Votorantim Fercal-DF
Depoimento de Sebastião Romeu da Silva (Belmiro)
Entrevistado por Marcia Trezza, Alexandre Gomes e Caio Gomes
Fercal, 11 de junho de 2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV015_Sebastião Romeu da Silva (Belmiro)
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Seu Belmiro, nós vamos começar. O senhor fala o seu nome completo, por favor?
R – Sebastião Romeu da Silva.
P/1 – O senhor é chamado também por outro nome.
R – Belmiro.
P/1 – Depois a gente vai saber por quê. Em que data o senhor nasceu?
R – Vinte e oito de dezembro de 1934.
P/1 – Onde?
R – Sou natural do Rio de Janeiro.
P/1 – E estado?
R – Rio de Janeiro.
P/1 – O senhor pode dizer o nome dos seus pais?
R – É José Romeu da Silva e Carmem Nascimento da Silva.
P/1 – Que lembranças o senhor tem do seu pai, seu Belmiro?
R – A lembrança que eu tenho de meu pai é que era um cidadão muito bom, foi um bom pai pra nós, por isso que eu estou com essa idade hoje e seguindo tudo o que ele fazia no Rio de Janeiro. Ele também era um lutador em um bairro em Realengo que chamava Vila Vintém, que hoje é Padre Miguel.
P/1 – E ele fazia muita coisa lá pelo bairro?
R – Fazia, fazia.
P/1 – Conta um pouco, seu Belmiro.
R – Porque lá começou como cidade de palha. Por quê? Porque o pessoal lá era pobre, então eles cortavam sapê, que é um capim nativo da região, faziam as casas de taipa e cobria com palha. Aí, no decorrer dos anos – meu pai era do bombeiro e meu avô era do exército, então eles conseguiram zinco, que veio a época do zinco, zinco é aquelas folhas grandes, né? E meu avô ganhou. Ele não sabia o que fazia, então o que meu pai fez? Substituiu a palha pelo zinco, então já ficou a Vila Vintém. Por quê? Porque ficou rica, saiu a palha e botou o zinco, entendeu (risos)? E depois essa cidade passou a se chamar Padre Miguel. Porque em Realengo tinha um capelão na nossa igreja, que era a Igreja Nossa Senhora da Conceição, esse padre morreu. Então o prefeito da época, para homenagear ele botou o nome da estação Bairro de Padre Miguel, porque é até hoje. É a origem de Padre Miguel. Não era pra ser o que é hoje, né? Porque hoje lá é uma cidade de vabagundo, de ladrão, é uma Ceilândia da vida, entendeu? É o retrato de uma Ceilândia. Mas tem boas coisas, moram boas famílias lá que nem mora na Ceilândia, entendeu? Mas é uma cidade perigosa. Nós se fomos lá agora passear na cidade, somos bem tratados, agora com o decorrer do tempo se torna perigoso. É por isso que todo mundo fala assim: “O Rio de Janeiro é perigoso”, mas tem seus locais de perigo.
P/1 – E tem muitas famílias boas lá em Realengo?
R – Tem, tem, tem. Porque agora vou dizer porquê. A origem do Rio de Janeiro está na situação que está, igual a Brasília. Porque tem muita miscigenação, entendeu? Tem muitas pessoas nativas, que não são de lá, vinha de lá pra fundar o Rio de Janeiro. Então o que aconteceu? Misturou. Porque quando chegar nas cadeias do Rio de Janeiro, não vai encontrar carioca preso. É por isso que diz que carioca é malandro (risos). O carioca manda fazer, mas não faz nada (risos).
P/1 – Seu Belmiro, e o senhor lembra bem da região lá da rua que o senhor morava?
R – Lembro tudinho. Onde eu nasci, tudo direitinho.
P/1 – Conta como era, então.
R – Eu morava próximo assim, que nem aqui pra mim, eu ia botar o nome daqui Novo Rio. Por quê? Porque o bairro onde eu morava, em Realengo, era assim perto de uma serra bonita, era pedreira. Essa pedreira chamava Pedreira Dona Júlia. Eu era criança e me lembro. Então lá tinha diversas chácaras. Eu nasci numa chácara. Então eu vim voltar para uma chácara. Tanto que quando eu estava num Corpo de Bombeiros o pessoal falava: “Quando você reformar, Belmiro, você vai voltar para o Rio de Janeiro?”, eu dizia: “Não, eu vou comprar uma chácara e vou criar galinha” (riso). É o que eu estou fazendo hoje (risos).
P/1 – Da sua mãe, o que é que o senhor lembra?
R – Minha mãe eu lembro muito pouco. Quando ela morreu eu tinha cinco anos. Eu só me lembro que ela mandou reunir, nós éramos em quatro irmãos, mandou reunir na cama dela, aí ela me chamou e disse, me chamava de Tião: “Tiãozinho, você faz o seguinte, você não abandona a sua avó, tu fica com a sua avó até ela morrer”. E assim eu fiz.
P/1 – É mesmo?
R – Assim eu fiz. Só me lembro dessa passagem, entendeu?
P/1 – E os outros irmãos?
R – Os outros irmãos, ela abriu mão, disse: “Vocês, se quiserem ficar com o pai de vocês, vocês ficam”. Mas o meu pai casou e todo mundo voltou pra minha avó de novo (risos).
P/1 – O senhor ficou logo com a sua avó.
R – Eu fiquei com ela direto, eu não saí da casa dela nunca mais. Até eu casar, ela falecer.
P/1 – E os irmãos mais velhos eram homens?
R – Eram dois homens e duas mulheres. Era eu, meu irmão mais velho, eu sou o terceiro dos irmãos, e agora só tem eu. O resto Jesus levou todo mundo, até a mais nova, a caçula.
P/1 – A caçula era filha dela também.
R – Era. Todos filhos de pai e mãe.
P/1 – E ela ficou com o pai.
R – Ela ficou com o pai, mas depois voltou pra casa de novo.
P/1 – E com os irmãos, como era o dia a dia com eles, o senhor lembra?
R – Nós sempre fomos irmãos unidos, não tinha esse negócio de briga, não tinha nada, íamos pra escola juntos. Os mais velhos cuidavam dos mais novos e assim fomos sendo criados, né.
P/1 – A escola era perto da casa?
R – Era pertinho, daqui lá na Fercal. Tinha que ir a pé. Hoje tem ônibus, tem tudo e eles não querem estudar (riso).
P/1 – Quanto tempo o senhor levava para ir para a escola?
R – Mais ou menos uma hora.
P/1 – Caminhando?
R – Caminhando.
P/1 – Vocês iam todos os dias?
R – Todos os dias. E sabe como a gente ia ligeiro para a escola? Tinha arco.
P/1 – Como assim?
R – Arco, a gente tirava aquela beirada do pneu, da parte de dentro, e ia rodando. Aí num instante a gente chegava na escola. Aquela turma rodando pneu pelo menos da rua.
P/1 – Com uma varinha.
R – Com uma varinha, chamava-se arco.
P/1 – E da escola, como que é era? Que lembranças o senhor tem da escola?
R – Eu tenho muita lembrança da escola! Que a primeira escola que eu estudei foi justamente a escola do padre Miguel, que era uma escola de padre. Ali foi que eu comecei a estudar. Dali o padre morreu, acabou a escola, fechou.
P/1 – Era pública ou pagava?
R – Não, era pública, era pública. Dali eu fui para o ginásio, na São Jorge, que chama Ginásio São Jorge. Lá eu terminei meus estudos.
P/1 – E na escola do padre, o que vocês faziam além de estudar? Tinha algumas brincadeiras?
R – Tinha muitas brincadeiras.
P/1 – Conta para gente.
R – Às quintas-feiras tinha um salão lá grande, tinha projeção de cinema para nós, a parte religiosa. A gente aprendia profissão, graças a Deus.
P/1 – Aprendia? O que o senhor aprendeu lá?
R – Eu aprendi muitas coisas. Aprendi marcenaria, eletricista, mecânica, tudo eu aprendi na escola do padre.
P/1 – E o senhor na época era criança?
R – Era criança.
P/1 – E mexia com tudo isso?
R – Tudo isso a gente mexia na escola.
P/1 – E fora da escola, o senhor lembra de brincadeiras?
R – Ah, a gente brincava brincadeira normal de criança mesmo, Garrafão, Chicote Queimado.
P/1 – Como é Garrafão?
R – Garrafão era um quadrado com uma porção de boca, saída, riscada no chão tipo uma planta de casa, e ficava um que cada parte. Então o cara para sair dali tinha que procurar uma parte para sair, então tinha que enganar um vigia da porta, né? Ele ia pra dentro do salão e apanhava (risos), porque deixou fugir.
P/1 – E como é que o senhor fazia pra enganar?
R – Começava a conversar com ele, coisa e tal, aí passava embaixo das pernas, qualquer coisa (riso).
P/1 – Vocês saíram do Rio de Janeiro em que época?
R – Eu saí do Rio de Janeiro só pra vir pra Brasília.
P/1 – Só o senhor ou a família toda?
R – Só eu mesmo. Eu e a família que eu era casado antes, né?
P/1 – Então vamos voltar. Tinha uma escola de samba, não tinha, a de Padre Miguel?
R – Padre Miguel? Não. Essa escola de samba chamava na baixa, assim, no Largo do Bolsa, né? E lá era os Três Mosqueteiros. A escola que tinha lá que virou a Mocidade de Padre Miguel. Porque cada bairro tem uma escola e os bairros eram tudo pequenininho, então a escolinha era uma coisinha de nada, então juntou tudo e fez Mocidade de Padre Miguel.
