Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Darlene Alcântara Barbosa
Entrevistada por Marcia Trezza e Ana
Recife, 09/03/2018
Realização: Museu da Pessoa
HTC _ HV03 _ Darlene Alcântara Barbosa
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
R – Podemos começar? (risos).
P/1 – Darlene, pode começar (risos). Desde quando você era pequena, que lembranças tem da sua infância?
R – Ah, eu lembro muito da minha infância, de tudo. Eu nasci em Cajazeiras, na Paraíba, no sertão - Alto Sertão da Paraíba. Uma terra muito seca, mas na minha infância não tanto como hoje, porque hoje o tempo mudou muito. Na minha época não tinha muita seca não, muito sofrimento. Era uma cidade boa de se morar, uma cidade que respirava cultura em todos os cantos. Como eu já disse, é conhecida como a cidade que ensinou a Paraíba a ler, por ter tido as primeiras escolas, tanto primárias, como secundárias, como as de ensino médio, que, na época, era outro nome que eu nem me lembro mais. Mas foram as primeiras escolas. O Colégio Diocesano, muito bonito, que fica no monte, no alto, e é muito lindo. É uma imagem muito bonita, que marcou muito a minha infância e a minha adolescência, onde eu participei de grupos de teatro, eu apresentava peças de teatro. Inclusive, ontem, fiquei muito feliz ao saber que um teatro construído lá, há algum tempo, foi reinaugurado essa semana. De uma pessoa, uma mulher chamada Íracles Pires, que nos ajudava muito, aos adolescentes. Lembro muito de que uma das peças que a gente foi apresentar, nós não tínhamos cortina. Aí disseram: “Vá lá...” - chamavam ela de Ica - “Vai na casa de Ica que ela arranja”. Aí a gente chegou lá, ela recebeu a gente muito bem. Nós éramos pobres, classe média baixa, vamos dizer assim, eu estudava na escola particular, mas através de bolsa de estudo. E quando nós chegamos lá, aquele casarão imenso, a gente chegou assim na porta, pequenininho diante daquela suntuosidade que era a mansão dela, e minhas colegas disseram assim: “A gente vai entrar aqui?” “Vamos, disse que ela tem a cortina, a gente vai conseguir”. Entramos, ela recebeu a gente muito bem. Aí eu disse a ela o que precisava, ela disse: “Eita, eu não tenho”. Quando a gente ia saindo, ela fez: “Eu tenho sim”. Tirou a da sala e nos deu para colocar no teatro. A gente apresentou e foi muito bonito. Então, minha infância foi uma infância muito boa, a infância e a adolescência. No final da adolescência. Final não, porque hoje a adolescência dura um pouquinho mais, não é? Mas, aos dezessete anos, eu perdi a minha mãe. Durante toda a minha adolescência eu trabalhei com meu pai e minha mãe, meu pai tinha uma serigrafia. As serigrafias, antigamente, eram diferentes das de hoje. As de hoje têm uns equipamentos mais bacanas, mais rápidos, não é? Na época era coisa muito rudimentar. E meu pai era um artista plástico - ele faleceu há dois anos - era uma pessoa maravilhosa. E eu digo sempre que eu queria ter metade da inteligência que ele tinha, era uma pessoa muito sábia. E ele montou aquela...
CORTE NO ÁUDIO
R – Já pode?
P/1 – Darlene, antes de você chegar em João Pessoa, fale um pouquinho mais de quando você era criança. Você falou do seu pai, não é? Quando você era bem pequena, fale um pouco como era, o que vocês faziam - você junto com o seu pai - como ele era com você.
R – Meu pai era muito carinhoso, minha mãe era mais séria. Mas meu pai era muito apegado, carinhoso. Eu sempre fui uma garota muito moleca, como hoje eu ainda sou, com cinquenta e cinco anos (risos). Ainda sou. Eu gostava muito de brincar na rua, nunca gostei muito de brincar de boneca, gostava de brincar daquilo que a gente chamava lá em Cajazeiras de “mata”, que as meninas aqui em João Pessoa chamam de “baleado”. Gostava muito de brincar de mata, de barra bandeira, de bola, eu brincava muito na rua. Minha irmã já era bonequinha, ela era mais assim... E ela reclamava muito do meu pai, ela chegava, às vezes das casas das colegas, às vezes de algum cinema, alguma coisa - ela gostava muito de cinema - e quando ela me encontrava ali, no meio da rua, descalça, correndo com um monte de menino da rua, ela reclamava, chegava para o meu pai e dizia: “Olha a Darlene no meio da rua, pai! Bota ela para dentro!” Aí pai dizia: “Deixa ela brincar, ela gosta. Ah, daqui a pouco ela vem”. Eu tinha muito problema de garganta, inflamação de garganta, as pernas doíam muito. E sempre que eu entrava em casa, ele fazia massagem nas minhas pernas.
P/1 – Ele?!
R – É. Como aqueles... Eu dizia assim, remédio de velho (risos) para reumatismo, não é? Ele fazia massagem nas minhas pernas porque eu ficava com as pernas doendo. Aí, minha irmã dizia: “Está vendo? Deixa ela passar até uma hora dessas correndo no meio da rua, ela anda com as pernas doendo”. Mas a minha infância foi assim muito intensa, certo? Eu inventava festas de São João na rua, fechava a rua para fazer festa de São João. Isso, claro, junto com o grupo, não é? Eu ia aos clubes atrás de mesa, de... Hoje eu chamaria de patrocínio, não é? (risos) Na época, eu pedia ajuda (risos). Eu pedia ajuda às pessoas, ia às vendas, às bodegas - porque a gente chamava bodega, não é? Ia às bodegas pedir ajuda, arranjava refrigerante, arranjava as coisas para fazer as festas. E fazia aquelas quadrilhas na rua. Eu fazia muita coisa, brincava muito, foi muita intensa mesmo a minha adolescência. Eu estudava num colégio de freiras, não me adaptava muito àquele lugar não.
P/1 – Esse que ficava no alto do morro?
R – Não. Esse do alto do morro era mais assim... Antigamente, quando... Vamos dizer assim, quando começaram as escolas, era mais os meninos porque, na época, os meninos eram separados das meninas, não é? E a gente estudava no colégio das meninas, que era o Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Não que eu não gostasse daquele lugar, é um lugar que eu tenho muito boas lembranças também. Mas aquelas regras, aquelas coisas, eu não me adaptava muito. E acabou que minha mãe estudou lá também, fez Pedagógica, se tornou coordenadora daquela escola. E ela me cobrava muito para eu não fazer tanta coisa fora dos padrões porque sobrava para ela, não é? Aí, eu sempre gostei de roupa... Hoje eu ainda boto assim os ombrinhos de fora (risos), eu gostava muito de roupa pequenininha, nuazinha, ia escondido da minha mãe e as freiras brigavam e reclamavam com ela. Às vezes eu estava nessa brincadeira, no meio da rua, participava do Coral da escola, aí a minha mãe dizia: “Darlene, vai para o Coral”. Eu colocava chinelo no pé, corria... Eu morava numa ladeira, ia correndo para a escola. Quando chegava na escola, suada, assanhada... (risos) Hoje é que o cabelo está arrumadinho (risos), chegava assanhada, aí a freira dizia assim: “Isso é jeito de vir para o
Coral?” Eu dizia: “Eu vim cantar” (risos). “Eu vim cantar”. E elas me aceitavam, eu era importante para o Coral naquele momento (risos), não importava como eu chegasse. Mas era muito bom. E quando eu fui fazer o segundo ano científico, aí eu disse assim à minha mãe: “Eu não quero mais estudar nessa escola”. Porque lá só tinha Pedagógico. A desculpa que eu dei a ela é que lá só tinha Pedagógico, eu não queria ser professora (risos), e técnico em laboratório menos ainda. Aí ela disse: “Então você vai para o colégio estadual”. Porque, na época, só tinha estadual. Ela já ensinava no estadual também, era professora de Língua Portuguesa. Ela disse: “Mas você vai estudar à noite”. “Mas, mãe, por que estudar à noite?” “Porque eu estou lá à noite e só confio se você estiver no meu turno”. Está certo. Aí fui estudar à noite, dezesseis anos, com ela lá ensinando, não é? E foi nessa época que ela faleceu, quando eu completei dezessete anos. Mas assim... A vida em Cajazeiras - faz muito tempo que eu não volto lá - mas são lembranças muito boas que eu tenho de lá, muito boas mesmo.
P/1 – Darlene, como você brincava bastante na rua, assim, teve algum episódio, alguma coisa que até hoje você lembra? Uma arte que vocês fizeram mais assim, coisa que aconteceu, para contar para a gente?
R – Uma coisa que acontecia sempre nessas brincadeiras de rua é que, quando eu completei quinze anos... Eu nunca fui muito de namorar não, mas minhas colegas todas já namoravam, e aí então eu arranjei um namoradinho. O rapaz era bonitinho, lourinho, bem carinhoso ele. Eu disse logo a ele assim: “Olha, nós temos que namorar escondido, não pode ninguém saber”. “Está certo”. “Só minhas colegas mais íntimas”. “Está certo”. Ele marcava aqueles encontros, mandava aqueles bilhetinhos e eu recebia os bilhetinhos, e ele marcava. Aí eu me arrumava, vestido melhorzinho que eu tinha, usava minha sandalinha, que lá no sertão chamava de sandália de rabicho, a sandália amarradinha no pé. E se eu chegasse na porta e tivesse se armando um mata ou uma barra bandeira, eu tirava o sapato e ia brincar. Aí, às vezes, eu olhava e ele estava lá na esquina olhando para mim e eu brincando no meio da rua (risos). Aí, no outro dia, ele mandava um bilhetinho: “Eu fui ao encontro, esperei; quando cheguei na rua, você estava brincando”. Eu: “Ah, eu esqueci da hora”. Mas não, é que eu preferia brincar (risos) a me encontrar com ele. Ele teve paciência algum tempo mas aí, depois, não teve mais não (risos), porque não dava certo. Aí eu fui muito assim brincalhona, muito de brincar.
P/1 – E brincava com menina, menino?
R – Menina, menino, tudo misturado, sempre foi. Às vezes até mais com menino do que com menina, porque as meninas... Às vezes as mães não deixavam brincar dessas coisas que diziam de “meio de rua”. Mas eu...
P/1 – E os meninos com você, como é que era a relação?
R – Ah, eram muito apegados comigo. E as namoradas tinham ciúmes, porque eles me contavam as histórias, eu era muito mais confidente – mais dos meninos do que das meninas.
P/1 – E brinquedos de criança, você tinha algum especial?
R – Não. Nunca fui muito ligada a brinquedo, nunca fui.
P/1 – Eram essas brincadeiras.
R – Minha mãe comprava essas coisas para mim. Eu terminava de arrumar a casinha, acabou a graça (risos). Arrumava tudinho, porque eu tinha um certo...
P/1 – E você disse que não queria ser professora.
R – É, mas isso aí já foi mesmo para sair da escola, não é? Nessa época, eu não pensava muito o que eu queria ser, não. A ideia foi exatamente para eu sair da escola e só tinha essas duas opções.
P/1 – E você disse que, desde pequena, você ficava com seu pai na serigrafia.
R – É.
P/1 – Fale um pouco como era, o que vocês faziam lá, que lembrança você tem.
R – Era um quartinho pequeno, como eu disse, tudo construído por ele. Era um quartinho pequeno, aí tinha um quartinho fechado, que nesse quartinho eu não trabalhava com ele porque era bem pequeno, era onde ele fazia as telas, que ele chamava de câmara escura, que era a revelação das telas; nesse ambiente eu não trabalhava, era ele sozinho. Aí, quando vinha para a parte das impressões, aí ele imprimia. Por exemplo, quando era camisa ele imprimia, eu dobrava e tinha os secadores de arame, umas telas grandes assim, de arames, que a gente ia arrumando. Porque hoje, as serigrafias vão jogando assim no canto, seca no momento em que sai. Antigamente não, antigamente demorava um pouco, a gente tinha que colocar nos secadores. Aí, ia colocando aquela grade, uma em cima da outra, quando não alcançava mais eu subia no tamborete e ia colocando o restante até em cima. Aí desmanchava tudinho para fazer a segunda impressão, quando tinha mais de uma. Eu trabalhava mais com isso. Quando fui crescendo, já perto de acabar a serigrafia, eu já imprimia. Ele fez um banquinho assim, de madeira, não era nem um banquinho, era como se fosse um tabladozinho que eu ficava em cima, eu já imprimia.
P/1 – E a sua irmã também participava?
R – Minha irmã, não. Muito pouco, quase nada. Quem trabalhava mais com ele era eu mesma.
P/1 – E você ia por quê? Ele chamava?
R – Era. Ele chamava. Como eu disse, minha irmã era muito mais assim tipo princesinha mesmo. Ela dizia que não sabia fazer, e pronto. Ela é canhota e meu pai dizia: “Ah, não, essa menina não sabe fazer as coisas direito, não”. Aí era mais eu que fazia. Mas eu sei que era porque eu gostava e ela não. Minha irmã gostava mais de passear, de namorar, de ir para cinema, era totalmente diferente, como ainda hoje é.
P/1 – São vocês duas ou tem mais irmãos?
R – Só nós duas.
P/1 – E você lembra, Darlene, de coisas que ele falava na época e que te marcaram, tem alguma coisa? Sobre essa parte de trabalho.
R – É, olha, a gente conversava muito. Ele morava comigo, aqui em João Pessoa. Aliás, a gente morava assim... Eu me casei, quando eu me casei já vim para João Pessoa (risos). Quando eu me casei, vim morar num bairro vizinho, morei nove anos. Mas meu pai não deixou de ir um só dia na minha casa. Ele trabalhava, na época - ainda trabalhava - na Saelpa, que era o órgão de energia da cidade, e ele ia de ônibus, o ônibus da empresa. Só que o ônibus já era certo para pegá-lo na minha casa. Ele acordava cedinho, ia para a minha casa, tomava café comigo, pegava o ônibus, ia para o trabalho. Do trabalho, vinha para a minha casa para poder ir para a dele. Isso, os nove anos em que eu morei na minha casa. Aí, quando foi no ano em que eu completava nove anos que tinha saído de casa, ele teve um problema de próstata. Fez a cirurgia, deu tudo bem na cirurgia, aí ele ficou na minha casa, não é? A casa dele lá fechada, só ele e minha irmã moravam lá. Aí, ele disse assim: “Darlene, eu só vou embora quando eu ficar bom da cirurgia”. “Está certo, pai”. Dei meu quarto a ele, fui para o quarto do meu filho e ele ficou lá. Quando saiu o resultado do exame, aí tinha já células malignas, o médico disse: “Você tem que fazer um tratamento de três meses”. “Eu só vou agora quando fizer o tratamento”. “Está certo”. Aí, ele ficou esses três meses. Quando se passaram esses três meses, ele me chamou, conversamos nós dois, queria falar comigo. Fiquei até preocupada quando ele me chamou. “Diga, pai”. Ele disse: “Eu não quero mais ir para a minha casa, quero ficar aqui”. Eu disse: “Mas, pai, a casa aqui é pequena”. Só tinha dois quartos. Por enquanto, dava para a gente se ajeitar. Ele disse: “Então, vamos para a minha casa, vamos voltar para a sua casa”. Aí eu disse para ele: “Mas agora tem uma pessoa a mais, que é o meu marido, eu preciso falar com ele". Aí o meu marido, graças a Deus, gostava muito dele, considerava ele como pai também e aceitou. E a gente voltou para morar na mesma casa.
