Na tentativa de capturar as palavras saltitantes em meu pensamento que pudessem assumir comigo os sentimentos tão conflitantes por que passo na escrita desta tese, pensei em dizê-las nesta introdução a partir de algumas escolhas por mim tomadas e, assim, encontrar o meu lugar nesta enunciação...Continuar leitura
Na tentativa de capturar as palavras saltitantes em meu pensamento que pudessem assumir comigo os sentimentos tão conflitantes por que passo na escrita desta tese, pensei em dizê-las nesta introdução a partir de algumas escolhas por mim tomadas e, assim,
encontrar o meu lugar nesta enunciação.
Escolha é sinônimo de gosto e preferência, e escolher, como me diz Fonseca (2002, p. 211), é “[...] preferir, eleger, optar, joeirar, selecionar, separar, apontar, mencionar”. Quantas possibilidades com essa palavrinha que escamoteia a dificuldade de praticá-la. As escolhas atravessam todos os momentos da minha vida e martelam minha cabeça na produção desta tese: por que tal termo, que texto trazer primeiro, com quais autores quero dialogar; e assim por diante surgem várias escolhas todos os dias a minha frente à espera de uma decisão.
Inspirada na letra da música “Palavras ao vento”, de Cássia Eller, que compõe o título deste texto, ao falar das minhas escolhas, canto palavras que sinto neste momento de abertura de um trabalho. Então, pensei em fazer desta introdução um cantinho mais íntimo e, ao mesmo tempo, descontraído, numa espécie de antessala do relato da pesquisa propriamente dita. Por isso, peço licença ao leitor para abrir este trabalho falando de mim mesma, não como exaltação do meu eu, mas pensando na combinatória de sonhos, experiências, informações e aprendizagens que me fizeram cursar o Doutorado em Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora e o meu envolvimento com os estudos na abordagem histórico-cultural. É engraçado, ou ao menos curioso para mim, como, ao começar a escrever a tese, sinto a necessidade de mexer, remexer, ordenar e reordenar os acontecimentos das linhas escritas na enciclopédia da minha vida. A tentação em descrever um longo inventário de objetos é grande, mas vou me deter nas páginas da enciclopédia da minha vida que tratam da formação e atuação profissional.
Penso que foi, sem dúvida, a minha vocação para os estudos
que me trouxe até o Doutorado. Quando eu tinha 6 anos de idade, minha mãe estava cursando o Magistério e sempre trazia suas colegas para realizar os trabalhos em grupo na nossa casa. Eram livros, papéis e revistas por todo o lado. Ela só pôde estudar após estar casada e com os filhos criados. Em sua época, seus pais acreditavam que as mulheres tinham que casar, ter filhos e não se envolver com os estudos. Ainda bem que meu pai, motorista de caminhão que só estudou até a antiga quarta série primária, pensava diferente e lhe deu todo o apoio para estudar. Por isso, ela se tornou professora da escola pública na cidade de Ponto Belo (ES) em 1979 e se formou em Pedagogia aos 58 anos de idade.
Para acompanhá-la em sua nova profissão, saímos de Nanuque (MG), cidade onde nasci, para a pequena cidade de Ponto Belo, no Norte do Estado do Espírito Santo. Por lá, concluí o antigo ensino primário e o curso de Magistério.
Talvez seguindo os passos de minha mãe, sempre sonhei em ser professora e, por isso, queria continuar os estudos após o curso do Magistério. Como morava no interior, onde não existiam cursinhos preparatórios para vestibular nem universidades e faculdades próximas, sabia que teria muitas dificuldades em seguir em frente com os estudos.
Consegui um material de curso preparatório do vestibular por correspondência e estabeleci uma rotina de estudos em casa. Seguindo o mesmo caminho de alguns dos meus professores do Ensino Médio, decidi prestar vestibular para Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Teófilo Otoni, cidade mais próxima, que, no ano de 1991, possuía uma faculdade. Apesar de meus pais serem contrários à minha ideia fixa de estudar para ser professora, não mediram esforços e suas poucas economias para eu poder morar em outra cidade e estudar com certa tranquilidade em uma faculdade particular.
