começamos a frequentar.
P/1 - E como era para você frequenta aqui.
R - Era da hora porque depois do CRAS, como teve o grafite, teve o projeto Fala Vila, teve a oficina de vídeo do Crodel, eu me interessei porque era o que tinha para minha faculdade, que é publicidade e propaganda. Então tinha a ver oficina de vídeo. Me interessei mais ainda. Daí o Tiago veio com a oficina, junto com o Crodel trouxe a ideia de fazer rap, e nisso surgiu o rap do Fala Vila, que nós nos apresentamos no cinema, deu acho que trezentas e poucas pessoas. A gente escreveu nossa própria letra, o (inint) [00:13:33] ajudou a gente. E foi a gente, como a (Antiela) [00:13:38] falou, a vila parou a cidade.
P/1 - A letra, a música?
R - É, fizemos nossa própria letra.
P/1 - Pode...
R - Nossa, é que eu não tenho de... “Na comunidade, vivemos várias realidades. Que não são ditas pela nossa sociedade. A realidade é outra. Quando você chega no topo da fama, vários te respeita. Mas até lá, várias fitas, você nem imagina”... nossa, agora não lembro. O resto eu não lembro.
P/1 - E como que foi lá no cinema? Como foi o dia lá?
R - A gente passou o dia ensaiando lá. Nervosismo, né. Porque a gente nunca tinha cantado, a gente tinha escrito pela primeira vez, a gente não sabia como ia ser. Aí a gente passou ensaiando, o Crodel fez o vídeo, o clipe do Fala Vila que foi apresentado no cinema. Teve a escola de samba, e a gente ficou lá no fundão, no escuro. Tudo apagado. E ninguém esperava que a gente ia sair lá do fundão cantando. Aí descemos as escadas no escuro e subimos no palco. A hora que subimos no palco foi louco, todo mundo gritou. Teve o desfile também, também desfilei. Negócio do Fala Vila.
P/1 - E você lá no palco, como você se sentiu?
R - Nossa, eu fiquei nervoso. Mas foi legal. Ainda bem que as luzes estavam apagadas, só aparecia nós lá. Mas deu nervosismo. Mas foi tranquilo, foi bonito, os moleques desempenharam bem também. Deu bom. Foi bem massa. Tem foto, tem tudo.
P/1 - Juninho, quanto tempo seu pai ficou preso?
R - Quando eu era criança ele tirou um tempo, que eu não lembro. Acho que foi um ano. Quando eu era criancinha. Daí eu ia visitar ele na cadeia. Quando ele saiu minha mãe se separou dele, e agora esses tempos ele tinha pegado acho que nove anos. Aí caiu para cinco e ele saiu dia quinze agora. Foi dia quinze, acho que foi segunda.
P/1 - Ele foi preso por conta do quê?
R - Tráfico.
P/1 - E você acredita que ele vá (melhorar) [00:15:52]?
R - Ah, pelas saidinhas dele, o que ele conta para mim, a cabeça dele está bem diferente. Ele se converteu a Deus. Quando ele tinha saidinha eu ia conversar com ele, ele passava bastante passagem da Bíblia para mim, falava que isso daí não era vida, que ele não queria mais isso para ele, que ele quer seguir a vida dele honestamente, trabalhando para construir o que ele perdeu. E como eu disse, a gente acaba entrando no caminho não por escolha. A gente escolhe entrar nisso, mas é por uma consequência que aconteceu para gente escolher isso. E tinha meus irmãos tudo, meu pai não ia deixar meus irmãos passar fome, a mulher dele passar fome. Então ele teve que recorrer a isso.
P/1 - Você é o mais velho?
R - Por parte de pai eu sou o quarto. Por parte de mãe eu sou o mais velho.
P/1 - Juninho, aqui do CRAS, tem alguma história que você lembra que aconteceu com os meninos? Você sabe como funciona aqui, eles costumam aprontar, agora que você está do lado de cá vai ver como é que é. Mas teve alguma história que aconteceu aqui dentro e você gosta de lembrar, que te marcou?
R - Ah, o que me marcou foi quando a gente começou a escrever a letra. Tipo, (inint) [00:17:07], o (inint) [00:17:08] ajudavam ele a escrever, e toda vez que escrevia ele perdia a letra dele. O (inint) [00:17:13] ajudou ele a escrever umas três letras, e as três letras ele perdeu, aí o Cordel brincava com ele: “você tem que tatua a letra no braço para você não esquecer, porque você vive perdendo tua letra”.
P/1 - E falando de tatuagem, eu sei que você tem tatuagem. Você quer falar delas, o que elas significam para você?
R - Cada uma tem um significado. A da minha costela é um pergaminho, eu vou escrever a passagem da Bíblia que é o salmo noventa e um. É homenagem ao meu vô e minha vó. Por criação. Na panturrilha eu tenho uma chicana grafitando, que é porque eu curto rap e movimento do hip-hop. A caveira mexicana significa vida após a morte, que qualquer um que morrer vai virar caveira, então a gente não pode julgar qualquer pessoa porque todo mundo vai para o mesmo caminho, vai virar osso. A da cruz é porque eu não tenho religião, eu não acredito em religião, acredito apenas na fé, que é Deus. E no peito eu tenho “thug life”, que além de ser uma homenagem ao 2Pac, um rapper americano, o significado também é que, independentemente de onde eu venho, da humildade, nunca desistirei dos meus sonhos, sempre lutar, independente das dificuldades.
P/1 - Legal. O que você faz hoje, Juninho?
R - Eu ajudo o Cordel e o Jonas a dar aula de vídeo filmagem no CRAS e trabalho num mercado. Meio-período. E escrevo rap também, poesia.
P/1 - Como foi para você arrumar esse emprego?
R - Eu só consegui entrar lá porque minha mãe ajudou. Minha mãe trabalha lá. Como falei, muito difícil arrumar serviço aqui em Santa Cruz, porque as pessoas te julgam demais pelo estilo. Apesar de eu ir sem piercing, sem alargador, sem nada, chegava, entregava o currículo na mão e eu falava para o meu colega: “acho que na hora que a gente entrega esse currículo eles pegam, amassam e jogam fora”. Porque desde o começo do ano e fim do ano passado entregando, e ninguém ligava para gente. Eu falava para ele: “os caras devem pegar nosso currículo e jogar fora, porque os caras não tão afim nem de dar oportunidade para nós”. E eu fiz curso no SENAI de controle de qualidade. Todo mundo falava: “esse curso é bom, vai arrumar serviço mais fácil”. Mas eu terminei no fim do ano passado e mesmo assim ainda não consegui serviço. Eu consegui entrar no mercado graças à minha mãe.
P/1 - Quando você entrou que sensação você teve?
R - Eu tenho vontade de fazer um estúdio de rap. Então seria a oportunidade para mim começar meu estúdio de rap, porque eu quero viver da música e da arte, e também para eu tirar minha carta, porque ficar andando a pé a vida toda não dá. Eu também tenho vontade de viajar. Morar onde tem praia, natureza. Porque a melhor sensação que tem é viver num lugar que você se sente à vontade. Você pode ser você mesmo. Não tem que ser do padrão da sociedade. Não que seja errado, mas é uma coisa que você tem a liberdade de ser quem você é, não fingir ser o que você não é. Porque muita gente finge o que não é por medo do julgamento das pessoas. E eu acho errado, você tem que ser o que você é, não fingir ser o que você não é.
P/1 - Você já foi para praia algumas vezes?
