No início dos anos de 1970, na Avenida Pará, Bairro Pacoval, cidade de Macapá, no Amapá, eu ouvia muitas histórias fantásticas de meus parentes e da vizinhança. Essas pessoas fizeram parte da construção de minha subjetividade em meus primeiros anos de vida. O Homem do Saco, o porco malvado ...Continuar leitura
No início dos anos de 1970, na Avenida Pará, Bairro Pacoval, cidade de Macapá, no Amapá, eu ouvia muitas histórias fantásticas de meus parentes e da vizinhança. Essas pessoas fizeram parte da construção de minha subjetividade em meus primeiros anos de vida. O Homem do Saco, o porco malvado que aparecia em noites de lua cheia, o Jagunço que se transformava em cachorro, a mulher de branco que vagava nas ruas escuras da cidade foram alguns dos personagens constituintes de um mundo assombroso do qual eu deveria me manter bem longe.
Várias foram as noites em que, mergulhado no medo, esperei o tempo passar em minha rede, protegida com mosqueteiro de filó. Eu me cobria desde os pés até a cabeça, aguardando que a escuridão fosse embora e os raios do sol voltassem, trazendo consigo o canto dos galos, dos bem-te-vis, sabiás e todos os animais que me informavam coisas sobre o amanhecer, a luz do dia e tudo o mais que ser relacionava com a segurança da minha vida. Todas essas “histórias” fantásticas determinavam a maneira como eu via as pessoas desconhecidas, os lugares e paisagens diferentes e tudo aquilo que era estranho ao meu cotidiano, como os odores ou os sons ainda não experienciados. Tudo me parecia envolto em mistérios, bizarrices e maldades. O que eu não conhecia ou não havia vivenciado de algum modo, sempre despertava em mim uma primeira visão, geralmente repleta de fantasias que faziam de mim uma criança muito medrosa. Na verdade, eu vivia em um mundo aterrorizante que me prendia indelevelmente à pessoa que eu mais confiava e que me dava a segurança necessária para sobreviver neste mundo repleto de seres tenebrosos: minha mãe. Neste contexto de subjetividade fantástica, houve um fato que até hoje me lembro muito bem. Era sobre um carro-gaiola da prefeitura, popularmente chamado de carrocinha. Esse automóvel transitava nas ruas da cidade recolhendo cachorros e gatos criados soltos pelos moradores. “Cachorro que tem dono não sai pra rua, não suja a cidade, não traz doenças e não ataca ninguém”. Essa era a ideologia dos defensores da carrocinha. Eu possuía muito medo desse carro, principalmente porque diziam que os animais presos eram mortos e utilizados na produção de sabão. Várias vezes lavei as mãos pensando nessa realidade. Eu imaginava os animais sendo pegos nas ruas, aprisionados e levados para um lugar, uma fábrica talvez, colocados em uma enorme máquina, uma espécie de moenda na qual os cães e gatos seriam atirados vivos, moídos e transformados em sabão. Eu pensava nos detalhes desse sofrimento e tudo o mais que envolveria o trágico fim dos peludinhos. Essa imagem se formou em minha mente com um grau impressionante de concretude. Para mim isso tudo era real e eu não conseguia me desvencilhar dessa representação funesta. Dentre as pessoas que andavam nesse carro havia um homem que se destacava pela habilidade com que manuseava a corda e o laço para a captura dos animais. Nunca soube seu verdadeiro nome, mas as pessoas o chamavam de Galo do Mato. Ninguém na cidade era tão veloz e tão certeiro quanto esse homem. Sua fama se espalhou e minha mente fantasiosa e lúdica nutria uma curiosidade desmedida em relação à carrocinha e, em particular ao Galo do Mato, ou mais precisamente em relação às suas habilidades enquanto homem de ação no apresamento dos bichos. Não havia unanimidade quando se discutia a prática da carrocinha e de seu protagonista maior, o Galo do Mato. As pessoas mais pobres economicamente não gostavam dele, tinham-no como um homem mau, cruel e desumano, posto que agia com violência e brutalidade na captura dos bichos. Quanto a mim havia uma mistura de sentimentos. Medo, raiva e até mesmo idolatria porque ele era um homem mau, em virtude de sua profissão e, ao mesmo tempo uma pessoa habilidosa naquilo que fazia. Dizia-se também que se o cão ou o gato estivesse na rua portando uma coleira, simbolizando que possuía um dono, a carrocinha não poderia levá-lo para o “canil da zoonoses”, como era chamado o lugar para onde levavam os bichos. Contudo, não havia essa prerrogativa de que uma coleirinha pudesse dar um salvo-conduto ao animal para transitar livremente pelas ruas. Isso eu mesmo presenciei na prática. Certa vez, em uma manhã chuvosa do mês de janeira, mês de férias escolares, presenciei da janela de casa um alvoroço na rua de chão batido e cheia de poças d’água. Curioso e ao mesmo tempo nervoso face ao corre-corre no local, avistei um carro do tipo caminhonete, com uma jaula de ferro na parte traseira e o famoso e odiado Galo do Mato, pendurado pelo lado de fora da porta do veículo, com uma corda na mão, pronto para pular e lançar seu laço em direção aos cães e gatos que passasse em sua frente.
Subitamente o abominável laçador saltou de onde estava e arremessou seu laço em direção a um cãozinho de minha vizinha, uma cadela chamada Pretinha. Sua manobra foi precisa como um arqueiro de filme medieval lançando suas flechas de cima da torre do castelo. Em segundos, rápido e certeiro, o trabalho foi concluído como em um sopro. O animalzinho estava preso junto com os outros já engaiolados. Eu, atônito, não me mexi do lugar onde eu estava, como que colado na parede, feito passarinho no visgo. Uma lágrima desceu-me os olhos e chorando fechei a janela e corri para contar o corrido à minha mãe que apenas afirmou: - “Meu filho, a gente não pode fazer nada. Só rezar por ela. Pra que ela fique bem”. - “Mas ela estava de coleira no pescoço. Ele não poderia ter laçado ela. A senhora não sabe que a carrocinha não pode pegar cachorro com coleira. A pretinha tem dono. A coleira dela mostra que ela tem dono. Todo mundo aqui na rua sabe disso. Não pode, não pode”! Mesmo com o medo tomando conta de mim, senti uma enorme vontade de ir até lá e pedir ao Galo do Mato para soltar a cadelinha. Alguém deveria fazer alguma coisa, pensava. Minha única estratégia era chorar, chorar, chorar até que minha mãe fizesse algo. E ela fez. Falou com alguns de meus tios dizendo-lhes que não aguentava mais me ouvir as lamúrias e que eles a ajudasse com aquela situação. Dias depois fiquei sabendo que os donos da pretinha conseguiram recuperá-la com a promessa de que não mais a soltaria nas ruas. Seus donos fizeram uma pequena casa no fundo do quintal e ela passou a viver lá, somente saindo à rua acompanhada de uma pessoa e presa a uma corrente. A pretinha havia se salvado, mas muitos daqueles cães que foram pegos junto com ela não tiveram a mesma sorte. Infelizmente!Recolher