Ponto de Cultura
Depoimento de Cecília Hanna Mate
Entrevistado por Simone Alcântara, Janaina Batini e Daniel Milazzo
São Paulo, 02/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV069
Transcrito por Roselmira Nunes Henriques
Revisado por Adriano dos Santos Silva e Genivaldo Cavalcanti...Continuar leitura
Ponto de Cultura
Depoimento de Cecília Hanna Mate
Entrevistado por Simone Alcântara, Janaina Batini e Daniel Milazzo
São Paulo, 02/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV069
Transcrito por Roselmira Nunes Henriques
Revisado por Adriano dos Santos Silva e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Boa tarde, Cecília.
R – Boa tarde.
P/1 – Qual o seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Meu nome é Cecília Hanna Mate. Eu nasci na cidade de São Paulo, em 29 de agosto.
P/1 – Qual o nome dos seus pais, e, se você lembra, dos seus avós?
R – Meu pai é Zaki Hanna e minha mãe, Rosa Salomão Hanna. Dos meus avós... Eu me lembro muito bem dos meus avós maternos; os paternos eu não cheguei a conhecer porque morreram antes de eu nascer. Mas me lembro dos meus avós, que morreram velhos - aliás, a longevidade da raça árabe é muito grande. Eles morreram com 86 anos, tanto meu avô, quanto minha avó, e me lembro bem, sim.
P/1 – E o nome deles também?
R – Sim! Ela se chamava Joana, que em árabe era Galiu. E ele, Dibi - em português, Felipe.
P/1 – E você se lembra da ocupação deles?
R – Comerciantes, os dois. O meu avô tinha um grande empório na Rua Cardoso de Almeida – hoje o local nem existe mais –
e a minha avó também vendia com ele. Eram coisas importadas do oriente - trigo, essas coisas que vinham de lá na época.
P/1 – Você diz que a sua origem então é árabe?
R – Sim.
P/1 – E como eles vieram para cá, como a sua família veio para cá?
R – Começando pelos meus avós maternos: a minha mãe nasceu aqui, mas como todo imigrante, foi uma trajetória muito sofrida. Imagine: eles vieram sem saber falar uma palavra em português, meus avós maternos; o meu pai idem, porque nasceu lá também. Meu pai era árabe. Ele veio também sem saber falar, eles só eram alfabetizados em árabe, inclusive nunca se alfabetizou em português, e acabou fazendo uma coisa que hoje eu admiro muito. Na época a gente não dava muito valor, mas hoje eu falo: “Meu Deus! Como é que conseguiu fazer tudo que ele fez?” Ele fazia comércio com frutas. Começou quando veio para o Brasil, vendendo frutas numa carroça. Da carroça ele comprou uma carroça maior, da carroça maior ele comprou, enfim, um armazém e, no fim, um grande armazém atacadista, na região do Mercado [Municipal].
P/1 – E os irmãos? Quantos você tem?
R – Atualmente nós somos cinco, mas éramos sete: quatro mulheres e três homens.
P/1 – E você se lembra da rua, do bairro que você brincava quando pequena?
R – Sim!
P/1 – Como era?
R – Dizem – acho que é verdade – que quanto mais velha a gente vai ficando mais imagens da infância vão vindo. Eu me lembro sim, brincava-se muito na rua.
Eu nasci numa travessa da Rua Cardoso de Almeida, Rua João Arruda [em Perdizes]. É bem conhecida essa rua, por sinal, principalmente para quem estuda na PUC [Pontifícia Universidade Católica]. Essa rua era de terra. Na minha lembrança, eu me lembro de quando o asfalto chegou lá. Isso acho que nos anos 60, [no] começo... Não, antes ainda, antes ainda eu era uma menininha, nos anos 50, quando asfaltaram a rua. A gente brincava muito na rua; brincava de roda, de pega-pega, era incrível. A rua era extensão da casa, coisa que hoje é impossível. Talvez em alguns bairros, no interior, isso aconteça, mas hoje é impossível e quando passo por essa rua hoje – eu passo sempre –, é difícil de acreditar. Por isso que a memória é uma coisa importantíssima. A única coisa que tem para nós é a memória dos mais velhos, que permite trazer lembranças dos lugares como eles eram. E é isso, a gente brincava muito, tanto brincadeiras de meninas, como – não sei se seria de menino – pega-pega, aquelas coisas. Mas o que eu mais gostava era brincar de roda, muito.
P/1 – Tinha muitas crianças na rua?
R – Muitas crianças! Às vezes brigávamos; alguém brigava com alguém, alguém dizia que ia bater em alguém, mas no fim dava tudo certo e a gente era muito bom.
P/1 – E na sua casa? Como era o cotidiano? Você estava falando da rua, das suas brincadeiras, e dentro da casa, você se lembra do cotidiano quando pequena?
R – Bem, veja, [era] uma família grande, sete filhos. A mamãe teve cinco filhos, praticamente, um atrás do outro. Ela ficou sete anos sem ter filhos, aí vim eu e uma outra irmã que eu tenho, que tem um ano de diferença. Nós éramos sempre chamadas de “As Duas”. “Ô, Duas! Vem aqui”, inclusive quando a mamãe chamava a gente: “Duas, vêm aqui!”
A identidade foi muito difícil para a gente - eu estou dizendo de mim. Foi muito difícil de construir porque eram sete. A minha mãe nunca tinha paciência, ela estava sempre brava. O meu pai, então, inatingível. Ele chegava e o jantar dele tinha que estar pronto. Quando dava oito e meia, ele ia dormir, então não tínhamos contato, assim como nós temos hoje, com pai, com mãe. Com a minha mãe eu tinha, mas não era muito um contato de paparicação; era sempre brava, sempre “faz isso, faz aquilo”, então a gente foi levando, mas não foi uma infância dentro de casa muito feliz, eu diria. As coisas gostosas mesmo estavam nas brincadeiras.
P/1 – E quando você foi para a escola, quantos anos você tinha? Você se lembra da primeira vez?
R – Sete.
P/1 – Sete anos! Em que escola você foi estudar?
R – Dom Pedro II.
P/1 – Você lembra alguma coisa da sua escola?