P/1 – Ah, sim!
R – É por isso que tem essa escola grande lá.
P/1 – Agora o senhor chegava a dançar lá ou pelo menos a brincar?
R – Eu fui mestre-sala mirim!
P/1 – É mesmo?
R – Fui.
P/1 – Conta um pouco pra gente como era essa escola, como é que vocês ensaiavam?
R – A gente ensaiava, tinha um salão grande, o Zé Maria fez um salão muito grande. Ontem mesmo eu escutei um deputado aí debatendo sobre jogo de bicho, né? Que o jogo de bicho devia ser legalizado porque a Caixa Econômica é a maior acionista de jogos de azar. E por causa de quê não deve haver o jogo de bicho? Por que não legalizar o bingo, por que não legalizar o caça-níquel? Só vai jogar quem quer, quem tem dinheiro pra jogar, quem não quer não vai, entendeu?
P/1 – Agora, na época tinha jogo?
R – Sempre teve jogo de bicho, desde que eu me conheci como gente que eu já conheci jogo do bicho.
P/1 – Tinha algum episódio de jogo de bicho que o senhor lembra?
R – Tem.
P/1 – Conta.
R – Tenho. Porque lá tinha o Zé Maria, que era o dono do ponto do jogo de bicho e presidente da escola de samba. Então eu falei para o meu tio, era época de São João, está até na época, que eu queria fazer um balão. Hoje que é proibido, né, mas antes a gente soltava balão, não tinha perigo nenhum. Aí eu falei para o meu tio: “Tio, eu queria fazer um balão. Eu só tenho 200 réis”. Ele disse: “Duzentos réis dão pra comprar duas folhas de papel, não dá pra fazer um balão, não”. Aí ele virou pra mim brincando: “Vai lá e joga no bicho”, aí eu fui. Cheguei lá e disse: “Eu queria jogar no bicho” “Que bicho você quer jogar?” “Eu quero jogar no boi”. Ele disse: “Rapaz, boi não tem no jogo de bicho, não”. Eu digo: “Então bota na mulher dele”, ele disse: “Então vou botar na vaca”. Botou 200 réis na vaca. Quando foi de tarde eu ganhei quatro mil réis e dois centavos.
P/1 – Era bastante?
R – O quê?! Um dinheirão. Aí ele virou pra mim e disse: “Escuta, já que você ganhou, por que você não pega esse que sobrou, esses 200 réis, e joga no homem da vaca?”. Eu digo: “Esse é o touro”. Eu joguei e ganhei de novo. Aí cheguei em casa, fui entregar o dinheiro à minha avó, porque tudo o que a gente pegava, ganhava, dava na mão dela, que ela não gostava de nada, nada, nada, tinha que passar pela mão dela. Aí eu disse: “Titio, ganhei no bicho duas vezes, agora já estou com oito mil réis”. Ele disse: “Faz o seguinte, entrega à mamãe”. Ela pegou o dinheiro e disse: “Olha, vou fazer o seguinte, comprar um tênis pra você, um tênis pra tua irmã e comprar roupa pra vocês dançarem a quadrilha” (riso). Eu disse: “Mas eu queria era um balão” (riso).
P/1 – E não teve o balão?
R – Não fiz o balão (riso). Isso aí eu guardo até hoje. Criança é enganada mesmo (riso).
P/1 – E depois foi pra festa junina?
R – Fomos pra festa junina.
P/1 – Divertiu pelo menos?
R – Vixe, divertimos muito.
P/1 – E tinha festa junina nessa época?
R – Tinha. Festa junina é muitos anos, né?
P/1 – Mas animadas, eu digo, na rua?
R – Animadas.
P/1 – Como era então? Conta pra gente.
R – Porque lá era o seguinte, no Rio de Janeiro não é igual aqui não. Aqui principalmente, aqui tem diversas ruas. Então cada rua fazia uma quadrilha. No final, quando chegava no dia 29, que é dia de São Pedro, juntava todo mundo no campo de futebol e fazia quadrilha, todo mundo dançava.
P/1 – Dançava todo mundo junto?
R – Todo mundo junto. E as festas lá era o seguinte: “Bom, hoje a festa vai ser na rua do seu José”, que era o meu pai. Então fazia as barraquinhas na rua do meu pai. Amanhã é na rua do seu Pedro, fazia na rua do seu Pedro. E todo mundo se divertia.
P/1 – Era o mês todo?
R – O mês todinho, todo mês de junho. Só terminava em julho, que era dia 26 de julho que terminava.
P/1 – E como é que o senhor virou mestre-sala mirim?
R – Acompanhando a escola de samba, vendo os ensaios. Eu tinha um tio que era mestre-sala, era professor de mestre-sala, comecei a dançar com a filha dele e pronto (riso).
P/1 – Mas tem muitas crianças na escola de samba. Como é que o senhor que foi o escolhido?
R – Porque tinha o concurso, né? Quem dançasse melhor.
P/1 – Então o senhor sabia dançar muito bem?
R – Eu dançava. Hoje eu não danço mais, porque eu só danço pra Jesus hoje, né?
P/1 – E aí o senhor foi crescendo, um jovem. Qual era a diversão lá dos jovens?
R – A diversão do jovem lá era a diversão de jogar futebol, ir pra teatro, trabalhar em teatrinho, a gente tinha escola de teatro também.
P/1 – O senhor trabalhava no teatro? Era do bairro o teatro?
R – Do bairro.
P/1 – Conta como era.
R – Do bairro. Porque tinha uma senhora que gostava muito dessas coisas, então ela formou uma equipe pra teatro. Então esse teatro funcionava Natal, Ano-Novo, era na quaresma, a via sacra que fazia, nós representávamos na vida de Cristo, nascimento de Jesus.
P/1 – E esse grupo fazia só a representação religiosa?
R – Não, não. Tinha teatro de comédia, tinha tudo.
P/1 – E o senhor era uma pessoa que continuou no teatro depois?
R – Não, não, não, daí parei. Depois eu fui para o bombeiro, aí parou tudo.
P/1 – Além do teatro o que mais que vocês faziam jovens lá? Além do futebol.
R – Estudava, né? Estudava, tinha as horas certas de estudar, trabalhar. Que hoje a maioria é, o governo que botou essa raça pra ser vagabundo porque eu dei graças a Deus de fazer 14 anos pra tirar a minha carteira pra ir trabalhar.
P/1 – O senhor começou a trabalhar com 14 anos?
R – Catorze anos que eu fui trabalhar fichado.
P/1 – E qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Foi ser sapateiro. Que eu aprendi sapateiro com um rapaz que tinha lá chamado João, eu ia pra lá ajudar ele a cortar a sola, bater sola. E quando saí de lá fui pra fábrica Ferreira Souto, que é fábrica de calçados famosa no Rio, né? Aí fui trabalhar lá, que meu tio trabalhava lá, fui pra lá. Saí de lá, eu fazia modelo de sapato.
P/1 – Mas só voltando um pouquinho. O senhor foi trabalhar com esse sapateiro por necessidade ou como que foi?
R – Não, não, não. Não foi por necessidade, foi por gosto mesmo.
P/1 – O senhor não ganhava nada?
R – Ganhava uma gorjetazinha, mas ganhava (riso).
P/1 – O senhor falou que tirou a carteira com 14 anos e foi trabalhar nessa fábrica.
R – Fui trabalhar fichado.
P/1 – Quem trabalhava lá?
R – Era meu tio. Meu tio era encarregado da fábrica.
P/1 – E nesse trabalho, como é que se desenvolveu?
R – Eu entrei lá como ajudante. Depois passei para o pesponto, que é costurar o sapato. Depois giradeiro, que é limpar aquela gira direitinho, que sapato saía bonitinho, todo lindinho, mas o sapato tem uma mão de obra muito grande, entendeu? Aí depois eu passei pra modelar sapato, desenhar sapato.
P/1 – O senhor fazia o desenho do sapato?
R – Fazia. Fazia tanto que meu primeiro filho, quem fez as botas dele para ele sair na escola de samba fui eu.
P/1 – O senhor continuou na escola de samba? Sempre como mestre-sala?
R – Não. Aí eu fundei aqui em Brasília o Bola Preta.
P/1 – Então depois a gente também vai falar disso. Seu Belmiro, e quando passava de uma parte pra outra do sapato, como o senhor foi evoluindo, aprendia como?
R – Na prática, na prática. Porque o problema é o seguinte, o menino, o aprendiz, ele tem que ter interesse. Eu fui cedo, que nem meu filho tem hoje, tudo o que ele vê, ele vai executar, entendeu? Por quê? Porque a cabeça nossa é a nossa mestra. Então tudo o que nós vemos nós podemos fazer, tanto serve para o lado mau, quanto o lado bom. Então graças a Deus, Deus me deu o lado bom, trabalhar para o lado bom.
P/1 – E o senhor ia observando.
R – Observando e tinha um desenhista lá, eu pedia a ele “eu queria desenhar sapato”. Ele disse: “Muito fácil. Na hora do almoço tira uma hora de almoço e vem pra cá comigo que a gente desenha”. Aí eu aprendi.
P/1 – E quanto tempo o senhor ficou nessa fábrica?
R – Fiquei lá dois anos. De lá fui pra fábrica de elevador Otis.
P/1 – Nessa época o senhor ainda era solteiro?
R – Era solteiro.
P/1 – E na fábrica de elevadores deixou os sapatos de lado.
R – Deixei os sapatos de lado. Aí fui ser serralheiro, ajudante de serralheiro. De ajudante de serralheiro saí torneiro mecânico.
P/1 – Aprendendo na prática.
