A umidade é a eterna companheira dos amazônidas. Comumente se ouve por essas bandas comentários e anedotas populares expressando essa realidade. Por exemplo, em Belém do Pará diz-se que na cidade ou chove o dia todo ou chove todo dia. Também se fala por aqui que há duas estações na capital ...Continuar leitura
A umidade é a eterna companheira dos amazônidas. Comumente se ouve por essas bandas comentários e anedotas populares expressando essa realidade. Por exemplo, em Belém do Pará diz-se que na cidade ou chove o dia todo ou chove todo dia. Também se fala por aqui que há duas estações na capital paraense. Uma é a estação de ônibus que fica no bairro de São Brás e a outra e a estação das chuvas. Mas, o clássico anedótico desses aforismos populares é aquele que as pessoas dizem marcar encontros após a chuva da tarde.
O que observo como amazônida é que há na região um período em que as chuvas são mais intensas e outro em que ocorre um tempo de estiagem, mas elas nunca vão embora completamente. Os biólogos dizem que é influência da floresta e falam em um certo processo de evapotranspiração, ou seja, as plantas respiram e lançam no ar gotículas de água que se precipitam posteriormente. Mas essa é uma outra questão.
O fato é que a temporada das chuvas, o inverno amazônico como passou a ser chamado, inicia mais ou menos a partir de meados do mês de novembro e início de dezembro. Esse período chuvoso se prolonga mais ou menos até o final do mês de março e início de abril de cada ano. Nesse momento os rios, lagos e igarapés aumentam de volume, muitas áreas são inundadas e a vida pulsa com mais intensidade na floresta.
Nas cidades amazônicas, em particular em Belém, existem problemas históricos de alagamento das chamadas baixadas. Nestas baixadas há uma fatia considerável da população que sofre sazonalmente com as enchentes. É claro que as chuvas não têm nada a ver com isso. Esses alagamentos são reflexos do descaso das elites dirigentes estatais locais que negligenciam as demandas dos trabalhadores em favor daqueles que moram em locais mais privilegiados dos espaços urbanos das cidades. O mais deprimente de tudo isso é o discurso elitista e superficial de que esses problemas resultam da falta de sensibilidade e educação dos próprios moradores.
Neste aspecto vivencia-se o aforismo nietzschiano do eterno retorno do mesmo. Como não há política séria para resolução dos problemas habitacionais, de urbanização dos espaços públicos, de esgotamento e tratamento das águas pluviais e domésticas, as consequências são anualmente sentidas pela população de baixa renda. Aliás, neste ponto os “políticos” sabem usar muito bem essa demanda popular como moeda de troca eleitoral. Em tempos de eleição a paisagem muda nas baixadas. É comum observar às vésperas do pleito monturos de aterro, areia, barro e outros materiais usados para a contenção das águas. É uma tragédia!
Mas por outro lado, o inverno amazônico também é o período de maior fartura de frutas, muitas das quais se tornaram rarefeitas atualmente nos centros urbanos, como é o caso do cutiti, da saputilha e da sapucaia. Porém, sem dúvida, a manga é o símbolo maior do período chuvoso na região. Aliás, só muito mais tarde, já no contexto universitário, fiquei sabendo que esse fruto é originário da Índia e que havia sido trazido pelos colonizadores no período de construção do território brasileiro.
Essa úmida realidade também influencia o modo de vida das pessoas nas cidades. Em grande medida essa sazonalidade hídrica da região condiciona nosso ânimo, nossa visão de mundo, dando-nos uma faceta toda própria frente ao território nacional como um todo. Neste aspecto, há também uma peculiaridade local na maneira como encaramos essas chuvas. Minha mãe às vezes não a via com bons olhos, pois geralmente ficávamos com alguma enfermidade nesse período, visão da qual geralmente não comungávamos.
O período de maior intensidade das chuvas na Amazônia coincide com as férias escolares. Por isso, para a molecada a chuva da minha infância era encarada como um momento para brincadeiras. Quando saíam as primeiras nuvens escuras e o sol da tarde era encoberto por elas, já sabíamos que ela estava para chegar. Caso essa paisagem escura viesse acompanhada de intensa ventania, então sabíamos que estava por vir uma forte chuva, um “papeiro” como popularmente se falava. Então eu sentia uma sensação de prazer impossível de descrever.
Quando era tempo das chuvas eu costumava brincar com as águas que corriam pelas pequenas valetas que se formavam com a enxurrada no beiral das muitas casas por onde moramos na cidade de Macapá, no Amapá. Eu e meus irmãos e amigos de infância fazíamos barquinhos de papel que eram colocados nesses pequenos corredores de água e ficávamos observando o seu movimento. Às vezes brincávamos de competição “náutica” para ver quem fazia um desses barcos com maior velocidade, capacidade de permanecer na água e apresentasse maior estabilidade para suplantar os obstáculos “navais” e, assim, fosse mais longe que pudesse.
O banho de chuva também era muito prazeroso. Quando ela caia simplesmente íamos para a rua e ficávamos lá, correndo de um lado para outro, pulando e brincando com as poças d’água. Sentíamos as gotas de chuva nas mãos, no peito, no rosto e comumente abríamos a boca e degustávamos a água que caia do céu. Quando encontrávamos uma calha com farta quantidade de água jorrando, partíamos rapidamente para baixo dela e lá ficávamos no maior alvoroço. A algazarra era geral e se traduzia no empurra-empurra da molecada. Geralmente, nossa gritaria ensandecida desagradava à vizinhança que não via com bons olhos aquelas brincadeiras mais ruidosas.
A chuva noturna também me fascinava. Eu adorava dormir ouvindo o som das gotas nas telhas de barro, a água escoando e caindo ao chão, o cheiro de poeira no ar e as gotículas de chuva atravessando as frestas das paredes e do telhado da casa. Este cenário era sublime para mim e certamente me ajudava psicologicamente a resistir às agruras da vida naquele período. Até hoje quando vivencio essa realidade, de algum modo, é como uma volta ao passado, sofrido e difícil, mas repleto de sentimentalidades resilientes constitutivas da minha ludicidade infantil. Neste particular, as interfaces estabelecidas com as especificidades naturais da Amazônia, em particular as chuvas, foram essenciais e marcaram rotundamente minha primeira infância.Recolher