R - Não, nunca fui para praia, até que domingo agora eu e dois colegas estávamos conversando de fazer um grupo de rap de novo. E nós estava tirando uma brisa, conversando assim: “nossa mano, imagina arrumar um Kombinha”, falamos de grafitar ela, pintar ela da cor do reggae, colocar uns etezinhos bem psicodélicos e viajar, ir para praia, curtir, viajar pelo Brasil. Viver mesmo a vida, ter experiência, porque você ficando numa cidade pequena você não vai saber o que é viver. Você tem que sair para fora. Que nem o Cordel falou muitas vezes para mim: “você tem que sair da cidade, para saber o que é viver, morar sozinho, essas coisas, porque daí sim você vai saber o que é viver de verdade. Porque enquanto você tiver aqui, mesmo morando sozinho aqui, você não vai saber o que é viver de verdade.
P/1 - Como que é, você falou de viver aqui em Santa Cruz. Como que é o dia a dia para vocês jovens, porque é tão, como seu amigo falou, limitado?
R - Porque aqui não tem role, sabe. Não tem o que você fazer aqui de diferente, a não ser ficar na pista, ou ficar na praça conversando com os amigos, jogando basquete, jogando futebol. Chega fim de semana o que você tem para fazer? Não tem nada. A não ser os bailinhos de funk, essas coisas, mas eu não curto funk - nada contra. Mas eu não me sinto bem naquele lugar, porque eu curto mais rap, reggae, rock. Então não me sinto bem nos lugares assim. Mas não que se eu estiver com meus colegas e na festa começar a tocar funk eu não vou ouvir, eu vou ouvir, mas não é o que eu quero para ter no meu celular. A não ser o funk das antigas, que passa a visão de vida. Visão de vida é para você parar e pensar, ver o que está acontecendo, se você quer isso para sua vida.
P/1 - Às vezes rola algumas coisas de rap aqui.
R - Rola, teve o Clube da Luta, que a gente cantou também.
P/1 - Como é que foi?
R - Foi da hora, porque nós não esperávamos o número de pessoas que ia dar, deu mais de cento e poucas pessoas, acho. Cem, cento e pouquinhas pessoas. Porque foi o primeiro, tirando o Fala Vila que teve no cinema, foi o segundo evento de rap que teve. Teve batalha de freestyle, teve apresentação de rap de vários moleques. Eu mesmo nem sabia que tinha rap em Santa Cruz. Só tinha visto uma vez um clipe de rap, mas nem achei que era de Santa Cruz, que é o (inint) [00:22:59] que participava do CRAS aqui que deu oficina de rap fez; o FM; e o Ganja. Os três fazem rap também. (inint) [00:23:09] está em Curitiba. Mas agora tem os moleques do Good Guys Gang, que é o (Nelsong) [00:23:15], que também fazia parte do projeto Fala Vila, acabou indo com eles, o FM, a Bia, o Ganja e o Breno (inint) [00:23:25]. O Breno também nos ajudou a captar o som para o Fala Vila também. E estamos aí, no movimento. Agora está eu, o Henrique e o Caíque a fim de fazer rap, e tem o Daniel. E tem vários moleques aqui que faz rap, mas falta oportunidade.
P/1 - Como é o movimento hip-hop para você?
R - Para mim?
P/1 - O que vocês fazem? Como é? Como você sente?
R - Eu sinto prazer, porque é expressão de arte. Você pode ser o que você é, pode falar o que você quer sem ter medo de se expressar. E além da dança, do grafite, do rap, tudo isso aglomera em uma coisa só. Você não precisa fingir ser uma pessoa. Você pode expressar seu pensamento através de uma letra, através de uma dança. A gente, como eu estava pensando em casa, a gente já nasce com a arte. Porque desde o momento que a gente aprende a falar, já estamos expressando sentimentos. Então isso para mim já é uma arte. Porque como falo, tem gente que é surdo e muda. Eles conversam com a gente através de sinais. E isso é uma arte. Nem todas as pessoas vão conseguir fazer. E as palavras são tudo.
P/1 - Tem alguma letra que você escreveu que você gostaria de ler?
R - Tenho várias, mas tem uma aqui que eu apresentei na biblioteca, nós fazíamos aula de literatura. Posso ler?
P/1 - Pode ler.
R - “A mente está a milhão, como um revolver carregado com munição. Haja o que houver, preste atenção, para absorver e aprender, sem criticar ou proceder. Mais um jovem assassinado de bala perdida. Mais um cadáver estirado no chão. Como sempre jornais falam que foi uma troca de tiros e bala perdida. No lado do jovem foram armas apreendidas. Claro que foi, pois foram armas implantadas na cena. Para alguns, cena de filme na selva de pedra. Cada um por si para sobreviver. Isso foi o que eu aprendi. Sua verdadeira arma era um livro para ler. Num bairro nobre, uma madame, com seu relógio de brilhante. Lá na África se mata pelo diamante que está em seu relógio de brilhante. Mais um morto pelo diamante de sangue. Ela não se importa com o sangue derramado. Desfila mostrando seu gingado, e todos se levantam aplaudindo, e o menor morto lá. Ninguém mais vai se lembrar. Você mesmo que está ouvindo se esqueceu. As evidências desapareceram. E o cana nunca foi julgado. É fácil esquecer um pobre morto. Mais um jovem morto inocente. Igual fizeram com índios e negros, meus descendentes. Vou colocar a poesia em cima do instrumental. Faço música e poesia marginal. Portanto valoriza nossa arte não gastando dinheiro para viajar para Marte. Me dê a liberdade de se expressar. Levante a cabeça, abra a mente e cresça. Chacina sem solução. Pessoas mortas no chão. Filho de uma mãe no caixão. Isso é audiência para televisão. Dói e parte meu coração. Brasil perdido em corrupção. Político se gabando pela ostentação. Eu só quero que nenhum moleque ou mina morra de fome e desnutrição”.
P/1 - O Juninho, como é para você viver aqui na vila?
R - Como eu falo, as pessoas acham que quem mora na vila ou em bairro diferente do padrão que ele espera... é como onde trabalho. O moleque chegou a mim e perguntou: “mano, como que é morar lá na vila?”. Eu falei: “é normal, é igual nós aqui, tem pessoas normais, pessoas boas”. Aí ele falou: “mas lá ninguém anda com arma, os traficantes, essas coisas?”.
Eu falei: “não, não é como você vê em televisão. Aquilo lá é o que a televisão mostra, mas aqui em Santa Cruz não é assim as coisas. Lá ninguém anda com arma, nada, lá tem pessoas normais, igual a gente, pessoas do bem, que tão afim de trabalhar e sustentar tua família. Só que as pessoas rotulam demais. Você mora na Divineia, você mora em um bairro menos desfavorecido do que o padrão normal. As pessoas acham que lá só tem bandido, lá só tem traficante. E não é assim. Se a pessoa não entrar ali para ver como é, ela vem ficar com aquilo que a televisão passar para ela. Que lá todo mundo é bandido, se você entrar lá você vai ser assaltado, e não é. Ali dentro todo mundo se ajuda quando é preciso. Aqui vocês mesmo veem, a comunidade, o Jarbas mesmo, a assistência que ele dá, o Cidinho, assistência que dá, o café da manhã que tem de domingo para as crianças. Muitas pessoas não sabem disso, que tem na vila. As festas juninas que a gente filmou, que tem lá. Tem o almoço do dias das crianças. As pessoas não sabem disso porque não tem interesse de querer entrar na vila, saber como é, porque tem medo de ser assaltado, e não é assim. Que nem uma vez, um colega do meu primo veio, - não lembro de que cidade que é - e queria conhecer a vila. O moleque - ele estava com tênis da Nike - falou: “acho que vou tirar meu tênis porque senão os caras vão me roubar”. Meu primo falou: “mano, não é assim as coisas, não”. Ele achava que os caras andavam de fuzil na mão em cima da moto, sem camiseta, igual o cara vê na televisão. É o que passa na mente de todo mundo quando você fala que mora numa vila, numa comunidade. Todo mundo acha que todos são bandido, que todos são traficantes, que nem eu disse, não é assim as coisas. A gente tem que, antes de julgar uma pessoa, saber porque ela mora lá, e saber como é o dia a dia dela lá.