R – Muito, muito.
P/1 – O que você lembra?
R – Nossa, eu me lembro! Vou falar uma coisa engraçada... Várias coisas, mas uma delas é um sinal que batia quando era hora de entrar, a hora do recreio. Era um senhor
(porque, é claro, eu era uma criança e ele parecia muito velho [risos], provavelmente ele não era) e ele batia um sinal – gente, acreditem – daqueles enormes, um sinal mesmo, como se chama aquele...?
P/1 – Sino?
R – Sino! E ele badalava aquele sino. Hoje é uma campainha, uma sirene. Ele batia aquele sino - essa é uma imagem. Outra imagem que tenho é que a gente brincava muito no recreio, corria, e eu me lembro que, principalmente uma certa professora que nós tínhamos, eu acho que do segundo ano – ela se chamava Dona Tereza –, dizia que a criança que entrasse suada dentro da classe ia ser castigada. A gente morria de medo porque corria, corria, na hora que estava quase para dar o sinal, molhava o rosto para poder não entrar suado, porque era castigado.
Outra coisa, por exemplo, é dentro da sala de aula. Havia muita disciplina, a disciplina era rígida. Eu não sei, eu tenho uma lembrança um pouco ruim disso; era muita rigidez. Veja, eu hoje como professora sei que tanto a criança, o adolescente, o adulto – porque eu dou aula para adulto, na universidade – aprendem quando estão à vontade. Quando eles estão sem muitas tensões, quando você fica sem tensão, você presta atenção. Agora, estou falando porque não estou tensa; se eu estivesse tensa, não ia conseguir. Então o que acontece na nossa infância, eu acho que isso ainda infelizmente perdura, [é que] você tem essa rigidez. Alguns professores ainda mantêm - conseguem manter, porque as coisas mudaram muito. Eu era uma criança muito medrosa, muito. E tímida. Claro, [era] uma coisa que é da personalidade, mas que era fortalecida e reforçada com esse tipo de coisa. O aprender, eu diria assim, não era prazeroso; de algumas coisas eu gostava, por exemplo, no primeiro ano. O primeiro ano foi uma coisa muito gostosa, era uma professora muito amável, inclusive ela se chamava Cecília, meu nome. Ela sempre brincava comigo, “minha xará, minha xará”, e assim ela era impecável, ela era muito doce. Ao mesmo tempo também ela tinha rigidez, porque todos tinham, só que ela tinha certa docilidade, eu acho.
P/1 – E seus estudos nesse período? Você falou que hoje dá aula. Influenciou em alguma coisa a sua vida de estudante para ser professora?
R – Olha, eu acho que muitas pessoas acabam, depois que crescem, vinculando a sua opção profissional com alguma coisa, mas eu não acho. Eu acho que a vida são contingências. Eu acho que você vai fazendo coisas, buscando aquilo que corresponda mais a que você se sinta bem.
Talvez o vínculo do que eu faço hoje com a minha primeira escolarização – que seria o que nós chamamos hoje de ensino fundamental, mas que era o primário e o ginásio, que hoje é tudo fundamental… Eu diria que a única coisa foi o impulso de estudar, mas talvez não por causa da escola. Eu quis estudar e gostava de ler, porque, claro, alguma coisa na escola me entusiasmou; algumas coisas, não vou negar. Mas acho que poderia ser muito [mais], porque é aí que está: potenciais diferentes de cada um são mais estimulados na escola para alguns aspectos do que para outros. Eu lamento dizer, mas acho que a escola poderia ter me ajudado mais, porque gosto muito de ler, de estudar.
P/1 – E na sua adolescência, também você já gostava de ler? Você tinha um grupo de amigos? Você lembra se foi agradável na escola?
R – A adolescência foi, mas porque eram outras coisas, era a companhia.
P/1 – Voltando um pouquinho, na sua adolescência, como era a sua escola, você também já gostava de ler? Quem eram seus amigos? Como é que foi essa época?
R – Acho que toda adolescência é uma época muito diferente, de muita descoberta, de muita insegurança, de muito entusiasmo. Também, ao mesmo tempo, muito medo.
É uma mistura de sensações, e que hoje a gente entende bem, mas na época você não sabe o que está acontecendo com você e também nem muita gente estava querendo saber.
Acho que o que foi legal na adolescência foi o entorno da escola, não a escola em si, não acho. Pode até parecer nesta entrevista que eu... “Puxa, a Cecília trabalha na educação e não gosta da escola”. Não, não é isso, eu lamento que a escola não tenha sido muito melhor do que ela foi. Ela poderia ter me ajudado muito, infinitamente mais, mas, enfim…
A adolescência, acho que foi uma época muito interessante de amigos, de descobertas, de paqueras, de bailes, de descobrir, enfim, o mundo. A escola, eu acho que ela ficava não em segundo plano, mas não era a coisa mais importante. Eu gostava da leitura - você falou da leitura, volto a dizer, a escola não chegou a me motivar a leitura, não tanto. O que eu lia eram coisas que a minha irmã mais velha comprava. Ela gostava muito de ler; fez só até o ginásio e gostava muito de ler. Eu estudava de manhã e à tarde me trancava no quarto da minha irmã para ler as coisas dela, que eram romances, fotonovelas que existiam na época; eram revistas, como se fossem quadrinhos, mas com fotos e em novela, uma história. Geralmente uma história de amor - eu adorava isso, livros de romances. Oscar Wilde, por exemplo, eu lia com quinze anos, mas por minha própria vontade. Na escola nunca houve esse estímulo, impressionante.
P/1 – E o que vocês faziam? Seus amigos, sua turma, que tipo de lazer? Os bailes, lembra onde eram? O que mais vocês faziam?
R – Quando eu tinha de 14 para 15 anos, eu mudei. Eu morava no bairro de Perdizes. Enquanto eu estava em Perdizes, os bailinhos eram nas redondezas. Acho que no primeiro bailinho eu tinha de 14 anos para 15 - até um avanço para a época, não é? E eu sou de uma geração, gostaria de dizer, da qual me orgulho muito porque a gente foi meio vanguardista: quebrou com uma série de coisas, brigou com os pais para poder ter direitos, como chegar tal hora, depois de “x” horas, porque não podia nem sair de casa. A gente conseguiu superar isso, enfrentar, brigar, acho que sou de uma geração que sempre esteve na frente parece que de uma luta, e não acaba, parece.