R – Aprendendo na prática, dentro da fábrica.
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou na fábrica?
R – Nessa fábrica de lá eu saí com 18 anos pra ir para o Exército. Do Exército saí e fui para o Bombeiros e hoje estou reformado há 30 anos.
P/1 – Agora o senhor trabalhou como sapateiro, posso dizer assim?
R – Pode, sapateiro mesmo.
P/1 – Depois mecânico.
R – Mecânico.
P/1 – E essas duas profissões, o senhor continuou depois usando elas?
R – Não, nenhuma das duas.
P/1 – O senhor disse que quando o seu menino nasceu o senhor fez as botas dele.
R – Fiz.
P/1 – E o senhor fez outros sapatos na vida?
R – Eu fazia sapato pra minha filhinha. Eu tinha uma porção de filha, eu mesmo fazia sandalinha delas e tudo.
P/1 – E isso fazia tudo na mão?
R – Tudo na mão, tudo manual.
P/1 – Costurava.
R – Tudo, tudo, tudo.
P/1 – Agora o senhor foi para o Exército e a solução pra ser bombeiro foi por quê?
R – Foi por teimosia. O que eu queria ser era marinheiro, a minha avó não queria. Ela dizia que meu pai era bombeiro, a minha família quase tudo era bombeiro e ela não queria. Que bombeiro era perigoso, ela tinha medo. “Então vou pra Marinha” “Não, pra Marinha tu não vai, não, que tu vai viajar e vai ficar fora de casa” (riso). Daí que eu fui para o Exército. Quando eu saí do Exército, aí me inscrevi no Corpo de Bombeiros, fui chamado e fui pra lá. E estou até hoje, graças a Deus, 60 anos de bombeiro não é brincadeira.
P/1 – Seu Belmiro, o senhor não teve vontade de voltar para uma dessas profissões que o senhor aprendeu?
R – Não, não, não.
P/1 – Por quê?
R – É muito trabalhoso, viu? E é pouco valorizado.
P/1 – E mesmo assim o senhor continua o tempo todo, mesmo no exército, continua na escola de samba?
R – Continuei.
P/1 – Enquanto o senhor morou no Rio o senhor participava da escola?
R – E aqui em Brasília também.
P/1 – O senhor fazia o quê lá na escola de samba?
R – Depois eu passei a ser o que eles chamam de artista, fazia alegoria. Daí eu comecei a fazer alegoria, ajudava, comecei a ajudar. Daí eu já fazia, já montava carro, fantasia, desenhava fantasia.
P/1 – Então o senhor não se afastou muito dessa parte, né?
R – Não (riso).
P/1 – Do desenho, de ser artesão.
R – Eu gostava muito.
P/1 – E quando entrou no exército, como é que foi?
R – No exército eu fiquei pouco tempo, eu fiquei dois meses e oito dias só. Eu fui chamado no Corpo de Bombeiros, a preferência era bombeiro, né? Que eu era arrimo de família, porque eu que sustentava a minha avó.
P/1 – Nessa época seus irmãos tinham casado já?
R – Já todo mundo casado.
P/1 – E ficou só o senhor e a sua avó.
R – Eu e a minha avó.
P/2 – E como é que foi, seu Belmiro? O senhor entrar lá no bombeiro, qual foi a história mais engraçada que o senhor tem para contar?
R – Ô rapaz, tem tanta história (riso). Mais engraçada que eu me lembro mesmo foi essa desse maluco aí, entendeu, porque eu sou Belmiro até hoje por causa dele (riso). Porque foi um chamado, aí fomos para um bairro e chegou lá o camarada estava em cima do telhado, querendo se suicidar. Primeiro ele queria cortar a mãe dele com a gilete, aí correram atrás dele, ele subiu para o telhado e ficou lá. E nós fomos lá pra tirar ele. Chegou lá estava polícia, estava todo mundo cercando a casa. Quando a gente chega, a gente afasta a polícia do local, a polícia não pode ficar pra gente poder trabalhar. Aí colocava a escada e ele empurrava. Eu digo: “Vou subir lá, pode deixar”. Falei para o tenente: “Pode deixar que eu vou subir”. Eu estava já pensando o que eu ia fazer. Peguei a escada, pa pa, subi. Quando cheguei perto, eu digo a ele: “Não empurra não, eu sou teu amigo. Você está vendo que eu não sou polícia, não tenho arma, não tenho nada”. Depois de muito tempo deixou passar pra perto dele, pro telhado. Eu falei assim: “Você quer descer daí?” “Não, eles vão me matar lá embaixo, vão me prender, vão me matar”. Eu disse: “Ninguém vai te matar. Tu vai fazer o seguinte, eu vou tirar a minha farda e vou vestir em você, tá legal? E você vai me dar a tua bermuda para vestir” “Mas todo mundo vai me ver nu aqui” “Ninguém vai te ver nu, não, vamos lá pra trás”. E assim eu fiz. Aí eu disse: “Faz o seguinte: quando você for descer a escada, diz: ‘Ó, segura a escada que o Romeu vai descer’, tá?”. Ele disse: “Mas eu não sou Romeu, não, eu sou Belmiro”. Eu disse: “Não, rapaz, você é Romeu, desce rapaz” (riso). Aí ele desceu. Quando chegou lá embaixo já seguraram ele. Aí tinha um cabo que era muito gozador, gostava de botar apelido nos outros, dizia: “De agora em diante você vai ser o Belmiro Maluco”. Pronto, a história é essa. Quando chegou no quartel eu fui apresentado ao comandante, eu pensei: “Nem quando faz um ato de bravura é apresentado ao comandante”. Aí o comandante: “Conta a sua história pra mim”. Aí eu contei. Ele disse: “Então de hoje em diante”, aí arrancou a tarja do meu peito, que eu tenho até hoje guardada, “agora eu vou botar é Belmiro aqui, de hoje em diante você é Belmiro no quartel”. E até hoje, qualquer um que chegar dentro do Corpo de Bombeiros e perguntar pelo Sebastião Romeu da Silva, ninguém vai conhecer, só conhece por Belmiro. Pergunta a ela aí. Quando eu chego lá: “Ô Belmiro!” (riso). Ninguém me chama pelo nome.
P/2 – Bacana a história.
P/1 – Conta outras para gente.
R – E tem também o camarada que morreu e entrou pelo cano, né? Nós fomos chamados para um bairro chamado Irajá. Chegamos lá, muita gente. “O camarada entrou pelo cano aí, sumiu” “Entrou pelo cano?”. Era um bueiro. Um camarada assim dessa altura. Tem outro bombeiro que chama Sebastião também, mas o apelido dele era Japi. Aí: “Japi, nós temos que entrar nesse troço, como é que a gente vai fazer?”. Ele falou: “Vamos fazer o seguinte, eu vou ver a boca de lá, tu entra por um lado e eu entro pelo outro”, daí eu digo: “Então vamos embora”. Passamos a corda na cintura e caímos dentro do cano, ele de lá e eu de cá. E nós tratamos: “Quando um encontrar, você grita que tá vendo ele, que é pra poder a gente apanhar ele aí dentro”. Aí entramos. Quando chegou no meio eu e ele nos encontramos. Cadê o cara? (riso). “Cadê o cara? Rapaz, isso aí é safadeza, o cara brincou com a gente. Esse cara não está aí, não”. Tá, não tá. Eu falei: “Japi, eu vou fazer o seguinte, eu passei lá na frente tinha um buraco. Será que ele não caiu dentro daquele buraco, não?” “Então vamos até lá”. Eu fui voltando de costas e ele foi, porque não podia fazer a volta dentro da manilha. Eu fui saindo de costas e ele também. Quando chegamos lá no buraco ele estava “encorujadinho” lá dentro do buraco dentro d’água, só com a cabeça de fora (riso). Eu falei: “Rapaz, o que é que tu tá fazendo aí?” “Rapaz, eu tou vendo é o seguinte, é que eu fiz uma coisa errada” “O que tu fez de errado?” “Eu roubei a galinha da vizinha e agora eles querem me pegar” “Não, você não roubou nada, não, rapaz. Está chovendo e você caiu dentro desse buraco, não foi?”. Ele disse: “Foi”. Aí pegamos ele, puxamos ele e trouxemos ele pra fora (riso). Ele era doido (riso). E aqui em Brasília também tem um caso muito sério aqui também, que a nossa especialidade era pegar maluco.
P/1 – Mas era mesmo?
R – A minha especialidade em quartel era só isso.
P/1 – Ah, é?
