Quando pequena, ouvia histórias de família, contadas por meus pais ou avós. Era a história da minha bisavó de descendência portuguesa, chamada de Sinhazinha, que cresceu na casa de seu primo, o barão Homem de Mello, pois seus pais morreram num trágico acidente quando a carruagem em que viaja...Continuar leitura
Quando pequena, ouvia histórias de família, contadas por meus pais ou avós. Era a história da minha bisavó de descendência portuguesa, chamada de Sinhazinha, que cresceu na casa de seu primo, o barão Homem de Mello, pois seus pais morreram num trágico acidente quando a carruagem em que viajavam foi pega por um trem.
Ou era a história de meu bisavô espanhol, que veio para São Roque, adquiriu terras e depois de trabalhar de sol a sol, tornou-se um dos maiores agricultores da região, importando sementes de cebola da Espanha e cultivando com destaque a alcachofra.
Eram histórias verdadeiras, contadas por seus descendentes, mas que guardavam uma aura de aventura, onde a tragédia era mais trágica e onde a vitória tinha mais brilho. Assim me parecia quando criança... Mas, uma história que me impressionava muito era a da viagem de minha bisavó italiana para o Brasil, num navio, ao final do século dezenove. Era uma família numerosa; ela tinha apenas cinco anos quando desembarcaram no Porto de Santos e nenhum deles jamais havia se deparado com uma pessoa negra.
Porém, o que mais me tocava nessa história, era a morte de sua irmã, em plena travessia do Atlântico, vitimada pela escarlatina, uma doença infecciosa, praticamente incurável naquela época. Isso me deixava perplexa. Era só uma mocinha, menina italiana de quinze anos que deveria sonhar, cantar e correr pelo navio, pois sabe-se que durante as viagens dos imigrantes italianos, as condições eram difíceis, mas as crianças sempre se divertiam. E seu corpo foi simplesmente lançado ao mar...
Hoje, esse fato me leva a refletir sobre os sentimentos dos imigrantes italianos. A saudade – palavra brasileira – das pessoas deixadas, das casas abandonadas, das vilas jamais avistadas novamente, da vida que ficou para trás. Sentimentos... eles sempre surgem nas entrelinhas das palavras de quem narra sua história; entre risos e lágrimas, surge a memória.
Sobre esses sentimentos não aprendemos na escola, nas aulas de História, onde somente datas, documentos escritos, fatos e pessoas de destaque têm importância. E onde os relatos, a história contada por pessoas comuns, nunca é considerada. Para o filósofo Walter Benjamim, qualquer um de nós é uma personagem histórica.
Esse foi meu objetivo com o projeto Memória da Imigração Italiana em São Roque, que resultará na publicação do livro Andiamo... E vem sendo baseado na História Oral, ou seja, nas narrativas das pessoas que vivenciaram os fatos, suas lembranças, suas impressões, seus sentimentos. São esses relatos que vão legitimar a pesquisa que busco nas fontes escritas.
Para o historiador francês Pierre Nora, memória é o vivido e história é o elaborado. Dessa forma, as histórias do passado podem ser reconstruídas através do resgate da memória. Com esse apelo, convidei a colônia italiana de São Roque a participar desse projeto, contando suas histórias, revelando suas memórias.
E terminei esse apelo fazendo um pouco meu, o pensamento de Boris Pasternak:
“O que é escrito, ordenado, factual, nunca é suficiente para abarcar toda a verdade: a vida sempre transborda de qualquer cálice.”
Então, eu não intuía que, na prática do meu trabalho, poderia tentar organizar tudo, mas não controlaria nada, as histórias têm seu próprio curso... Assim, parti para minha primeira entrevista do Projeto Andiamo... Eu estava há algum tempo longe de reportagem, em minha profissão de jornalista e, portanto, fui pega de surpresa.
UMA LIÇÃO ITALIANA DE VIDA
“A vida transborda de qualquer cálice.” Ao fazer a citação, em meu convite aos italianos, não sabia que comprovaria essa verdade de forma inusitada.