Mas enfim, voltando à adolescência, a gente morava em Perdizes e tinha uns bailinhos, mas eram bailinhos que acabavam às dez horas da noite e eu só podia ir com o meu irmão. Com 15 anos a gente se mudou para outro bairro, Alto da Lapa; meu pai construiu uma casa lá. Era uma época que começaram os bailes com luz negra, estroboscópica; uma delícia, aqueles bailes. Até os 15, 16 tinha muito baile de formatura, os bailes de formatura e os bailes pró-formatura - esses eram melhores que os da formatura, eram mais simples. Você fazia na própria escola ou na casa de alguém, na garagem de alguém, na minha casa.
Eu tive a primeira festa na minha casa no meu aniversário de 17 anos. Meu irmão, que tinha sete anos a mais do que eu, é que agitou para fazer a festa, e eu nunca me esqueci disso, porque eu nunca tinha tido uma festa de aniversário - uma, porque meus pais não estavam muito preocupados com isso, e outra, porque eu também era muito envergonhada ainda. Esse meu irmão, quando a gente mudou para a Lapa, propôs: “Vamos fazer uma festa para o seu aniversário de 17 anos?” Ele perguntou: “Posso convidar minha turma?” Eu: “Ah! Pode!” [Risos]. Fizemos, era isso... Os primeiros namorados, com 16, 17, 18 anos. Era isso.
Uma coisa importantíssima: as missas de domingo. Era muito interessante porque minha família não era fervorosamente católica, mas havia toda uma cultura, até da geração toda, de ir à missa, de rezar. Eu aprendi a rezar com a minha irmã mais velha, de ter imagens do tipo o Cristo, essas coisas, mas eu não era muito convencida disso, não me convencia. Mas a gente tinha uma missa que era em Perdizes, até quando eu morava lá; depois eu passei a ir numa missa na Nossa Senhora da Lapa, numa Igreja que ainda existe. E as missas de domingo eram para paquerar. A gente ia, ficava atrás esperando a hora que terminava. E tinha uma missa sensacional, que era aos domingos na Igreja São Domingos. Começava ao meio-dia, aí meus pais: “Mas como missa que começa ao meio-dia?” Era uma missa interessantíssima [risos].
P/1 – E vocês praticavam esportes? Vocês tinham esse costume ou só dançavam?
R – Não, eu gostava muito de dançar. Era a coisa que eu mais gostava, inclusive era a época do rock, do twist. Eu aprendi, dançava muito bem, mas o esporte... Eu não sei, acho que [era] um pouco pela timidez.
O esporte é uma coisa bem legal. Hoje eu penso que na educação é importante que o esporte seja estimulado, acho que ele é responsável até pelo desenvolvimento da personalidade, de firmeza, da segurança. O esporte, além das regras, tem também a questão do corpo. O adolescente ainda tem um desencontro enorme entre a cabeça e o corpo. E o esporte, acho que tem esse papel. Eu era muito tímida, então a única coisa que eu gostava de jogar… Gostava não. Eu tentei, joguei um tempo, mas, aos primeiros foras que eu dei, vinha aquela vaia e ia chorar, era o vôlei. Eu gostava, até ia bem, mas a primeira mancada que eu dei, que foi num campeonato. Eu errei, mas errei feio a bola, foi uma vaia... É normal isso, mas eu não aguentei o tranco e nunca mais.
P/1 – Você lembra de como vocês se vestiam nessa época? Como que eram os meninos, meninas?
R – Bom, primeiro o cabelo. O cabelo era algo assim: tinha que ter o cabelo liso, era como se fosse um decreto. Tinha que ter e meu cabelo faz pequenas ondas, então o que eu fazia? Eu passava com ferro de passar roupa, que é a chapinha hoje [risos]. Tinha o cabelo muito liso, até aqui, aí todo mundo: “Mas que lindo seu cabelo!” “Ele tem um brilho!” “O que você faz?”. “Ah, ele é assim mesmo” [risos].
A roupa que a gente usava: começou a minissaia quando eu tinha uns 18 anos e a gente usava a minissaia. As coisas voltam muito. Nesse momento surgiu a roupa de couro - casaco de couro, depois voltou inúmeras vezes. Bota de couro não era algo comum. Eram as meninas mais avançadinhas que usavam, as mais moderninhas. E a gente dava um jeito e usava [risos].
P/1 – E os meninos, você lembra?
R – Os meninos [se vestiam] assim: calça boca de sino, cinto largo e uma bota um pouco... Sabe Roberto Carlos? Aquela imagem, bota com salto. Usavam assim.
P/1 – E o cabelo?
R – O cabelo era Beatles. Sou dessa geração que começou a assistir os Beatles. [Em] 69, 70 era uma febre; de 69 a 71 os Beatles marcaram muito para mim. Marcaram muito para mim, demais, a música e o modo de ser. E os meninos? Aquele cabelo, era fatal.
P/1 – A filosofia de vida dos Beatles também influenciava no comportamento do seu grupo?
R – Aí é que está. Começou a ter uma mudança na minha vida. [No] Começo de 68, 69, quando o país estava fervendo, eu era muito bobinha, mas neste momento comecei a perceber. O que estava acontecendo comigo nesse momento? Eu já tinha acabado o segundo grau, ainda não tinha decidido que faculdade ia fazer, então estava meio no limbo e fui fazer trabalhos, enfim, para sobreviver. Eu sempre fui muito independente, não gostava de depender do dinheiro do meu pai, mesmo porque eram muitos filhos, então não era uma coisa muito legal. Eu, muito cedo... Tinha 18 anos e já me virava, ganhava meu dinheirinho, fazia trabalhos de escritório. Nesse momento estava trabalhando num lugar que tinha umas pessoas muito interessantes, um pouquinho mais velhas do que eu, uns três anos, e que já eram muito politizadas. Foi muito interessante esse encontro porque comecei a perceber: “O que está acontecendo no país?” Eu me lembro que eu via cavalos, polícia na rua, gente com medo e comecei a entender, infelizmente, o que estava acontecendo.