P/1 - Como é o dia a dia das pessoas, descreve um pouquinho.
R - É normal, as crianças jogam bola, soltam pipa; alguns trabalham, outros a mãe cria, leva para creche. É uma correria normal igual à de todo mundo. Não tem diferença de uma pessoa com padrão mais elevado. Porque uma mãe que tem dinheiro, o que ela faz, ela levanta cedo, mesma coisa, para trabalhar, para levar o filho na creche. E uma mãe, digamos assim, humilde igual a gente é, é a mesma coisa, acorda cedo, leva o filho na creche, vai trabalhar, volta cinco, seis horas da tarde, dependendo do serviço. Chega em casa, faz comida para os filhos. É normal, não tem diferença a vida de uma pessoa de alto escalão e de menos dinheiro. É a mesma coisa, a rotina. Só muda o valor que você recebe no serviço. Mas tirando isso é tudo normal.
P/1 - Você falou da arte, foi legal, foi bonito. Alguém ensinou coisas para você, você se lembra de alguém falando, fora ou dentro da escola, que te levou a sentir a arte assim?
R - Meu tio sempre curtia rap. Então sempre fui criado sobre o rap. Meu tio assistia o programa que passava na Cultura, o Manos e Minas. E eu ficava assistindo com ele lá, e era da hora. Faz parte desde pequeno. Música, qualquer lugar que você for tem música. Então você já convive com isso. Alguns querem elevar mais, conhecer mais e fazer parte, outros apenas querem ouvir por ouvir. Mas foi graças ao meu tio que ouvi rap. Racionais, referência, Trilha Sonora do Gueto, RZO, é umas referências do rap das antigas. Mas também têm os caras das atualidades, Sant, Froid, Marechal, BK, Djonga, são pessoas referência para escrita no rap. Muitos outros MCs também. E também tem as minas que faz rap, que também da ganhando a parte delas. Como no Instagram eu sigo as meninas do Slam das Mina, que é de São Paulo, acho da hora o movimento deles, que é onde as minas tem oportunidade de se apresentar. Um movimento feito só pelas minas mesmo. E é foda isso daí. Porque você vê, no Brasil a arte não é tão valorizada igual lá fora. Porque como eu falei, se você faz arte você é tarjado de vagabundo, porque você não quer se rotular ao que a sociedade quer. Você tem que andar de terninho, você tem que trabalhar, se tornar um robô do sistema, para você trazer dinheiro para eles. Enquanto isso nós que somos menos favorecidos não ganhamos um salário justo. Você pode ver. O salário mínimo. Novecentos e cinquenta e quatro. Quem que vive com isso? Não vive com isso. Mano, você vai fazer uma compra. Duzentos contos. Você vai comprar o que, dois sacos de arroz, um de feijão, de café? E acabou. Imagina uma mãe que paga aluguel, tem criança para sustentar. Água e força. Que mãe que vai viver com novecentos e cinquenta e quatro reais? Eu penso comigo que pelo menos o salário mínimo, mínimo mesmo que um brasileiro deveria ter era pelo menos mil e quinhentos contos. E olha lá ainda. Não é só porque você não tem estudo que você não merece um salário digno. Porque quem não teve o estudo, é o que vai ter que trabalhar mais ainda para poder conseguir um salário digno. E mesmo assim não consegue. É que nem uma letra que eu tenho lá: “Brasil é unido pelo futebol e carnaval. Mas desunido pela igualdade social. O povo é desrespeitado, não é bem assalariado. Tendo que lutar a cada dia para ter um prato de comida. Crê que ainda vai mudar. Ninguém vai precisar se humilhar. Brasileiro é guerreiro, independente dificuldade. Com meu rap mostro a desigualdade e a realidade. Vivida por muitas famílias, diferente dos que tão lá em Brasília. Enchendo o bolso com nosso suor. Isso aumenta minha dor. Os de gravata sentados assistindo. Em sua cadeira como telespectador. Isso acontece pois você está permitindo. Vamos parar de ser espectador? Achar que o Brasil ainda vai mudar se você não sair para levantar e lutar”. Porque tipo, não é julgando o brasileiro, sabe. Que nem eu falo no começo da letra, “Brasil é unido pelo futebol e carnaval”. Você pode ver, agora nós que estamos na época de eleição. Está tendo esse conflito aí que eu acho errado. Que a gente não tem que brigar, matar, que nem o mestre de capoeira que foi morto porque ele falou que não votou no Bolsonaro. E o cara foi morto por não ter votado no Bolsonaro, porque ele falou. Mano, você tirar a vida de alguém por causa de política? Isso eu não acho certo. E chega a época de carnaval, sai milhões de brasileiros, gringos vêm para o Brasil, para ficar pulando, beijando, fazendo um monte de coisa enquanto que o Brasil está na merda. Invés do brasileiro se unir, invés de ficar brigando se unir pelos nossos próprios direitos, para gente sair melhor. Ninguém faz isso. O povo só quer saber de festa. Copa do mundo. Todo mundo estava desconfiado dessa eleição. Começou a copa do mundo todo mundo lá torcendo. Mas ninguém vendo que os caras lá em Brasília estavam roubando. Salário mínimo era novecentos e setenta antes, abaixaram para novecentos e cinquenta e quatro. Invés dos caras subirem nosso salário, diminuíram. Agora quando é o salário deles, em dois dias os caras sobre mais não sei quantos porcento. E isso é como eu falo, estão ganhando dinheiro com nosso suor, e eu acho errado.
F2: Voltando para o estudo, você falou de estudo.
P/1 - Na verdade eu queria... você falou das meninas. Como você vê as meninas, conquistando um espaço que é dos homens? Porque na origem o rap veio mais dos homens. Como você vê agora as meninas lutando para ter esse espaço?
F2: Acho que podia até... se você tiver alguma história que você conhece, de alguma amiga sua. Tem aqui em Santa Cruz, as meninas?
R - Tem, como falei, a Bia, que faz parte do Good Gang. É a mina que canta com os moleques. O grupo de moleques e tem ela de mina. Eu acho que deve ter outras minas, mas como eu falei, falta o espaço para gente poder expressar a arte. Ou às vezes a pessoa tem vergonha de se expressar, né. Porque você sabe que a vergonha é difícil. Mas eu acho muito foda uma mina fazer rap. Qualquer profissão, uma mulher fazer é muito foda. Como eu estava vendo uma vez uma reportagem, uma mulher mestre de obra, onde só homem trabalha. A mulher era mestre de obra, era o que comandava os homens. Como eu falo, todo mundo tem que ter o espaço, independente do seu gênero, seja homem, seja mulher, homossexual. Desde que você saiba desempenha teu papel, fazer tua função bem feita, não tem que julgar as pessoas pelo que ela é. Acho foda isso. E mulher merece respeito, merece oportunidade, independente. Se ela seja homem, seja mulher, seja homossexual, seja trans, ela tem quer ter a oportunidade dela de querer demonstrar o que é que ela sabe fazer.
P/1 - Quero voltar lá na vila. Você que gosta da vila. O que tem na vila que não tem em outros lugares? Que não tem em outros bairros, que você percebe? Você que anda a cidade inteira?
R - A humildade. Se você for em outro lugar... lá todo mundo te cumprimenta. Você passa, te cumprimentam, perguntam como você está, se está precisando de alguma coisa. Não vou dizer que é um lugar perfeito, porque perfeito nenhum lugar é. Mas é onde tem humildade. Como eu já entreguei panfleto pela cidade inteira, trabalhava de panfletagem, as vezes você ia entregar para as pessoas o panfleto na mão, as pessoas falavam: “não quero essa bosta. Daí só suja a cidade”. Você já vê a humildade da pessoa. Mas tem pessoas que param, conversam com você, em outros lugares. A humildade é tudo. Caráter. É o que faz a pessoa. O dinheiro não vai fazer a pessoa.