Lembro-me de que, desde quando estava cursando Pedagogia, atrevidamente já pensava em continuar meus estudos na pós-graduação. Carregava mais sonhos em minha bagagem: ser professora do ensino superior. Sonhos à parte, após formada em 1994, voltei para Ponto Belo (ES) e me tornei
professora do curso de Magistério e, por quatro anos, também atuei como supervisora na Prefeitura Municipal da cidade. Nesse período, cursei algumas pós-graduações, e foi a última especialização lato sensu realizada em Informática na Educação que transformou minha vida profissional. Realizei essa especialização no ano de 1999, numa turma pioneira nas Faculdades Integradas Espírito-santenses (FAESA), em Vitória (ES). Na época, só existia a especialização dessa natureza
ofertada pelo Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo), na Universidade Federal do Espírito Santo, para os professores efetivos da rede pública do Estado.
No final dessa década, os computadores conectados em redes digitais estavam sendo inseridos nos mais diversos setores das atividades humanas em nosso país. No entanto, na pequena cidade em que morava, eles eram vistos mais nas repartições públicas e no comércio, e a internet era realidade de poucos pelo alto preço cobrado pelos provedores para atender ao interior do Estado. Informática na educação era algo muito distante para as escolas públicas municipais e estaduais da cidade, que não tinham sido contempladas com os computadores por meio do ProInfo. Cenários nada convidativos para se aventurar em uma especialização dessa natureza. No entanto, além da curiosidade em conhecer essa nova área de discussão na educação, da disposição em aprender algo novo, foi um momento de repensar minha atuação profissional, uma vez que o curso do Magistério estava se findando no Estado do Espírito Santo e temia ficar sem espaço para atuar como docente no “Novo Ensino Médio”. Resolvi apostar, e essa aposta contribuiu para que as tecnologias digitais começassem a tomar destaque na minha formação de pedagoga.
Feliz com mais um diploma na mão e ansiosa para começar a trabalhar nessa área, tive que “engavetar” meus estudos por uns tempos porque não havia nenhuma perspectiva de trabalho nessa área na cidade de Ponto Belo (ES), onde morava.
Dizem por aí que, quando pensamos muito em algo, o universo conspira a nosso favor. Não sei se foi conspiração do universo, mas meus estudos ficaram engavetados por pouco tempo. Logo surgiu um concurso para professor substituto da disciplina Introdução à Informática no Departamento de Educação do Campus X em Teixeira de Freitas, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e eu pude realizá-lo por causa da especialização na área. Depois de um ano atuando como professora substituta, a Universidade abriu concurso para a disciplina Informática, exigindo especialização lato sensu em Informática na Educação, e não
a titulação de mestre e/ou doutor para a vaga. A exigência da especialização na área se deu pelo fato de que a disciplina seria ministrada nos cursos de Licenciatura e Pedagogia da Universidade.
Portanto, o meu ingresso no Ensino Superior se deu, sobretudo, pela especialização na área e, dessa maneira, passei a ser a “menina da tecnologia” no Departamento de Educação do Campus X em Teixeira de Freitas. Isso porque, para além das aulas na disciplina concursada, também era requisitada pelos colegas para ajudá-los na lida com o computador e a internet. A experiência de ensinar esse conteúdo será comentada no próximo texto, pois é do seu interior que a pesquisa no Doutorado foi tomando forma. O meu envolvimento com as tecnologias digitais na sala de aula do Ensino Superior e em torno de sua inserção nas escolas públicas da cidade me instigou a cursar o Mestrado em Educação na PUC – Minas Gerais. Construí minha dissertação de Mestrado investigando o uso das tecnologias digitais em uma escola pública do Ensino Médio na cidade de Teixeira de Freitas, a partir da atuação dos monitores no laboratório de informática, verificando as contribuições e os limites dessa prática para os alunos e para a escola.
Defendi a dissertação no início de 2007 e me envolvi com aulas, projetos de pesquisa e coordenações, perdendo os prazos de processos seletivos do Doutorado em Educação em algumas universidades que me interessavam, principalmente no Estado da Bahia.