Daí para a frente foi uma virada. Comecei a fazer o cursinho. No cursinho as coisas começaram a ferver, mudou tudo. Mudou gosto musical, modo de vestir, tudo. Daquela teenager eu virei uma pessoa mais consciente, pode-se chamar assim, percebendo mais as coisas que estavam acontecendo. Fiz o cursinho em 70; era uma época terrível, muita gente sendo presa, a gente conhece a história. Amigos meus, inclusive.
Foi assim: em 70 eu fiz o cursinho e não sabia direito o que eu queria estudar. Eu sabia que era Humanas, mas não sabia se era Letras, Filosofia, aí optei por História.
Mas por que optei por História? Veja só, por causa dos professores, por isso eu acho professor uma coisa fundamental na vida da gente. Por isso que no começo da minha entrevista eu falei, lá atrás, como aqueles professores poderiam ter sido muito melhores comigo. Poderiam ter me ajudado muito mais. Eu me emociono de falar nisso, porque eu acho que os potenciais a gente têm, mas a gente precisa de ajuda. Pôxa, o adulto tem uma responsabilidade enorme porque o adolescente fica meio perdido, a criança. Então, de repente, tudo pode ser bom ou não.
É por isso que eu falo: 68, 69 para 70 foi uma virada. Eu comecei a descobrir, fui atrás de tudo aquilo que não tinham me dado. Quer dizer, ótimo, pelo menos eu consegui isso. De algum modo eu encontrei meu caminho; poderia ser antes, eu poderia ter entrado na faculdade logo que terminei o ensino médio. Eu tinha aquilo dentro de mim, mas não sabia o que era. No cursinho, os professores de História sensacionais que eu tive. Sensacionais. Gilberto Marone - que é um cara conhecido, dá aula até hoje em cursinho - foi um deles. O Pena, que hoje está na história, foi meu professor no cursinho. Professores maravilhosos, maravilhosos. “Bom, vou fazer História mesmo”. Claro que eu poderia ter feito Filosofia também, eu iria me dar bem, Letras, mas História foi um impulso e um entusiasmo muito grande. Quando eu decidi, aí foi, fiz.
Entrei na USP [Universidade de São Paulo] e os tempos foram difíceis, porque a ditadura estava pegando mesmo. Eu entrei na [Faculdade de] História. [Era] horrível; dependendo do texto que a gente estudava, tinha que ser escondido. Eu me lembro de uma professora que nós tínhamos, que dava História da América. [Quando] foi falar de Cuba, ela fechou a porta, olhou no corredor, viu se não vinha ninguém. Fechou a porta para falar da revolução Cubana, para vocês terem uma ideia do que foi o curso. Todos que fizeram qualquer curso de Humanas na USP entre 69 e 77… Mais um pouco até, porque depois, até 80, a coisa ficou pesada, foi terrível.
P/1 – E nessa virada que você falou que teve na sua vida, que te alertou para uma série de coisas, para a realidade, você foi parar na Faculdade de História da USP. Nesse momento tão difícil, teve algum professor que lhe marcou? Dessa coragem de falar da história, da revolução Cubana, mas a portas fechadas? Algum outro professor como esses, do cursinho, lhe influenciou? Marcou na história, na faculdade?
R – Tinha um time bom. Um exatamente, não. Eu gostava muito da Dilu, gostava muito do Jaime Pinsky, gostava do França, que já morreu. Quem mais? O Carlos Guilherme Mota. Não teve aquela coisa, um professor por paixão, não.
O Reinaldo Carneiro foi um professor que me chamou a atenção pelo seguinte: ele dava História do Brasil República. E ele me chamou a atenção por um detalhe - porque brilhante, todos eram; por exemplo, o Fernando Novais era um show. Ele, quando dava aula, estava no palco e era demais, a gente não perdia.
Marcar, no sentido mais humano, foi o Reinaldo Carneiro. Ele conversava com a gente; os outros não, os outros estavam num pedestal. Eram talvez mitos, eles se colocavam ou a gente os colocava [no pedestal], eu não sei, mas o Reinaldo não. O Reinaldo ia tomar café com a gente na cantina. Eu achava muito diferente o modo como ele se relacionava. É o que eu procuro hoje fazer com os meus alunos, sem populismo, mas com honestidade, com os meus alunos. Não o deixar se sentir tão distante da gente, porque professor não deve fazer isso.
P/1 – Hoje você dá aula na graduação e nos contou, antes da entrevista, que foi na Pedagogia da USP.
R – Na Faculdade de Educação.
P/1 – Isso. E como foi que você foi parar lá? Por que é que você se tornou professora e foi parar lá?
R – A coisa começou assim: eu fiz História. Na graduação ainda, eu comecei a dar aula de História na rede pública. A vida inteira dei aula na rede pública de São Paulo, sempre, nunca na rede particular.
Comecei a dar aula ainda no último ano de faculdade. Eu me formei em 76; comecei a dar aula em 74, aí comecei em cursinho de madureza [curso preparatório para o exame de madureza, teste para quem estava atrasado nos estudos].
Tinha um cursinho na Lapa, o Eco - ainda tem hoje Colégio Eco, mas ele era um cursinho, uma turma excelente [risos]. O Ariel morreu, eu soube… Era o Ariel, quem mais? Tinha mais um, Albuquerque; lembra-se do Albuquerque? Bom, era um time e tanto. Eu estava com esse pessoal, estava começando, imagina… O outro também, Wladimir Catanzaro - ele era jornalista e professor de História. Ele era jornalista não por formação. Tinha feito História, só que ele trabalhava em um jornal chamado Notícias Populares, que fechou. Ele era um show. Dava aula, era um palhaço, e eu falava: “Eu nunca vou ser assim.” Mas eu descobri o meu jeito; para ser professor de cursinho tem que ser palhaço? Não, eu descobri o meu jeito, era outro. Foi assim minha entrada na educação. Foi com ele, com esse pessoal. A partir daí fiz um concurso público para professor da rede pública. Em 77 eu já comecei a dar aula na rede pública, mas tinha um nome, era professor provisório, alguma coisa assim.