P/1 - Tem alguma história que aconteceu ali na vila que você lembra? De humildade? Do pessoal ajudar?
R - Como eu falei, das festas que tem na vila. A gente foi lá fazer a festa junina. Do café da manhã, tudo. Você mesma viu a humildade dos moderadores. Se reúnem para poder limpar, para poder organizar, saem atrás de alimentação. Os moradores fazer acontecer o que eles querem. Apesar de que tem os colaboradores, mas muitas vezes se o morador dali não sair para ir atrás dos colaboradores, não vai chegar, porque ninguém está interessado em entrar na vila, saber se está precisando de alguma coisa. É muito raro isso acontecer. E ali, se vocês assistirem o vídeo mesmo que vai passar no cinema, das pessoas se ajudando, você vai ver a humildade que é. Que é muito raro, humildade, caráter, personalidade, é o que faz uma pessoa. Você pode ter o dinheiro que for, mas se você não tiver essas três coisas e um pouco mais, você não vai ser ninguém. Isso é o que eu penso. Você estando em paz consigo mesmo e com a tua mente, você pode morrer qualquer hora que você vai ser feliz.
F2: No natal, acontece alguma coisa de especial lá na vila?
R - No natal? Que eu me lembre tem almoço de natal. Só não me recordo, mas tem. Sei que no dia das crianças tem o almoço, tem o café. Domingo agora que foi dia das crianças, - sábado, domingo... sexta. Então, daí teve o almoço das crianças ali na vila, que foi lá no barracão. Teve o café da manhã. E é o que vai agregar para comunidade. Isso faz um bem para as pessoas, porque às vezes, naquele dia das crianças, a mãe não teve condições de comprar um brinquedo, ou fazer um almoço especial por falta de condição, não ter um salário digno. Chega lá, a comunidade se reúne, faz um almoço, vai mãe, vai filho, vai pai, e almoça tudo junto lá. Quer prazer maior que esse. Dinheiro não vai comprar isso. Imagina, você sendo mãe ou pai, com um prato de comida, vendo o sorriso do teu filho, sabe. Isso nenhum dinheiro compra. A felicidade do teu filho.
P/1 - E você vai nesses almoços?
R - Eu não fui, mas meu vô ano passado ajudou. Porque ali na vila quase todo mundo é meio que parente de longe. Não parente próximo. Querendo ou não, como você convive ali com as pessoas vinte e quatro horas, se torna uma família. A comunidade é uma família. Porque ali todo mundo se ajuda.
F2: Juninho, você falou que seu avô ajudou.
R - É, meu vô ajudou a cozinhar.
F2: Voltando um pouquinho você disse que muitas vezes você lembrava do seu avô e da sua avó e decidia pensando neles. Tem alguma coisa, alguma cena que você lembra deles quando você era criança, ou mesmo mais velho. Algo que eles faziam? Ou seu avô, ou sua avó.
R - Meu vô e minha vó sempre me apoiaram para ser jogador. E como eu lembro que meu vô falava e minha vó falava. Tem a circular que anda pela cidade inteira. E meu vô me colocava na circular para andar a cidade inteira à toa, porque eu gostava de andar dentro da circular pela cidade inteira. Aí meu vô tirava dinheiro dele e andava comigo. E tinha o circo também que eu gostava de ir, que meu vô uma vez emprestou dinheiro do colega da minha mãe, acho que foi, para me levar no circo.
F2: Você lembra desse dia do circo?
R - Eu lembro que eu queria ver a Jamanta, que era uma mulherzona, que eu achei que era grande coisa. Falavam que ela ia bater nos homens, daí eu queria ver a luta deles. Mas chegou lá, foi só enganação. Era tudo armado, daí desanimou.
F2: E como era andar no circular? Fala mais disso.
R - Eu não me recordo porque eu era muito criança, mas pelo que meu vô conta eu gostava. Qual criança que tem vontade de andar pela cidade inteira à toa dentro de uma circular?
F2: E ele te levava?
R - Levava. Da minha vó eu gosto porque ela sempre foi guerreira. Ela nasceu no Paraná, foi criada lá, minha mãe, meu tio e minha vó. Aí o marido dela trouxe ela para cá e abandonou ela aqui. Meu vô verdadeiro abandonou, porque o vô que eu moro é de criação. E meu vô verdadeiro abandonou minha vó sozinha aqui com minha mãe, meu tio e com minha tia. Então, praticamente, minha vó é uma guerreira. Tanto ela quanto meu vô. Porque imagina, uma mulher sozinha, numa cidade que não conhece, com três filhos. Imagina a dificuldade que é. E por tudo que ela fez para gente eu acho que ela merece ir para o céu. Não sei porque não sou ninguém para julgar, só Deus. Mas acho que se ela não for para o céu, ninguém vai, pelas coisas que ela passou. Passou humilhação de patrão, essas coisas. E é foda né, porque como eu falei, se hoje em dia, não que não tem dificuldade, mas é menos dificuldade para uma mulher entrar no mercado de trabalho, imagina na época da minha vó. Minha vó tem sessenta e um. Na época de ela arrumar serviço, com três criança. Então dá para você pensar como era difícil. Se hoje em dia já é um pouco difícil imagina naquela época. E para mim ela é guerreira, porque ela tem muitos problemas, tem problema na coluna, quando ela pega muito peso trava. Uma vez um médico falou que o coração dela parecia gelatina, ela tem depressão, e mesma assim ela é guerreira, por tudo que ela fez. E é isso, ela para mim é tudo, ela é meu vô. Por isso eu queria ser jogador, para dar uma vida melhor, mas agora eu estou aí no caminho do rap, da arte. Quem sabe com a arte a gente não consegue fazer dinheiro. Querendo ou não a gente tem que fazer dinheiro num mundo capitalista, para poder sobreviver. E dar uma condição melhor para eles. Porque nem é tanto, para mim, o dinheiro. É mais o prazer de ver meu vô e minha vó feliz, e minha família.
P/1 - Quando você estudava, como era? Como era sua sala? O que você lembra da escola? Aconteceu alguma coisa que te marcou muito?
R - Tem sim. Na primeira série um moleque mexeu com a menina e a menina embalou ele, ele escorregou e bateu a cabeça na quina da carteira, e sangrou. Enfaixaram a cabeça dele, ele ficou zoadão, e nós começamos a dar risada. Depois ele foi para o médico. E teve outra, com esse mesmo moleque, acho que ele tinha feito arte na casa dele, e o pai dele pegou e raspou a cabeça dele. Ele chegou com o coco pelado lá, e nós começamos a dar risada da cara dele. Até hoje quando vemos ele a gente lembra, e ele dá risada. Fala: “lembra quando meu pai raspou minha cabeça”. Mas da primeira série até a quarta série foi tudo normal. Eu era um bom aluno, tirava nota. Só não gostava de professor substituto.
P/2 - Por quê?
R - Não me recordo, mas acho que por estar acostumado com o professor normal, vinha outra pessoa, não me sentia à vontade. E também a gente viajou para escola, para Fazenda Botelho, que a gente conheceu a mimosa, que é a vaquinha lá. Daí da quinta até a oitava série foi também normal, acho que não teve nenhum acontecimento diferente.
F2: E houve algum professor nessa época que foi marcante?
M: Espera só um pouco que está passando um caminhão.
P/2 - Começou.
P/2 - O cachorro da vizinha está gostando. Está participando da entrevista.
M: Espera só eles fazerem a curva aí. Pronto.