Num certo dia, mais precisamente um dia do mês de fevereiro de 2008, sentei-me em frente ao computador, acessei a internet e fui direto para o Google em busca de algum processo seletivo que, por ventura, estivesse aberto. Nessa busca, surgiu um link para uma entrevista da coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, a professora Sonia Miranda, falando do primeiro processo seletivo do Doutorado em Educação do programa. Acessei o edital no site e comecei a fazer planos. Eram apenas cinco vagas para esse processo, que seria realizado em menos de um mês. Dividi essa informação com alguns amigos da universidade e ninguém quis enfrentar. E eu, corajosa como sempre, decidi concorrer para ver como seria uma seleção de Doutorado. É claro que já tinha ouvido falar da cidade de Juiz de Fora, mas nunca tinha vindo para esses lados das Minas Gerais. Além disso, não tinha ideia de quem poderia ser minha orientadora; e, no edital, era solicitada a indicação do nome do possível orientador. Ao ler as pesquisas realizadas pelas professoras do programa, logo me interessei pelas produções de Maria Teresa de Assunção Freitas.
Mais uma vez, recorri ao Google à procura de informações e publicações da professora. E foi assim, tendo o Google como mediador, que encontrei o processo seletivo do Doutorado da UFJF, conheci e escolhi minha orientadora. Aprovada, solicitei afastamento das atividades docentes e, com o apoio da UNEB para investir em minha formação, mudei-me de “mala e cuia” para Juiz de Fora. Tive que abandonar o calor da cidade que me adotou como cidadã, da família, dos amigos e alunos para vir sentir o friozinho de Juiz de Fora e fazer parte da primeira turma do Doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF.
Quando meu pai soube que eu iria me mudar para Juiz de Fora para cursar o Doutorado, fez-me a seguinte pergunta: “Você não acha que já estudou o suficiente para sua vida? Precisa estudar mais, filha?”.
Palavras aflitas de um pai que não queria ver sua filha, mesmo com 37 anos, morando sozinha em uma cidade tão distante. No momento de nossa conversa, justifiquei minha saída para os estudos com as exigências da vida acadêmica. Já que era professora do Ensino Superior, precisaria estudar mais. Mas sabia que, no fundo, não era apenas um cumprimento de uma exigência profissional, mas a minha vocação para os estudos que falava mais alto. Como sempre, ele apoiou-me, mas ainda sem entender muito bem “esse negócio de Doutorado e escrita da tal tese” que tanto nos afastou. A vivência em três espaços geográficos que se avizinham, ou melhor, em três estados – Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia –, e a andança para os estudos e para o trabalho nesses locais vêm me possibilitando encontros e desencontros, dando contornos diferenciados e marcantes na minha constituição como sujeito histórico-cultural. Da minha estadia em Juiz de Fora, surgem acontecimentos
marcantes em minha vida de eterna aprendiz. Não posso falar de todos, mas preciso registrar que, nesse período, me tornei membro do grupo de pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC), recebi o diploma de mãe antes do de doutora e estou aprendendo a ser pesquisadora na abordagem histórico-cultural. Ser mãe no meio do percurso do Doutorado é uma bonita e longa história e, por isso, vou deixá-la à parte para destacar o meu encontro com a perspectiva histórico-cultural, que também está atrelado com o meu ingresso no grupo LIC. Tudo começou com a escolha da minha orientadora, a Prof.ª Maria Teresa de Assunção Freitas, no processo seletivo. O que nos aproximou de imediato foi a temática de pesquisa – “computador e internet na formação de professores” –, e o que nos distanciava naquele instante era a abordagem histórico-cultural, perspectiva teórico-metodológica com que a pesquisadora trabalhava. Isso porque, infelizmente, a leitura de autores histórico-culturais como Bakhtin e Vygostky se deu tardiamente em minha vida, iniciando-se com meu ingresso no Doutorado.