P/1 – Que tinha esse caráter de cobrir o outro?
R – É, precário. Tem outro nome, eu sei que a sigla era professor CL, mas eu fiquei nessa situação que não é efetivo, que não sei o nome. Em 78 teve um concurso para efetivação, eu fiz. Estudei, foi muito difícil esse concurso, mas fazia dez anos que não havia concurso na rede pública. Eu passei.
Fiquei muito contente. Estava grávida, nesse momento da minha vida, do meu primeiro filho, que foi uma filha. Nesse momento, eu fiz a prova grávida e passei. Eu tinha que assumir. Quando tive que escolher a escola, a minha filha tinha nascido. Aí eu e o pai dela resolvemos morar lá no litoral. Eu ia escolher a escola em que eu ia entrar no litoral. Lá eu fiquei por cinco anos dando aula de História. Foi uma das experiências mais maravilhosas da minha vida.
P/1 – Voltando um pouquinho, você citou o nascimento da sua filha. Como foi que você se
casou? Com quem você se casou? Foi o primeiro namorado, ou não? Namorou muito antes de casar?
R – Não foi o meu primeiro namorado, mas foi um encontro muito interessante. Foi um encontro, eu diria assim, intelectual, mais do que qualquer outra coisa. A gente teve muita afinidade. Ele chama-se Alexandre Luiz Mate. Ele hoje é professor da UNESP [Universidade Estadual Paulista], da área de teatro. Ele mexe com teatro e a gente se conheceu porque ele fazia artes; ele, naquele momento, estava fazendo Artes Plásticas e foi uma forma dele se aproximar de mim. Ele queria me pintar [risos].
P/1 – Foi romântico?
R – Muito [risos]. Eu falei: “Nossa, que bom!” Ele pediu uma foto minha. Tenho até hoje uns três quadros que ele pintou, mas casamos, isso foi muito legal. A gente teve um encontro muito rico, ele era muito inteligente. Foi legal, tivemos esses dois filhos, depois nos separamos, mas é meu amigo até hoje, uma pessoa excelente.
P/1 – E você se casou quando estava na faculdade?
R – Não, eu me casei em 77. Foi exatamente quando comecei a dar aula na rede pública. Ainda antes de prestar esse concurso da efetivação, mas já dava aula na rede, já estava formada.
P/1 – Certo. Você disse que começou a dar aula na rede pública. Como você foi parar na USP, na Educação?
R – Voltando um pouco, fiquei esse tempo todo na rede pública. Em 83, eu estava morando em Santos e dando aula na Praia Grande, quando recebi um convite. Naquele momento a gente estava numa efervescência política no Brasil, a gente tinha acabado de ter eleições diretas para governador.
Naquele momento, o [Franco] Montoro ganhou para Governador de São Paulo e teve uma reformulação política. Tinha um órgão na Secretaria de Educação chamado CENP, que era Coordenadoria de Estudos de Normas Pedagógicas, e nesse órgão tinha uma pessoa que me conhecia. Ela havia dado aula junto comigo, aí passou o tempo, eu nunca mais vi essa pessoa. Fazia uns cinco anos, aí ela me chamou por uma conhecida minha, que a conhecia também. Ela precisava de alguém para trabalhar lá, disse que estava em um momento muito interessante pra fazer coisas.
Eu relutei, eu falei: “Não vou sair da sala de aula, não vou.” Fui até lá, na CENP, conheci o lugar, olhei, falei: “Hum, não vou”. Ela falou: “Cecília, a gente vai mexer com muita coisa interessante. Você pode mexer com a proposta de História, que a gente estava pensando em reformular.”
Trocando em miúdos, fui para lá, fiquei [por] quatro anos, trabalhei na reformulação do currículo de História do Estado de São Paulo, o que muito me orgulha, porque foi um currículo que marcou, foi o divisor de águas do que era a aula de História antes e o que passou a ser depois dessa proposta. Realmente é uma das coisas que eu me orgulho muito, mas só que não deu para continuar lá. Muito enfrentamento político, não era isso que eu queria para mim. E nesse momento eu comecei a fazer pós-graduação.
Na pós-graduação surgiu uma vaga para professor na UNESP, lá no interior, em Presidente Prudente. Eu ainda não tinha acabado o mestrado e fui prestar. Passei, aí falei: “O que eu faço?” As coisas na vida sempre surgem assim, não é? E ir para Presidente Prudente? Eu pensei, foi uma decisão muito difícil.
Acabei indo. Morei lá, acabei ficando [por] três anos e foi uma fase muito difícil porque eu tinha dois filhos, foi aquele problema. O pai não queria ficar sem os filhos, eu ia ficar muito longe, então foi horrível. Acabei indo com o meu filho e minha filha ficou com ele, era uma loucura. A gente ficou três anos num sofrimento, porque eu vinha a cada 20 dias e ligava todo dia. Mas finalmente fiz outro concurso, aí fui para uma outra cidade -
a UNESP de Assis, dando aula de Didática. Passei nesse concurso.
Voltei pra São Paulo, fiquei com meus dois filhos juntos. Eu viajava para Assis; era bem longe, cinco horas e meia de viagem e eu fazia isso toda semana. Ficava três dias lá e voltava. Até que, em 95, surge um concurso na USP. Uma professora que eu nem conhecia muito bem me falou. Eu vim à USP para pegar alguma coisa para o meu doutorado, algo assim. Ela me encontrou e me disse: “Vai abrir uma vaga aqui de Didática.” Falou e aquilo ficou na minha cabeça. Eu liguei para ela, cheguei em casa e liguei, quis saber. Gente, eu fui saber, eu tenho tudo para passar neste concurso. Faço ou não faço? Mas aí aquele mito da USP, “imagina, eu não vou passar”. Faz, não faz, faz, não faz, até a última hora: me inscrevi. “Eu vou me inscrever, depois eu penso se faço ou não faço.” Faltavam três dias para o concurso, e eu numa tensão, porque eram 18 candidatos para uma vaga. Acabei indo, muito estimulada inclusive pela minha filha, porque significava eu voltar para São Paulo de vez.