F2: Um professor ou professora que você lembra?
R - Que eu me lembre?
F2: Você teve? Um mais marcante?
R - Marcante eu não tenho porque todos foram importantes na vida da gente, qualquer professor, seja chato, seja não chato, faz parte da nossa vida. O que eu gostava também, teve aula de dança, aula de hip-hop que fizemos na escola com a professora Marlene, que foi o primeiro sobre dança. Apesar de que eu já tinha feito dança quando era da quarta série. Mas nós não gostamos, eu e meu colega metemos o pé.
P/2 - Por que não gostaram?
R - Ah, o professor queria ensinar ballet para nós. Nós achamos que íamos dançar hip-hop, o cara quis ensinar ballet para nós. Nada contra homem que dança ballet, mas nós não queríamos, nós queríamos aprender hip-hop. Daí acho que na sétima série, oitava série, a professora Marlene, de educação física, veio com a ideia de fazer aula de hip-hop, que ela dançava. Aí ela deu a oportunidade para nós aprendermos.
P/2 - Aí você aprendeu a dançar?
R - Aprendi um pouco porque eu não gostava do professor. Era a Marlene e outro professor. Eu via que o outro professor sempre tinha aqueles alunos especiais, que ele dava mais atenção. E como um professor vai dar atenção só para um ou dois e deixar os outros de lado? Você não aprende nada. Então eu acabei saindo fora também.
P/2 - Você dança hoje?
R - Não, hoje não. Só nessas vezes aí que eu dancei, mas eu aprendi pouco mesmo, nem sei mais nada.
P/2 - Quando você foi visitar a fazenda Botelho, como é que foi? O que tinha lá que você gostou?
R - Comer o pão de queijo, beber o leite de uma vaquinha mimosa, ver a produção de leite, como tirar leite da teta da vaca, que era tudo mecanizado, não era mais manual. E acho que foi isso. E hoje em dia trabalho para eles né, os donos da fazenda. O mercado deles.
P/1 - Tem alguma vez que você foi viajar com o CRAS, Juninho?
R - Sim, para Termas. A primeira vez. Foi muito massa. Nunca tinha ido num parque aquático, porque eu não sei nadar ainda. Meu pai ia ensinar, mas acabou indo preso. Mas foi da hora, tinha uns lugares para nós ir.
P/1 - Como é a viagem daqui para lá?
R - Nós achamos que ia ser uma bagunça, nós zoando, cantando. Mas chegamos dentro do ônibus, todo mundo quietinho, dormindo quase, conversando. E chegando lá nós tiramos as fotos, fomos no banheiro, trocamos de roupa. Tem até umas fotos minhas, do Nelsão, nós tiramos as fotos lá. Depois chegamos dentro do parque aquático, entramos na piscina de água quente que nunca tínhamos entrado. Apesar de que alguns dos outros moleques já tinham ido. E para mim tinha sido a primeira vez. Aí tinha, como se fala, aquelas piscinas que tem umas bolinhas que fazem massagem. Da hora. E também teve um ato marcante lá, foi tipo. Nós todos dividimos o armário. Daí um moleque guardou a bolsa dele sozinho, e estava sem chave o armário. Porque foi o armário que ele achou. Aí chegou a hora do almoço, fomos lá trocar de roupa para não ir molhado no restaurante, aí chegou o moleque, abriu o armário e o armário estava trancado. Cadê a bolsa dele? Aí ficou um desespero, porque estava dinheiro, estava celular, tinha tudo dele lá. Ele andou desesperado, foi lá no bazar dos achados e perdidos e achou a bolsa dele. Mas ele ficou desesperado, porque imagina, perder celular, perder dinheiro. Nossa, foi da hora. E deu risada apesar disso.
P/2 - Você gostou de ir lá em Termas?
R - Gostei. Espero ir de novo, aquilo lá é foda. É um lugar que dá para tirar um lazer da hora.
P/2 - Aqui no rio... tem um rio aqui, dá para usar o rio? Dá para nadar?
R - Dá para nadar, mas tem que tomar cuidado.
P/2 - Você tem alguma aventura?
R - Tenho com meu pai, meu pai gosta de pescar, a gente ia direto. Tinha um ranchinho ali que faziam galobada. Galobada é várias comidas misturadas, macarrão com arroz, peixe, um monte de coisa misturada. É feito ali tudo na hora. E nós gostávamos de pescar. Teve uma vez que fomos no SENAI pescar, que ele passou (arrastão) [00:51:32], e catou caranguejo. Aí meu primo falou: “dá esse caranguejo para mim”, porque meu pai tinha dado para ele mim. Eu dei para ele, e ele guardou num potinho com água. Aí meu primo foi tomar banho, o irmão dele abriu e jogou o caranguejo nele, ele pulou dentro do banheiro, pelo que contou. E também, no rio você tem que tomar cuidado porque ali tem muito poço. Se você não souber onde você pula ali você se acaba. E o rio também acaba levando muita gente em época de calor. Por causa do poço, tem sucuri, essas coisas. Apesar de que a sucuri não ataca ninguém, só se ela estiver com fome. Mas mesmo assim tem que tomar cuidado. O povo ali nada, pesca, que nem agora que meu pai saiu da cadeia ele vai voltar a fazer o ranchinho ali, que estava destruído. Ele, meus irmãos, meus tios, vamos todos construir o rancho de novo, para poder fim de semana tirar um lazer entre família, amigos que vão ali para pescar, para nadar. Porque é a área de lazer que tem para gente. Como falei, em Santa Cruz não tem muita coisa para você...
P/2 - Seu pai nadava no rio?
R - Meu pai é um peixe dentro da água.
P/1 - O que é o ranchinho, Juninho?
R - Ranchinho é onde você vai fazer comida, sentar com amigos para conversar, jogar baralho. Como a história que a ex-mulher do meu pai contou de como ela conheceu meu pai. Não sei o que tinha acontecido que meu pai mergulhou. E meu pai é um peixe dentro da água. Mergulhou e ficou um tempão lá embaixo. E a mulher, que é ex-esposa, achou que ele tinha morrido. Ela ficou desesperada. E aí meu pai saiu, - ele tinha uns cabelão - balançando os cabelos, molhados. Aí ela falou assim: “me apaixonei por aquele cara naquela hora, quando ele saiu com o cabelão cheio de água”. Porque meu pai dentro da água é um peixe.
P/2 - Agora vai te ensinar a nadar.
R - Vai, graças a Deus. Porque ficar sem nada é ruim. Na época de calor, você não pode ficar na beira do rio porque você não sabe nadar. Aí você vai ficar passando calor, porque chuveiro, mangueira não alivia calor. E na escola, no terceiro colegial eu parei de estudar. Aí meu vô e minha vó falaram: “já que você parou de estudar, vai trabalhar”. Fui trabalhar de plantar grama na roça. Comecei lá, vi que o bagulho era osso, por causa do sol quente, falei: “não quero isso daqui para minha vida, vou voltar a estudar mesmo, que dá mais futuro”.
P/2 - Essa roça era do seu avô?
R - Não, é de outras pessoas que nós trabalhávamos.
P/1 - Como era lá?
R - Era o maior calor por causa do sol. Você acordava cedo. Não que eu não estivesse acostumado, mas é mais pelo calor mesmo. Chega em casa quebrado. Isso não é vida para ninguém. Por isso eu comecei a dar mais valor no estudo. Aí eu voltei a estudar, terminei, e fiz a inscrição para minha faculdade, que é Publicidade e Propaganda na UNIP. Só que eu achei que ia conseguir o FIES e não consegui, porque era uma vaga para vinte e três concorrendo, eu fiquei em sétimo. Então eu acabei não conseguindo FIES e tive que trancar minha matrícula. Mas espero voltar.