P/1 – Em João Pessoa.
R – Em João Pessoa, eram bairros vizinhos. Mas ele não se acostumou nunca a morar separado de mim. Quando eu comecei a trabalhar, já morando junto com ele, comecei a trabalhar mais intensamente. Porque eu sou o contrário das outras professoras. As outras professoras começam a trabalhar muito, muito, e depois diminuem a carga. Eu não. Eu só aumento (risos). Aí eu passei a trabalhar de manhã, de tarde e de noite, de manhã, de tarde e de noite, todos os dias. E, às vezes, chegava em casa e ele ainda estava acordado, dizia: “Minha filha, a noite não ficou para ninguém trabalhar”. (risos) “Mas, pai, eu preciso”. Porque a aposentadoria dele já não era suficiente para as despesas e eu tinha que trabalhar mesmo. Aí, quando era no sábado ele sempre se aproximava de mim e a gente ia conversar. Ele ia dizer... Minha irmã sempre uma pessoa um pouquinho difícil, ele ia contar as coisas que tinha passado durante a semana, aí ia perguntar o que eu tinha feito. Ele me ajudava a fazer meus planejamentos. “Pai, eu estou com vontade de fazer tal coisa, o senhor acha que dá certo?” “Dá, minha filha”. Teve um ano que eu quis fazer xilogravura. “Pai, vou fazer xilogravura na escola”. “Minha filha, dá certo?” “Dá pai, tem um material assim que eu descobri, tal”. Aí comprei o material e ele disse: “Traga para a gente experimentar”. Porque a madeira, para trabalhar na escola era mais difícil porque é mais dura. Eu disse: “Eu descobri um material que eles compram”. Eu trouxe para casa, a gente fez uma oficina em casa, nós dois. Eu não sabia fazer xilogravura, ele me ensinou a usar as goivas, os estiletes, ele me ensinou e eu fiz. E ainda hoje faço as oficinas de xilogravura porque ele me ensinou. E ele era muito envolvido no meu trabalho, muito. Quando eu fiz a especialização, eu me lembro muito bem de que quando eu cheguei com meu livro, da especialização, ele ficou muito feliz, muito feliz. Quando vocês me chamaram também, a primeira pessoa em que eu pensei foi nele. Porque eu tenho certeza de que ele ia ficar muito feliz também.
P/1 – Ele era um artista.
R – Era um artista. Fazia pinturas belíssimas.
P/1 – Para fazer serigrafia também tinha (inaudível).
R – Tinha.
P/1 – Como era...
R – Tudo ele desenhava, ele não terceirizava nada, ele fazia da criação ao trabalho final. Eu não sei se vocês conheceram... Vocês são de São Paulo, não é?
P/2 – Eu sou do Recife.
R – É do Recife? Conhece o Armazém Paraíba, em João Pessoa?
P/1 – Sim.
R – Pronto. Aquele logotipo do Armazém Paraíba foi ele quem criou. Ele era muito criativo, meu pai era muito criativo.
P/1 – E quando você veio para João Pessoa? Conta a passagem. Cajazeiras, você disse que era um lugar que tinha uma importância. Fala um pouco desse lugar em que você viveu até ir para João Pessoa.
R – A cidade?
P/1 – É. Mas vocês lá...
R – Como eu estou lhe dizendo, eu vim de lá ainda criança. Porque era desse jeito que eu estou lhe dizendo, ainda era de brincar. Não participava, por exemplo, muito da vida social da cidade não. E até comecei, mas era uma coisa totalmente diferente da minha irmã. Minha irmã, com treze anos, já ia para pequenas boates que havia na cidade, ela já namorava. Eu quando vim, já com dezessete, dezesseis anos mais ou menos, perto de vir para João Pessoa eu ia, às vezes, para os Assustados, que tinha, às vezes, no Sesc, em lugares assim. E meu pai dizia: “Dez horas, viu? Para casa”. “Está certo”. Isso ele não dizia para minha irmã. Eu ia e quando dava dez horas eu olhava assim para a porta e ele estava lá na porta, esperando para ir para casa. Então, minha vida foi mais essa, de grupos de teatro, de grupos de organização de festa, sempre foi mais ligada à coisa cultural mesmo.
P/1 – Eu queria que você voltasse um pouco. Como eram essas apresentações de teatro?
R – Era.
P/1 – A primeira vez que você apresentou.
R – Era bem engraçado. Essa peça mesmo que a gente arranjou a cortina, uns dias antes de se apresentar, o rapaz que escreveu... Tinha uma hora lá em que uma das personagens aparecia de camisola, aí a menina: “Deus me livre que eu não faço isso, não vou de jeito nenhum, não quero mais, não quero mais”. E agora? Não vai ter mais a peça. Eu disse: “Não, eu vou. Por causa de uma camisola?” (risos). O problema era a camisola porque, naquela época, ninguém usava camisola, ninguém usava baby doll, as coisas eram muito difíceis, a gente sabe muito bem disso. A gente dormia com a roupinha mais velhinha que tinha, não é? Não existia esse negócio de camisola. Para arranjar a camisola deu trabalho também.
P/1 – Como é que foi para arrumar?
R – Mas aí foi outra pessoa, outra senhora lá, disseram que ela tinha uma camisola muito bonita, que tinha aquela parte de cima, e tal. Era
meio transparente, mas eu me apresentei assim mesmo, eu não tinha vergonha de nada não (risos). Me apresentei assim mesmo, era cor de rosa, mas eu me apresentei. A apresentação foram três dias, foi nesse Colégio Diocesano, esse que é bem bonito, e eu fiz a apresentação. Aí, depois, me desliguei do teatro, eu parti mais para as artes visuais. Pesou mais para mim, acho que por causa do meu pai, não é? Talvez tenha sido isso, eu segui mais para as artes visuais e plásticas do que para o teatro. Mas foi muito bom o teatro para mim porque eu era muito tímida, ainda hoje sou. Não parece, mas sou (risos). Mas sou muito tímida. Isso me ajudou muito na minha adolescência porque eu saí um pouco dessa timidez que eu tinha, de chegar nos lugares e não falar. Ainda sou assim. Quando eu chego num lugar desconhecido... Vocês é porque parece que a gente já se conhecia (risos). Mas tem lugar em que eu chego e fico meio quietona para poder me enturmar.
P/1 – Chegava no teatro e você...
R – É, no teatro não tinha problema não. Teatro era uma beleza. E o teatro parece muito com a escola, na verdade. Porque a cada turma que a gente pega é uma plateia nova, não é? Por menos que a gente queira, por trinta anos de serviço que a gente tenha, cada ano é uma plateia nova. Então, a gente sente aquele mesmo nervoso, aquele friozinho na barriga. Eu pelo menos sinto, a cada turma que eu pego, nova. Porque você não sabe o que vem naquelas pessoas, o que você vai encontrar. E você mesmo, para você falar para aquelas pessoas, pessoas novas, pessoas que você nunca viu, é difícil; a primeira apresentação é sempre mais difícil (risos).
P/1 – Mas é mesmo.
R – É, é difícil.
P/1 – Darlene, depois vocês foram para João Pessoa, não é? Conte um pouco por que vocês foram. Você já começou a contar, fale mais dessa passagem.
R – A nossa família sempre foi muito pequena, não é? Éramos só nós quatro - a mãe, o pai e as duas filhas. A outra parte da família era uma família menor. Tinha uma pessoa muito importante, que eu não falei, que eu vou falar agora. Era meu bisavô. Meu bisavô praticamente me criou até os sete anos, porque até os sete anos minha família teve certos problemas do casal - meu pai e minha mãe - na época em que eu nasci. E ele ajudou muito na minha criação até os sete anos, meu bisavô.
P/1 – Por parte de mãe?
R – Por parte de mãe. E eu tinha uma ligação muito grande com ele, ele era uma figura muito bonita, alta, era um caboclo, cabelo bem liso, bem moreno, bem moreno, muito bonito ele era. E ainda hoje eu sinto o cheiro do chapéu dele. Quando eu me lembro dele, eu sinto o cheiro do chapéu dele porque eu cheirava o chapéu dele quando ele chegava. Ele usava aquele chapéu de lã. Quando ele chegava, eu sempre cheirava o chapéu dele, penteava muito o cabelo dele, porque era muito bonito. O meu não era, eu não achava, não é? (risos). O dele era bem lisinho e eu adorava pentear o cabelo dele. Foi uma pessoa muuuito importante na minha infância, meu bisavô. Pronto, aí era assim, tinha essa minha tia que morava com ele, que também ajudou muito na minha criação.
R – E tinha bisavó, avó?
R – Só era o bisavô e essa tia. Ele já morava com essa tia, que era a tia Medusa. Eu chamava ela de mãe, inclusive. Era uma pessoa muito boa, muito carinhosa, eu gostava muito dele. A minha casa... Nós morávamos na mesma rua. Eu voltei lá para trás!
P/1 – Que bom. É assim mesmo, vai e volta.
R – A gente morava na mesma rua. Minha casa, a casa do meu pai, era assim uma casa boa, bem pintada, naquela época, de mosaico, tinha banheiro dentro de casa, era uma casa arrumadinha, que ele construiu. Ele desenhava também desenhos arquitetônicos, ele que desenhou a casa, quem fez toda foi ele. Era muito bonita a minha casa. A casa do meu bisavô era uma casa simples, não tinha piso, o piso era de barro. Minha tia aguava para varrer, de manhã. Cozinhava-se num fogão de lenha. Mas eu gostava muito de tudo. Não tinha geladeira, a água era nos potes. E eu fui criada assim, nessas duas casas, me dividia entre essas duas casas. Mas sempre...
P/1 – Você ia falar da sua tia.
R – Sim, a minha tia. Nós morávamos junto e ela cuidava muito de mim, ela cuidava muito. Eu passava mais tempo na casa deles dois do que na minha casa. Eles moravam na mesma rua, mas eu passava mais tempo lá do que na minha casa.
P/1 – E você disse que a família era pequena...
R – A família era pequena, era só essa casa, onde tinha minha tia, meu bisavô e as primas, e nós quatro. Aí, quando a minha mãe faleceu, a minha irmã já morava em João Pessoa, só estávamos nós dois - eu e meu pai. A gente passou seis meses sozinhos, só nós dois. Ele estava terminando a faculdade de História, que ele até... Eu me lembro a idade que eu tinha, ele só tinha até o quinto ano. Minha mãe gostava muito de estudar, que também a gente viu ela fazer Pedagógicos, foi fazer faculdade, certo? A gente viu a história de educação dela toda, acadêmica. E ela insistiu muito para o meu pai estudar, ele não queria, não queria, não queria. Resistia. Aí ele fez, na época, o... Não me lembro mais como era, o Madureira.
P/1 – Madureza.
R – Madureza. Pronto. Ele fez e depois fez o segundo grau, num colégio estadual.
P/1 – Sua mãe viva ainda.
R – Minha mãe viva. Aí foi para a faculdade fazer História.
P/1 – Lá mesmo.
R – Lá mesmo. Nessa época, já tinha a UFPB lá. Aí, faltava um ano para ele terminar, minha
mãe faleceu. No mês de junho, na noite de São João. Meu pai tinha ainda um ano para estudar, mas quando foi no final do ano ele disse: “A gente vai fazer a mudança para você começar a estudar já lá, para a gente não ir no meio do ano”. Mas nesses seis meses ficamos só nós dois. E foi um período assim que eu não tenho muita lembrança, eu não sei se porque foi muito sofrido, mas éramos só nós dois, os vizinhos nos ajudavam. As coisas que eu sabia fazer, eu fazia; o que não sabia, os vizinhos ajudavam a gente. Por exemplo, feijão eu não sabia fazer - eram os vizinhos que faziam para a gente. O jantar, a gente sempre se virava assim com biscoito, com café, porque isso ele sabia fazer. Na época, eu não sabia fazer muita coisa. E nós passamos esses seis meses lá.
P/1 –
Sua mãe morreu de repente?
R – Foi. Minha mãe morreu afogada, na noite de São João, num sítio lá perto. Ela estava em um sítio e eu em outro. Então, ele resolveu que a gente vinha embora para eu não pegar um ano na metade, não é? Aí eu vim, ele alugou uma casa, ficou lá na casa que era da gente, mas alugou uma casa aqui, e ficamos eu e a minha irmã. Minha irmã é mais velha do que eu dois anos. E aí viemos viver aqui em João Pessoa. Ia para a escola, aqui ela tinha a mesma vida que tinha lá e, mais velha, era mais ainda. Ela gostava de sair, gostava de ir para a praia, para a boate e eu ia muito assim... Foi uma mudança de vida muito grande,
não é? A pessoa que vivia no meio da rua, de repente vem para uma cidade diferente, uma vida totalmente diferente...
P/1 – Você já conhecia João Pessoa?
R – Já, eu tinha vindo algumas vezes, já fazia uns dois anos que ela morava em João Pessoa, a gente vinha sempre visitá-la. Mas aí, para morar, foi diferente. Porque eu fui viver numa vida onde ia para a praia, ia para uma boate, eu não estava muito acostumada a isso. Foi difícil a adaptação. Aí, depois de uns seis meses, ele veio. Foi quando ele terminou lá. Quando ele terminou, também fui eu quem foi, minha irmã não foi, quem foi receber o diploma com ele fui eu.
P/1 – Conte um pouco desse momento, do que você lembra da formatura dele.
R – Ah, foi muito bonito. Eu fui sozinha, foi
a primeira vez que eu viajei sozinha. Minha irmã foi me deixar na rodoviária, eu peguei o ônibus e fui embora para Cajazeiras. Ele estava lá. A formatura dele foi num cinema lá, chamado Apolo 11, e foi muito bonito, muito simples. Ele não quis ir para a festa, só foi mesmo para a formatura; mas foi muito bonita, foi simples mas foi bonita.
P/1 – Você lembra a hora dele (inaudível)
R – Lembro, lembro. Perfeitamente. Foi muito bonito.
P/1 – E ele estava...?
R – Não vou dizer que estava feliz, por dois motivos. Primeiro que foi uma coisa que ele fez mas não tinha muita vontade; tanto que ele nunca ensinou, ele não tinha muita vontade, fez mais para satisfazer minha mãe. E eu acho que, naquele momento, ele se lembrou muito dela, porque foi um momento que ele sabia que foi ela quem criou aquele momento e não estava ali para ver acontecer, não é? Mas foi um momento bonito.