Prestei, passei em primeiro lugar e voltei. Então em 96 eu volto para São Paulo e é essa a história. Volto e passo a dar aula na USP.
P/1 – A gente estava falando... Você entrou na USP, é professora de Didática na [Faculdade de] Educação. Você fez aquele concurso, em que você não acreditava que iria passar. E como foi o concurso?
R – Foi uma coisa tão bonita, porque a minha filha queria muito -
óbvio - e eu também, voltar para São Paulo definitivamente, porque eu ficava três dias em Assis. Eu estava muito insegura e ela me deu um ultimato. Ela falou: “Você vai prestar”, porque eu estava na dúvida. Eu falei: “Eu tenho receio de me expor.” Se você tem condições e faz um concurso, se desgasta. Ela me deu muita força.
Eu fui e me senti nesse concurso tão inteira, tão segura. Realmente passei em primeiro lugar, com excelentes candidatos. Veja como a gente precisa acreditar na gente. Eu fiz outro concurso na USP também para efetivação, porque esse concurso, embora ele tenha toda rigidez do concurso que eu fiz depois… Ele é igualzinho, só que a USP tem essas coisas, você tem que fazer outro para eles terem certeza [risos]. Eu fiz o outro, que é o concurso que eles chamam de efetivação, de 2001 para 2002. Foi no comecinho de 2002. Eu me preparei no final de 2001, com memorial etc e tal, mas igual àquele. Pois bem, nesse eu fiquei muito mais nervosa do que naquele.
P/1 – Mas passou?
R – Claro, não teve dúvida, mas eu estava super nervosa.
P/1 – Você disse que teve muito apoio da sua filha para esse concurso. E quando você escolheu História lá atrás, você era jovem… Aquela mudança, que começou a ver a vida de outra forma… Seus pais tiveram alguma influência na sua escolha, não gostaram ou você era bastante independente?
R – Já era bastante independente. Eu tenho até uma pequena magoazinha, mas passou, que é o seguinte: quando eu entrei na USP, como todo mundo até hoje, fica feliz da vida. Eu fui ver o resultado, na época, acho que ainda até hoje é assim. Eles publicam a lista de várias maneiras, óbvio, no jornal, mas a gente foi ver na Gazeta, o prédio da Gazeta que tinha o [Colégio] Objetivo. A lista saiu lá e até hoje eu lembro da emoção que senti quando vi o meu nome ali, na lista final, que eu tinha passado. Estávamos eu, meu cunhado - quer dizer, ainda não era meu cunhado; namorado da minha irmã, depois se casou com ela - e minha irmã. Viemos para casa felizes da vida. Cheguei em casa, contei para os meus pais. Imagina você falar uma coisa para alguém. “Ah, que bom.” E continuaram a ver televisão.
P/1 – Isso te marcou, obviamente, não é? E como é que é ser mãe para você?
R – Ah, é muito legal [risos]. É muito legal. Eu falei de algumas coisas que eu me orgulho, mas essa é mais. A gente, quando tem filhos, nunca sabe o que é o certo, é muito difícil. Parece que você está fazendo uma coisa que: “Será que é o certo? Será que eu estou acertando?” Mas você vai. Meus filhos, hoje, eu acho que já são adultos. O rapaz tem um ano a menos que a menina, mas estão os dois encaminhados.
Cada vez que eu os vejo, eu falo: “Nossa, acertei!” [Risos]. Sem querer eu acertei... Não é que é sem querer. Eu acho que tem uma coisa que faz a gente acertar muito, e pode parecer piegas, mas não é. Não vou falar isso no sentido de dizer piegas: é amor mesmo, mas amor mesmo, sabe? De ouvir, de conversar, porque acho que é muito fácil você bater quando um filho seu faz uma coisa de errado. A primeira coisa que as pessoas têm, que é aquele primeiro impulso, mas eu sou completamente avessa a isso, completamente. Não acho que deva bater. E, olha, não digo da menina, mas do menino eu tive, tive motivos. Nossa gente, como ele aprontava, vocês não acreditam. Um menino levado. Hoje ele é ótimo, é maravilhoso, mas eu tive muitos motivos. Eu me sentia assim, “o que é que eu faço?”. Sentava, conversava, infindáveis conversas, conversas sérias, mas nunca… Nem punha de castigo, nem batia, eu não acredito nisso e hoje acho que sou superfeliz. Eu os adoro, superbacanas.
P/1 – E qual a atividade deles atualmente?
R – A menina se formou em Jornalismo e hoje faz vários trabalhos. Não está firme, efetivada em um lugar. Ela já trabalhou em outros lugares, mas faz trabalhos, inclusive no Museu da Pessoa. Já trabalhou como Assessora de Imprensa no MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. E hoje ela está aí, faz traduções, preparação de livros para as editoras, acho que ela se vira.
Ele escolheu uma carreira mais difícil. Eu digo que eu não influenciei, apenas o incentivava muito para estudar. O quê não importa, nunca fiquei falando:
“Faça isso ou faça aquilo”, tanto que minha filha queria fazer Medicina antes, aí mudou para Biologia, depois acabou fazendo Jornalismo. Agora ele, não gostava de estudar até que fez o ensino médio. Eu brincava, falava assim: “Gente, eu estou fazendo a quinta série.” Porque cada série que ele fazia, parece que tive que fazer, porque tinha que olhar tudo. “Então, gente, terminei a quinta série, terminei a sexta série” e quando ele acabou o ensino médio, finalmente, eu falei “Gente, terminei o ensino médio” [risos].
Foi difícil, ele conseguiu terminar o ensino médio e não sabia o que queria, demorou um pouco. Ele começou a estudar Música. Entrou no Conservatório. Ele já tocava desde moleque, com 15, 16; era guitarra, violão. Eu não levava muito a sério porque ele não levava a sério. Ficava ali tocando, mas depois descobriu. Ele foi a um festival, algo assim, de música erudita que ocorreu em Curitiba. Ele já tocava violão numa escola, aí veio esse festival, [fui] eu que vi, inclusive.
