Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual. Eu do meu lado aprendendo a ser louco. (Raul Seixas – Maluco Beleza)
Quando pequeno, estava fazendo comida junto à minha mãe enquanto cantarolava, e, foi nessa situação que ouvi pela primeira vez o ditado popular...Continuar leitura
Enquanto você se esforça pra ser
um sujeito normal
e fazer tudo igual.
Eu do meu lado
aprendendo a ser louco.
(Raul Seixas – Maluco Beleza)
Quando pequeno, estava fazendo comida junto à minha mãe enquanto cantarolava, e, foi nessa situação que ouvi pela primeira vez o ditado popular: “quem canta seus males espanta”. À época, não me dei conta do potencial transformador da música para o ser humano. Porém, acreditei, inocentemente, naquela ideia. Com a simplicidade típica de uma criança levei a frase comigo, sem prever os caminhos que a vida, em meio a tantas possibilidades, iria tomar.
Durante a adolescência e o início da juventude, não fui rebelde, não gritei morte ao sistema, nem cantava “Hey Ho, Let’s Go” quando curtia as bandas pelos bares e shows. Se os muros e privilégios que separam as classes sociais caíssem, de certo, não pensaria que isto mudaria alguma coisa em minha vida. Mesmo o caos cotidiano das sociedades modernas não foi capaz de abalar o mundo ideológico que habitava.
Tudo caminhava bem, nada parecia capaz de abalar meu mundo identitário. O grande fator externo que abalava minhas estruturas eram as paixões. Era nos romances e paqueras da juventude que rompia com valores que se queriam cristalizados, que movia minhas ações e me entregava às maiores rebeldias que poderiam acontecer. Não é por acaso que o livro Ame e dê Vexame de Roberto Freire me fez tanto sentido. Maiores ainda seriam as mudanças que aconteceriam ao reconhecer nas ideias anarquistas uma nova paixão.
Era 2005, adentrava naquilo que a sociedade convencionou chamar de maioridade, não me sentia pronto para encarar o mundo, mas essa não é uma escolha, mesmo sem preparo, o mundo não me esperou. Dois fatores fizeram-se importantes para as mudanças que viriam a acontecer em minha vida. O primeiro, foi a necessidade de aprender a tocar violão. Não porque a vida me impunha tal característica para ganhos econômicos, mas, pelo prazer de cantar, que há tempos levava comigo. Meus amigos e companheiros de aventuras musicais que tínhamos a ousadia de chamar de banda, seguiram seus rumos e foram estudar fora. Por isso, resolvi pegar o violão velho de meu irmão e aprender a tocar. Primeiro passo, colocar as cordas: uma loucura. Meu grande manual de ensino foram as revistas amareladas que estavam guardadas nas caixas de bagunça de nossa casa.
A ruptura com o confortável mundo da música em que só me era exigido cantar seguiu rumo a mudanças inimagináveis. Porém, o aprender violão também era um desejo que vinha nutrindo há algum tempo, a preguiça e o conforto da situação não me levavam a realizá-lo. Afinal, no início de um namoro, ao cantar a música Dust In The Wind, minha namorada falou que aquela música era linda e, como bom apaixonado que não pensa antes de falar, disse: um dia tocarei ela para você. Promessa pode até não ser dívida, mas, naquele caso, transformei a promessa em ação. O que vale ressaltar é o fato de que só me interessei por pegar o violão e aprender a música no momento em que o namoro já apresentava sinais de declínio. Novamente, a ruptura levou a mudança. E, neste mesmo período em que os alicerces do namoro só resistiam com “manutenção”, ouvi, no carro de um amigo, um CD do Raul Seixas, as músicas me encantaram. Afinal, era com Raul que minhas indagações e divagações filosóficas começaram a ganhar corpo. Num momento de incertezas no namoro, nada melhor do que a música Medo da Chuva, afinal, fazia todo sentido cantar: “é pena que você pense que eu sou seu escravo. Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir”. Era nas letras de Raul Seixas que eu percebia que não era como as pedras imóveis na praia, que eu poderia escrever meus caminhos, que a vida não era um emaranhado de fatalismos sobre cujos quais não tinha controle e que era possível questionar qualquer forma de verdade absoluta. Sim, o ato de reflexão com fins para a ação começava a fazer sentido.
