Embarco em Cartagena das Índias rumo a Aracataca numa manhã ensolarada, mais quente que as outras manhãs, pois falta aquela brisa morna habitual. Prestes a entrar no ônibus, percebo que tinha deixado meus óculos no guichê onde compramos as passagens. Atravesso correndo a pequena rodoviá...Continuar leitura
Embarco em Cartagena das Índias rumo a Aracataca numa manhã ensolarada, mais quente que as outras manhãs, pois falta aquela brisa morna habitual. Prestes a entrar no ônibus, percebo que tinha deixado meus óculos no guichê onde compramos as passagens. Atravesso correndo a pequena rodoviária na esperança de recuperá-los, mas é tarde. Um pouco irritada, volto, subo as escadas do ônibus e me sento na poltrona à janela. Todos os outros assentos estavam ocupados e não havia chance de trocar de lugar. Aceito com coragem o sol na minha cara. O ônibus cruza a cidade e ganha a estrada. Uma casinha aqui, outra lá longe, e toda a paisagem vai se transformando.
Resisto bravamente por seis horas, tendo o sol como fiel companheiro de viagem. E, de novo uma casinha aqui, outra ali, anuncia uma cidade próxima.
Estamos chegando a Aracataca – pequena, um pouco empoeirada à primeira vista, quente e aconchegante. Gabriel García Márquez nos saúda no painel de boas-vindas, logo na entrada. Ele sorri, rodeado de borboletas amarelas. Quase aceno, comovida, meio perturbada pelo sol.
Descemos do ônibus e sentimos a roupa grudar no corpo. Pulando de sombra em sombra nos 40 graus do inverno colombiano, chegamos, eu e meu marido, esbaforidos, à casa-museu do escritor. Já não sei se o dia está quente ou se tenho febre. Talvez as duas coisas. Uma casa branca, comprida, recriava o ambiente onde ele cresceu ouvindo as histórias do avó do avó do avó de seu avó. Não havia outros visitantes, apenas nós. Percorremos os cômodos, as réplicas dos móveis e dos objetos da família. A varanda. O silêncio. Meu olho corre pelo quintal, onde uma árvore enorme, com raízes aparentes e exuberantes, desenha sua sombra. Ouço uma conversa abafada, quase um cochicho, que vem da casa ao lado. Estico o pescoço e olho por cima do muro. Pela janela entreaberta vejo o menino, a mãe e o avó velando o morto infame cujo enterro ninguém do povoado vai querer acompanhar. Eles também me veem e se calam.
Temos pouco tempo para ficar na cidade, pois o último ônibus de volta chega em meia hora. Cruzamos o portão e voltamos para a rua. Sol. “O calor me golpeou o rosto”, sussurra Gabo. Sinto o cheiro de goiaba, do porto, dos jasmins e das amêndoas amargas que selavam as histórias de amor infelizes. Avisto uma menina que tem uma incrível cabeleira ruiva, que mais parecia de fogo, de tanto que ardia naquele sol. Ela brinca com um cão. É Sierva Maria! Vou alertá-la, penso, tentando me recuperar do espanto inicial. Mas ela corre, feliz, para outras crianças, sem imaginar os demônios que um dia enfrentará.
Continuamos caminhando. Ao virar a esquina, vejo o coronel Aureliano Buendía sentado embaixo de uma amendoeira. Seu olhar lampeja com a lembrança da tarde em que o pai o levou para conhecer o gelo. Nem parece que, ali, aguarda o pelotão de fuzilamento. Estamos em Macondo. Passamos pelo coronel, que avisa: “Apertem o passo, vai chover”. Olhamos para o céu, sol. Troveja forte. Vem a chuva e ficamos ensopados de pétalas amarelas.
Escuto uma risada, que vem da biblioteca municipal. Uma moça nos observa da janela e acha graça da nossa situação. Ela acena, flutuando, cercada de pássaros da memória. Na fachada do prédio, vemos a legenda: Remédios, a bela.
Seguimos nos guiando pelos letreiros enfeitados com imagens de borboletas amarelas que nos levam até o ponto de embarque. Fazemos uma pausa para um refresco, no quiosque ao lado. Jeni, uma menina de 12 anos de olhos castanhos muito vivos, nos recebe com curiosidade. Em poucos minutos, entre palavras em português, espanhol e portunhol, nos entendemos bem. Ela nos conta histórias desde quando o avó do avó do avó de seu avó chegou a Aracataca. Comento sobre os personagens que encontramos pelo caminho e Jeni os descreve em detalhes, adicionando ao histórico de cada um peripécias que não estão nos livros. Ela também sabe todas as histórias de borboletas amarelas. “Afinal, onde estão?”, pergunto. Ela sorri e responde apenas que não é tempo.
Nosso ônibus chega e nos despedimos de Macondo.
Um ano depois dessa viagem, leio notícias de destruição em Aracataca por causa da falta de energia elétrica. Por um instante, esses episódios se conectam à violência que marcou o povoado no episódio do massacre das bananeiras. Escrevo para Jeni, para saber se está tudo bem. No fim da conversa, pergunto se as borboletas tinham aparecido depois do dia da nossa visita. “Vieram para as comemorações de 6 de março”, diz ela. Uma menina de 12 anos, de olhos castanhos muito vivos e sorriso largo, é quem rege o calendário das borboletas amarelas de Gabo.Recolher