P/1 – E aí, terminou o curso e ele veio para João Pessoa.
R – Veio para João Pessoa. Quando ele chegou em João Pessoa estava passando por muita dificuldade porque na época em que ele veio, ele fechou a serigrafia, que era o nosso ganha pão, vamos dizer. Ele veio para cá só com a pensão que ela tinha deixado. Ela era professora do Estado, não é? Só com a pensão. Nem eu trabalhava, nem minha irmã. E ele veio, aí foi a busca de emprego, ele foi trabalhar em alguns escritórios de arquitetura, de engenharia, fazendo aquelas plantas, desenhando. E depois que ele arranjou esse emprego na Saelpa, aí trabalhou até se aposentar.
P/1 – E em João Pessoa, como as coisas foram acontecendo?
R – Ah, quando eu cheguei em João Pessoa fui para o terceiro ano, tinha terminado o segundo lá, fui para o terceiro ano estudar para o vestibular. Mas eu sempre tive necessidade de fazer alguma coisa, porque eu fazia tanta coisa em Cajazeiras e lá eu não fazia nada. Aí, na rua onde a gente estava morando, no final da rua, tinha um lugar que se chamava... que era ligado à Febema, mas em João Pessoa se chamava Febemá porque era o nome de uma pessoa, Alice de Almeida, se eu não me engano. Então eu fui lá, disseram que precisavam de monitores lá. Eu não queria ser professora. Aí: “A gente precisa de um monitor. Monitor aqui, a gente vai para os bairros, a gente faz o grupo de criança, aí você vai ensinar as crianças a cortar unha, andar limpo, se for preciso, ensinar a escrever ali... Você quer?” Eu disse: “Quero”. Aí a gente ia para esse lugar e eles levavam a gente numa Kombi para um bairro. Na época, eu trabalhava num bairro chamado Bairro do Novaes. E a gente ia para uma espécie de galpão, uma espécie de centro comunitário. As crianças iam para lá e eu cuidava da higiene delas, ensinava como elas faziam a higiene, e aí eu brincava, fazia desenho com eles, levava desenho, levava papel, levava massinha de modelar e brincava com aquelas crianças lá. Três vezes por semana eu ia, à tarde; passava a tarde com eles. Acho que foi por aí que foi começando esse... Não, eu acho que não, começou mesmo na infância, porque quando eu me juntava com as pessoas eu era muito isso, era de ensinar, de organizar as coisas, de planejar festa, eu já era muito parecida com o que eu seria, não é? E aí foi quando eu fiz o vestibular.
P/1 – Aí você escolheu?
R – Na época, eu fiz para duas coisas, fiz Arquitetura. Por quê? Porque achava muito bonito o pai desenhar. Aí fiz Arquitetura e fiz Educação Artística, e passei para Educação Artística. Cursei... Na época, a gente se mudou dessa casa alugada, ele comprou uma casa, que é essa que a gente mora até hoje. Aí ele comprou essa casa, que é pertinho da universidade, e eu fui para lá. Quando eu fui para lá não dava mais para eu vir fazer esse serviço que eu fazia em Cruz das Almas, que era onde eu morava. Porque o que eu ganhava não dava para pagar minhas passagens. Aí eu deixei. Falei: “Vou me dedicar à universidade”. A universidade era para a gente terminar em quatro anos. Naquela época, não tinha computador, as coisas eram todas muito escritas, as cadeiras chocavam. E eu, malandramente, às vezes pegava as cadeiras até dando choque de horário. Estudava... De manhã, de tarde e de noite eu estava na faculdade. Aí, quando os professores: “Darlene, você está nessa turma aqui? Você não está”. “Não, não, estou aqui só...”. Pegava, às vezes, disciplina até com choque de horários. Aí, com três anos eu terminei. Quando terminei, entrei nas escolas.
P/1 – Darlene, e lá na faculdade, teve algum professor marcante para você?
R – Teve alguns. Um professor que chamavam de Bermuda, porque ele só ia para a faculdade de bermuda. Ele era um professor que chegava mais junto da gente do que os outros. Ele foi muito marcante. E os professores das oficinas, que não tem como a gente não se apegar a professor de oficina porque a gente fica mais junto. Foi muito bom meu curso, muito bom.
P/1 – Esse curso de Educação Artística teve alguma coisa muito importante que você aprendeu e que você leva para a vida? Ou foi mais a parte técnica?
R – Tem muita coisa que foi a semente, para dali a gente... como a xilogravura, que, na época, eu fiz a gravura em metal mas eu não me identifiquei muito e aí busquei a xilogravura. Teve a cerâmica. Teve muita coisa que foi dando aqueles flashes, e é daí que eu tiro toda a criatividade que vem depois, porque a gente só cria a partir das coisas que a gente conhece. Essas coisinhas que eu fui aprendendo, fui desenvolvendo na sala de aula.
P/1 – Além da faculdade, já na juventude, você saía para fazer alguma coisa na cidade?
R – Muito pouco. Em João Pessoa, muito pouco.
P/1 – E na faculdade, você fez amigos?
R – Muitos amigos. Aí, minha diversão no final de semana era ir para a casa dos amigos, ia visitar um, visitar outro. Mas nunca... Não consegui me envolver em muita coisa em João Pessoa não, até hoje. Eu saio às vezes, mas não muito.
P/1 – Esse grupo de amigos da faculdade, vocês tinham atividade ou era mais visita?
R – Era mais visita, atividades eram mais da faculdade mesmo, mas nada fora disso. Só da faculdade mesmo, de trabalho.
P/1 – Se dedicou total ao estudo.
R – Foi, totalmente.
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Meu marido eu conheci exatamente numa dessas casas onde eu ia no final de semana. Mas aí já de uma forma diferente. Eu comecei a trabalhar numa escola particular, eu gostava muito, eu trabalhava... Na época, só tinha uma quinta série, que era onde tinha Artes. A escola estava começando e o restante do expediente era para trabalhar na secretaria, era para ser meio faz tudo da escola. Bom, aí a diretora viu que eu fazia as coisas e sabia articular muito bem e ela foi se afastando e deixando muito nas minhas costas. Então eu recebia os meninos, só ia embora depois que os meninos iam embora e tal, até que uma colega minha me perguntou assim: “Darlene, você ganha quanto naquela escola?” Eu disse: “Eu ganho um salário”. Ela disse assim: “Mulher, tu é tão inteligente!”. Eu disse: “Mulher, mas eu terminei a faculdade, eu acho que tenho que seguir a minha profissão”. Ela disse: “Não. Você não gostaria de ser fotógrafa não?” (risos) “Mulher, eu não sei fotografar nada”. Aí ela disse: “Mulher, vamos trabalhar na Sonora comigo, eu trabalho na Sonora”. Não sei se vocês conheceram a Sonora. Era uma coisa tão antiga, (risos) era uma loja de fotos, de revelação de fotos. Eu conto isso aos meus alunos, meus alunos bolam de rir: “Professora, isso nunca existiu”. Eu digo: “Que não existiu, menino! Não faz muito tempo não, que eu não sou muito velha, não” (risos).
P/1 – Revelava foto.
R – É, revelava foto em Manaus, não era em João Pessoa, não! Se vocês estão rachando aí, imagine meus alunos (risos). Meus alunos bolam de rir quando eu digo. Eu digo: “Olha, as pessoas levavam o filme, a gente colocava num envelope, vinham aqueles malotes, a gente arrumava aqueles malotes, ia na Kombi, ia de avião para Manaus, passava sete dias para chegar. E às vezes que chegava, a pessoa abria e estava tudo queimado? A festa de aniversário, o casamento, fosse o que fosse (risos). Os meninos ficam desesperados quando eu conto essa história. Aí, eu fui. Só que para ir para essa loja, quando eu cheguei: “Não, não começa logo sendo fotógrafo, não, você começa na recepção”. Eu já tinha ido, eu disse: eu fui. Era para receber mais ou menos o dobro do que ganhava na escola. Aí, fui ser recepcionista. Passei seis meses sendo recepcionista, aí passei para arquivista, até chegar a fotógrafa. Pronto. Aí, fotógrafa, o serviço era mais leve e era considerado o melhor cargo da loja. Pronto. Aí trabalhei um tempo nisso, foi quando teve o concurso para o estado.
P/1 – Conta aí você, de fotógrafa (risos).
R – Eu de fotógrafa era engraçado. Funcionava assim: ia num estúdio bem montado, era bacana o estúdio. Mas acho que eu não era uma boa fotógrafa, não. Mas eu não atrapalhava, fazia meu serviço direitinho. Aí as pessoas vinham, faziam aquela propaganda para a pessoa ir para essa loja quando ela fosse revelar, geralmente, as fotos. “Vamos embora tirar uma foto porque essa foto é de graça, e tal”. Aí, a gente tirava várias poses da pessoa. Uma era de graça mesmo, geralmente a vinte por vinte e cinco, e o restante a pessoa tinha que pagar, saía um pacote. Aí a pessoa, quando via aquilo, comprava, não é? Era assim que funcionava, era uma máfia (risos). Era assim que funcionava. Mas eu gostava de trabalhar, gostava muito de trabalhar lá. Trabalhei dois anos.
P/1 – Tem alguma foto, alguma situação que foi divertida? Ou era sempre divertido?
R – Era sempre divertido. E, principalmente, o estágio; o estágio era engraçado.
P/1 – Conta.
R – Porque a gente fotografava a gente mesmo, as fotógrafas. E a gente fazia muita foto e tirava foto só com tapete, pegava o tapete do chão, colocava assim, fazia aquelas coisas, era muito interessante. O treinamento que a gente fazia era: as mais experientes com as que estavam entrando. Não tinha curso, não tinha nada.
P/1 – Fazia pose.
R – Fazia pose, era muito engraçado. Eu tenho várias fotos, essa do tapete mesmo eu acho linda essa foto, bem bonita. Aí saiu um concurso para o estado, eu disse: “Agora eu vou fazer esse concurso”. Na época, como não era como hoje, a gente não tinha muita esperança em concurso, não, a coisa era muito política na época. “Não, mas eu vou fazer”. Aí fiz o concurso. Mais uma vez estava lá meu pai, comigo: “Vai, minha filha, fazer. Quem sabe se não dá certo?” Aí, um dia, ele disse: “Darlene, vem cá...”, ele gostava muito de escutar rádio: “Está dizendo aqui que vai sair o resultado do concurso”. Aí eu disse: “Mas, pai, isso é só para as pessoas já marcadas para isso, eu não vou nem escutar”.
“Não, minha filha, venha”. Aí eu sentei no sofá com ele, quando disse lá meu nome eu fiquei muito feliz: “Olha, pai, passei no concurso”. No outro dia saiu no Diário Oficial. Eu ainda tenho esse Diário Oficial, amarelinho, amarelinho. Aí saiu no Diário Oficial. E lá eu fui, fiz toda aquela coisa, levei os documentos. Quando eu fui ver o salário, meu Deus do céu! Era metade da quinzena pequena que eu ganhava nessa loja. E agora? (risos). Fui e disse a meu pai: “Pai, e agora? Olha aqui quanto é que eu vou ganhar”. Aí ele disse: “Você é quem sabe, minha filha. Agora, eu acho que é a sua profissão, acho que você tem que entrar na sua profissão”. “Está certo”. O que eu fiz? Fui trabalhar de noite. Passava o dia inteiro na loja, até seis horas da noite, saía na carreira para a escola. Só aguentei um ano, não é? Aí pedi ao gerente para sair. Aí o gerente disse: “Não”. Eu pedi para ele me colocar para fora, que era para eu ganhar. Ele disse: “Não faço isso, não, Darlene, de jeito nenhum. Está vendo que eu não vou pôr você para fora, que motivo eu vou dar?” Eu disse: “Arranja um motivo aí”. Ele: “Não coloco, não”. Eu disse: “Pois está certo”. Comecei a faltar, a faltar e a faltar. Quando foi um dia, ele chegou na minha casa, bateu na porta da minha casa. Eu disse: “Meu Deus do céu, o gerente da loja” (risos). Ele disse: “Darlene, pelo amor de Deus, eu sei que você não está doente. Faz cinco dias que o caixa não é fechado, vamos embora para a loja”. Porque eu, além de ser fotógrafa, fechava o caixa, porque ninguém sabia. Porque uma, na época em que eu trabalhava... Quando eu digo essas coisas, parece que eu sou muito velha, eu sou nova, eu só tenho cinquenta e cinco anos (risos). Naquela época, uma mulher não podia ser encarregada de nada, não podia ser chefe de nada, só podia ser o homem. O homem era um bom fotógrafo, o chefe, mas ele não sabia fazer nada. Eu fazia o serviço dele todinho porque ele não sabia fechar um caixa, aí eu tinha que fazer o serviço dele. “Vamos embora fechar”. “Vou não, de jeito nenhum, se vire lá”. “Você vai”. Eu disse: “Vou, não”. “Vamos embora que eu faço um acordo com você: eu coloco você para fora, mas só se você passar quinze dias ensinando uma pessoa a fazer”. “Está certo”. Aí eu fui lá, ensinei uma moça a fazer o serviço para o rapaz que não sabia, porque ele é quem ganhava o dinheiro (risos). Ela aceitou fazer o que eu fazia e aí ela ficou lá no meu lugar. E eu fui só trabalhar. Eu trabalhava de noite, não é? Aí fui correr atrás de uma transferência para trabalhar durante o dia. Trabalhei um ano nessa escola - primeira escola - e aí consegui essa transferência para uma escola.
P/1 – Darlene, conte a primeira vez em que você entrou na sala de aula. Como foi?
R – Ah, é. Primeira vez que eu entrei na sala de aula da EJA.
P/1 – Era EJA mesmo o primeiro trabalho seu?
R – Era.
P/1 – Então conta.
R – Olha, quando eu entrei naquela sala havia poucos alunos. Eu falei: “Meu Deus, o que é que eu vou ensinar para essas criaturas?” Porque ainda hoje eu não sou boa de EJA, não - vou dizer bem baixinho para ele não gravar (risos). Não sou boa, não. Minha diretora diz assim: “Mulher, tu faz teu serviço _0:43:53_”. “Não faço, não. Com a EJA, eu não faço”.
P/1 – Por que você acha que não?