E, tendo a internet mais uma vez como mediadora, encontrei alguns textos de Maria Teresa na defesa do caráter distintivo da pesquisa histórico-cultural na área educacional, pela especificidade do objeto de estudo e do conhecimento concebido como construção entre sujeitos, por ser uma abordagem que amplia o olhar do pesquisador, na medida em que possibilita evidenciar os sujeitos envolvidos em sua singularidade e que pertencem a um determinado contexto histórico e social (FREITAS, 2002; 2003). Tudo isso era muito novo para mim, e precisava embrenhar-me na compreensão do que defendia essa perspectiva teórica e que contribuições poderiam trazer para minhas inquietações de pesquisa.
Destaco dois ambientes de vivência e interlocução com a perspectiva histórico-cultural no Doutorado: as reuniões semanais do grupo de pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC), coordenado por Maria Teresa, e as disciplinas cursadas. Posso dizer que frequentar esses espaços em que ferviam discussões em torno dos autores soviéticos ressignificaram meu olhar para o ato de pesquisar, para a aprendizagem e as tecnologias digitais.
Em nossas reuniões semanais do grupo LIC, ao redor de uma mesa, apertados pelo tamanho da sala ou pelo grande número de participantes, dividindo espaço com os computadores, bolsas, cafezinhos e muitos livros, sempre tivemos calorosas discussões teórico-metodológicas. Os escritos de Bakhtin e Vygotsky nos provocavam, apontavam respostas, criavam outras perguntas em torno do interesse do grupo em investigar “Computador-internet e cinema como instrumentos culturais de aprendizagem na formação de professores”. As reuniões se encerravam às 18h, mas as discussões incrustavam-se em mim; saía da sala tecendo comentários com os colegas e ia para casa instigada a me lançar em novas leituras e escritas em torno dos diálogos construídos no grupo.
O outro espaço de vivência e discussão da perspectiva histórico-cultural foi, sem dúvida, o das disciplinas cursadas que tiveram o foco nos estudos de Vygotsky em um semestre e, no outro, os de Bakhtin. Disciplinas em que conviviam e dialogavam iniciantes e iniciados nos estudos dos autores. Cada um com sua problemática de pesquisa articulando conceitos diversos, mas com uma única intenção: pesquisar com e a partir da abordagem histórico-cultural.
Fui seduzida pelo diálogo da professora Maria Teresa com os escritos desses autores que, desde seu Doutorado em 1992, se tornaram cúmplices com suas formas de conceber o sujeito, o conhecimento e a pesquisa. Na visão de Freitas (2007a), Vygotsky e Bakhtin rompem com a positividade das ciências de seu tempo, em que o homem era considerado objeto, e os fatos sociais, coisas, inaugurando uma outra forma de fazer ciência com espaço para o ético, o estético e o afetivo. Ambos defendem uma proposta dialógica de ciência que não apaga o sujeito; pelo contrário, a radicalidade teórica dos dois autores está justamente na defesa do homem não como coisa, mas como pessoa historicamente situada. São autores que trazem grande contribuição para a pesquisa na educação, e seus estudos podem ser redescobertos para além da Literatura e da Psicologia, campos em que foram gestados. Precisava descobrir que contribuições esses autores poderiam trazer para a pesquisa a ser por mim realizada, sendo que nenhum deles, até pelo tempo em que viveram, tinham como foco de seus estudos as tecnologias digitais na formação inicial dos professores como eu. Autores que, na década de 1920, na União Soviética, partiram do marxismo na construção de suas teorias, tendo como interesse comum a psicologia, a arte, a literatura, a filosofia da linguagem e a semiótica. Que conexões poderiam ser estabelecidas entre nós? Era a pergunta que me fazia desde o primeiro dia de aula no Doutorado.