R – Serviço de busca e salvamento. Fazia outras coisas, mas quando era maluco era eu que entrava em ação (riso). Porque eles diziam que eu era feiticeiro (riso). Mas não era nada disso, não, porque a gente sabendo conversar e tratar as pessoas bem, a gente conquista a pessoa. Teve uma senhora logo no início da Ceilândia, aí nós fomos pra lá que ela estava com a faca querendo matar o filho, uma criancinha. Aí está a polícia, sempre a polícia no meio. Não resolve nada, tem que chamar o bombeiro. Aí chegamos lá com a guarnição, ela olhou, olhou, eu disse pra ela: “Escuta, minha senhora, o que a senhora está fazendo com essa faca na mão?”. Ela disse: “Eu quero beber sangue”. Eu disse: “A senhora não quer beber sangue, não. Se a senhora quisesse beber sangue, sabe o que a senhora fazia? Me dava essa faca, eu ia furar a senhora e a senhora ia beber sozinha. A senhora não tem coragem de se furar, tem?”. Ela disse: “Você tem coragem de me furar?”. Eu disse: “Eu tenho. Eu tenho” “Então me fura”. Eu fui andando, aí a guarnição já ficou toda atenta, né? Eu fui, sentei na cama do lado dela, peguei a faca. Ela olhou pra mim, era uma senhora bem forte, mais forte do que a minha esposa. Aí ela disse: “Olha, eu gostei de você, ouviu? Agora aqueles macacos que estão lá fora eu não gostei, não. O que o senhor vai fazer comigo?” “Eu vou fazer o seguinte. A senhora vai pegar”, aí meti a mão dentro da roupa, tirei uma bibliazinha: “A senhora vai ler isso aqui” “Não, mas eu tenho uma grande lá, ó. Eu sou evangélica”. Eu digo: “Então por que a senhora não pega e lê? Por que a senhora não pega o seu evangelho e lê?” Nessa época eu nem pensava em ser evangélico de nada. “Por que a senhora não pega o evangelho e lê?”, ela disse: “Não, eu vou pegar”. Aí levantou, pegou o evangelho e começou a ler, aí começou a chorar. “Ô meu Senhor, me perdoa, foi o diabo que estava me atentando. Se o senhor não chega aqui, Jesus, eu ia matar meu filho”. Isso aí está escrito nos autos do Corpo de Bombeiros, tudo gravado. Aí pegamos ela, levamos para o hospital de Taguatinga. Lá deram sedante a ela, esse troço todinho, guardaram a criança. Nessa época não tinha negócio de Conselho Tutelar, não tinha nada, né? Só tinha só a casa do, como é o nome mesmo? Era lá no Núcleo Bandeirante, que foi até deputado e tudo. Agora me fugiu da memória o nome dele, que era até lar dos velhinhos, levava as crianças tudo pra lá.
P/1 – Seu Belmiro, para o senhor entrar para o bombeiro o senhor disse que teve influência porque seu pai já era bombeiro.
R – Já.
P/1 – Mas para ser bombeiro no começo, quais foram suas impressões? E o treinamento?
R – O treinamento no bombeiro é um treinamento pesado, tem muitas provas. Tanto que a gente fica 30 dias lá dentro sem ir em casa, sem nada, tem que treinar mesmo. Então tudo quanto é prática de perigo é aplicada com a gente. Mas é uma coisa segura.
P/1 – Mas o senhor não pensou em desistir nenhum momento?
R – Em nenhum momento. E tem um detalhe muito interessante. Pedi a meu pai pra assinar a carta para eu ser bombeiro. Ele disse: “Eu não vou assinar a carta pra você ser bombeiro, não” “Por que papai?” “Porque você é muito boêmio. Você gosta muito de bar e esse troço todinho, e lá tem que ser sério, você tem que estar lá na hora e tu vai ficar preso nesse troço todo dia, eu não vou assinar nada que eu não vou passar vergonha”, que ele era capitão do corpo de bombeiro reformado. Eu disse: “Tá legal, não tem problema, não”. Fui passando no beco, tinha o meu tio que era dono da oficina: “Ô rapaz, o que tu tá fazendo aí?”. Eu digo: “Eu vim aqui pra pedir a papai assinar para ser bombeiro e ele não quer assinar” “Me dá esse troço aqui!”, assinou. Aí eu fui, né (riso). Fiz as provas, passei. Quando cheguei em casa com a farda de bombeiro ele diz: “Eu vou te prender! Tu saiu do exército, está vestindo a farda do teu irmão!”, que meu irmão também era cabo do bombeiro (risos). “Eu vou te prender agora.” E graças a Deus. Eu tirei os 30 anos de bombeiro.
P/1 – E a parte da boêmia, como é que ficou?
R – Não, tranquilamente. Eu falei: “Papai, eu trabalhei com o senhor na oficina, nunca faltei ao serviço, nem nada. Isso aí não faz parte da minha vida, não, minha vida é trabalhar, acabou”. Fiquei no bombeiro e reformei, graças a Deus, não houve nada.
P/1 – Seu Belmiro, o senhor disse que depois se casou ainda lá. Como é que foi o casamento, o senhor conheceu a sua esposa onde?
R – Meus casamentos sempre foram coincidência. Porque eu tinha um colega que nós éramos muito unidos, nós éramos vizinhos muito unidos. Aí ele me convidou pra ir à festa de 21 anos de uma colega dele de Ceilândia, ela trabalhava até lá no Ponto Frio no Rio. Não era Ponto Frio, era Ultralar. Eu digo: “Vou”. Estou me aprontando, aí no meio do domingo eu falo: “Eu vou ganhar essa menina, hein?” “Vai ganhar nada, rapaz” “Eu vou ganhar”.
P/1 – A aniversariante?
R – A aniversariante. Aí chegamos lá, ele me apresentou, eu nem conhecia menina, não conhecia. Aí um bolo lá cheio de fita, disse: “Cada um vai segurar numa fita pra ver quem é que vai casar primeiro”. Quando eu segurei na fita, ela segurou na outra, quando puxou saiu a aliança pra nós dois. Eu falei pra ele: “Eu não te falei, rapaz, que eu ia ganhar ela?”. E acabei eu casando com ela. Vivemos 25 anos.
P/1 – Teve filho?
R – Filhos, seis filhos. Dois homens e quatro mulheres.
P/1 – E o que aconteceu depois?
R – Aconteceu que eu tive que divorciar.
P/1 – O senhor divorciou dela. Depois de quantos anos o senhor falou?
R – Depois de 25 anos de casados.
P/1 – E o senhor quer contar sobre isso?
R – É que nem eu estava dizendo, eu gostava de escola de samba, sempre gostei. Então na época que nós viemos pra Brasília eu fundei essa Bola Preta, então eu fui vice-presidente do Bola Preta, um colega meu presidente, então a nossa vida era de negócio de samba, ela frequentava também. Então ela viajou para o Rio e sabe que escola de samba sempre tem as travestis, né? E as travestis são uns camaradas que eles se unem muito assim com a gente, eles são muito carentes, a gente tem que ter pena deles. Às vezes tem gente que maltrata, mas não se maltrata, não. Porque aquilo é consequência da vida, qualquer um pode acontecer aquilo ali. Então uma das vizinhas lá foi dizer que eu estava andando com travesti e ela acreditou. E estava me tratando mal em casa, e dizia: “Não, tu anda com homem aí, não sei o quê”. Eu digo: “Mulher, o que é isso? Nós somos casados há 25 anos!”. Aí eu entrava na sala, ela ia pra cozinha. Eu ia pra cozinha, ela ia pra sala. Eu ia pro quarto, ela ia pro banheiro. Eu digo: “Tá danado”. Pra ver se o negócio melhorava, eu marquei um encontro de casal na minha casa. Ela botou todo mundo pra rua. Eu digo tá bom. Aí reuni todo mundo em casa, chamei meus seis filhos, sentei na mesa com eles, que era o meu hábito, aí falei que eu ia separar. O meu filho mais velho, que morreu, disse: “Pai, o senhor tem o saco maior do que o do Papai Noel. Se eu fosse o senhor eu já tinha largado a mamãe há muito tempo” “Tá legal”, eu digo. Aí eu falei pra ela. “Eu só deixo você quando eu arrumar uma mulher igual a você ou melhor do que você”. E os anjos no céu disseram amém. Ela entrou com o divórcio, esse troço todinho, quando estava no meio do divórcio, na época da eleição, a primeira eleição aqui foi em 84?
P/1 – Em 90 teve uma, não teve?
R – A primeira eleição que teve no Brasil.
P/1 – 94.
R – É 94? Não, não foi, não, foi antes. Foi em 84.
P/1 – Eu não sei.
R – Foi em 84, teve a primeira eleição. Aí eu vou para o Panela de Barro e encontro ela lá no Panela de Barro.
P/1 – A atual esposa?
R – É. Aí começamos a namorar. Eu digo: “Agora está na hora de eu ir embora”. Aí saiu o meu divórcio, que era disquite antigamente. Saiu tudo junto, saiu o divórcio, larguei a casa, dei tudo pra ela na 14, aí vim pra cá morar com ela. Aí com dois anos, três anos nasceu a minha filha mais velha, quando ela estava com oito anos eu casei com ela e estou até hoje. Vai fazer 30 anos também (risos).
P/1 – Trinta anos já?
R – Vai fazer 30 anos.
P/1 – O senhor veio do Rio pra cá por quê?
R – Transferido. Porque todos nós que éramos da Federal, que o Corpo de Bombeiros daqui de Brasília é federal. Tem muita gente que não entende, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros é pago pela União, entendeu? Então nós não podemos nem pensar em greve, porque nós somos servidores públicos. O professor faz greve, médico faz greve, todo mundo faz greve porque eles não são federal, entendeu? Eles são do estado. Nós fomos transferidos pra cá, em 60, na inauguração da Capital. Mas eu só vim pra cá em 64.
P/1 – Agora vocês todos foram transferidos?
R – Não todos, os que optaram para vir para cá, que quiseram continuar federal.
P/1 – O senhor pôde escolher.
R – Eu escolhi pra vir pra cá. Porque eu dei até sorte, né? Eu e os que vieram comigo. Porque quando nós saímos do Rio, o Rio virou um caos, né, porque ficou estadual, então.
P/1 – O senhor fez essa escolha pensando no quê?
R – Pensando no meu futuro, no futuro da minha família.
P/1 – Fala um pouco disso, seu Belmiro. Assim, o senhor sabia que aqui ia ser a capital.
R – A capital.
P/1 – E o senhor resolveu deixar a família tudo lá.