R – Eu não sei. Assim... Eu não sei se é a diferença que tem de um aluno para outro, você trabalhar com um aluno que não sabe ler nem escrever nada, de você... Quando eu pesquiso, às vezes, as atividades para levar. Eu digo: “Meu Deus, isso é coisa de criança”. E o pior: quando a gente leva para sala de aula tem uns que dizem que acham maravilhoso: “Ah professora”. Por exemplo, um exercício de coordenação motora. “Ah professora, isso é muito bom, deixa a mão da gente mais...”. Aí tem os: “Eu não vou fazer isso, não, que isso é coisa de criança”. E é coisa de criança. Aí eu acho difícil, eu acho difícil. Principalmente para minha disciplina, que é Artes. Eu digo à diretora: “Delmira, eu acho que engano, não gosto de enganar mas parece que eu estou enganando”. Se eu levasse uma coisa prática, colagem, que eles gostam, eu também acho que estou enganando, não estou ensinando nada, sabe? Enfim, eu não me sinto muito bem, não. Eu gosto mais do adolescente mesmo, é um segmento que eu não gosto muito, não. Mas sempre ensinei, desde a primeira turma (risos).
P/1 – E quando você chegou?
R – Essa primeira turma era numa escola bem pequenininha, sem muitos recursos. Mas assim... Era bom, era uma relação boa. Agora, aqui eu entrei, como se diz, sem experiência. E, claro que eu não tinha experiência nenhuma de sala de aula, quase nenhuma. E com uma turma dessas, muito menos, não é? Mas aí eu fui muito na conversa, eu conversava muito com eles, levava atividades, às vezes levava coisas práticas para a gente fazer, conversava muito sobre as experiências que eles tinham em casa, uns que faziam atividades manuais. E eu levei muito a conversa toda esse ano por aí, porque eu me senti um pouco perdida. Aí, quando eu pedi transferência de lá, fui para uma escola de fundamental, e aí não foi mais fácil, não, foi difícil que só, também.
P/1 – Como foi também o começo?
R – Aí, essa escola para onde eu fui chama-se Instituto Dom Adauto, é uma escola bem bacana lá, uma escola de referência lá em João Pessoa porque é uma escola conveniada com a Paróquia Nossa Senhora de Lourdes. Ou seja, é uma escola onde não falta nada. Porque a gente sabe que... Não sei se posso dizer isso... Posso dizer tudo? (risos).
P/1 – Claro.
R – A gente sabe que a escola pública.. A gente não tem recurso nenhum. E lá não, lá não faltava nada. Por quê? Porque a paróquia não deixava que faltasse. Então a gente tinha muito material, a gente tinha tudo que a gente podia ter numa escola. Eu digo muito, e digo sem medo, e digo em qualquer lugar em que eu vou, que a minha faculdade, a minha universidade foi no Instituto Dom Adauto. Foi onde eu aprendi quase tudo o que eu sei, que é bem pouquinho, mas aprendi muito lá. Então, quando eu cheguei lá a diretora me deu turmas de sexto, que na época era de quinta, quinta série à oitava série do turno da tarde. Aí eu comecei a trabalhar. Escola bonita, aqueles prédios antigos. Lá tem dois prédios, um prédio principal e um anexo, que funcionava tempos atrás, aquelas histórias de oficinas que tinha antigamente, de indústria, aquelas coisas todas. E era fechado esse prédio, se dizia até que era o prédio do arquivo morto. Aí eu comecei a trabalhar na sala. E tive curiosidade de conhecer o lugar. Eu disse: “O que é que funciona neste prédio?” “Embaixo é arquivo morto e em cima tem umas salas, mas não funciona não”. “Posso olhar?” “Pode”. Subi, quatro salas imensas. “Meu Deus, como é que uma sala dessas não funciona?” Aí eu falei com ela, eu disse: “Você deixa eu abrir uma sala daquelas para dar as minhas aulas lá?” “Ai, Darlene, dá certo, não. Tirar os alunos de um prédio para levar para o outro no meio das aulas todas”. Eu disse: “Olha, se você colocar duas aulas juntas eu levo e trago os alunos para a sala”. Aí ela disse: “Vamos ver se dá certo. Mas não tem material para levar para lá, não tem carteira”. “Eu vi um bocado de coisa lá. Eu posso arrumar?” “Pode”. Aí peguei umas mesinhas velhas, umas carteiras, umas coisas e formei minha sala - uma dessas salas. A primeira vez em que eu fui, eu subi uma escada bem estreita... Claro, um arquivo morto vocês podem imaginar como era. Um prédio antigo. Os meninos subiam aquela escada comigo: “Professora, tem bicho aí em cima?” “Tem não, tem nada aqui em cima”. Aí as janelas eram bem grandes, a sala era bem clara. E eu fiz um monte de loucura nessa sala. Eu fiz papel reciclado,trabalhei com argila... Era uma sala grande, eu fiz muita coisa. Tudo o que eu queria experimentar eu experimentei naquela escola, tudo o que eu tinha vontade eu fiz nessa escola.
P/1 – E os alunos?
R – Os alunos adoraram. Eu passei um ano na sala assim. Aí o padre... Porque era o padre Trigueiro, o pároco da igreja, ele era uma pessoa que queria ver a escola crescer, ele gostava muito da escola. Aí, uma vez, ele perguntou: “Por que é que essa professora vai para aquele prédio ali, aquele prédio sujo, não sei o quê, não sei o quê? Eu quero ver o que essa professora está fazendo. E ele foi olhar. Menina, nesse dia em que ele chegou, eu pensei que ele tinha ido no pior dia, mas parece que foi no melhor. Quando ele chegou, estava cheio de varal a sala, pendurada com papel reciclado. “Professora, o que é isso?” “É papel, padre”. “Papel?” Eu disse: “É”. Ele disse: “Eu pensei que fosse jornal”. “Não, padre”. Eu mostrei: “Isso é jornal, mas isso aqui que está aqui em cima é o papel, quando a gente tirar fica a folhinha de papel”. Ele disse: “E é?” Eu disse: “É”. “Depois eu quero ver esse papel”. (risos) “Certo”. Aí, desse papel eu fiz bloquinho, coisa e tal, eu sei que no outro ano ele me chamou e disse: “Professora, eu encomendei umas mesas para a senhora. Mas não encomendei cadeira ainda não. Vou encomendar as mesas e depois eu encomendo as cadeiras”. “Está certo”. Aí ele fez duas mesas imensas para a oficina. Aí já foi melhorando. Quando eu saí dessa escola, essa sala... Não só essa sala... Essa sala funcionou um ano meio sucateada, no outro ano com essas mesas que ele me deu. A diretora era muito criativa, ela dizia assim: “Darlene, eu tenho umas ideias, só não sei fazer” (risos). Ela achava que a gente dava certo por isso, porque ela dizia: “Eu não sei fazer não, mas eu quero assim, assim e assim”. “Está certo”. Aí ela me chamou: “Darlene, você está sozinha ali, tem mais três salas. Vamos fazer o seguinte: vamos colocar uma sala de vídeo, vamos fazer uma sala de leitura e um laboratório para aquela lá”. Pronto. Quando eu saí de lá não existia mais arquivo morto naquele prédio e funcionavam essas três salas: a sala de leitura, muito bonita - porque ele era muito assim dedicado à escola, fez uma sala de leitura bem montada - a sala de leitura, de vídeo e o laboratório de Ciências. E a sala de Artes.
P/1 – Muito legal.
R – Muito bonita. O ambiente ficou muito bonito. Quando eu saí de lá ficou assim.
P/1 – Começou com aquela...
R – Pois é! Aí ficou muito, muito bacana lá. Quando eu saí... Eu gostava muito da escola, eu fiz muita coisa lá, fazia assim, às vezes, umas... Como eu disse a vocês, a partir desse papel que eu fiz lá, eu fiz muita loucura. Fazia festa de São João. Aí, como as festas de São João eram sempre para a gente arrecadar dinheiro para fazer alguma coisa... Aí teve uma vez que eu inventei de fazer umas barracas. “Darlene, isso dá certo?” Eu disse: “Dá” (risos). Os meninos arranjaram madeira e a gente fez barracas, sabe? Eu fazia muita coisa lá. Só que, por ser uma escola conveniada, a gente só tinha ajuda da paróquia. Não faltava material, não faltava nada, mas o salário da gente era menor do que todos do estado. A gente não tinha direito a nada. Quando tinha algum concurso, algum curso para fazer, a gente nunca era chamado. A gente era considerado uma escola... Tinha gente até que achava que a gente ganhava gratificações por causa da paróquia, então a gente não era convidado para nada. Eu sabia que tinha curso de Artes num canto, tinha oficina e eu não era chamada. Minhas colegas, às vezes eu encontrava, da faculdade: “Darlene, fui para uma oficina, você não estava”. “Não fui chamada”. Aí tinha umas escolas lá em João Pessoa que eram escolas de um complexo chamado Cepes, que era como se fosse uma escola integral, era uma das primeiras assim, engatinhando, escola integral. Só que era difícil entrar nessas escolas, era muito difícil. E eu fui procurar saber como que entrava. Porque foi assim... Escolheram essa escola, quem estava naquela escola ficou, mas para entrar era difícil. Eu disse: “Vou procurar”. Aí, uma colega que trabalhava numa dessas escolas ligou para mim: “Darlene, tem uma vaga para professor de Artes, vai procurar”. Eu fui lá na escola, falei com a diretora, a diretora ficou assim mais ou menos, daqui a pouco ela ligou para mim e disse: “Não, a Secretaria mandou uma pessoa”. Eu disse: “Eu fui pelo caminho errado, eu vou pelo outro caminho agora”. Fui procurar uma conhecida que trabalhava na Secretaria, ela chegou e perguntou... Ela é de Cajazeiras... Aí ela: “Darlene, por que é que você quer ir para essa escola?” “Mulher, por duas coisas: porque dizem que lá a pessoa tem muitas oportunidades para aprender mais, e ganha mais, muito mais do que eu ganho”. Aí ela disse: “Pois eu vou arranjar para você, eu não conheço ninguém de lá, na verdade, mas eu vou arranjar para você”. Isso lá no Centro Administrativo. Ela subiu comigo, chegou um homem lá, meio sério, ela falou com ele e disse: “Olha, eu vou colocar seu nome aqui, mas já tem aqui, estão os documentos da moça aqui, ela está no lugar”. Eu disse: “Está certo”. Quando a gente ia descendo no elevador, ela disse: “Ô, meu Deus, logo nessa escola eu não conheço ninguém, porque aqui no Centro Administrativo, quando a gente conhece outra pessoa a gente deve um favor, um deve um favor e tem hora que a gente cobra” (risos). “Mas de lá, não vi ninguém a quem eu deva nada ou que ela deva nada a mim”. Aí, quando eu ia descendo, a moça entrou. Aí: “Oi”. Abraçou ela, deu um beijo. Ela disse: “Fulana, você sabe de uma pessoa desse grupo Cepes que eu possa procurar para arranjar um coisa?” Ela disse: “Eu”. “E você trabalha? Vai subir não, vai descer para minha sala” (risos). Quando chegou lá, ela disse que era minha amiga de infância, não sei o quê, não sei o quê, e que eu estava precisando, e bê bê bê, bê bê bê. Ela disse: “Olha, dê-me uma hora que eu lhe dou a resposta”. Subiu, ela disse: “Pronto, vá para casa, pode ir para casa que essa aí, ó, se eu estava procurando uma pessoa que me deve alguma coisa, essa me deve muito. Ela só não faz se ela não conseguir”. “Está certo”. Fui embora para casa. Eu cheguei em casa, depois de uma hora mais ou menos, ela ligou para mim e disse: “Olhe, vá amanhã se apresentar na escola. A menina tirou os documentos da moça e colocou o seu (risos)”. Eu disse: “Eu sinto muito” (risos). Fui por esse caminho e foi quando eu fui para essa escola em que eu trabalho até hoje, Gonçalves Dias.
P/1 – Até hoje?!
R – É.
P/1 – Quantos anos, Darlene?
R – Dezessete.
P/1 – Dezessete.
R – Que eu estou nessa escola, é.
P/1 – E você é do estado.
R – Sou do estado.
P/1 – E você também dá aula na Prefeitura?
R – É. Na Prefeitura atualmente eu estou com pequenininho - de primeiro a quinto ano.
P/1 – Faz tempo?
R – Faz tempo, faz. Doze anos que eu estou na Prefeitura.
P/1 – E como é trabalhar com os pequenininhos?
R – É bom, é muito bom trabalhar com os pequenininhos, eu gosto muito.
P/1 – A primeira vez que você entrou na sala de pequenininho, como foi?
R – Foi tranquilo.
P/1 – Foi?
R – Foi há doze anos. Quando eu fui para a Prefeitura, já fui para os pequenininhos. Algumas coisas eu tive que me adaptar, porque era uma comunidade muito difícil. Eu sempre enfrentei muitos desafios, a minha vida todinha. Quando eu cheguei nessa escola, essa escola tinha... Se eu estiver falando demais, vocês me cortem! (risos)
P/1 – Não, está ótimo! Quanto mais falar, mais detalhes, melhor.
R – Essa escola chamava-se Dauro Santiago Rangel. Quando eu cheguei na escola, já dentro da comunidade mesmo... Era uma casa, cinco salas de aula, as professoras davam aula trancadas de chave. Quando eu entrei na sala, a secretária chegou e disse assim: “Vou fechar, viu professora? Qualquer coisa, a senhora bate”. Eu disse: “Espere aí, vai fechar por fora a porta?” “É que os meninos não ficam dentro da sala não, se não fechar”. Eu disse: “Não, a minha não. A minha você pode deixar aberta”. Ela disse: “Professora, a senhora está chegando hoje e a senhora vai deixar?” “Pode deixar aberta a minha sala, não feche, não”. Aí, comecei a conversar com meninos do primeiro ano, aí daqui a pouco eles se levantavam, como se diz, é coisa da comunidade mesmo, tem comunidade que você sabe, tem umas coisas estranhas. Eles se levantavam, ficava um virado para cá, um virado para o outro lado, com os ombros juntos. Se eles fizessem ‘isso’ era uma briga. Ali era como se fosse uma rinha, juntava um monte e começava a brigar. Quando os dois primeiros se levantaram, que fizeram isso e começaram a brigar, eu fiquei parada, olhando. E eles brigando: “Tia, você não vai fazer nada? Olhe, estão brigando”. “Vou não. Você sabe o que é que eu sou? Eu sou professora, só sei ensinar. Quem sabe apartar briga é policial, não tem nenhum aqui. Então, quando eles resolverem parar de brigar...”. Nunca mais brigaram. Nas minhas aulas não brigavam. Aí, graças a Deus, chegou uma professora de dança. Esses meninos... Eles faziam Carnaval, Páscoa, Natal, dentro da sala, só eles, trancadinhos com a professora. A professora levava bolo, levava não sei o quê, dentro da sala. Aí a primeira festa que eu fui participar foi a Páscoa. A professora de dança chegou, eu disse: “Eu queria fazer uma coisa com esses meninos, queria fazer um trabalho com eles. Pode ser um cartão, pode ser um desenho, uma mensagem para os que souberem escrever, para eles irem entregar na outra sala”. Ela disse: “Você é doida? A diretora não deixa, não”. “Vamos embora falar com ela”. “Você é doida? Misturar duas turmas aqui, é coisa de doido fazer um negócio desses”. Eu disse: “Mas deixa eu fazer, a professora de dança vai me ajudar”. “Está certo”. E a gente fez a Páscoa, foi linda. Eles não fizeram a Páscoa como deveria ser, ainda, mas eles saíram de sala em sala trocando aqueles pirulitos e aquelas mensagens. Quando eu saí dessa escola... Essa escola eu não saí dela, essa escola foi construída maior e a gente foi para esse outro lugar. Mas nessa pequena, a gente já fazia festa de criança com pula-pula na frente da escola. Mas as professoras da escola tinham medo da comunidade. E a gente não pode ter medo de aluno, não pode ter medo de estudante. Eles estão ali em busca de coisas melhores, ninguém pode ter medo deles. E, graças a Deus, hoje a escola é grande, é uma escola moderna, na mesma comunidade, está num local melhor e, graças a Deus, uma escola muito boa. É nessa que hoje eu só ensino a EJA.