Consciente de que são autores que tecem suas teorias numa rede intricada de conceitos difíceis de serem tomados de forma isolada da fundamentação filosófica em que foram gestados, bem como do próprio calor e clima do momento histórico-cultural em que viveram. Posso dizer de antemão que as conexões foram sendo estabelecidas no decorrer do processo da pesquisa. Na medida em que me aproximava dos seus estudos, fui sentindo-me mais à vontade em tê-los como interlocutores. Às vezes, um dos autores tinha muito a me dizer e o outro se silenciava, outras vezes os dois falavam juntos, e assim fui construindo um diálogo com seus estudos a partir do meu interesse em pesquisar a aprendizagem dos sujeitos adultos em um curso de formação de professores com e sobre as tecnologias digitais.
Ao contar a minha trajetória com os estudos no Doutorado, também encontro e reencontro comigo mesma e tomo consciência do meu lugar nessa escrita. E por falar em escrita, quero dizer que fazer parte desses ambientes de interlocução com a perspectiva histórico-cultural também colaborou com uma nova maneira de pensar a escrita na academia. A vocação para os estudos surgiu desde cedo em minha vida, mas nunca tive vocação para a escrita. E, no grupo de pesquisa LIC, encontrei uma escrita diferente nas atas dos registros das reuniões semanais. Uma ata pensada como registro de memória coletiva dos modos de pensar e pesquisar a partir da perspectiva histórico-cultural. Enunciações construídas a partir do lugar que cada um ocupa no grupo (doutorandos, mestres ou bolsistas de iniciação científica) no exercício de produzir uma escrita atravessada de sentidos singulares e plurais nos quais cada autor se mostra, cria e se recria no registro do vivido.
Sabia que, a qualquer momento, chegaria a minha vez de escrever uma das atas e, num passar de semanas, chegou o tão esperado e temido momento. Tratei logo de ler e reler as atas anteriores, e era surpreendida a cada leitura, porque, para além do texto, eu encontrava o sujeito-autor. Suei muito para produzir minha primeira ata, pois tinha que trazer para o texto a autora que havia aprendido na academia que era “de bom tom” ficar distante do que se escrevia. Acabei aprendendo a me esconder atrás do texto falando numa terceira pessoa que se deixa dizer. A escrita de uma ata autoral para ser lida no grupo, acompanhando os olhares de aprovações ou não dos leitores, criava
muita ansiedade e, de certa maneira, até mesmo um desconforto em mim. Sentimentos que, paradoxalmente, colaboravam na criação daquela. Ficava pensando em que palavras escolher que dessem conta de dizer o vivido e o sentido por mim naquele evento. Processo dolorido e, ao mesmo tempo, prazeroso quando via que os participantes do grupo se deleitavam com as palavras escritas. Como falam Ramos e Shapper
(2011, p. 26), “[...] não há como não se envolver na escrita de uma ata narrativa, bem como não iluminá-la com toda a carga de alteridade do sujeito que a produz”. O leitor pode estar se perguntando o que tem a ver essa história de escrever ata em grupo de pesquisa com a escrita de uma tese. Dimensões, proporções e leitores diferentes? Pode ser. Mas também pode não ser. O lugar a que quero chegar com essa história é o lugar do autor na escrita do texto. Lugar que, antes de estar participando do grupo LIC, era muito distante para mim. Aos poucos, a escrita passou a ser menos dolorosa, o que não quer dizer que se tornou fácil. Comecei a pensar com a literatura. Incorporando-a aos textos, passei a assumir uma posição, dizer do meu lugar com a ousadia em mostrar-me no texto. E decidi que queria trazer essa aprendizagem para a escrita desta tese.
Quem escreve lança mão de letras, tons, ritmos, enfim, enunciados diferentes que atendam aos motivos dessa escrita. Palavras brotadas do lugar que cada um ocupa, pois nesse jogo está o sentido que a escrita tem para cada sujeito. E qual o sentido que a escrita desta tese tem para mim? Considerando as especificidades de uma tese, essa foi escrita com a intenção de não apenas cumprir um ritual acadêmico da produção do conhecimento nas Ciências Humanas em que está em jogo o título de doutora; mas de pensar numa escrita inscrita na minha própria constituição como pesquisadora e autora, assumindo riscos, assinando o que falo no reconhecimento que participo desse evento do lugar único e não repetível que ocupo.