R – Deixei lá e vim pra cá, passei aqui quatro anos indo e voltando, indo e voltando. Passava 20 dias aqui, dez no Rio; passava dez aqui, 20 no Rio. Foi quando começou a fazer os quartéis, aí viemos todo mundo embora pra cá. Veio uma turma a pé, eu fui escalado nessa turma, mas eu não quis vir, não. Não vou de pé, não.
P/1 – A pé?
R – A pé.
P/1 – O senhor pensava no futuro em que sentido?
R – No sentido dos meus filhos. Porque eu já tinha três filhos, aliás quatro filhos, eu disse: “Não vou deixar meus filhos aqui à toa”. Porque lá não tinha recurso mais. Quando entrou o tal do Carlos Lacerda lá pra ser governador do Rio de Janeiro, afundou o Rio de Janeiro e por isso está esse troço aí até hoje, entendeu?
P/1 – E o senhor imaginou que aqui seria?
R – Aqui era o futuro, né? Graças a Deus consegui formar meus filhos todos aqui, todo mundo. Os que não se formaram foi porque foram preguiçosos, não quiseram. Até a segunda família, tem ela aí que está formada também.
P/1 – Seu Belmiro, e como foi quando o senhor chegou aqui? A diferença.
R – Antes de chegar aqui, porque nós passamos a ser do Ministério da Justiça. Então o que aconteceu? O Ministério da Justiça tomava conta lá no Rio do serviço de segurança, então lá eu fiquei na segurança até poder vir pra cá, para não ficar ocioso. Então uns foram para escolas, outros foram pra outros órgãos do governo, que era do Governo Federal. E eu fui pra lá, que o IML pertencial ao Distrito Federal. Lá eu trabalhei de fotógrafo pericial, fazia identificador pericial também.
P/1 – Mas o senhor que escolheu trabalhar no IML?
R – É, porque eu era fotógrafo, fui escalado para ser fotógrafo lá e fui pra lá e gostei. Tanto que quando eu vim pra cá eu fui bobo, devia ter saído do bombeiro e continuado no IML. Não, continuei bombeiro.
P/1 – Para se acostumar no IML foi tranquilo?
R – Foi tranquilo porque eu já trabalhava com cadáver, tudo no meio da rua, eu trabalhava já.
P/1 – Nessa época o senhor morava onde?
R – No Rio?
P/1 – Não, já aqui em Brasília.
R – Em Sobradinho, na Quadra 14.
P/1 – E como foi então quando o senhor estava lá no IML e conseguiu a transferência?
R – Foi quando houve a ordem pra gente se desligar dos que estavam lá, o comandante, que já tinha o local pra gente chegar e já tinha as casas prontas para as famílias. Aí nós viemos embora, todo mundo.
P/1 – Lá também tinha casa? Os bombeiros tinham casa?
R – Não, lá nós não tínhamos casa.
P/1 – Aqui já tinha.
R – Aqui já tinha.
P/1 – E o senhor veio com quantos filhos?
R – Eu vim com quatro filhos.
P/1 – Que idade o senhor tinha nessa época?
R – Nessa época eu estava com trinta e poucos anos.
P/1 – E quando o senhor chegou aqui, como é que foi a impressão que o senhor teve?
R – A impressão que eu tive aqui foi péssima.
P/1 – Por que?
R – Porque eu pensei de encontrar uma cidade igual o Rio de Janeiro, encontrei foi mato (riso). E até 68, 70, aquela empresa ali só tinha uma pista, não tinha nem o eixão. O Lago Sul, Lago Norte, era tudo que nem aqui, era tudo mato, não tinha nada lá.
P/1 – O que é que tinha quando o senhor chegou, construído lá?
R – Aqui em Brasília?
P/1 – É, quando o senhor veio pra cá.
R – A Catedral ainda não tinha. O que tinha aqui era somente o Palácio da Alvorada, o Congresso Nacional e alguns ministérios, depois foi feito depois. Não tinha a Catedral, eu trabalhei na escavação da Catedral pra tirar um camarada que ficou lá dentro morto, nas escavações. O Banco Central também não tinha, Caixa Econômica Central também não tinha. Ali no Setor de Autarquia, ali não tinha nada, foi tudo construído depois de 68 pra cá.
P/2 – E nessa época que o senhor morava em Sobradinho já se ouvia falar na Fercal?
R – Já tinha ouvido falar da Fercal mas só no capim gordura (riso), só que existia aqui. E a Pedreira Contagem. Aí depois foi feita a fábrica de cimento Tocantins.
P/1 – O senhor ouvia do capim gordura e do que mais?
R – E a Pedreira Contagem. Era o que tinha aqui. Depois foi feita a fábrica de cimento.
P/1 – Sobradinho foi planejada então?
R – Foi planejada, Sobradinho foi planejada.
P/1 – Eram só casas de quem veio transferido.
R – Veio transferido. Tanto que só tinha casa na frente, na Quadra Um, na Cinco, na Três, só naquelas de frente, atrás não tinha nada, era só mato. Depois veio na Sete, que eram as casas de frente, na Nove não tinha, aí veio da Dez até a 11, aí acabou. A Quadra Dois não existia, era favela, tudo favelado. Nós ajudamos até a tirar dali pra levar pra Planaltina.
P/1 – O senhor participou dessa retirada?
R – Participei. Já era época do Roriz.
P/1 – Então ainda quando o senhor chegou, o senhor disse que ficou surpreso, né?
R – Fiquei surpreso, porque aqui não tinha nada mesmo, não.
P/1 – E sua esposa, seus filhos, qual foi a reação?
R – Eles gostaram, porque nós tínhamos fazenda no Rio, tinha tudo, então eles olharam e gostaram. Mas eu não gostei muito, não.
P/1 – Do que é que o sentiu mais falta?
R – Eu senti falta das noites. Lá no Rio tinha lugar pra gente dançar, aqui não tinha nada, só tinha boteco pé sujo (riso).
P/1 – Foi aí que o senhor fundou a escola de samba?
R – Aí tinha uma escola de samba em Sobradinho já, a Unidos de Sobradinho. Aí eu digo assim: “Quer saber de uma coisa?”, reunimos lá os bombeiros, “Vamos fazer uma escola de samba aqui?” “Vamos” “Vamos escolher o nome”. Aí botou o nome daqui, nome dali, eu disse: “Vou botar Bola Preta”. E botei isso é o Bola Preta e pronto, está aí até hoje.
P/1 – E por que esse nome?
R – Por causa do Bola Preta do Rio, tradição do Rio.
P/1 – Bom, vamos fazer a escola de samba, fizeram o nome Bola Preta. E como é que monta uma escola de samba?
R – Ah, uma escola de samba monta com as pessoas que são interessadas. A primeira coisa é procurar doação, uma quadra pra ensaiar, compra o material, os instrumentos e começou a bater, vai juntando gente (riso), vai juntando e de repente forma. Aí se inscreve no clube das escolas de samba, é dado o alvará pra gente funcionar, tudo direitinho, o estatuto, tudo direitinho, conforme um clube, né, tudo no estatuto.
P/1 – E quem ajudou vocês para começar, para comprar os instrumentos?
R – Foi o Resende, o Corpo de Bombeiros mesmo, aqueles instrumentos velhos que a gente ganhava lá, consertava e trazia pra escola de samba.
P/1 – Da fanfarra do bombeiro?
R – Da fanfarra do bombeiro.
P/1 – E vocês mesmo que tocavam?
R – Nós mesmo que tocava, nós era tudo
P/1 – E para desfilar, as passistas?
R – Ah, ensaiava e ia embora. Nessa época o governo era bom, dava condução para levar o pessoal, trazia.
P/1 – E vocês chegaram a desfilar em algum lugar?
R – Desfilava. O primeiro desfile nosso foi no Eixão, depois na W3. Depois na Rodoviária. Agora não sei nem onde eles desfilaram, teve o autódromo.
P/1 – E a escola de samba Bola Preta ainda existe?
R – Existe. Existe em Sobradinho.
P/1 – Cresceu?
R – Cresceu e muito. Cresceu e muito! Esse ano mesmo foi vice-campeã. Ela foi vice-campeã, a Bola Preta, em Brasília.
P/2 – Não tinha um projeto aqui na Fercal, desse Bola Preta? Porque eu lembro de um ônibus.
R – Não, é que de vez em quando vinha aí na Nildinha, ali, na praça, ensaiar ali, mas muito pouco. Eu trouxe eles aqui também uma vez, depois que eu vim morar aqui.
P/1 – A fazenda que vocês tinham no Rio era sua?
R – Não, era do meu sogro.
P/1 – Agora chegando aqui, a escola de samba vocês fundaram e ela foi crescendo e o senhor ficou lá até quando, participando da escola?
R – Participei uns bons anos, participei muito tempo.
P/1 – Participou muito tempo?
R – Muito tempo. Depois eu saí, não quero saber mais disso, não.
P/1 – E teve alguma história bastante significativa na época que o senhor participava da escola?
R – Só coisas boas, muita amizade. E agora quem fundou a escola tem muito pouca gente, tem muitos poucos membros.
P/1 – E em relação ao trabalho, qual era o trabalho principal de vocês como bombeiros aqui, seu Belmiro?
R – Aqui nós era igual Bombril, de plantar grama até fazer salvamento (riso), fazia tudo aqui.
P/1 – Tiveram muitos salvamentos?
R – Muito, muito salvamento. Aqui e fora, né? A gente saía daqui pra ir pra Bahia, pra ir para o entorno todinho de Brasília, a gente que fazia porque não tinha bombeiro aí. Em Formosa.
P/1 – E das obras de Brasília, teve muita gente que precisou ser resgatada?
R – Teve. Teve muita gente. Aquele lago mesmo ali matou um bocado de gente.