P/1 – Você voltou para EJA?
R – Sim. Nessa escola eu só ensino a EJA. Eu nunca deixei a EJA, não.
P/1 – Ah, é?
R – EJA, não. Agora, eu não acho que faça um bom trabalho na EJA, não. Não acho que faço. não.
P/1 – Você já perguntou para os seus alunos?
R – Ah?
P/1 – O que seus alunos falam de você em relação à EJA?
R – Não, eles gostam de mim, sabe? Gostam de mim. Quando eu chego: “Eita, chegou a professora de Artes, vamos fazer o quê hoje?” Mas eu é que não me satisfaço com meu trabalho, sabe? A diretora até diz: “Não, Darlene, você ajuda tanto”. Eu não acho, eu não vejo, não consigo ver o resultado do trabalho que faço.
P/1 – Então na Prefeitura você dá aula na EJA, e no estado...
R – Eu trabalho em duas escolas na Prefeitura: uma EJA e outra é de primeiro ao quinto ano. A do primeiro ao quinto ano você vê o resultado assim, na hora em que você... E, no estado, do sexto ao nono ano.
P/1 – Você trabalha de manhã, à tarde e à noite?
R – É (risos). Exatamente.
P/1 – Darlene, e como você encontrou o Telecurso? O projeto?
R – Olha, o Telecurso foi o seguinte: eu vi a propaganda no site do estado - um curso para correção de fluxo, não sei o quê. Eu já tinha feito um e gostei muito, foi onde eu aprendi a fazer projeto. Porque eu sempre tive essa vontade de aprender as coisas (risos). Aí eu disse: “Aquele que eu fiz, eu aprendi tanta coisa, eu vou fazer esse também”. Não pensava nem se ia para a minha escola, mas eu sabia que ia aprender alguma coisa. E aí eu liguei para o meu diretor e disse: “Olha, eu vou fazer esse curso, é uma semana”. Já tinham começado as aulas. “É uma semana e eu vou fazer”. “Está certo”. E aí eu fui fazer o curso. No primeiro dia... Mais uma vez eu vou perguntar, tem coisas aqui que eu vou falar, não sei nem se pode. Aí, vocês vão cortando (risos).
P/1 – Vamos combinar, então, Darlene. Para a gente é muito importante que você fale tudo o que foi bom, o que foi difícil, o que você faria diferente…
R – Certo. Bom, foi na universidade porque era muita gente, eram muitas salas lotadas de professores para fazer esse curso. Aí, a gente foi para um auditório, onde foi uma pessoa da Fundação, não me lembro mais quem foi, e foi falar sobre o que era. Falou, tal. Quando essa pessoa saiu, veio a pessoa da Secretaria, a responsável da Secretaria. E aí começaram as perguntas: “E a gente vai ter direito a alguma coisa?” Aquela questão toda. E se dizia que não, que não tinha gratificação, que eram vinte horas/aula, e tal. E se falou até que... Até o motivo de eu ter me afastado... Porque eu me afastei este ano, como eu disse a vocês... É que a gente poderia pegar uma dobra, trabalhar um pouquinho a mais em outras turmas para ganhar um pouquinho a mais, mas que o Alumbrar, no caso, não ia... Na época, não tinha nem nome quando começou... Não ia ter essa oportunidade de ter nenhum tipo de gratificação, não. Pronto. Depois dessa reunião, ficou mais ou menos a metade das pessoas; muita gente ali, depois do almoço, foi embora e não voltou mais. E ficou só, realmente, quem estava ou curioso, como era o meu caso - eu não vou dizer que fui sabendo o que era, porque eu não sabia - e ficaram só as pessoas que se interessaram mesmo, por algum motivo. Mas eu gostei demais, fui me envolvendo com aquilo, sabe? No primeiro dia, meus primeiros formadores foram - não sei se vocês conhecem - a Tatiana e o Flávio; foram os dois primeiros. E, no primeiro dia, eu já fiz um verso de cordel para eles, no primeiro dia. Coisa que eu não sou cordelista, eu escrevo quando sinto vontade, quando aquela atividade proporcionou, certo? Aí eu escrevo, como se diz, atrevidamente; escrevo uns versos de cordel. E aí eu comecei a escrever um cordel. E todos os dias a aula terminava com o cordel que eu tinha feito durante a aula. Então, o meu envolvimento foi imediato com tudo, com aquilo que eu estava vendo, com aquela metodologia que a todo momento as pessoas diziam que era encantadora, que era motivadora e, realmente, era, não é? Eu fui me envolvendo, fui me envolvendo, fui me envolvendo, de não ter mais como
me livrar daquilo. Da pessoa dizer: “Olha, Darlene...”. Eu não ter coragem de não seguir, certo? Porque eu vi que era uma coisa de que eu precisava naquele momento. Eu não sei se já há muito tempo... Vocês acabaram de ver a minha vida, sempre teve alguns desafios. Eu estava vivendo há muito tempo na... E eu precisava de uma coisa nova. E o Alumbrar veio para mim como isso, como um desafio, uma coisa nova, uma coisa que eu nunca tinha tido, uma turma só minha, não é? Eu pensava muito nisso. Eu, como professora de Artes, cheguei a ter vinte e cinco turmas! Eu não conhecia ninguém, tinha muito essa necessidade de ter a oportunidade de ter um estudante junto de mim, de conhecê-lo. Eu tinha muito essa vontade. E o que o Alumbrar me deu de melhor foi isso, de eu me encontrar mais junto do meu aluno sem me meter na vida dele, sem saber da vida particular dele, mas saber dele, da pessoa dele, sabe? Foi o que me deixou mais marcas, o Alumbrar me deixou marcas muito profundas. Não foi muito fácil para eu sair, não. Ainda não está sendo, está sendo muito difícil, certo? A todo momento eu estou procurando saber como é que está seguindo, como é que a professora está seguindo. Tanto que tem uma amiga minha que fala: “Darlene, se desligue do Alumbrar, se desligue disso porque você vai sofrer”. Porque, realmente, eu fico preocupada com o seguimento disso.
P/1 – Darlene, você disse que logo no primeiro encontro com esses dois formadores você até se inspirou e fez o cordel. Você consegue dizer o que é que lhe inspirou, o que é que fez você pensar nesse movimento?
R – Foi tudo o que eu fui vendo.
P/1 – O que você foi vendo?
R – Quando eles começaram a mostrar, porque, na verdade, não falaram, eles começaram a mostrar a metodologia, não é? Então, a gente começou a viver aquilo e eu tive vontade de fazer aquilo também.
P/1 – O que era?
R – Eu não queria só participar, eu queria fazer também.
P/1 – Descreve o que era isso que eles mostraram, que vocês faziam. Dê um exemplo.
R – Pronto. Uma aula que você não ia começar assim: “Hoje, nós vamos falar sobre tal coisa”. Foi a primeira coisa que me chamou a atenção porque, geralmente, os educadores, o professor, chegam e falam: “Hoje, nós vamos falar sobre objeto direto”. E vamos lá, não é? Mas a maneira que traziam isso, para a gente descobrir o que a gente ia aprender, através da problematização. O que é que a gente vai fazer aqui? A gente fica curioso para saber. Aquele jogo, aquela coisa pelo chão, muitas vezes pelas paredes. “Meu Deus, o que é que eu vou aprender hoje?” A questão do descobrir, do escolher, se eu quero aprender aquilo daquele jeito, ou não. Será que esse jeito é melhor? Daquele jeito é melhor? Eu tenho a oportunidade de dizer assim: “Não, se a gente fizesse assim não seria melhor, não?”. Certo? Isso foi o que me encantou, o que me deixou entusiasmada com o projeto, foi isso. Foi essa oportunidade que eu teria de ter um estudante estudando diferente, não é?
P/1 – Bom, vai contando como aconteceu o trajeto aí.
R – Ainda do curso?
P/1 – É, do curso. Depois, como você começou a fazer o trabalho.
P/2 – Mostrar suas aprendizagens também.
R – Sim, aprendi muita coisa, aprendi muita coisa, amando eu fazer a metodologia. Eu prestava muita atenção no jeito deles dois, principalmente os dois primeiros. O jeito que eles faziam, quando eles terminavam ali, que eles arrumavam bem arrumado na parede, que aquilo ficava destacado, certo? Aí eu já imaginava que era, realmente, o que era a metodologia. Na verdade, a gente não ia aprendendo, a gente ia sentindo, aquela coisa ia tomando conta da gente. Aí eu já imaginava aquilo, dizia: “Se eu pegar aqui e colocar na parede, a pessoa não esquece aquilo nunca mais. Porque aquilo está lá o tempo todo com você, não é?”. Eu achava aquilo tudo assim, muito bonito. Aí fui me encantando, e cada dia mais e fui aprendendo, aprendendo. E eu acho que quando chegou, faltava um dia quando a pessoa da Secretaria, mais uma vez, passou, que perguntou assim: “Quem está pretendendo mesmo?” Eu fiquei assim: “Meu Deus, será que eu sei fazer? É tão difícil! (risos), é tanta coisa”. Eu levantei a minha mão. Aí ela pegou o nome da escola, e tal. Mas a partir dali... Eu acho que a partir dos primeiros momentos eu vi que queria ter aquela vivência, aquela oportunidade de viver aquele momento diferente.
P/1 – E como disse a Ana, que aprendizagens mais? Uma delas você já falou. Por exemplo, só o fato de colocar na parede, isso já dá uma valorizada.
R – É.
P/1 – Outras coisas que você lembra que foram marcantes para lhe encantar tanto e você...
R – É. Eu ver que era uma metodologia que, além dessa aprendizagem diferente, ela trazia essa questão do chegar perto, do estar junto. De se eu aprender, você aprende; a gente aprende junto, certo? Eu aprendi isso também, que isso era possível, que a aprendizagem não se faz só individualmente. Eu estou aqui assistindo a aula, eu aprendi; se fulano não quer aprender, problema dele. Mas eu vi que a metodologia mostrava que era importante que eu aprendesse, que nós aprendêssemos juntos, até a professora. E muitas vezes, nas salas onde eu estava dando aula, eu fazia, fazia a problematização, preparava, fazia com eles e tal, assistia a teleaula e depois... “Gente, vocês entenderam? Também não? Vamos embora voltar tudinho” (risos). Sabe, da gente ter essa oportunidade de dizer isso, que a gente não tem no regular. No regular, se você aprendeu você passa na prova, se não aprendeu acabou-se, você não tem oportunidade de ver aquilo de novo. E nas nossas salas, não, a gente vai e volta na hora que a gente quer. “E sabe aquilo que a gente viu naquele dia?” “Não acompanhei não, vamos voltar para lá?”. Coisa que a gente não tem oportunidade no regular e que deveria ter, que cada vez que eu passava na Alumbrar e que eu via as outras salas, eu ficava pensando: “É tão possível acontecer isso em todas as salas, por que não acontece?” Mas não acontece por isso também, porque um professor que tem... Por exemplo, eu tenho cinquenta e quatro aulas por semana, não é? Como é que a gente faz isso numa sala de aula do regular? É difícil, é preciso ter muita garra, muita vontade de fazer, porque é difícil.
P/1 – Em regular vocês dão aula… São vários professores.
R – É.
P/1 – E no Alumbrar?
R – Um professor só.
P/1 – E como foi para você? Você só era professora de Artes.
R – Eu só era professora de Artes (risos).
P/1 – Como é que foi?
R – Foi difícil. No início, foi difícil. Eu tive que estudar muito, ainda nos últimos dias eu tive que estudar muito, estudar muito mesmo, principalmente Matemática. Eu tinha muita dificuldade em Matemática. Então, buscava muito ajuda.
P/1 – E você trabalhava? Qual foi a proposta que fizeram para você? E você falou: “Eu quero, qual é a proposta?”
R – Na escola, não é?
P/1 – É.
R – Aí eu fui para a escola, disse ao diretor o que tinha acontecido. A Secretaria já tinha me dito que eu podia implantar a sala na escola. E aí eu fui ao diretor e disse a ele que tinha feito esse curso, expliquei a ele como era e que eu achava que era importante para a escola ter.
P/1 – A Secretaria era parceira do projeto.
R – Isso, parceira.
P/1 – Mas foi você quem conversou com o diretor.
R – Com o diretor. Foi, quem conversou com o diretor fui eu. Mas já tinham ligado da Secretaria dizendo que eu tinha feito o curso, que tinha dito que ia... Se existiam os estudantes para isso, certo? Ligaram para o diretor. E aí eu fui, falei com ele e ele disse: “Darlene, e aí?” Porque, no momento em que começou, a gente não tinha material, não é? Aí lá fui eu me lembrar do Dom Adauto. Eu disse: “A gente faz”. Arranjamos umas carteiras, desocupamos uma sala, porque as salas eram todas ocupadas, aí tinha uma sala que era pequenininha, nós transferimos um nono ano para lá, que era menor. E eu fui lá falar com os meninos do nono ano, que eles já estavam instalados na sala, conversei com eles, disse a eles o que era, como ia funcionar, que era para ajudar os próprios colegas que estavam em dificuldades. E eles aceitaram.
P/1 – Mudar de sala.
R – Foi. Aí foram para essa salinha menor. Essa salinha menor tinha um ar condicionado, eu me peguei logo com ele, eu disse: “Bem friinha a sala”. Porque eles ficaram meio apertadinhos, os bichinhos, um ano todinho eles ficaram bem apertados. Aí pronto, eu montei a sala e comecei.
P/1 – E como era para chamar os alunos? Essa mobilização dos alunos?
R – Olha, essa primeira turma foi formada com alunos que já estavam matriculados, porque as aulas já tinham começado. Aí, a gente foi vendo o sexto e sétimo anos, os alunos que estavam mais fora da faixa e formamos uma turma de vinte e cinco alunos. Ainda tinha alunos que queriam ingressar na sala, e tal, depois que viram acontecer. Mas, no primeiro momento, eu não aceitei; depois ainda entraram uns três. Eu comecei com uns vinte e oito alunos quando eu tive a primeira turma.