P/2 - Faz tempo isso?
R - Ano passado eu tranquei minha matrícula. E por causa disso, falta de dinheiro, não consegui concluir minha faculdade, dar começo nela.
P/2 - Você já fez a matrícula na UNIP?
R - Já, só está trancado minha vaga. Tenho dois anos para voltar.
P/2 - É aqui mesmo em Santa Cruz?
R - Não, em Bauru. Aqui em Santa Cruz só tem direito na OAPEC, tem acho que marketing, direito, contabilidade, acho, RH. Mas eu escolhi Publicidade Propaganda, não porque ganha muito ou ganha pouco, é mais para poder ser eu mesmo, sabe. Porque eu pense em ser advogado, mas daí comecei a lembrar: “não vou poder falar o que eu quero, não vou poder ser eu mesmo, não vou poder ter tatuagem, nem nada. Vou ter que chegar na frente do juiz e falar tudo formalmente, tudo corretamente”. Porque você não vai poder chegar no juiz e falar: “e aí mano, bagulho é o seguinte, o cara ali é inocente, o cara não sei o que, sabe”. Daí eu falei: “não, não quero isso”. Então minha tia comentou que a filha da patroa dela fazia Publicidade e Propaganda, eu comecei a pesquisar e vi que você pode ser o que você é e desempenhar suas ideias. Porque envolve a arte, você pode se expressar através de uma propaganda, jogar tuas ideias. É isso que eu quero fazer. Porque ideia todo mundo tem. Só tem que colocar em prática. Falei “é isso mesmo”. Só que infelizmente não consegui. Nisso entrou o rap, e estamos aí, fazendo um rap, vendo no que vai dar. Não precisa ganhar muito, ser milionário, ser rico, mas se der para dar uma vida melhor para família, é o que vale a pena.
P/1 - Me fala um sonho seu. O que você sonha? O que você queria para sua vida? O que você queria realizar enquanto ser humano? Pode ser uma coisa tipo: “eu queria fazer isso da minha vida”, ou “eu tenho esse sonho”.
R - Primeiro sonho é dar uma vida melhor para minha família. O segundo é aprender a surfar. Para isso tem que aprender a nadar. Viver de frente para praia, viajar, curtir a vida mesmo. Não curtir loucamente, usando drogas essas coisas. Curtir mesmo a natureza, poder viver, viajar, surfar, fazer slackline, pular de paraquedas, bungee jumping. Colocar tua vida em prova, na adrenalina. Saber que quando você ficar velho você tem história para contar para os seus netos. Saber que você viver tua vida - porque se você se tornar um robozinho do governo tu não vai viver, você vai viver um dia após o outro, mas que nem uma máquina, que nem aquele filme do Charles Chaplin, que fica lá com o maquinário.
P/2 - Como é trabalhar no mercado? Agora pensando no trabalho que você falou.
R - Para ser sincero não é o que eu quero para minha vida. Porque não que seja ruim, não seja bom. É que eu realmente não quero isso para minha vida. Porque meu sonho é ser patrão, não quero ser funcionário para o resto da vida. E se eu for patrão não vou tratar meus funcionários igual muito lugar trata aí. Porque eu vejo muita coisa errada.
P/2 - Você quer tratar como então?
R - Como eu falei, independente do estilo do meu funcionário, mas ele desempenhando bem o papel dele é o que importa. Não importa se ele tem dread, se ele tem tatuagem, tem piercing. Ele fazendo o que ele foi feito para fazer... vamos supor, jornalismo. Ele é um escritor bem foda, escreve para caralho. E ele tem o estilo dele. Eu vou olhar para o estilo dele ou para o serviço dele? O que vai me trazer lucro, o serviço ou o estilo dele? É o serviço dele. Então eu vou olhar para isso. Porque eu também tinha vontade de fazer dread. E como eu entrei no mercado eu não pude, eu tiver que cortar meu cabelo. Porque você tem que andar no padrão certinho. Lá no serviço não posso usar meu piercing da boca, meu alargador. Tem que andar só de calça, e eu não gosto de usar calça, gosto de usar bermuda e camiseta larga. E lá eu não posso. Então lá eu não estou sendo o que eu gostaria de ser. Mas eu estou lá para dar uma assistência em casa, para ajudar em casa, e como falei, montar meu escritório de rap, tirar minha carta, e poder curtir a vida. Porque isso é o que importa.
P/2 - Agora, não falamos dos amores. Tem alguma história inesquecível?
R - Inesquecível só se for...
P/2 - Ou a primeira namorada.
R - Tem uma menina aí, que não é a primeira namorada porque eu nunca namorei, só fiquei. Então nunca deu certo com menina porque só fui iludido, machucado, não sei se o errado sou eu ou são elas. Não julgando as meninas que passaram pela minha vida, porque tudo é uma lição de vida, mas tem uma mina que me marcou porque ela me ajudou muito. Até hoje eu converso com ela. Tivemos nosso lance, mas ela acabou escolhendo seguir o caminho dela com outro. Não julgando ela. Mas sempre que eu preciso e ela precisa eu estou lá por ela, porque amizade prevalece. Se você ficou com a pessoa, namorou, melhor coisa é terminar na amizade, do que um virar a cara para o outro. Porque a gente não sabe o dia de amanhã, às vezes a gente precisa da pessoa e ela da gente.
P/2 - Ela é sou amiga hoje.
R - Ela é minha amiga. Não a melhor porque a gente nunca vai ter o melhor amigo, a gente não pode confiar em todo mundo que a gente pensa que pode confiar. Porque às vezes a gente vive vinte, trinta anos com a pessoa, mas não conhece ela cem porcento. Porque você já sabe, se você, tanto amigo, namorada, enquanto você está de bem todo mundo é amor com você. Qualquer coisa que fez vocês brigarem, a pessoa já sai espalhando as coisas.
P/2 - O que te marcou, Juninho, quando você estava saindo com ela?
R - Ela é uma mina diferente, ela é firmeza.
P/2 - Em que sentido ela é diferente?
R - Ela sempre falou para mim que, independente do que nos tornássemos, namorado, amigo, se eu precisasse ela ia estar lá por mim. Porque eu sei que não vou ter meu vô e minha vó para vida inteira. Como eu falei, eu estava sem serviço, só fazia uns bicos. Então eu sempre pensei: “e se eu não tiver serviço, não tiver onde morar”. Ela falou: “não importa. Eu trago você para morar comigo, mesmo que esteja namorando”. Isso eu já achei que nela posso confiar, apesar dela ter as bipolaridades dela, ela tem um pouco de depressão, às vezes ela quer ficar sozinha, some. Mas muitas vezes ela está lá por mim.
P/2 - Tem alguma história que aconteceu com vocês dois que foi legal?
R - Quando eu estava com ela, ela me fez fazer coisas que eu nunca tinha feito com outra mina. Não no sentido de prazer, sexualmente, mas por estar mesmo com a pessoa, presente. Ela me fazia rir, a gente brincava, zoava, sabe. E isso vale mais que prazer sexual. Porque você está bem com a pessoa, podendo rir e vendo a pessoa feliz ao seu lado, é o que importa. E a gente se zoava também, brincava.
P/2 - Tem alguma dessas brincadeiras que te marcou?
R - É que ela falava que ia ganhar de mim na lutinha, mas ela sempre perdeu. Mas ela fala até hoje que ganhou, que empatou, mas é mentira, perdeu. A queda de braço. Ela falou que ganhou de mim, mas ela perdeu. Mas na mente dela ela ganhou né, fazer o que. Daí você tem que aceitar, falar que ganhou para não virar discussão. Você sempre tem que ir a favor da mina.
P/2 - É assim?