“Poxa, você não topa ir?” Ele se chama Jordano - “Jordano, você não topa ir? Música erudita.” Pensou, pensou, foi. Voltou de lá virado, de cabeça virada. Ele decidiu que queria estudar música erudita. Entrou no Conservatório e depois entrou na faculdade. Acho que o ano que vem, ele termina. Ele faz Violão Erudito, mas na graduação de Música você faz arranjo, várias coisas. Não é só o instrumento que você toca, você faz várias outras coisas, e ele vai ser músico. Acho que já é. Já se apresentou duas vezes. Acho que foi um caminho muito difícil dele, não tanto para mim. Claro que a mãe, pai, sofrem juntos, mas para ele foi mais difícil porque ele via tudo em volta dele, o pai professor da universidade, a mãe, a irmã também foi.
A Gisela sempre gostou de estudar, nunca me deu trabalho, impressionante. Eu me lembro do episódio dela... Veja só, ela estava no pré-primário e ela fez um pré-primário numa escola muito boa, pública, a Experimental da Lapa [risos], e lá tinha três anos de prezinho. Fazia pré um, pré dois e pré três. Ela fez tudo lá, os três prezinhos, até a sétima série ela fez lá. E no terceiro pré, eles davam… Não era lição propriamente porque era outra filosofia. Toda vez, a criança vinha para casa com uma pastinha; no caso dela era pastinha vermelha e dava alguma coisinha assim, um desenho, uma coisa para fazer, bem criativa. E ela adorava fazer isso. Um dia ela estava pronta, já para ir para a escola. Eu ia levá-la; ela começou a chorar desesperadamente. “Mas o que foi?” Ela mal conseguia falar que não tinha feito. Foi muito assim, uma marca, que eu sempre conto para ela.
P/1– E você, lembra do primeiro dia que você deu aula? Na sala de aula, como foi?
R – Lembro, nunca se esquece o primeiro dia de aula. No primeiro dia foi um monte de adultos, que eram mais velhos do que eu - uma classe de Madureza. Era uma escola que não existe mais; ela funcionava na Vila Hamburguesa, e eu entrei. Eram alunos pobres, porque era um curso de Madureza na época. Hoje acho que é o EJA [Educação de Jovens e Adultos], mas na época não existia isso regulamentado, existiam os cursos… Acho que não era nem supletivo, chamava Madureza mesmo. Eles se preparavam e daí iam prestar o exame. Era um exame oficial, eles prestavam e eliminavam as matérias.
Eu entrei. Era Madureza de primeiro grau. Olha só, eu me sinto envergonhada do que eu fiz, porque a insegurança era muito grande. Entrei na sala, meninos, rapazes,
homens e mulheres também. Mas minha insegurança era tão grande que, o que é que eu fiz? Todo inseguro, o que é que faz? Fala sem parar. E dá-lhe aula de História do Brasil.
Acontece que, eu não sei… Um dos meninos estava, não sei, estava zoando, não comigo. Uma coisa não escandalosa, mas aquele barulho. Primeiro dia, aí eu comecei, fiquei brava. Eu falei que não admitia aquilo na minha aula, estava falando, e na medida em que fui falando aquilo eu fui me vendo, e tudo bem. Passou, mas aquilo para mim foi uma lição que nunca mais eu esqueci. E eu atribuo isso à insegurança. É o que eu falo para os alunos hoje, eu formo professores. E eu falo: “Olha, essa insegurança é normal no primeiro dia, procurem perceber.” Eu conto essa história para eles. Acho que é uma maneira até de prepará-los para que isso possa acontecer. Você ficar… O que você faz, vai perder ali aquele espaço que é seu, o de professor? Se você tem segurança, nossa, você brinca com eles, você dá uma paradinha e fala: “Posso brincar também, eu posso ouvir a piada”, uma coisa assim.
A pessoa segura não tem problema com indisciplina, eu tenho certeza disso. Professor que tem segurança não tem problema com indisciplina. Segurança, obviamente gostar do que faz e ter preparação, saber da coisa.
P/1 – Você se lembra do seu primeiro salário como professora?
R – Eu só me lembro que era muito baixo. O que eu me lembro foi que houve uma diferença muito grande entre o que eu ganhava, porque foi assim:
eu decidi dar aula e já estava no terceiro para o quarto ano da faculdade. Eu estava num emprego que eu não levava muito a sério; me registraram e tudo, mas eu não queria aquilo. Era para eu ganhar só para comprar meus livros, minhas roupas, porque eu não queria pedir dinheiro para pai, de jeito nenhum. Para vocês terem uma ideia, era como se eu ganhasse quatro mil reais e largasse aquilo para ganhar quinhentos, foi assim.
P/1 – Pela paixão da profissão. E como é seu cotidiano hoje em dia como professora de Didática na USP?
R – É muito intenso. Eu trabalho muito, é um trabalho que não tem conclusão. Por exemplo, você terminou hoje de escrever um artigo, mas já está pensando em três coisas que você tem para fazer. Eu gosto, mas eu acho que é muita coisa. Eu gostaria que eu tivesse menos coisas para eu poder fazer melhor.
Além da aula e da preparação de aula, você tem orientandos. Eu, por exemplo, hoje estou com poucos. Estou com oito orientandos, mas já cheguei a ter 11, entende? Doutorado, mestrado e iniciação científica, então é muito coisa. E a orientação levada a sério: tem que levar, tem que ler os trabalhos dos alunos, orientar: “Olha, aqui não está bom, vai pesquisar aquilo”, sabe? Você tem que saber daquilo para poder orientar. Tem orientação, tem as benditas das reuniões que você participa, de comissão disso, comissão daquilo. Eu participo de duas comissões, tem reuniões de departamento, eu coordeno o Centro de Memórias da Faculdade, tem o Centro de Memórias da Educação, que é bem interessante - depois, se vocês quiserem, eu falo um pouco [a respeito]. Eu coordeno o Centro de Memórias, é muita coisa. E tenho que escrever artigos, congressos. Agora mesmo, vou para um congresso em Buenos Aires.
P/1 – Como é seu trabalho como coordenadora do Centro de Memória?