P/1 – Sexto e sétimo anos.
R – Sexto e sétimo.
P/1 – Porque os do oitavo já iam se formar mesmo.
R – É.
P/1 – E aí era para concluir o ensino fundamental.
R – O ensino fundamental, isso. Aí eu fiquei com um... quer falar?
PAUSA
P/1 – Darlene, aí você formou essa sala. Conta como foi esse trabalho.
R – Essa sala quem formou, na verdade, foi o corpo técnico da escola, eles que tinham essas planilhas. Aí eu fui, enquanto elas faziam isso eu fui preparando a sala. Essa sala era formada por quatro meninas só, o resto eram todos meninos, todos. Quando eu vi aquela sala só de meninos, eu disse: “Meu Deus, vai ser mais difícil ainda para eu trabalhar” (risos). Mas aí eu comecei, no início com muita dificuldade, com muita dificuldade. Os primeiros dias... Eu disse: “Vou ter que arranjar uma maneira”. Porque como vocês sabem, a realidade da gente... Esses meninos quando estão fora de faixa etária é porque alguns muitos problemas tiveram pelo caminho, não é? Então, são pessoas que trazem uma bagagem negativa muito grande. E nisso eles extrapolam na forma que a gente chama de indisciplina. Então eu comecei mostrando a eles que era um trabalho que eles não iriam ter vontade de sair da sala, não. Eu disse logo assim a eles: “Vocês não vão ter vontade mesmo de sair daqui, mas eu vou dizer logo a vocês: não pode sair (risos). A gente vai entrar a uma hora, vai sair para o intervalo e volta. Até o final a gente não pode sair e vai tomar uma água ou ir ao banheiro se for extremamente necessário, porque a gente vai trabalhar muito, certo?”. Aí comecei a trabalhar com eles. E eu acho que eles também, apesar da dificuldade do início - foi muito difícil - eles foram também se encantando com aquele jeito de aprender.
P/1 – Por que é difícil? O que foi difícil?
R – Material. Material a gente não tinha nenhum, como, infelizmente, foram meus quatro anos, viu, gente? Material muito difícil. Foi por isso que eu deixei.
P/1 – Mas tinha vídeos.
R – Os vídeos, tinha. Os vídeos, o material, depois de uns quatro meses chegou o televisor, o DVD, a coleção todinha, eu recebi logo os livros... Essa coisa eu recebi logo. Mas a questão de material de papelaria, essa coisa era muito difícil.
P/1 – Tinha o material para o professor usar.
R – Isso. Aí a gente começou, não é? E eu notei isso, que eles foram também achando aquilo tão diferente... Alguns
não acreditaram, não é? Como se dissessem assim: “E eu vou aprender alguma coisa assim? Acho que não vou aprender, não”. E outros achando aquilo muito bom, fazer aquela coisa diferente, um negócio diferente. E foi por ali, eles começaram a se adaptar. E foi uma turma muito boa, apesar de ser só de meninos. As duas turmas que eu tive, foram todas as duas maravilhosas. Mas essa desses meninos a gente teve muitos desafios, porque eles vieram da sala, eles estavam irregulares, já tinham tido muitos problemas na sala, tinha menino que já estava para sair da escola porque alguns professores já tinham pedido até para eles saírem, porque não aguentavam eles. E a gente começou... Eu comecei a pegar intimidade com eles, a brincar, conversar, a sentar junto com eles nas equipes, sabe? Formei as equipes. Eles queriam trocar de equipe a todo momento. “Ah, professora, gostei daqui, não”. E eu ia abrindo mão e fui conquistando aqueles meninos, não é? Aí uma coisa que me chamou assim... A primeira coisa que eu disse assim: “Eu já plantei alguma coisa, pequenininha, mas eu plantei”. Que foi quando o diretor chegou a primeira vez na sala e disse assim... Ele não tinha ido na sala ainda, aí entrou e disse... Eles eram chamados na escola de “os meninos de Darlene”. É. Eles não podiam... Eu dizia a eles: “Vocês notaram que vocês não podem fazer nada lá fora porque o que acontecer lá fora foram os meninos de Darlene?” É tanto que teve até uma briga uma vez, eles brigaram lá fora porque um menino fez uma coisa no intervalo. Ele chegou lá fora, deu uns tapas num menino. “Faça mais nunca aquilo, que vai prejudicar a professora” (risos). Aí o diretor chegou e disse: “Olha, vai ter um passeio”. Se eu não me engano, na época, era para a Energisa. “Tem uma usina lá que é um museu e a gente vai chamar cinco alunos de cada sala”. Aí me deu os cinco papeizinhos, não é? Autorizações. Eu coloquei na mesa, aí olhei para os papeizinhos, olhei assim para eles e disse: “E aí, gente?” Eu nunca gostei de fazer isso nem no regular: “Como é que a gente escolhe quem vai?” Sei que um olhou para o outro, o outro olhou para o outro, aí um que era mais saído disse assim: “Professora, eu vou lhe dizer uma coisa: se a gente estivesse nas outras salas, quem é que ia? Os mais comportados, os que tivessem maiores notas, ou seja, a gente não ia. E agora, como é que a gente escolhe aqui? Se aqui é tudo (risos)... Se aqui ninguém se comporta, ninguém tira nota boa, a gente vai escolher como?” Eu disse: “Não sei, vocês é que vão dizer”. “Não, não vai ninguém. Quando a gente puder ir, todos nós, a gente vai; enquanto não puder, a gente não vai”. Eu disse: “Olha que eu já consegui... Eu já consegui não, eles já conseguiram”. Aí eu chamei o diretor e disse: “Olha, pode dar para as outras salas, eles não querem ir, não. Digam ao diretor o que vocês disseram”. Eles disseram. Está certo. A partir daí, todo passeio que tinha, ia primeiro no Alumbrar: “Quem quer ir?” Se sobrasse, ia para as outras salas. E foi assim durante os dois anos. A sala passou a ser a sala principal da escola. E em muitas escolas, pelo que a gente tinha de... Quando a gente tinha os encontros na cidade, eram meninos e eram turmas que eram... Às vezes tinha as coisas na escola e não sabiam nem que teve. Na minha turma não, a minha turma era a primeira a saber. Se ia ter uma festa na escola, o que é que o Alumbrar vai fazer? Como é que o Alumbrar vai participar? E a mesma coisa eu, nós nunca fizemos nada na sala, nenhuma atividade, que a gente não pudesse fazer com os outros, certo? Muitas vezes a gente fazia uma oficina de alguma coisa: “Professora, vamos mostrar à nossa escola”. Eles iam para as salas, a gente dividia de dois em dois, de três em três, eles iam para a sala ensinar aquela dobradura, às vezes, que eu tinha feito, alguma coisa... Eles iam para as salas. E sempre foram muito respeitados nas salas, sempre foram. Tanto a primeira como a segunda turma. A primeira turma, não sei se por ser a primeira, me marcou mais assim... Os projetos que eu consegui desenvolver. Porque para a primeira turma eu consegui algumas parcerias. Por ter começado assim, talvez na segunda turma eu tenha começado a acomodar; talvez, não sei. A primeira eu tinha muita vontade de que aquilo crescesse, que se desenvolvesse dentro da escola, não é? Então eu arranjei algumas parcerias. Com um amigo meu, eu disse a ele que queria fazer uma problematização numa aula de Geografia. Eu fiquei pensando o que eu ia fazer. Aí, na aula lá, que eu não me lembro mais qual era a aula, falava sobre Mário de Andrade, não é? Sobre Turista Aprendiz. Eu disse: “Ah, eu vou fazer uma atividade com as imagens do estado”. Aí coloquei as imagens no chão e a gente foi conversando e eles dizendo o que conheciam, o que não conheciam, o que tinham vontade de conhecer. E eu fiz a problematização a partir daí. Aí eu disse: “Eu podia fazer um projeto maior com isso”. Porque eles gostaram demais e fizeram cartazes, colocaram nas paredes, gostaram demais. Eu fui e escrevi um projetozinho, que chamei de... Que eu trouxe até o cordel para vocês verem: “Escrevendo a Paraíba, salvar e enviar”. A gente estava trabalhando muito o negócio de... Quando começou a chegar o WhatsApp, essas coisas. Eu coloquei esse nome junto com eles. “O que é que vocês acham?” “Ah, professora, legal”. A gente começou... Eu comecei a escrever, escrevi o projeto. Só que, no projeto, tinha algumas viagens, era interessante ter algumas viagens. Como é que eu faço isso? Aí eu peguei o projeto, dei a um amigo meu, ele ligou para a universidade, mostrou lá aos professores do Centro de Educação e eles nos ajudaram. Eles nos ajudaram financeiramente e com o ônibus da universidade. Aí, nós fomos para cinco cidades da Paraíba.
P/1 – Todos os alunos.
R – Todos os alunos, os meus todos. Mas, é isso o que eu estou dizendo, a gente juntava, sempre envolvia a escola, eu gosto de envolver a escola toda. Então, eu tinha um ônibus e tinha vinte alunos, eu podia levar mais. Aí eu convidei a professora de Geografia, porque ela me ajudava muito na história, porque eu estava lá vendo Geografia. A professora de Geografia, a professora de Formação Religiosa e História, porque ela ensinava as duas coisas, e a de Língua Portuguesa. Eu as convidei, as três, e disse: “Vocês podem convidar cinco alunos cada uma”. Eu mostrei o projeto a elas, elas fizeram também projetos na disciplina delas de acordo com o que a gente ia ver, e aí a gente foi fazer pesquisa dentro da aula de Geografia. Peguei o mapa da Paraíba: “Vamos conhecer o quê aqui?” Aí fui contando a história da Paraíba a eles. A gente estava mais ou menos no mês de junho, inverno, e em João Pessoa, lá na Paraíba, a gente tem um evento no inverno que se chama Caminhos do Frio, que faz um percurso por todas aquelas cidades que são mais frias, não é? Nessa época tem até festival de inverno, mas tinha esse Caminhos do Frio. Aí eu fui, falei com eles sobre o Caminhos do Frio, que estava na época e tal, as cidades que passava. A gente tinha trabalhado no Percurso Livre O Auto da Compadecida. Aí eu disse: “Tem Cabaceiras, onde foi gravado”. E a gente tinha trabalhado também, na mesma disciplina, a questão das Ligas Camponesas. Aí eu disse: “Tem Sapé”. Está fechado o mapa. Não sei se lá na universidade vão aceitar (risos).
P/1 – E você foi contando para eles essas ideias.
R – Fui, a gente fez tudo junto. Eu fui colocando o mapa e dizendo as coisas, fui dizendo a eles o que tinha, o que eu achava interessante, que tinha a ver com o que a gente estava estudando. Aí a gente, junto com a professora de Geografia, ela ensinou a gente a fazer o mapa, mostrando... Porque tem no Memorial, vocês vão ver, aí a gente montou tudo isso. Vamos à busca da universidade. A universidade liberou e a gente marcou os dias para fazer essas viagens. Eu disse: “E agora, a alimentação? O que é que a gente faz?” Nos juntamos, eu e as professoras. Como as viagens… Como dava certinho, cada uma, naquele dia, ia fazer o almoço para levar. E a gente levava o almoço no ônibus. A escola dava o lanche, geralmente sanduíche. A escola estava passando por um momento difícil, a gente também conseguiu fazer. E levávamos almoço.
P/1 – Uma viagem por dia, ia e voltava, ia e voltava.
R – É. A gente fez, acho que foram uns dois ou três meses. Aí, nós fomos. Quando a gente foi à primeira viagem, que era o mesmo diretor ainda, ele disse assim: “Darlene, como é que você vai levar?” A primeira que a gente foi, foi para Caminhos do Frio. A gente ia para Areia, para Lagoa Grande e para Solânea num dia só, que era o Caminho do Frio, essas três cidades. Aí ele disse: “Como é que você vai sair com esse monte de alunos daqui para distante, sem... Isso não vai dar certo”. Eu disse: “Mas, homem, por que não vai dar certo?” “Porque é distante, se acontecer alguma coisa...”. “Não vai acontecer nada”. Quando a gente ia saindo, ele disse assim: “Olhe, traga os alunos do jeito que você está levando, viu?” Aí eu olhei e disse: “Pois é uma coisa impossível de acontecer”. Ele disse: “Por quê?” Eu disse: “Porque vão vir mais sabidos do que estão indo”. Aí ele começou a rir. Aí, pronto, essa primeira vez que eu fui ele ficou apreensivo mesmo. E eu confesso que fui também, não é? Com aquele monte de adolescente! Mas tudo... Eu mostrei para ele: “Está aqui a pasta”. Coloquei registro, coloquei autorização dos pais, tudo direitinho ali, problema que algum deles pudesse ter, de saúde, estava tudo ali escrito. Eu mostrei a pasta a ele e ele disse: “Vai embora”. Aí, fomos embora. Olha, esses meninos, a cada momento que a gente... E tem uma coisa, eu disse logo às minhas colegas: “Olhe, vocês vão me ajudar, viu? A professora de Geografia é para ir dando aula (risos)”. E quando nós saímos, que entramos na estrada, eu disse: “E aí, professora de Geografia?” “Mulher, já é para começar a dar aula?” “Já”. Aí mandou abrir as coisas do ônibus, as cortinas e ela ia mostrando: “Ali é vale, ali é montanha, ali é não sei o quê, ali é o não sei o quê”. O caminho todinho dando aula (risos). A professora de Português. E a professora de História, quando chegou lá em Areia, ela foi mostrando as coisas e dizendo os fatos históricos e as coisas todas. E a professora de Artes, que era eu (risos).
P/1 – O que você fazia?
R – Dando a minha aula de Artes no caminho.
P/1 – O que você fazia? Conte um pouco.
R – Fui mostrando. O primeiro lugar que a gente parou foi na Lagoa Grande. Aí, entramos lá na igreja, a igreja é linda! Fui mostrar a eles, falar o tipo de arte que tinha ali dentro, como era feito. E eles ficaram admirados daquela construção ter sido feita há tanto tempo e tão perfeita, tão bem feita. E a gente andou pela cidade para ver aqueles casarios, aquelas coisas. Eles adoraram. Aí fomos para Lagoa Grande, na Lagoa Grande a gente também foi no teatro, foi no Memorial Gerson do Pandeiro. Ali, eu já tinha falado com a moça, ela fez uma palestra lá para eles, foi muito bacana. Aí, em Solânea, quando a gente chegou em Solânea... Porque lá no cordel, se vocês tiverem oportunidade de ler, diz assim que Solânea só fez muito foi chover, (risos) quando a gente chegou em Solânea, só chovia, só chovia. Porque, no dia em que a gente foi a Solânea, estava acontecendo a parte de festa mesmo, tipo festa de quermesse, aí era mais à noite. Mas a gente foi, entrou, conheceu o teatro. Aí tinha uma aula lá de dança, num outro lugar, num outro espaço, nós fomos, participamos um pouquinho dessa aula de dança, foi muito bom. Aí voltamos para casa e se passaram mais uns dias.