Desse meu lugar mineiro, capixaba e baiano, escolhi a arte do fuxico para entrelaçar os tons e os ritmos baianos com a seriedade mineira. Para iniciar o bordado em fuxico, pega-se um retalho de pano, corta os pequenos círculos, pesponta-se a borda para franzi-la e dá-se o arremate. Costura-se cada trouxinha de tecido em forma de mosaico para dar o acabamento pensado por quem está a bordar. Da ideia inicial à composição final do bordado é um fazer e desfazer, incluir e excluir, assim como a escrita desta tese, que foi se metamorfoseando desde o primeiro exame de qualificação, sobretudo com a colaboração do olhar e da palavra do outro para dar-lhe um acabamento no sentido bakhtiniano, isto é, sempre inconcluso.
Quando olhamos para um jarro ou para um objeto criado com a arte do fuxico, olhamos para o seu acabamento final. Sua forma anterior e os movimentos do seu processo de transformação estão incrustados nele, mas não de forma aparente, visível aos nossos olhos. Bordar uma peça em fuxico é pôr e dispor trouxinhas de tecido que melhor combinem com o todo imaginado pela bordadeira. Nessa composição, o todo e a unidade se entrelaçam. Cada fuxiquinho é incluído ou excluído no processo e, no final, o todo contém as partes, assim também como as partes são costuradas na composição do todo. Como ressalta Vinco (2009, p. 228), “[...] pensando em termos de fuxicos, cada flor [de fuxico] se inclui na rede em que se tece a vida”.
A bordadeira, com uma linha, alinhava cada trouxinha de pano; e é também com a linha que ela conecta uma às outras. Essa linha tem como principal função articular os fuxicos, unindo-os. A perspectiva histórico-cultural assume nesta tese a função da linha no bordado, articulando os fuxicos construídos para compreender a apropriação da cultura digital pelos estudantes adultos num curso de formação de professores.
No cerzimento desta tese/fuxico, costuro diálogos das palavras minhas com as palavras alheias. Mas por onde começar a cerzir os fuxicos? Começar pelo princípio? Como comenta Saramago,
[...] o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direção quer ir, que tenteia o caminho como um cego, o princípio é só o princípio [...]. (SARAMAGO, 2000, p. 71) Olhando para uma colcha de fuxico, é difícil saber qual fuxico foi costurado primeiro. Quando me sento em frente ao computador para escrever o texto final da tese, também fico sem saber qual fuxico começo a cerzir primeiro. Tanta coisa lida, vivida, escrita e reescrita
que quero compartilhar com o leitor que tenho a impressão de que precisaria fazer como nos filmes ou em qualquer produção audiovisual em DVD, que inclui o
Making of, ou seja, os bastidores do processo de produção da obra vêm em um arquivo separado. A produção científica também apresenta seus movimentos próprios de transformação e os bastidores dos acontecimentos. Por trás de uma tese, está uma questão de pesquisa com um processo de construção com caminhos nada lineares e emaranhados nos múltiplos fios que vão sendo desenrolados pelo caminho. Não só a questão de pesquisa, mas todos os demais percursos na construção de uma investigação têm sua história, seu processo de criação. Considero ser pertinente incluir no texto de pesquisa esse processo, não apenas no momento de falar da minha estadia no campo e do meu encontro com os sujeitos e seus discursos, mas trazendo para o texto partes dos bastidores do desenvolvimento da pesquisa no todo.
Assim sendo, a intenção do próximo retalho/texto é mostrar o engendramento do problema da pesquisa, sua constituição a partir da minha prática e seu entrelaçamento com os estudos na área educacional. Em seguida, alinhavo de forma breve alguns termos que se tornaram fundamentais na construção da questão da pesquisa. Enfim, partilhei acontecimentos, sonhos e conquistas da minha vida pessoal e profissional e, daqui em diante, vou deixar os sonhos de lado para fuxicar sobre inquietações, encontros, labirintos, travessias e aprendizagens dos sentidos construídos por uma professora que
escolheu ser pesquisadora na perspectiva histórico-cultural.Recolher