P/1 – Por que seu Belmiro?
R – Porque na época que abriram as águas ali, foram avisados e outras pessoas foram rebeldes e não quiseram sair, né? Quando abriu a água, tem muito barraco debaixo daquele lago ali.
P/1 – É mesmo?
R – E depois que a gente tá tomando conta, tomando posse já do serviço aqui, de vez em quando que morria um aí no lago, nadando, quando a gente ia tirar, quando jogava a rede pra puxar, puxava barraco, cerca de arame, vinha tudo.
P/1 – E desse trabalho todo seu, Seu Belmiro, o senhor ficou nesse mesmo espaço atuando nessa mesma área até se aposentar como bombeiro?
R – Como bombeiro. Terminei como motorista de ambulância.
P/1 – Ainda no Corpo de Bombeiros.
R – Ainda no Corpo de Bombeiros.
P/1 – E dessa época toda, seu Belmiro, o que mais o senhor trouxe de experiência, de histórias? Foram mais de 30 anos como bombeiro, né?
R – O que eu tenho mais na minha história que só coisa de Deus mesmo, só Deus é que nos protege. Nós estávamos de serviço no quartel central no Rio quando houve a explosão da Ilha do Braço Forte, não sei se vocês já ouviram falar, morreram 21 bombeiros de uma vez só. E eu estava escalado pra ir pra lá e, graças a Deus, quando nós chegamos no porto pra pegar a lancha pra ir pra lá, houve a explosão. Quando nós chegamos lá estava todo mundo morto, foi só pra pegar cadáver.
P/1 – O que provocou mesmo?
R – Um incêndio. Porque lá era uma reserva da Marinha, guardava material bélico da Marinha. E um camarada lá, um louco, botou fogo num galpão e não deu tempo para o bombeiro chegar pra apagar. Quando eles saltaram na ilha, a ilha explodiu. Explodiu.
P/1 – E daqui, de Brasília? O senhor teve alguma história assim? Não assim de tragédia, mas que tenha sido bastante marcante?
R – Pra mim? Tem. Eu estava dormindo aqui em casa na época, um vizinho veio aqui correndo, pulou ali o portão: “seu Belmiro, seu Belmiro, seu Belmiro!” Eu digo: “O que é rapaz, o que é?” “Corre, corre, corre que o neném tá caindo! Corre que o neném tá caindo”. Eu digo: “Rapaz, mas o que é que houve com o neném, o que teve?”. Ele tem um irmão que chama Neném, e eu pensei que era esse irmão dele. Era a mulher dele tendo um neném (risos). Eu corri pra amparar. A menina está aí agora, vai fazer 17 anos (riso). “Corre, corre, que o neném está caindo.” Isso me marcou mesmo muito aqui. E quando eu cheguei aqui nessa Boa Vista, aqui eu era enfermeiro, eu era doutor, eu era padioleiro, eu fazia enterro, eu fazia tudo aqui. O que tinha que fazer de social era comigo, tudo vinha me procurar aqui. Porque o único que tinha um carro aqui era eu e o vizinho aqui dos fundos, que é falecido. Ele tinha uma Kombi e eu tinha uma Caravan (risos).
P/2 – O senhor chegou na Fercal quando?
R – Eu aqui?
P/2 – É, para morar na Boa Vista.
R – Na Boa Vista? Em 83.
P/2 – E como era a vista aqui? Já tinha bastante casa?
R – Tinha não, aqui só tinha cinco famílias, tradicional aqui. Tanto que eu entrei aqui como estrangeiro, né? Quando dona Maria Alice me chamou pra fundar a associação aqui, eu: “Dona Maria Alice, mas eu não sou daqui, não” “O senhor não é daqui, não, o senhor mora aí, o senhor é daí. O único que tem aqui pra ser presidente aqui e fundar a associação tem que ser o senhor”. Eu digo: “Mas por quê? Tem tanta gente aí, o pessoal saiu da igreja” “Não, é o senhor mesmo que vai tomar conta daqui”, atender os moradores que tinha aí. Foi como a gente começou, fizemos uma reunião, fizemos um estatuto e fundamos. E aí, como é que vai fazer, ficar isso aqui? Porque aqui era uma fazenda, Fazenda Boa Vista. Aí eu digo: “Bom, vamos fazer o seguinte, vamos botar um nome nela, ‘Comunidade Boa Vista’, está nos estatutos de todo lugar, aqui é Boa Vista. E eu cheguei aqui por acaso, por causa de desastre.
P/1 – Conta então.
R – Porque houve um chamado pra nós lá em Sobradinho, no bombeiro de Sobradinho, um carro que tinha caído lá no ribeirão, dentro de um barranco. Aí nós viemos pra cá, chegamos era um cara com um fusca lá embaixo, nós fomos tirar esse fusca. Aí tiramos direitinho, tiramos o camarada, levamos para o hospital. Sai daqui um camarada, aqui da fazenda aqui, que ele era pedreiro e foi consertar a minha casa lá em Sobradinho, lá na 14. Escuta só como é as coincidências. Aí a gente conversando lá ele disse: “Você não quer comprar uma chácara, não?”. Eu digo: “Onde?”. Ele disse: “Lá na Fercal, lá perto do ribeirão”. Eu digo: “Rapaz, Deus me livre, aquilo lá não é lugar de ninguém morar, não, rapaz. Aquele buraco lá não quero" "Não, mas é antes, é antes. É na Fazenda Boa Vista”. Eu digo: “Vamos fazer o seguinte, quando chegar um dia da semana que eu tiver de folga eu vou lá com você”. Aí vim com ele aqui. Quando chegou aqui, que eu olhei eu digo: “Ô rapaz, aqui é bom”. Eu comprei isso aqui. Comprei, já tinha uma casinha aqui, né?
P/1 – Onde? Casinha onde?
R – Aqui, tinha uma casinha pequenininha aqui, dois cômodos. Eu comecei a trazer bicho pra cá, galinha, porco, eu fui criando aí. Foi quando eu conheci ela. Viemos pra cá e hoje estamos aí, embaixo desse barracão.
P/1 – A sua primeira mulher não chegou a vir pra cá?
R – Não, ela não quis. É por isso que eu digo, foi na eleição que eu conheci ela. Minha mulher quando chegou e viu: “Quero não, eu saí do mato, não vou vir pra mato nenhum, não”. Eu digo: “Então tá”. Aí começou.
P/1 – E nessa época Sobradinho já estava se desenvolvendo.
R – Já tava se desenvolvendo, já.
P/1 – E já tinha passado lá seus 20 anos. E aí o senhor chegou aqui, comprou, gostou?
R – E estou aqui até hoje.
P/1 – Seus filhos também vieram pra cá?
R – Não, ninguém. Só eu mesmo. Eu, depois ela veio pra cá pra morar comigo.
P/1 – Aqui tinha pouca gente. Isso aqui tudo era uma fazenda, Boa Vista?
R – Era Fazenda Boa Vista.
P/1 – E quem loteou?
R – Quem loteou, eu não sei. Quando eu cheguei aqui já estava loteado, as famílias, cada um comprou uma gleba aqui, né, depois passaram a vender.
P/2 – Quando o senhor comprou essa casa o senhor pagou quanto por ela?
R – Três milhões e 500 mil.
P/2 – Milhões?
R – E 500 mil. Sabe que dinheiro é esse?
P/2 – No dinheiro de hoje quanto seria?
R – No dinheiro de hoje? Seria 35 reais.
P/1 – Trinta e cinco reais?!
R – Cortou os zeros todinhos (riso), sobrou 35.
P/2 – Barato, né?
R – Cruzeiro, cruzado, chegou no real.
P/1 – O senhor falou que aqui o senhor era estrangeiro, quer dizer que já havia algum tempo, né?
R – Já tinha gente nascida aqui e tudo, a família do Tatão, entendeu? Família do Salvador. Tudo é cria daqui. Tem a família Santana, família Coelho que era aqui da frente, aqui.
P/1 – Então já havia há algum tempo o loteamento.
R – Já há muitos anos. Aqui era velho já. Os mais novos que têm aqui já são tudo casado, já são até avô, quando eu cheguei aqui, quando eu encontrei aqui.
P/1 – E o senhor continuou trabalhando e morando aqui.
R – Aí eu já tinha aposentado. Em 85 eu me aposentei, aí eu vim pra cá.
P/1 – E como foi também essa nova mudança? O seu dia a dia aqui.
R – Luta.
P/1 – Por que seu Belmiro?
R – Luta, muita luta. Pra fazer o que hoje vocês estão vendo, foi muita luta. Eu não parava em casa, você chegava aqui uma hora dessa eu não estava aqui. Estava lá no Palácio da Alvorada, estava lá no Buriti, estava andando atrás de benefícios para aqui.
P/1 – Que tipo de benefício?
R – Tanto que muita gente que tem aqui, tem muitos aqui que ainda têm gado, tem roça. Foi tudo fruto do esforço que eu e a minha diretoria fizemos. Eu só, não, minha diretoria, com muito esforço. E quem me ajudou muito aqui no princípio, pra fundar isso, tem o estatuto e tudo direitinho, chama-se Tereza da Fercal.
P/1 – O que ela fez, seu Belmiro? Ajudou como?