Certo dia, ao ler o Jornal de Piracicaba, notei que teria início um grupo de poesia na Biblioteca Municipal às quintas-feiras. Empolgado com a primeira reunião convidei dois amigos com quem me encontrei e, na segunda semana, éramos três doidos querendo entender mais de poesia. Semanas vão, semanas vêm e resolvemos que deveríamos seguir com leituras próprias de poesia, cantar músicas e refletir sobre as questões que nos afligiam. Eis que, com uma garrafa de vinho, um pão de batata, violão, velas e livros de poesia nas mãos, fomos ao Engenho Central de Piracicaba. Nosso primeiro local de encontro, na outra semana aparecia com uma placa destacada sob dizeres do tipo: “não entre neste local. Perigo de desabamento”. No fim, por certa prudência, resolvemos fazer nosso encontro onde Cristo é crucificado. Não estou aqui usando de meias verdades. Fomos ao local onde, nas peças da Paixão de Cristo piracicabana, tradicionalmente acontece a crucificação. Encontramos um lugar agradável: natureza para um lado, Rio Piracicaba para o outro. Como as reuniões eram noturnas, as velas não poderiam faltar. Criávamos assim, um lado místico, onde os sentidos e a mente se predispunham a acreditar que o impossível se tratava de um ponto de vista. Estávamos começando a experimentar, ao menos às quintas-feiras, a máxima francesa que atravessou os mares na década de 1960: “seja realista, exija o impossível”. Este foi o segundo fator que provocou as mudanças em minha vida: a vivência das noites regadas por poesia e música. Neste processo, nada se compara com as divagações que tive a partir das músicas do maluco beleza.
Naquelas noites, Raul Seixas era nosso principal repertório musical e reflexivo, a Sociedade Alternativa tinha reflexos ali, a liberdade que permitíamos uns aos outros garantia a possibilidade de se expressar e não ser repreendidos, aquele era o espaço onde nossas dúvidas, divagações, concepções sobre a realidade eram compartilhados e transformados por meio das ideias dos outros. Lá, onde todos se viam calçando sapatos de número 37, ninguém seria obrigado a usar 36. Afinal, como cantávamos: “vou escolher meus sapatos e andar do jeito que eu gosto”.
A liberdade se mostrava tangível, não mais um simples tema dos livros de Filosofia ou parte do lema da Revolução Francesa, mas, algo que poderia ser discutido, e, acima de tudo, construído. O Outro deixava de ser visto como coisa e passava a ser reconhecido como um ser de vontades. Afinal, a música Novo Aeon fazia muito sentido quando dizia que “já não há mais culpado nem inocente, cada pessoa ou coisa é diferente. Já que é assim baseado em que você pune quem não é você?”.
A semente das novas ideias começava a germinar e os rótulos já não me satisfazia. Se “cada um de nós é um universo” como enquadrar as pessoas em estereótipos pouco analíticos? Enquanto as instituições enquadravam e arrancavam a “cabeça do dr. Sigismundo porque sem querer cantou de galo que cada cabeça era um mundo”, eu pensava que sua ideia interessava e fazia todo sentido. Já não buscava mais ser um sujeito normal, queria desafiar as ideias, descortinar os fatos, questionar o que estava posto, afinal: “O que é que a ciência tem? Tem lápis de calcular. Que é mais que a ciência tem? Borracha prá depois apagar”.
Ao ouvir Gita e tentar entender a letra, fui descobrir um livro sagrado hindu: Bhagavad Gita. Com sua leitura, a música tinha mais sentido, porém, as religiões passavam a não ter mais significado para minhas ações. Se Raul Seixas, aos onze anos de idade “já desconfiava da verdade absoluta”, eu, passei a questioná-la aos dezoito.
Era naquelas noites de poesia, reunião e música, no Engenho Central de Piracicaba (SP), que percebia diversas mudanças em mim. Ali, as palavras que saiam do incenso de Leminski soavam como música, afinal
aquilo de querer ser
exatamente aquilo
que agente é
ainda vai
nos levar além.
(Paulo Leminski – Incenso Fosse Música)
Todas as letras das canções citadas foram retiradas do livro: Raul Seixas: uma antologia. Escrito por Sylvio Passos e Toninho Buda.
Passos, S., Buda, T. Raul Seixas: Uma antologia. São Paulo, SP: Martin Claret, 1992.Recolher