R – Nós temos três coordenadoras, nunca é uma só. São três departamentos na Faculdade. Como o Centro não é de departamento nenhum, ele é da Faculdade, então sempre tem que ter três coordenadores, um de cada departamento. Do meu, sou eu. Nós temos lá uma arquivista, que é uma historiadora, fazendo doutorado agora. Essa arquivista é fenomenal, excepcional, muito competente. Ela é o nosso braço direito, esquerdo, tudo.
Nós temos lá tanta coisa… Só vou falar um dos projetos: nós vamos começar agora, exatamente essa semana, um projeto em que nós pegamos 142 escolas do Estado de São Paulo. O critério é o seguinte: as mais antigas, de 1960 para baixo - e tem muitas, 142. Tem escola, inclusive, da década de 10. [Escolas] Do estado inteiro, e nós vamos visitar. Claro que estão envolvidos nisso bolsistas - tem uma equipe enorme e eles vão visitar essas escolas.
Numa primeira visita vai primeiro fazer o reconhecimento do lugar, mas para quê? Qual é objetivo do projeto? O objetivo é fazer o registro da memória dessas escolas. Porque ela vai se perder, eles jogam tudo fora. Tem fotos, coisas impressionantes, material didático, vai indo (arquivo morto, eles chamam), depois vai para a incineração. A gente quer brecar isso, porque isso serve tanto para pesquisa na história da educação, como para a memória local, memória da cidade.
Com as cidades do interior, nós temos apoio da prefeitura para fazer isso, no sentido de que é importante para a cidade. Geralmente a escola antiga, para uma cidade do interior, é um polo de cultura e de memória muito importante. Não é como numa cidade grande, aqui em São Paulo temos vários polos de memória. Você tem museus. No interior, se você tem uma escola de 1905, imagine a importância de uma escola dessa. Quem estudou nessa escola? O mais velho da cidade estudou naquela escola, o pai dele estudou naquela escola, uma coisa preciosa. Então esse é o trabalho atual.
P/1 – Agora finalizando. Você falou de ser professora, toda a sua trajetória, você tem alunos e forma professores. O que você acha que eles devem ter de expectativa? O que eles podem ter de expectativa hoje, como professores? Diante da sua trajetória, como você vê esses futuros professores?
R – São duas coisas muito opostas. De um lado, hoje eu acho que é terrível dar aula e formar professor. Tanto o meu lado como o lado de quem está lá na escola são difíceis. Do meu, da minha parte, porque o que você vai falar hoje para um jovem que vai ser professor de Biologia, de História, de Geografia, não importa… O que é que você vai falar hoje para ele, com esse contexto que estamos vivendo? De violência, da falta de política pública que apoia o professor, de formação precária. Veja, nós temos alunos muito bem formados, alunos lá na USP que eu tenho orgulho e sei que vão fazer um bom trabalho, mas o que eu posso falar para eles? Esse é um lado que eu acho negro.
O lado muito bom, que é o que me segura e me dá entusiasmo para dar aula, é o seguinte, pode ser paradoxal. Ao mesmo tempo que você tem esse quadro negro, você tem também uma importância da educação que sempre foi muito grande. Talvez eu agora dê essa importância, porque ao longo da minha vida fui descobrindo, como eu disse durante a entrevista. Eu disse várias vezes sobre como eu, como aluna, e essa memória como aluna faz ver hoje a importância que tem a educação. Para orientar, para apontar caminhos, para ajudar essa criança, esse adolescente.
Imagina os potenciais que estão na frente de um professor? Eu acho que isso me anima muito a falar porque vejo que, embora não tenha política pública, acho que a gente tem que lutar para isso, mas individualmente. Aquele meu aluno sai dali e eu faço questão de que ele vá com isso no consciente e no inconsciente dele, de que esse papel de você estar na frente de uma classe – mesmo que você fique um semestre junto com os alunos, um ano, dois, dez, não sei que carreira que você vai seguir –, mas se você for, lembre-se disto.
Aquele aluno que está lá na sua frente, olhando para você, pode estar bagunçando, pode estar ouvindo o iPod ou sei lá o que, mas ele precisa de você, mais do que nunca. Acho isso mais ainda do que na minha época, porque hoje as famílias não têm tempo para os filhos, eu não sei se tem a ver com o poder econômico das famílias, acho que também tem um pouco, mas não sei não. Às vezes o sujeito está muito bem economicamente, mas ele está tão estressado, corre tanto, que nem tem tempo. Então, de qualquer forma, a criança hoje precisa muito, tanto para fazer o contradiscurso da mídia – a mídia tem coisa muito boa, mas tem coisa péssima –, como também porque eu acho responsabilidade do adulto. A gente pode ter as nossas neuroses, pode ter nossas frustrações. Acho que, por causa disso mesmo, a gente tem que saber que papel é esse o nosso, como pai e mãe… Mas agora você me perguntou como professora. Acho que como professor [é] esse papel de ouvir o aluno. Mais do que ficar papagaiando, é ouvir o aluno, o que ele tem para dizer, e aí eu posso cruzar o meu conteúdo com isso que esses alunos precisam.
P/1 – Agora a última pergunta, Cecília: como se sentiu, como foi você vir aqui, contar sua história de vida no Museu da Pessoa?
R – Provavelmente eu vou poder responder essa pergunta amanhã [risos], hoje à noite.
P/1 – Não tem problema, você volta para contar.
R – O que eu estou sentido agora é uma coisa muito boa porque eu acho que vocês me deram a oportunidade – eu agradeço muito – de fazer essa junção de tanta coisa. Tanto da minha história de vida, infância, como a minha história profissional, porque essas coisas estão cruzadas. Agradeço demais. Eu acho que vou processar isso ao longo do dia de hoje, amanhã, depois de amanhã, mas de antemão eu digo que foi uma oportunidade ímpar, porque eu nunca – nunca, não sei –, mas será muito difícil poder juntar tudo isso como eu estou juntando agora. Obrigada.
P/1 – Nós é que agradecemos você ter vindo, ter aceitado esse convite, foi um prazer. Boa tarde!
R – Boa tarde!Recolher