R – Ela ajudou porque nós estávamos com esse aqui e não sabíamos como se conduzir às autoridades, então ela foi o pivô. Porque tinha uma associação dos produtores de Brasília, o qual ela fazia parte na época, né? Então ela chegou aqui em casa e perguntou o que eu queria na época, para aqui. Então eu pedi, em primeiro lugar, luz, água, asfalto, colégio, posto de saúde, eu fui botando tudinho. Então o que aconteceu? Aí houve um encontro na Granja do Torto com o Roriz, o pessoal da zona rural. Foi quando eu levei a minha filha, que ela tinha três anos, ela que entregou esse papel escrito, manuscrito ainda (riso). Ela entregou na mão dele, foi quando a dona Maria Alice aqui, que era da LBA, veio praqui e começou a destruir as coisas aqui. Aí começou a suspender aqui, né? Porque se não fosse isso poderia continuar a roça que era antigamente, que nem está o Catingueiro. O Catingueiro também teve benefício, mas continua roça.
P/1 – Agora o senhor falou que tem gente que tem gado, tem gente que tem agricultura.
R – Tem.
P/1 – Mas isso já existia antes?
R – Não.
P/1 – O que fez para ter gado, ter agricultura com essas melhorias?
R – Porque foi feita uma reunião e a LBA tinha uma verba para distribuir para os agricultores. Então veio aqui em casa e me pediu para que eu fizesse a relação das pessoas que necessitavam. Onde está aquele fio que a senhora viu naquela fotografia, foi nessa época. Então de acordo com a metragem de terra que as pessoas tinham, os alqueires, foram as primeiras verbas pra ser comprado e depois pagava, retribuía com alimento para as creches em Sobradinho, entendeu?
P/1 – Distribuíram sementes?
R – Sementes. Eu principalmente, eu era muito egoísta, eu pedi na época, deu pra mim 75 cruzeiros para plantar mandioca. Então eu enchi isso daqui de mandioca (riso). E paguei sabe com o quê? Com açúcar. Fui na sede comprei tudo de açúcar, cheguei lá e paguei. E hoje o pessoal tem muito ainda que tem gado oriundo desse empréstimo que foi feito.
P/1 – O senhor falou que a Maria Alice propôs fazer a associação.
R – Foi.
P/1 – A Maria Alice da LBA. E depois a Tereza também ajudou.
R – Ajudou.
P/1 – Daí a fala era que o senhor tinha que ser presidente. Por que será que escolheram o senhor?
R – Porque eu era o único militar na época que tinha aqui, eles souberam que eu era bombeiro, aí eles: “O senhor é autoridade, então o senhor que tem que ser” “Não é assim não. É que tem morador antigo aqui, eu sou estrangeiro”. Aí tinha um senhor aqui que chamava João do Morro aqui, o nome dele era João Francisco, ele disse: “Não, seu Belmiro, fui eu que vou ajudar a Maria Alice, nós queremos que o senhor seja o presidente daqui”. Juntou o pessoal mais antigo, aí me elegeram por aclamação. A primeira eleição foi por aclamação, a segunda foi por voto, a terceira por voto. Eu sei que eu fiquei um bocado de tempo e estou até hoje, porque qualquer coisa que precisa da comunidade é o que vocês estão vendo aqui, sou eu que tenho que resolver (riso). Até eu tiver bem de saúde e poder, né?
P/1 – E o senhor continua participando, mesmo não sendo presidente.
R – Olha, aquele carro ali é da associação, aquele caminhão que está ali, ó. Tinha que estar na casa do presidente, mas está aqui em casa porque o pessoal diz: “Não, tem que ficar na casa do seu Belmiro” (riso).
P/1 – O senhor ficou quantos mandatos, seu Belmiro?
R – Eu fiquei quatro mandatos.
P/1 – E o que aconteceu que o senhor saiu?
R – Ah, cansa, né? Cansa. Porque todo presidente é ladrão, todo presidente rouba. Então a gente que pensa que é honesto não aceita essas coisas, né?
P/1 – As pessoas falam.
R – Falam e falam muito. Mesmo tirando do seu próprio bolso ele...
P/1 – Às vezes precisa tirar do próprio bolso?
R – Eu tirei muito dinheiro do meu bolso pra botar aqui nessa comunidade.
P/1 – Para quê, principalmente?
R – Combustível, entendeu? Pra agendar comida para o pessoal que vinha aqui. Saía tudo do meu bolso, não saía da associação, não.
P/1 – E a associação depois teve uma sede?
R – Teve não, tem.
P/1 – Tem?
R – Tem uma sede muito bonita.
P/1 – É um centro comunitário?
R – É um Centro comunitário. Eu comecei aqui, quando eu fiz a primeira série aqui o pessoal perguntava se ia criar gado ali na rua. Que eu fiz uma casa de palha, né? E ali que eu comecei os cursos, eu comecei tudo lá. Depois eu passei aqui pra casa, aí saiu uma verba e a dona Maria Alice mandou fazer um galpão. Aí o único galpão que tinha, que sobrou foi o daqui, porque o restante desapareceu tudo.
P/1 – Aqui nesse terreno?
R – Não, lá na frente, onde é mesmo o salão comunitário. Porque lá tinha um senhor, uma família que tinha lá, ele vendo a dificuldade, ele me deu um terreno lá. Então eu disse: “Ó, o senhor escolhe a quantia que o senhor quer aqui no terreno pra fazer o salão comunitário e o restante o senhor usa conforme quiser”. O que aconteceu na época? Nós tínhamos uma escola aqui da Boa Vista que era lá na Rua do Mato, lá dentro do mato mesmo. Então as crianças em dia de chuva não podiam ir à escola, a professora não podia ir, porque tinha que passar por dentro do córrego pra sair lá. Então foi na época da – eu devo também muita obrigação a ela – a Nilceia, eu falei com ela, ela disse: “Vamos construir uma ponte”, construiu a ponte, mas a ponte só ia só até a ponte o carro pra lá não passava, né? Aí eu perguntei: “Como é que eu vou fazer agora? Tem que tirar essa escola daí”. Foi quando a Eurides de Brito foi deputada, antes dela ser deputada ela era da Secretaria de Educação, aí eu fui falar com ela, saí daqui, peguei meu carro e fui lá. Conversei com ela, com a diretora da escolinha que tinha ali. Ela disse: “Ó rapaz, vou lá dar uma olhada. Se o lugar for conveniente eu vou ver o que eu posso fazer”. E veio aqui. Por azar nosso deu uma ventania e derrubou o salão comunitário, ele ficou todo torcido (riso), e foi no dia que ela veio. Ela perguntou: “Escuta, em quantos dias o senhor me dá esse salão pronto?” Eu falei pra ela: “A senhora me dá 90 dias eu estou com o salão pronto” “Você está mesmo?”, eu disse: “Tá”.
P/1 – E a escola viria para o salão.
R – É, para o salão, provisoriamente. Aí peguei o Adão, que foi um dos nossos presidentes aqui também, muito bom, trabalhou muito aqui, e ele me ajudou a reconstruir o salão. Botamos ele em pé direitinho. Eu fui lá buscar ela, fui de carro, peguei o meu carro e fui lá buscar a professora Eurides Brito. Cheguei lá: “Já vem o velhinho chorando”, eu sempre tive a cabeça branca, né? “O que houve?” “Já está pronto o salão.” “Não é possível. O senhor pediu 90 dias”, ela foi lá olhar, “não tem 45 dias”. Eu disse: “Mas já está pronto”. “Então vamos lá.” E viemos aqui. Ela chegou, olhou e disse: “Olha”, fez um ofício, “pode chegar, vai retirar tudo daqui, de lá da escola e trazer pra cá e pode continuar a escola aqui”. Assim eu fiz. O pessoal lá ficou muito aborrecido, né? Mas morava umas duas famílias só, o pessoal todo morava aqui.
P/1 – Aqui tinha bem mais gente.
R – Mais gente. Aí o povo, como é que o povo não agradece. Quando eu botei essas crianças lá no salão sabe o que falaram pra mim? “O senhor não devia ter feito isso, agora não vamos ter o salão pra ter festa, não vamos ter nada, que essa escola nunca mais vai sair daqui”. Eu disse: “Não, mas um dia sai”. Foi quando a Eurides Brito, mandou uma verba pra cá, 115 mil cruzeiros, foi quando foi construída a escola. Quando a escola estava pronta teve um que ainda falou: “Agora não sei pra quê uma escola desse tamanho aqui, aqui não tem aluno pra isso”. Hoje os netos dele estão estudando aí (risos). E a escola não cabe as crianças que têm aqui na Boa Vista.
P/1 – Quer dizer que a ocupação do salão pelos alunos foi só provisória.
R – Foi provisória, eu fiz provisória. A intenção era fazer a escola mesmo. Pra gente fazer uma coisa tem que sacrificar, tem que ter sacrifício de alguém, entendeu?
P/1 – Seu Belmiro, como presidente da associação, o senhor ficou quatro mandatos, né? O que faz com que uma pessoa fique tanto tempo, o que faz com os moradores queiram que essa pessoa continue? O que o senhor acha que fazia para que as pessoas quisessem que o senhor ficasse?
R – Bom, da minha parte que eu acho é o modo que eu trabalhava, né?
P/1 – Como?
R – Que eu era claro com todo mundo. O que eu ia fazer eu consultava eles. Tanto que chegou até um dia que eu fiz uma reunião e fui falar com eles o problema da luz. Que a primeira luz que veio, o que aconteceu? Eu tive que botar a luz primeiro na escola. Então todo mundo caiu em cima de mim: “Ah, pois botou luz na escola e botou nos fundos na casa do seu Raimundo Cirino”. Eu disse: “Porque a casa dele está dentro da escola e quem deu o terreno foi ele! Não é justo que eu não dê, vou botar luz na minha casa e não vou dar luz pra ele”. Eu disse: “Mas não sou eu que dou isso, não, quem fez foi o governo”, entendeu? Caíram em cima de mim de pau mesmo. Aí no dia que eu fui falar: “Olha, o problema é o seguinte: vai continuar a iluminação Dois. E se vocês querem aceitar, aceita, agora eu vou aceitar. Porque o governo é do PT, mas eu sou governo. O governo que entrar, eu sou governo para benefício de vocês, não é em meu benefício, não”. E assim eu fiz. Então teve uma história: “O seu Belmiro é bom pelo seguinte, porque quando ele vem falar, já está acontecendo, já está feito” “Não precisa falar nada não, seu Belmiro. O senhor faz e pode fazer mesmo”. Chama-se dona Onofre, uma das mais antigas aqui. Ela falou: “Não adianta, não. O seu Belmiro quando fala é verdadeiro”.