R - Não que seja assim, que nem eu penso: quando você está certo tem que manter sua palavra. Agora, quando está errado, tem que voltar atrás e pedir desculpas. Porque você sempre tem que correr pelo certo, não pelo errado. Se você corre pelo errado, um dia isso vai ser cobrado. Como falei, você tem que estar em paz com sua mente, com seu interior, com sua vida, em tudo.
P/2 - Seu pai e sua mãe não moram com seus avós?
R - Não, minha vó é mãe da minha mãe e meu vô é padrasto da minha mãe. Ele criou eles desde pequeno. Minha vó por parte de pai morreu ano passado no fim do ano. E uma coisa que eu gosto é aprender culturas. Porque cultura é tudo, é conhecimento. E cultura você leva para vida inteira. Como meu colega, faz filosofia, nós estávamos trocando ideia na pista de skate. Como ele falou, livro, conhecimento, é uma coisa que ninguém vai poder te tomar. Ele colocou: “mano, a gente pode estar aqui na pista, chegar os moleque, assaltar nós, levar tudo que nós temos. Mas o conhecimento eles nunca vão poder levar”. Então cultura para mim é tudo, eu tenho descendência indígena por parte de pai e descendência negra por parte de mãe. E eu mesmo vou fazer uma tatuagem, uma índia na minha panturrilha e uma pena de índio atrás da minha orelha, que é homenagem à minha descendência indígena. E eu ia fazer os dreads em homenagem à minha descendência negra, e espero fazer alguma tatuagem referente a isso. Porque minha descendência é tudo. E como eu falo, os portugueses roubaram os índios, e o Brasil podia ser um país de primeiro mundo, tirando a política, riqueza, tudo. Porque o Brasil é um país rico, tanto em cultura, florestamento, tudo.
P/2 - Voltando, você falou do seu amigo.
P/2 - Além dessa sua ex-namorada que agora é sua amiga, tem alguns amigos que você fica bastante?
R - Como eu falei, sou mais sozinho, mas quando eu saía para o role assim, era rolezeiro, eu tinha vários amigos. A gente saía, se curtia, bebia, zoava, fazia churrasquinho. E é isso. Mas hoje em dia sou mais na minha, de uns anos para cá comecei a ficar mais na minha, em casa. Mas agora que eu e os moleques vamos voltar a fazer rap de novo, agora vou voltar para o role. Só quando tiver folga de domingo, no serviço, porque aí não tem como.
P/2 - Sábado trabalha, né.
R - Trabalha sábado e trabalha domingo. Você trabalha dois domingos para folgar um. Como eu falo, você tem que aderir ao serviço, mas isso não é vida, imagina trabalhar de segunda à domingo. Às vezes você folga no meio de semana, mas você não vai poder desfrutar do que você ganha, trabalhando dois domingos para folgar um. Porque você vai estar quebrado a semana inteira, vai chegar no domingo você quer descansar. Mas você não vai poder curtir sua vida como você queria. Então por isso eu falo, prefiro se patrão ou viver de outro jeito fazendo o que eu gosto para poder viver minha vida, não me tornar um robozinho.
P/2 - Você falou que não tem nenhuma religião. Tem alguma história sobre isso?
R - Sou batizado na Igreja Católica, mas frequentei a Igreja Evangélica. Também curto a cultura do candomblé porque é uma cultura rica que muitas pessoas julgam sem conhecer. Mas é uma cultura muito rica, que vem dos afrodescendentes...
P/2 - Como é que você começou a frequentar o candomblé.
R - Eu fui uma vez quando era pequeno, porque meu vô frequenta. E eu me apaixonei, porque como falei, eu gosto de cultura. Muita gente acha que candomblé é macumba, é coisa ruim. Não é. Porque tem os guias, mas são guias de luz. É como o anjo na Igreja Católica, anjo na Igreja Evangélica. São anjos. Só que são anjos da cultura africana. Só que como falei, as pessoas não procuram conhecera cultura antes de julgar. Só julgam pelo que os outros falam. Como meu colega falou para mim, ele é evangélico: “mano, isso daí é coisa do demônio, mexe com bagulho de demônio”, falei: “não é assim. Tenta conhecer a cultura antes de você julgar”. Porque ele está julgando uma cultura negra. E ele fazia capoeira que é uma cultura negra. Então ele está entrando em contradição do próprio conhecimento de vida que ele tem. E eu acho isso errado. Então eu falei: “tenta conhecer a cultura antes de você julgar. Porque os guias são guias de luz. Eles prezam Ave Maria, mesma coisa. Rezam, normal. Mas é o estilo de vida que eles querem”.
P/2 - O que te encantou, você acha que foi legal, quando você conheceu?
R - O que me marcou mesmo é como eu falei, a cultura. Eu gosto da minha descendência. Tenho orgulho de ser descendente de índio, de negro. Não que o brasileiro não seja, porque ele é miscigenado. Tem vários tipos sanguíneos, tanto de português, alemão, espanhol. Mas o que prevalece é o índio e o negro. E a gente tem que prezar essa cultura, não deixar morrer. A feijoada é de escravo, vem da cultura negra. E quem que não gosta de feijoada, até rico gosta. E uma coisa que todo mundo fala, que não tem preconceito no Brasil por causa de ser um país miscigenado. E é mentira. Não tem aquele preconceito exposto, na cara dura, mas você vê o olhar das pessoas. Da polícia mesmo, se você é um neguinho de favela, qualquer coisa assim, vem de um lugar mais humilde, você sofre preconceito...
P/2 - Já viu isso acontecer?
R - Eu já sofri isso. Muitas vezes já, a polícia me parou, perguntou um monte de coisa. Uma vez eu estava trabalhando. Entregar panfleto, aí eu estava na rua sentado, almoçando. Aí o carro de polícia passou e deu marcha à ré. Invés de os policiais chegarem na humildade, perguntando o que eu estava fazendo, o policial chegou a apontando a arma, falando: “vai, vagabundo, levanta”, e chegaram chutando minha blusa branca e meu tênis. Perguntou: “o que você está fazendo aí?”. Falei: “eu estou almoçando, senhor”. “Mas você faz o que da vida?”. Eu falei: “entrego panfleto”. Abriu minha bolsa, olhou. Falou: “mas cadê tua marmita?”. Eu falei: “eu joguei ali”. Aí ele foi lá olhar, viu. Daí o policial começou a perguntar: “você já subiu lá para cima?”, que é a delegacia. Falei: “não, não tenho passagem, não tenho nada”. “Mas se você subir lá para cima?”. Já querendo dizer que queria me levar. Eu falei: “se tiver que levar, leva”. O outro policial - que era dois - bateu no peito, que dentro do colete eles sempre andam com uns pacotinho de droga, mas muita gente acha que ninguém vai preso forjado. Todo mundo acha que a pessoa foi presa com droga, mas não é assim.
P/2 - Bateu aqui?