P/1 – Você lembra de alguma expressão de algum aluno, alguma fala deles mesmo, vendo tudo isso? A expressão deles.
R – De felicidade, o tempo inteiro. O tempo inteiro eles se sentiam assim importantes. Registrando tudo nos memoriais, porque a gente levava os memoriais, então registravam nos memoriais e perguntavam: “Professora, é importante eu fazer?” “Você é quem sabe se é importante”. E, dentro do museu, eles perguntavam a todo momento o que era aquilo e chamavam, porque tinha sempre os guias nos museus. Lá em Areia mesmo tinha muita coisa antiga, muita arma e eles são muito ligados em arma, nessas coisas, não é? E chamavam a moça... Foi muito interessante a vontade que eles tinham de aprender. Porque, geralmente, quando a gente leva aluno para essas aulas de campo, eles querem levar mesmo é para uma coisa de passeio, é difícil a gente trazer, muitas vezes. Mas eles não, eles perguntavam muito as coisas, eles buscavam muito conhecimento em todas as viagens. Mas a mais marcante das... Aliás, todas foram muito marcantes, mas em Cabaceiras... Cabaceiras é mais longe. Essa foi problema, mesmo porque o diretor disse: “E Cabaceiras, que é longe?” “Não tem problema, a gente já foi para três, para uma só a gente vai ligeiro”. Aí em Cabaceiras, quando a gente chegou – vocês já foram a Cabaceiras? Quando a gente entra tem uma serra enorme, aí tem o nome assim: “Roliúde Nordestina” (risos). Eu desci, mandei o ônibus parar para os meninos verem aquilo de pert
o. Não sei para que eu fiz aquilo! Os meninos desceram todos. Quando eu estou de frente para o negócio e eu olho para trás, é tudo cheio de pedra, para todo canto é pedra, é pedra, é pedra. Os meninos subiram numas pedras tão altas, eu olhei lá em cima: “Meu Deus do céu! O diretor disse que se eu não vou voltar com os meninos todos... E esses meninos em cima dessas pedras!” (risos). Eu comecei a gritar para aqueles meninos descerem das pedras, mas eles ficaram loucos. Quando a gente entrou na cidade... A cidade parece uma cidade fantasma, não tem ninguém na rua, um deserto. É, deserto. Quando a gente desceu, aí veio logo uma guia. Eu não sabia que lá tinha guia porque eu não liguei para ninguém. Aí quando ela chegou, se apresentou dizendo que era guia da cidade, não sei o quê. Aí eu disse: “Minha filha, quanto custa?” Ela disse: “É tanto por cabeça”. Eu falei: “Não, mulher, por cabeça não dá, não. Os meninos não têm dinheiro, não. Diga aí quanto é que tu cobra para mostrar umas coisas para a gente”. “Cinquenta reais”. Aí o meu parceiro estava comigo, que é quem levava o dinheiro do ônibus que o pessoal da universidade dava, não é? Aí eu cheguei junto dele e disse: “Gabriel, como é que está o dinheiro?” “Só tem o do rapaz do ônibus”. Eu disse: “Tu tira cinquenta, quando chegar lá nós damos os cinquenta para o homem”. “Está certo”. Paguei a moça, a moça mostrou a cidade todinha para a gente. Eles ficaram encantados. Aí, ali foi onde eu vi o envolvimento de uma maneira total. Porque eles andavam na cidade recitando o filme. A todo momento eles diziam: “Olhe, professora, aqui foi assim”. Quando chegava, por exemplo, na bodega, que aquele cara dá aquela cusparada no chão, ah, foram para a porta daquela bodega para fazer aquilo. Em todo canto que eles chegavam. Quando chegou na igreja teve um menino que se deitou naqueles bancos para fazer o papel do padre. Eu me emocionei quando entrei na igreja e comecei a chorar. E eles ficaram aperreados porque eu estava chorando (risos). Eu disse: “Porque eu estou emocionada, porque é você se sentir dentro de um cenário, é uma cidade de verdade, mas parece um cenário”. E a cidade, como eu estava dizendo, é muito calma. As pessoas todas dentro de casa, aí que parece um cenário mesmo. Mas é muito linda a cidade. Na capa do cordel também vocês vão ver lá eu com alguns deles, naquela... E a todo momento eu tinha a curiosidade de saber se ainda tinha aquela pintura na igreja onde eles matam as pessoas, não é? Aí a guia disse: “Tem, senhora, eu vou mostrar à senhora. Está um pouco modificada, mas tem”. Aí eu fui. Quando eu fui, aí eu fiquei mais uma vez ali na frente daquilo... Professora de Artes vocês sabem como é, não é? (risos) Maravilhada olhando para aquilo ali. Aí, quando eu fiquei assim, o menino olhou - o nome dele é Samuel. Aí o Samuel disse: “Professora”. Aí eu me virei: “Diga, Samuel”. “Não gosto de matar professora, não, mas tem que matar”. Eles diziam, não era? (risos). Aí a gente tirou foto lá e foi muito bonito. E eles eram assim, o tempo inteiro eles sabiam dizer aquele enredo daquele filme, daquela cidade. E nas fotos também tem. Se vocês tiverem oportunidade, eles invadiram a cidade, a cidade só tinha eles. Porque as pessoas eram muito dentro de casa. Se olhasse as ruas, eles subindo nas ruas e andando, sabe? E foi muito bonito. Aí, quando a gente foi para as Ligas Camponesas, que a gente foi no memorial mesmo, ah, esse é que foi bonito mesmo! Porque o memorial é na casa mesmo em que eles moraram, não é? Aí tem todo o registro histórico. E eles leram boa parte do que está ali, e era muita coisa: recorte de jornal de quando ele foi morto, porque ele foi morto... E eles liam aquilo tudo e ficavam gritando: “Porque a casa é bem baixinha”. Aí: “Professora, vem ver uma coisa aqui! Professora, vem aqui!”. Os cômodos, aquela casinha pequena... Mas foi muito bonito, muito gratificante esse primeiro projeto que eu fiz com eles, maior, porque projeto a gente faz um monte dentro da sala, mas esse foi maior.
P/1 – Darlene, o que você acha que fez com que eles se interessassem tanto? Você consegue dizer assim?
R – Eu acho que é questão de vivenciar, é questão de ter nas mãos, de poder, talvez, até manipular o que vai aprender, sabe? De dizer: “Isso aqui eu quero para mim, isso aqui eu não quero”. Porque ele não tem essa escolha no regular, certo? Eu acho que é muito isso, muito deles terem... “Isso aqui eu tenho necessidade de aprender, isso aqui eu quero aprender”.
P/1 – Mas você disse que, muitas vezes, fazia visita com os alunos e eles iam mais para brincar, para passear. E dessa vez ele fizeram...
R – É a preparação, com certeza, do trabalho. A preparação e a vivência que eles já têm em sala de aula, de um olhar diferente. Porque o aluno do Alumbrar tem um olhar diferente para as coisas, ele não olha para as coisas como os outros. Depois de um tempo em que ele está em contato com aquela metodologia, ele já olha diferente para o conhecimento, ele olha de maneira totalmente diferente dos outros. Porque o aluno do regular olha o conhecimento com... Ele tem que aprender aquilo para dar um resultado que é preciso. Do Alumbrar não, do Alumbrar ele vê, ele escolhe, ele gosta, ele se encanta ou não, ele vê a necessidade de saber aquilo ou não, não é? Então, ele tem muito essa, vamos dizer assim, liberdade de ver isso.
P/1 – E você diz que o aluno do Alumbrar vê de outro jeito, não é?
R – Ele vê de outro jeito.
P/1 – Ele lida com o conhecimento de outro jeito.
R – Outro jeito, totalmente diferente.
P/1 – Você já falou bastante mas, tem alguma coisa que você possa resumir para a gente? Como é que faz para ele ter esse jeito com o conhecimento? O que você fazia com eles lá? O que o projeto diz para fazer?
R – Eu acho que muito a sequência que a gente faz da descoberta do conhecimento a partir da problematização, certo? Eu acho que eles vão passando essas etapas e vão tendo aquela necessidade de conhecer aquilo. Não é uma coisa que eu levo pronta, é uma coisa que é construída. E tudo o que é construído parece que é mais importante, é mais prazeroso e fica mais... Essa questão da construção, de saber que eu estou ali como mediadora, mas eu estou ali para construir com eles. E o encantamento também que eles tiveram, principalmente essa segunda turma, de dizer assim: “Professora, nunca tirei um dez”. Mas quando eles terminavam de apresentar um trabalho. “E aí professora, qual é a nota?” “Para mim, é dez”. “Professora, eu nunca tirei um dez. O máximo que eu tirava era um sete”. Quando eu chegava no final da avaliação mesmo que tinha que fazer, eu sempre gostei de colocar o memorial deles: “Ah, professora, posso levar meu memorial e mostrar à minha mãe? Minha mãe não vai acreditar que eu tirei essas notas. Eu aprendi isso tudo mesmo, professora?” Eu dizia: “Você é quem sabe. Você aprendeu?” “Aprendi professora”.
P/2 – E você sabe hoje? Você acompanha, às vezes, os da primeira e os da segunda turma? Como é que eles estão?
R – Eu ainda trabalho no mesmo bairro e a gente se encontra muito, muito. Aí eles gritam por mim, vêm me abraçar. Tem alguns que já estão no segundo ano, tem alguns que já estão no terceiro, da primeira turma. Tem uns que não conseguiram no primeiro ano, estão repetindo o segundo ano, estão no segundo ano, mas repetiram o primeiro. Mas assim... eu me encontro sempre com eles. E essa primeira turma tem uma história assim, que a Antonita, toda vez que se encontra comigo, ela me apresenta às pessoas e diz assim: “Essa é a professora que sabe os alunos dela tudo decorado” (risos).
P/1 – O quê?
R – A vida dos alunos. Porque assim... O que me encantou mais naquele momento que eu disse a vocês, quando eu vi a metodologia, foi isso, de eu ter assim essa oportunidade de conhecer os estudantes, não é? Aí, nessa primeira turma... Meu pai faleceu quando eu estava com essa primeira turma. E quando ele adoeceu - foi de repente, ele adoeceu já e faleceu, foi num período de um mês, mais ou menos - eu tirei uma licença de um mês. Aí eu fui lá na coordenação, disse: “Olha, como é que eu faço? Quem é que vai para a minha sala?” A coordenadora disse: “Darlene, a gente não sabe, mas você tirou a licença, você tem direito de tirar”. Aí eu me preocupei, minha preocupação era ir uma pessoa que não os conhecesse e que desconstruísse tudo o que havia sido construído até ali. Aí eu peguei a caderneta, aluno por aluno, e fui colocando assim, por exemplo: o primeiro era Anderson - Anderson tem dificuldade em relacionamento, mas é um menino bom; às vezes ele se irrita um pouco, mas a gente controla assim, assim, assim e assim. Aí, coloquei de cada aluno isso, para que quem fosse dar aula, visse. Eu deixei na escola e coloquei mais um bilhete na caderneta: “Leia as observações de cada aluno”. Só que passaram dias e não foi ninguém, não foi ninguém. Aí o diretor ligou para mim e disse: “Darlene, vieram os meninos aqui e eles estavam querendo vir para a escola, não querem ficar em casa, não”. Aí eu disse: “O senhor deixa eles irem sozinhos para a escola?” “Não, Darlene, não dá certo, não”. Eu disse: “Dá, pode deixar eles irem”. Eles foram sozinhos. Eles abriam a sal... Porque a sala era a gente que abria, eles abriam a sala, assistiam a uma aula, não faziam aquela sequência, não é? Assistiam a uma aula, faziam as atividades dos livros, e assim foi, mais ou menos uns quinze dias eles foram para a escola.
P/1 – A turma toda?
R – Às vezes iam todos, às vezes iam alguns. Tinha alguns que diziam - mais meninas mesmo - diziam: “Sem a professora não vou, não”. Iam mais os meninos. Mas eles iam. Aí, foi uma coisa que marcou muito a primeira turma, porque eles não conseguiam ficar sem ir para a escola. Tinha menino que dizia que não suportava a escola mais. Porque ele sempre dizia isso: “Ah, professora, eu não suportava mais a escola”. E eles se viram num momento longe da escola e sentiram falta de estar lá. O diretor ficou assim, apreensivo. Mas eu falei com a orientadora, ela disse: “Não, Darlene, eu dou uma olhadinha neles”. Eles foram, ficaram tranquilos, uns quinze dias eles foram. As meninas não foram muito, mas os meninos sempre iam.
P/2 – (inaudível)
R – Não, não fui esse mês todinho... No mês em que eu passei de licença não foi ninguém. Quando eu voltei, eles tinham ido esses dias e eu continuei, daquele mês. Porque meu pai, no mesmo mês, ele adoeceu e faleceu. Aí eu voltei.
P/1 – Quer dizer que, nesse período, eles mesmos é que queriam ir para a escola...
R – Foi. E eles foram. Depois de quinze dias, mais ou menos, que eu estava de licença e eles em casa porque não tinha professor. Aí, eles foram lá perguntar se eu ia voltar, e tal. O diretor disse: “Ela está de licença, ela só vem daqui a quinze dias”. Aí eles pediram para ele, ele ligou para mim e eu disse: “Experimente, eu acho que eles conseguem”. Aí eles iam. Colocavam a teleaula lá, assistiam, faziam. Um ajudava o outro, como era acostumado a fazer mesmo, sabe? E foram esses quinze dias. Como eu estou dizendo, não iam todos, mas alguns iam para a sala.
P/3 – Desses meninos que você falou que tinha alguns que diziam que nem suportavam a escola e, de repente, eles estavam pedindo para ter aula. Como é que você se sentiu quando eles tomaram essa iniciativa?