Preparei-me para minha primeira entrevista para o projeto Andiamo... Como boa jornalista que sempre tentava ser, mas nem sempre conseguia, testei o gravador, desemperrei a pilha na câmera fotográfica, poucos meses antes de entrar na era da tecnologia digital. Pensei nas perguntas que faria e lá fui para Maylasky, um distrito da cidade, localizado longe da área central onde eu residia, dirigindo-me à casa do Sr. Luiz Poloni, conhecido como Ângelo.
Entrevista previamente marcada com sua filha, eu estava tranqüila e minha preocupação era com a forma do meu trabalho, ansiosa pelas informações que poderia obter, pelos documentos ou fotografias históricas que a família poderia me fornecer. Pelas fotos que eu mesma faria e que revelariam o presente de quem me contaria sobre o passado.
Mas o que encontrei foi muito mais que conteúdo, foi uma lição de vida. O Sr. Poloni, 93 anos, debilitado pela idade e a doença, então recentemente vitimado por um AVC, com dificuldades para se expressar verbalmente, estava na cama e eu pouco poderia ter entendido das respostas que me deu não fosse a atenção de sua filha, intermediando nossa conversa.
Ali, meu gravador e a câmera fotográfica pouco importavam. Mas a garra, a lucidez e a vontade de viver desse homem, expressas através de seus olhos de um intenso azul, muito me impressionaram. Marcou-me não apenas sua história de jovem italiano de 20 anos, filho de uma família que, na Itália de Mussolini, quando os nazistas já se organizavam maciçamente na Alemanha, resolveu protegê-lo dos horrores da guerra e enviá-lo ao Brasil. Mas também o fato de ter acreditado na pequena cidade de São Roque, de ter visto ali, uma terra de oportunidades.
Deixara para trás sua família, os amigos, e estava numa terra estranha, sem nada entender do idioma ou conhecer dos costumes. Recebido por parentes, jamais voltou a ver seus pais ou irmãos, nunca teve oportunidade de retornar à Itália. Isso poderia ter sido um drama.
Mas não para o determinado e alegre “Ângelo Poloni”, lavrador, que, apesar de ter cursado somente até o 4º ano primário, conseguiu exercer uma valiosa profissão, mostrando o que de melhor sabia e que trouxera da Itália, no enxerto de uvas para a produção de vinho branco seco na indústria Cinzano. Em São Roque comprou seu pedaço de terra e ao lado da mulher Maria Joanna, criou as filhas e celebrou a vida. A música, as reuniões com amigos, para cantar e desfrutar das delícias da cozinha italiana, sempre foram sua paixão.
Estrangeiro, que nunca escreveu uma palavra em Português, valorizou a terra que adotou como sua, onde trabalhou, venceu na vida, ou melhor, viveu e foi feliz. Ao final da entrevista, ele disse-me que, sem dúvida, sentia-se mais brasileiro que italiano.
Saí dali com algumas riquezas gravadas na alma, tentando traduzi-las para as anotações do meu bloco, então um rico instrumento de trabalho, à moda antiga. Na volta para casa, meu pensamento se dividia entre duas direções. Uma se referia ao mecanismo do meu trabalho. Como poderia ouvir alguém que não conseguia falar? Como poderia fotografar alguém sem condições físicas de ser exposto ao público? E mesmo assim, voltava com uma rica história.
Na outra direção, meu pensamento me levou ao conteúdo da história ouvida, num espectro de julgamento, não pude evitar de me influenciar, entre a razão e a emoção. Isso me fez pensar nas tantas vezes em que ouvi são-roquenses maldizerem sua terra natal, manifestando a baixa auto-estima que os impede de acreditar no potencial da sua cidade. Que não enxergam suas ricas belezas naturais e permitem, impassíveis, até incentivando, a destruição de seu patrimônio histórico e de sua qualidade de vida.
Pensei, filosofando, que deve ser difícil enxergar luz quando a alma se encontra envolta na escuridão. A luz que vi nos olhos azuis de seu “Ângelo”, deixou-me a impressão de que a passagem do imigrante italiano Luiz Poloni por aquela terra, que nem era a sua, mostra-nos que a vida está ao nosso redor e em abundância. Resta, apenas, permitir que o cálice transborde... A cada nova história contada, ouvida, compartilhada.Recolher