R - Bateu no peito e falou: “e se eu for ali no mato e encontrar alguma coisa?”. Aí eu falei: “se encontrar, encontrou”. O policial foi para o mato, o outro policial começou a conversar comigo. Ele perguntou: “de onde você está vindo?”. Eu falei: “estou vindo ali da Fazenda União. Da União”. “Não rapaz, que nós saiba Fazenda União é lá para cima, onde fica os boy. Aconteceu um assalto lá”, não sei o que, e eu falei: “não estou sabendo, mas para nós que vem de São José, União é aqui”. “Não rapaz, você está vindo lá de cima”. Eu falei: “não, senhor. O bagulho é o seguinte, o senhor está querendo colocar palavra na minha boca que eu não falei”. Daí ele ficou meio assim. Não vou baixar a cabeça se eu sei que estou certo. Aí eu comecei a ficar nervoso porque o outro policial estava demorando para vir lá do mato. Falei: “só falta jogar droga em mim”. Aí ele veio com a mão para trás. Falei: “pronto, vou rodar. Vai jogar droga em mim, e não tem ninguém. Eu falei para ele: “liga para o meu patrão, que é o Souza Neto, radialista em Santa Cruz”. “Não, nós não quer ligar para patrão nenhum”. Aí eu falei: “pronto”. Mas felizmente não aconteceu nada. O policial montou no carro, olhou para minha cara, falou: “próxima vez que nós pararmos você, fica mais na tua, porque nós sabemos fazer nosso serviço”. Porque eu bati boca com eles, eles não gostam de bater boca. Aí eu falei: “então está tranquilo. Bom serviço para vocês”. E eles foram embora. Mas muitas vezes nós ficamos aqui na praça, jogando bola, os policiais passavam - porque eles acham que todo mundo que fica na praça, ou fica em qualquer lugar parado, e não seja do padrão que a sociedade quer, eles acham que trafica, essas coisas. Muitas vezes eu já fui parado pela polícia, arma na cabeça. Porque eles não sabem chegar respeitando as pessoas, na humildade. Falar “encosta aí, fazendo o favor”. Porque a pessoa é um ser humano, independente da classe social dela. Agora o policial chega já apontando a arma para tua cabeça? E se a arma dispara, mesmo que por acidente, mas dispara, você vai perder tua vida, tua família vai ficar como? Um fato que aconteceu comigo, para você ver a diferença que tratam nós que somos da classe média baixa, humilde. A pessoa chega com a arma apontada para cabeça, chamando de vagabundo, esculachando. E se você fala as coisas eles batem boca, você é o errado, e você apanha deles, como eu uma vez apanhei na porta da escola. Eu tinha ido na porta da escola, de boas, para ver os amigos. Aí tinha uns moleques que iam bater em outro moleque, porque o moleque tinha pagado de talarico. E os moleques estavam do meu lado. A polícia chegou, encostou: “o que vocês tão fazendo”. Falei: “estou esperando meus amigos”. “E vocês, outros?”. “Estamos de boa só, viemos buscar a namorada”. Aí os policiais falaram: “então vocês metam o pé”. Falando na grosseria. Daí os moleques subiram, eu fiquei lá ainda. O policial deu a volta. Aí eu subi para ir comprar uma correntinha para mim. Os moleques me chamaram e falaram: “quem que é o moleque lá que nós ia catar?”. Falei: “não faço ideia”, porque mesmo conhecendo a pessoa, não vô falar, não sou cagueta. Daí os policiais passaram e desceram: “vagabundo, não falei para vocês meterem o pé daqui?”, na grosseria. “Vai, encosta todo mundo para parede”. Coloquei a mão na cabeça, abri as pernas. Daí o policial falou: “ué, você não estava ali esperando seus amigos?”. Falei: “eu estava”. “Você está (mentindo) [01:13:39]”, pegou e deu um soco nas minhas costelas e chutou minha perna. E minha prima que estava ali embaixo, e todos que estavam ali embaixo, ouviram o soco. Porque o policial não vai bater de bater, os caras chegam e soltam mesmo o braço em você. Só que tem que ficar quieto, não pode bater boca com eles senão você apanha mais. É perigoso, eles até forjam você para rua. E também teve outra vez que é para você ver como é diferente uma pessoa de classe média mais alta, digamos assim, renomada na sociedade. Estava tendo baile no ICA. E os boyzinhos estavam brigando ali, chamaram a polícia. Eles brigando na esquina e a polícia chegou. Para você ver como é diferente quando eles enquadram as pessoas. Chegou sem arma, na boa, falando: “boa noite para vocês”, conversando na boa, perguntando: “o que está acontecendo”, não sei o que. Agora, se é nós, normal, os caras chegam: “e aí vagabundo, encosta para parede, mão para cabeça”. Nem chegaram a revistar os moleques, nem nada, chegaram falando na boa com eles. Para você ver a diferença de tratamento que tem, mesmo as pessoas achando que polícia corre pelo certo. Alguns até podem correr, mas outros não correm muito, não. Porque tem muito policial corrupto por aí. Não dizendo que em Santa Cruz tem, mas eu acho que eles deveriam ter consideração na hora de enquadrar uma pessoa ver que a pessoa é um ser humano também. Como eu acho: eles com a farda tem a lei, mas sem farda são homens também, igual nós. Como eu falo, um dia a caça, outro caçador. O que você faz hoje você pode pagar no futuro, que é o carma. O que você faz, volta. Se você prega o bem, vai colher bem. Se prega o mal, um dia você vai pagar. E é isso.
P/1 - Já aconteceu alguma vez de você estar voltando do trabalho e os caras te pararem?
R - Foi segunda retrasada, retrasada ou passada, não me recordo. Eu vindo de uniforme do serviço, subindo a rua aqui, e quando olho para trás a polícia, andando atrás de mim, olhando. Aí pegaram e viraram a esquina, falei: “pronto, vão me parar na esquina, me esperar”. Deram a volta no mercado, eu continuei andando. Na hora que eu olho para trás, de novo, a polícia com os faróis apagados vindo atrás de mim. Aí eu parei, estava conversando com meu colega, olhei para trás e a polícia. Aí eu continuei andando, fui embora, porque eu sei que eles iam me enquadrar. Eu não mexo com nada, como falei para minha vó: se eu mexesse com alguma coisa errada, com certeza não iam me parar, mas como eu não mexo, eles querem me parar. Acho que por causa do estilo, essas coisas assim, como falei, a pessoa te julga demais por onde você vem, de onde você vem, sua criação, seu estilo. E eu acho isso errado, ninguém pode julgar ninguém pelo estilo, ou de onde você vem.
P/2 - Não tenho mais perguntas. Vocês têm?
P/2 - Não.
P/2 - Eu ia só perguntar se você quer contar uma coisa que a gente não te perguntou. Porque a gente já vai terminar.
R - Manda um salve aí para os moleques lá da pista de skate, para comunidade aqui da Divineia, e quem puder aparecer dia sete de novembro lá no evento, que vai ser o Fala Vila. E vamos dar valor à arte, porque a arte é um modo de se expressar. E as pessoas pararem de julgar os outros pelo estilo. E ser quem eles são de verdade. Não fingir ser o que não são. Porque eu garanto que muitos empresários com certeza não queriam ser empresários. Queriam ser outra coisa. Mas acabou tomando esse rumo por causa do que pai o ficou falando na mente, ou porque queria ter dinheiro e sabia que aquilo que queria fazer, o que tinha sonho, não poderia fazer porque não ia dar lucro. Porque o Brasil é difícil. E espero que daqui quatro anos melhore também, independente de quem entrar lá na frente, porque eu não sou a favor de ninguém que está concorrendo. Mas que quem entrar lá traga o melhor, não piorar. E é isso.
P/2 - Pergunta o que ele achou de contar a história dele.
P/2 - O que você achou, Juninho?
R - No começo dá nervosismo. Mas depois é de boa.
P/2 - Gostou?
R - É da hora, porque você está contando tua vida. Várias pessoas vão assistir. Porque nós mesmo que somos do interior de São Paulo não temos aquela oportunidade de as pessoas ouvirem. E quem sabe com essa oportunidade as pessoas não ouvem, não procuram saber mais de Santa Cruz, ou da própria comunidade aqui.
P/2 - O que significou para você? Que significado isso tem, de ser expor, de contar essa história. Como que foi para você? Como que é?
R - É massa. É da hora. Porque como eu falei, as pessoas vão saber da minha vida. Muitas pessoas não sabem. Não sabem e não vão poder saber tudo porque não tem como contar tudo. Mas pelo menos o básico vão saber e vão saber quem sou eu. Pelo menos um pouco. E é isso.
P/2 - Muito bom, parabéns.
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