Eu estava nas nuvens. Já às lágrimas, coração palpitante. A ansiedade, um pouco de medo e muita curiosidade me dominavam e encobriam o frio intenso que me esperava do lado de fora. O avião ia baixando aos poucos para a aterrissagem e, com os olhos grudados na janela minúscula, eu já podia me...Continuar leitura
Eu estava nas nuvens. Já às lágrimas, coração palpitante. A ansiedade, um pouco de medo e muita curiosidade me dominavam e encobriam o frio intenso que me esperava do lado de fora. O avião ia baixando aos poucos para a aterrissagem e, com os olhos grudados na janela minúscula, eu já podia me encantar com a vista: construções uniformes, telhados íngremes com chaminés e pequenos quintais formavam uma espécie de mosaico. Pouca cor. Árvores quase nuas. Céu nublado. O desafio seguinte seria passar pela imigração e entrar de vez no sonho que aos poucos ganhava as formas e emoções de uma nova experiência. Mais de nove mil quilômetros e uns 30 graus de temperatura me distanciavam da família e das minhas raízes interioranas paulistas. Mas isso não me abalava. Eu chegava pela primeira vez a Londres.
O desejo vinha de outros tempos. Quando comecei a aprender o verbo to be, ainda na escola, não imaginei que isso se traduziria, literalmente, em quem eu me tornei, nas minhas escolhas e nos caminhos que eu percorreria. Decidi que queria ser professora de inglês. Gostava de idiomas, era boa em redação, adorava gramática e, assim, fiz: escolhi estudar Letras. Na faculdade, enquanto suava para ganhar fluência na língua, nutria a ideia de um curso na metrópole inglesa, o que se tornaria o presente antecipado de formatura.
Naquela manhã de janeiro, a viagem apenas começava. O percurso de metrô do aeroporto à minha parada final mostrava a atmosfera sombria dos arredores da cidade, ruas vazias, os ônibus vermelhos circulando em várias direções. Poucos passos me levavam da estação à porta de um sobrado de estilo vitoriano, com a escadaria logo na entrada, que se igualava à vizinhança da típica rua londrina.
Árvores de uma ponta a outra. Folhas secas de plátano forrando a calçada. Ao soar da campainha, o movimento e as vozes que vinham de dentro aumentavam a expectativa. Com uma mala pesada e cheia de planos, fui carinhosamente acolhida por Eva e Herbert, meus anfitriões e eternos agregados. Fiz dali a minha casa, o meu endereço, o meu lugar. Era início dos anos 1990, quando as boas e as más notícias ainda chegavam por debaixo da porta. E eu também faria dos correios o meu canal de comunicação com meus pais para descrever a empolgação e o deslumbramento com o mundo diferente que se abriria à minha volta.
Descobri nas minhas andanças diárias em Londres que tradição, conservadorismo, excentricidade e ousadia se punham lado a lado o tempo todo, que o novo e o antigo se resguardavam sem disputa, que a realidade e a ficção dos livros se encontravam nos mesmos lugares. Vi a pompa maquiada da monarquia no palácio e o movimento punk na praça. No frenesi das ruas, gente de todos os cantos do globo, de crenças para mim até então desconhecidas, línguas incompreensíveis, identidades preservadas. No banco do metrô, um povo mergulhado na leitura sem querer se misturar com o universo à volta. Num banco de parque, o almoço às pressas e sem cerimônia do executivo engravatado. A canção conhecida tocada pelo músico sem nome nas estações e nos mercados, lembranças pairando no ar. Em longas caminhadas pelos belos parques, mesmo nas baixas temperaturas, vibrei com a vida, com prazer e sem compromisso. A beleza da arte e a riqueza da história do mundo simplesmente à mostra em museus grandiosos, visão maravilhada. Com o andar a esmo e o observar da arquitetura peculiarmente idêntica, o encantamento; e o cotidiano foi para mim uma incessante descoberta. Novos amigos vieram e permaneceram. Uma vez sozinha, senti-me plena. O tempo parou diante do grande relógio à margem do rio, olhar marejado de felicidade. Deliciando-me com a ideia de ser “cidadã do mundo”, quis ficar. Mas transgredir não entrava na minha cabeça.
Já em São Paulo, arranjei o primeiro emprego, ganhei meu espaço, concluí a faculdade. Boas conquistas para a tão desejada independência. O mundo se escancarou à minha frente. O verbo to be, com seus auxiliares e tantos complementos, se conjugou em outros tempos.Recolher