R – Ah, muito bem (risos). É uma satisfação muito grande. Agora, o que eu não acho, muitas vezes assim: “Não fui eu que fiz isso, não, ele que é assim” (risos). Porque essa segunda turma agora ainda foi mais marcante. Essa segunda turma, quando foi para se formar, como... Eu não sei bem se era assim, mas lá na Paraíba eles dizem assim: “A correção de fluxo vai acontecer, essas turmas era para corrigir”. Não acho que é coisa que corrige nunca (risos), mas era como se não fosse acontecer mais. Aí, para acontecer, a turma de 2016 teve uma coisa legal, ainda na secretaria, que demorou um pouco, uns quinze dias mais ou menos. Então, os alunos já eram, vamos dizer assim, da turma do Alumbrar, mas ficaram no regular quinze dias. Era para ficar quinze dias. E eu na escola. Aí eu fiquei na escola segunda, terça, quarta, quinta, começou a aula na segunda-feira, e eles nas salas. E eu ia lá e dizia: “Olha, gente, a gente vai começar e tal”. Mas vinha embora para a minha sala. E arrumando a sala lá para começar. Quando foi na quinta-feira eu fui na secretaria, lá na coordenação, para saber como é que ia começar, se era do mesmo jeito, e pegar algumas informações. Quando eu cheguei na sexta-feira, na escola, eu fui chegando e a psicóloga disse assim: “Darlene, olha, liberei seus meninos”. “Liberou meus meninos de quê?” “Da escola. Eles vão ficar em casa até você começar”. “Como é?” “Os professores fizeram uma reunião e eles não querem, não, os meninos lá”. “Está certo”. Foi na hora do intervalo, eu disse assim: “Minha gente, por que é que vocês resolveram mandar vinte e cinco estudantes para casa?” “Darlene, olha, ninguém aguenta esses seus alunos, não”. Aí uma disse uma outra, outra dizia outra. E teve uma professora que disse assim: “Olhe, Darlene, esse ano, se a turma que você teve no ano passado era daquele jeito, essa agora é pior, porque tem um menino que é muito perigoso”. “Ele é perigoso como?” “Perigoso, envolvido em tudo o que não presta”. “Está certo. Mas eu vou dizer uma coisa a vocês: vocês estão errados. Porque a escola, não fui eu que resolvi colocar os alunos na sala de vocês, a escola e a Secretaria de Educação assim resolveram. Agora, segunda-feira, eles vêm e vão para a minha sala, seja liberado ou não para eles irem. E você...”. Eu sou atrevida, viu, gente? “E você...”. Disse para a psicóloga: “Você ligue agora para cada um deles, eu quero eles todos aqui segunda-feira”. “Darlene, para que isso?” “Porque eu quero eles aqui segunda-feira. Diga que venham acompanhados de alguém, seja o pai, seja a tia, seja o irmão, qualquer pessoa, que é para dizer o que vai acontecer, e eu quero eles aqui segunda-feira”. Ela foi para o telefone e telefonou para todos ele, e eles vieram. Só que no final de semana... Eu já tinha preparado tudo, tinha preparado os crachás... Vocês sabem que a gente começa com aquela história dos nomes, não é? Disse: “Vou desmanchar tudo”. Por quê? O menino perigoso, eu vou logo ter medo dele. A menina que diz dois palavrões e um nome normal… Eu disse: “Não vou fazer mais essa dinâmica de crachá, vou começar de outro jeito”. Comecei de outro jeito, sem saber nome, não perguntei nome de ninguém. Comecei, comecei, quando foi no final da semana: “Agora eu vou saber quem é quem”. E escutando, não é? Durante a semana o nome de alguém, o nome de alguém... Quando foi no final, eu me sentei junto com eles e saí perguntando os nomes. O perigoso tinha sido o melhor aluno na semana. O perigoso foi o menino que tirou nota dez em quase todos os segmentos. Ele, durante o primeiro ano, teve uma falta. Uma falta! Quando eu peguei intimidade com eles, naquele momento em que a gente estava fazendo as atividades, eu comecei a perguntar. Aí eu disse assim... O nome dele é Jardriel, aí eles começaram. “Minha gente, vocês deram muito trabalho na sala quando estavam no regular”. “É professora, mas as professoras eram todas chatas, professora”. E não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê. Eu disse: “É, tem gente até que eu soube que era perigoso”. Ele disse: “Eu, professora”. Aí eu disse: “Jardriel, por que razão a professora disse que você era perigoso?” Ele disse: “Eu tenho certeza de que foi uma professora da outra escola, professora de Artes”. Eu disse: “O que foi que você fez lá?” “Eu estourei os banheiros todinhos, com bomba. E teve um dia que eu levei um revólver para a escola”. Aí eu disse: “Mas, Jardriel, foi mesmo?” Ele disse: “Foi, professora. Olhe, meu padrasto, todo mundo sabe que meu padrasto é envolvido aí com algumas coisas, e tinha lá no guarda-roupa um revólver, eu levei para brincar com os meninos, foi nem para fazer nada. Mas lá na escola, professora, se eu estava na sala de aula, se acontecesse alguma coisa, qualquer coisa dentro da sala, foi Jardriel. Se eu colocasse o pé para fora da porta: ‘Jardriel, para casa’. ‘Jardriel, para a direção’. ‘Jardriel, suspenso’. Eu só fazia o que não prestava. Quando foi um dia, a diretora me suspendeu. Antes de eu sair, eu estourei os banheiros todinhos, coloquei bomba em cada um e estourei, quebrou”. Esse menino, como eu estou dizendo a vocês, um aluno maravilhoso que, logo no começo – vejam o tempo aí, viu gente? (risos). Logo no começo ele era assim, tinha muitas meninas que ficavam olhando para ele, tal, e tinha uma delas que me chamou mais atenção porque, no dia em que eu chamei os pais para vir, foi a única que disse assim: “Eu quero esperar pela senhora quando terminar a aula”. Eu disse: “Está certo”. Aí, quando terminou a aula essa mulher disse tanta coisa dessa criança. Que ela não prestava, que para ela tanto fazia vê-la viva como vê-la morta. A mãe, viu? Que ela não gostava dela, que ela tinha ódio do irmão, que ela tinha ódio do pai. E pintou a menina assim de um jeito... Ela mesmo, nessa semana, eu já notei ela muito agressiva. Aí quem foi namorar com quem? Jardriel com ela. Começaram a namorar. Agora, ela nunca fez nada na sala, ela era meio calada. Ela estudava nessa primeira escola em que eu trabalhei, no Instituto Dom Adauto. Saiu de lá, por quê? Porque fazia também, como diz ela, o que não prestava. Então eles começaram a namorar. Quando a família descobriu, por Jardriel ter a família com envolvimento, problemas aí de droga, então não queriam, claro. E o pai ficou aperreado, e tal. Aí, quando foi um dia, ela chegou, estava chorando. Aí ele disse. “Professora, hoje não dá para a gente ficar não, que a gente está com um problema”. Jardriel disse. Eu disse: “Não, minha gente. Está com problema, a gente fica aqui”. Começamos a conversar, aí ela com a mochila bem cheia: “Eu vou para a casa de Jardriel”. Eu disse: “Minha filha, por quê?” Ela fez: “Porque eu já sou mulher dele e meu pai me botou para fora. Disse que se era para ficar com ele, eu podia sair de casa”. Eu disse: “O que é que você vai levando na mochila aí?” “Biscoito recheado, Toddynho, essas coisas assim”. Aí eu disse: “Meu Deus, eu não posso me envolver nessas coisas mais”. Eu fiquei, me controlei, fui atrás da orientadora. “Olha, você precisa conversar com os meninos”. E ela só estava indo um turno. Aí conversei com ela e ela disse: “É, porque eu fiquei com raiva”. “Não, minha filha, você vai para casa, vá para casa”. No final da aula eu os chamei, levei para a sala dos professores, os dois, e disse: “Vocês esqueçam...”. Depois eu disse isso à orientadora. “Vocês esqueçam que estão na escola, esqueçam que eu sou a professora de vocês, nós estamos em um outro lugar. Porque eu não devo fazer isso que eu vou fazer agora”. Aí eu fui conversar com eles, eu disse: “Olha, por que você está levando essas coisas todas dentro da mochila, por quê?” Ela disse: “Porque na casa de Jardriel não tem”. Eu disse: “E quando acabar? E quando acabar, quem é que vai te dar? Jardriel pode?” Ele disse: “Não, professora. Eu já disse a ela que não dá certo. Mas ela diz que não quer mais voltar para casa porque o pai dela bateu nela”. Aí eu disse: “Olhe, mais uma vez eu vou pedir a vocês, pensem que é uma doida que está falando com vocês. Olhe, você vai fazer assim, você vai para casa”. “Mas, professora, ele não me deixa encontrar com ele”. Eu disse: “Você vai escondido. Chegar em casa, levar uma pisa, não valeu a pena ter se encontrado com ele? Levou uma pisa, levou duas, levou três. Mas você não pode sair de casa porque ele não tem como lhe sustentar. Ele já mora com a avó que já tem esses problemas todinhos”. Pronto, essa menina voltou para casa. Eu sei que, para resumir, no final agora, quando eles saíram, as famílias já se dão muito bem. Ela fala da mãe de maneira... sabe? Do pai, também. Por quê? Tem uma colega que diz assim: “O trabalho que você fez com Jardriel é um trabalho maravilhoso”. “Eu não fiz nada com Jardriel, não. Quem fez foi ele mesmo, ele que soube aproveitar as coisas que estavam ali na frente dele, eu não fiz nada, absolutamente nada. Nem com ela”. Ela tinha um relacionamento péssimo com o irmão, o irmão lindo, a coisa mais linda, até do cabelo dele ela reclamava, que o cabelo dele era soltinho e o dela não era. Ela dizia assim: “Essa peste nasceu com esse cabelo e eu com esse”. Entendeu? Então ela, na confraternização, levou o irmão, sabe? Ela modificou-se totalmente. Eles dois, um se viu... Se gostavam muito. Tanto que, no final do ano, me pediram um depoimento e eles é que escreveram a história deles dois, desde o começo. E isso foi resultado do trabalho do Telecurso, do trabalho do Alumbrar. Com certeza, não foi um trabalho meu, foi um trabalho do momento que eles tiveram oportunidade de viver. Que bom muitos jovens, ou todos, se encontrassem. Porque a minha opinião é essa: que todos se encontrassem nesse momento de não se encaixar mais, porque eles não se encaixam mais naquele... Não sexto, no sétimo ano. Não é que eles não querem estudar, é que não dá mais certo. Eles precisam de outras coisas e, às vezes, até não é nem isso, às vezes é porque aquilo não desperta nada naquele adolescente, ele precisa de algo mais. Infelizmente, no sistema em que a gente vive não dá para a gente ver isso, não dá para a gente detectar isso em dez, quinze turmas que a gente tem. E quando eles têm essa oportunidade que esses meus tiveram, de ter um momento desses, eles crescem. Eles só precisam de uma oportunidade para crescer. É isso.
P/3 – Lindo. E (inaudível).
R – Pronto, a minha saída do projeto, do Alumbrar, para mim ainda está sendo muito difícil, porque eu me sinto muito ligada. Tanto que se dissesse assim: “Darlene, eu vou lhe dar a oportunidade de voltar”, eu voltaria. Mas este ano, lá na Paraíba, na Secretaria de Educação, teve um concurso público onde está ainda se contratando os professores. E foi proibido pela Secretaria dobra de carga horária. Então eu dava vinte horas no Alumbrar e dava oito horas no regular. Com essas horas que eu dava a mais no regular eu ganhava uma gratificação. Era com essa gratificação que eu levava o Alumbrar. Porque, infelizmente, a gente não tem recurso nenhum. Nenhum, nenhum, nenhum. Certo? Então, tudo o que eu fiz nessas duas turmas, de projeto, de oficina, tudo, e da sala de aula, tudo era custeado por mim. E outra coisa é que eu tinha que ir todos os dias para a escola; então todos os dias eu tenho que almoçar, todos os dias eu tenho que pagar passagem. E eu trabalhando só nas minhas aulas de Artes eu vou dois dias por semana, certo? Eu fiquei até triste porque a diretora disse assim para a professora que está agora no lugar: “Ela deixou por causa de dinheiro”. Não foi por causa de dinheiro. Foi, principalmente, porque eu sabia, eu sei... Eu sabia não, eu sei, que para levar uma turma do projeto a gente precisa de recurso e, infelizmente, a gente não tem. E eu tirava dessa gratificação para isso. Eu nunca pedi a um aluno meu para levar um biscoito para a escola, tudo o que a gente fazia, dentro do possível... às vezes eles faziam assim: “Mas, professora, por que a senhora não pediu?” “Não, não tinha necessidade”. Então, tudo o que a gente fazia de aniversário, qualquer coisa, um bolinho que fosse, quem levava era eu. Porque a gente sabe da dificuldade que esses adolescentes vivem, não é? Então, minha saída do projeto só foi por isso.
P/1 – Darlene, você esperava... A sua expectativa é que quem teria que oferecer esses recursos que faltavam...
R – Tinha que ser a Secretaria, não é? A Secretaria tinha que fazer isso. Na primeira turma eu tive ajuda, muitas vezes, de vocês. Teve uma vez que eu liguei para a Karen e falei: “Karen, eu estou sem nada, estou sem material nenhum”. “Darlene, olha, eu fiz uma oficina e vou te levar o restinho de material que eu tenho”. Ela chegava e me dava. Mas sempre assim. Às vezes na outra escola, pronto, às vezes vinha assim uma caixa de cola. Aí eu pegava uma parte daquela cola, chegava na escola da Prefeitura e dizia assim... Sabia que ali não tinha: “Vamos trocar essa cola por cartolina?” Sabe? Foi assim que eu levei as duas turmas durante o tempo todo.
P/1 – Secretaria estadual?
R – É.
P/1 – Porque o projeto acontece na Secretaria estadual.
R – É. Infelizmente não nos dá esse recurso, sabe? De material, principalmente.
P/1 – Darlene, e aí, concluindo, tem algum momento, alguma situação, alguma coisa que você queira falar? Tanto do projeto como da sua vida? Que você gostaria de deixar registrado, que a gente não perguntou?
R – Não. Eu gostaria de dizer que eu fiquei muito feliz. Eu estou até passando por um momento meio complicado na vida mesmo e até, quando recebi o telefonema de Antonita, eu estava no carro com meu marido. Aí eu disse a ele: “Deus sempre sabe mostrar as coisas na hora certa”. Porque eu estava sem nenhuma autoestima naquele momento. E quando eu recebi aquele convite, não que eu me sentisse diferente dos outros, mas naquele momento foi grandioso para mim esse convite, de vir aqui, de falar, de ter oportunidade de falar de um trabalho que eu fiz. Porque, sinceramente, para mim está sendo muito sofrido deixar, certo? Nesse dia mesmo foi que eu tirei minhas coisas da sala; foi no dia em que a Antonita ligou que eu tirei meu material da sala. E foi muito sofrido para mim tirar aquilo tudo, deixar aquilo tudo que, para mim, era meu. Infelizmente, a gente é humano, a gente tem muito isso, de ter as coisas para a gente, não é? Então aquilo tudo que eu construí... eu saí com aquelas coisas que eram minhas, dali de dentro, e achando que aquilo que estava lá não era meu, era como se eu pensasse assim: “Eu estou levando isso, mas era tudo meu, não era só isso”. Entendeu? E isso foi muito sofrido para mim. Só isso mesmo.
P/1 – Ana, quer falar alguma coisa, perguntar?
P/2 – Não, a gente é que agradece muito, Darlene.
R – Obrigada. Muito obrigada.
P/1 – Com certeza, é como eu disse, ficaria muito mais horas aqui ouvindo todas essas histórias, são muito impressionantes, em relação à Educação. Muito obrigada.