P/1 – E a comunidade, seu Belmiro, por exemplo, conforme o governo que está, prefere não aceitar as melhorias ou não tem isso?
R – Tem uns que são rebeldes.
P/1 – Por que, seu Belmiro?
R – São rebeldes. Porque eles trocam o benefício por soberba, eles são soberbos porque eles querem pra eles, não querem para a comunidade. Então o governo é da comunidade, o governo não é só de um, não, o governo é de nós todos, seja ele qual for. A Dilma está aí comandando a gente, ela foi eleita, nós temos que aceitar, até quando Deus quiser. Nós não podemos dizer: “Não, porque não presta, porque não é essa que eu queria”. Quem votou nela não está satisfeito, eu tenho certeza.
P/1 – Mas eu digo assim, por exemplo, eles podem deixar, alguns, de aceitar a melhoria porque não é daquele partido.
R – Depois que a melhoria vem, eles aceitam (riso). Choram de barriga cheia, entendeu? Com muitos aconteceu isso. Teve um que vendeu aqui: “Eu vou vender esse troço aqui, porque o senhor fica mentindo, para aqui não vem luz, não vem nada para aqui”. Ele saiu, um mês que ele saiu daqui chegou a luz pra todo mundo. Aí ele voltou para aqui, está morando aqui agora, de novo (riso).
P/1 – Seu Belmiro, eu ia perguntar qual é o maior desafio para quem é liderança comunitária assim como o senhor?
R – O maior desafio é a negação das autoridades. A autoridade diz para senhora que vai fazer, a senhora chega na comunidade, passa para os moradores e essa coisa não acontece. Que nem esse asfalto que nós temos aqui, lutamos anos por esse asfalto. Então a verba saiu para asfaltar até o Ribeirão. Quando chegou aqui na Boa Vista morreu ali, morreu bem ali na frente da escola. Então essa culpa cai sobre quem? O presidente da comunidade. “Você só fez isso porque, as outras comunidades pra frente, você só fez isso porque chegou na sua comunidade e você não se interessa”. Quando eu me interessei por tudo, eu pedi pra todos, não pedi só pra mim. Eu pedi, na época, 14 quilômetros de asfalto, eles só botaram seis quilômetros de asfalto. É a culpa do presidente? Não é. Entendeu? São as autoridades que fazem a gente ser mentiroso. Foi quando eu fiz uma reunião com algumas pessoas, que um deles foi até presidente, e depois ele viu que a batata é quente. Ele chegou aqui em casa para me desafiar: “O senhor é mentiroso porque não sei o quê, porque não sei o quê, porque aqui não veio a luz, não veio nada”. No dia que ligaram a luz eu fiz a reunião, tem essa fotografia aí, eu chamei eles pra falar. “Agora vocês vêm aqui, vocês que foram lá em casa assim, assim e assim”, minha esposa até desentendeu com eles. “Agora vem aqui falar” “Eu não tenho nada pra falar” “Não tem, agora coloca o rabo entre as pernas” “O senhor está me chamando de cachorro?” “É pior do que cachorro! Porque cachorro a gente bate o pé ele corre e vocês ficam no mesmo lugar” (risos).
Tereza – Seu Sebastião, a gente sabe que o desafio é grande, mas tudo o que é conquista que se consegue com resultado desse desafio é motivo de orgulho. Como você se sente tendo pego uma comunidade do zero, sem nada, e tendo conseguido várias conquistas? Qual é o seu sentimento com isso? Hoje que você está aqui tranquilo na sua casa.
R – Meu sentimento é o seguinte, a primeira coisa eu agradeço a Deus por ter me ajudado de poder objetivar algumas coisas para uma comunidade que era carente na época e hoje é uma comunidade cheia de esperança. Daqui as crianças que aquelas pessoas diziam que não precisavam da escola, hoje tem até doutor aqui na Boa Vista, tem engenheiro, tem advogados que saíram daqui estudando nessa escolinha, essa humilde escola. Isso é um orgulho pra mim. Quando eu olho e vejo: “Ô meu Deus do céu, que beleza, é professora”, que eu vi tudo pequenininho, que os próprios pais não tinham esperança, não tinham fé que um dia eles podiam estar orgulhosos de um filho ser estudante, estar estudando e hoje eu sinto orgulho de ver aquela escola, às vezes eu vou lá, está assim de criança, ó, borbulhando de criança. Um lugar que você mesmo, Tereza, você sabe que aqui a condução era horrível, só tinha um ônibus por dia aqui. Eu consegui essa linha de ônibus que tem aí, que está aí servindo no Ribeirão, Córrego do Ouro, entendeu? Esse asfalto, com muito esforço, o Morran, falecido Morran, me ajudou nesse asfalto aí, porque ele estava no papel. E ele, com esforço também conseguiu a água, nós temos a água aqui hoje. Eu agradeço também, porque a primeira água que botou aqui nós cavamos aqui na picareta. E com um presidente que se chamava Adão, nós descobrimos que tinha um presidente na Boa Vista juntamente com o pessoal da Caesb, escondendo os canos lá no Setor de Indústria para nós não instalarmos a água daqui da serra, entendeu? Isso nós levantamos e botamos, hoje é um orgulho, nós temos água potável, essa água que vocês estão bebendo aí é uma água potável. Temos luz, temos escola, temos aqui. Por incrível que pareça, Tereza, quantas instituições de benefício tem a Fercal, assim, religiosa?
Tereza – Cada comunidade tem duas, três igrejas.
R – Sabe quantas igrejas nós temos aqui na Boa Vista? Nove! Nove! Temos oito evangélicas e uma católica.
P/1 – Cresceu bastante, né?
R – Tudo com a graça de Deus, viu? Deus me ajudou que eu fosse fazer isso (chora). Hoje, graças a Deus eu sou evangélico, porque Deus quis que eu fosse. Porque quando eu cheguei aqui eu sentava ali, tinha um bar, eu tomava uma caixa de cerveja às vezes por dia, não era por semana, não. Quando começou a construção daquela igreja ali eu passava de tarde com os meus veados, o pessoal me cumprimentava, tudo, tudo. Aí eu falava com eles, coisa e tal. Um dia eu tava tomando uma cerveja ali naquele bar, chegou uma senhora, olhou pra mim e disse: “O senhor sempre passa ali, o senhor sempre fala com a gente. O senhor não tem vontade de ir a um culto ali na igreja, não?” “Tenho” “Por que o senhor não vai?” “Porque não teve essa oportunidade de eu ser convidado que nem a senhora me convidou agora”. E desse dia pra cá, faz 12 anos. Antes eu deixei de beber, e 12 anos que eu sou evangélico, batizado. Hoje eu sou uma das segundas pessoas da igreja, de confiança, sou o tesoureiro da igreja, porque assim Deus quis. Eu não queria ser mais nada, lidar com mais nada, mas o que é que eu vou fazer? Eu nasci pra isso e vou morrer assim (riso). Vou morrer assim, lutando por uma causa que é justa, e é justo. Hoje todo mundo já me considera mais, porque aqui a Boa Vista, por incrível que pareça, 99% é evangélico, 99% daqui é evangélico.
P/1 – E seu Belmiro, o fato do senhor participar da igreja influenciou para o senhor não beber mais?
R – Não, deixei antes, deixei antes. Antes de ser evangélico já deixei. Porque eu tinha vergonha de ir lá bebendo, então eu deixei.
P/1 – Sua esposa também participa da igreja?
R – Participa. Hoje ela participa da igreja e meu filho também.
P/1 – O senhor falou que teve esse desenvolvimento todo. Quando o senhor veio para cá tinha poucas famílias. Cresceu muito assim a população?
R – Cresceu. Cresceu mais do que 100%. Eu estou dizendo, quando eu cheguei aqui só tinha cinco famílias aqui, cinco famílias. Eu ia contar a dedo, a gente saía daqui a cavalo pra visitar as famílias aqui.
P/1 – Agora as famílias foram aumentando ou veio mais gente para cá?
R – Foram aumentando as famílias, a maioria que mora aqui são filhos, netos, das famílias que tinham aqui. Agora, esses netos, esses filhos, o que coube para eles na terra dos pais que morreram, dos avós que morreram, eles fizeram isso, lotearam e venderam pra outras pessoas de fora. Mas felizmente essas pessoas que vieram morar aqui, todo mundo congrega o evangélico porque são católicos mesmo fiel, porque às missas que têm na igreja não falta ninguém.
P/1 – Ou católico ou evangélico.
R – Ou evangélico. E os alcoolatras que têm aqui na Boa Vista é muito pouco, é alcoolatra de final de semana, não é alcoolatra de todo dia. Tu não “vê” um bêbado aqui na rua, não vê nada, não.
P/1 – E a associação, como é que está agora? Que a gente já está terminando.
R – A associação agora está um pouco devagarinho, né? Porque o último presidente que nós tivemos aí, ele era muito dinâmico, mas ele se encheu de orgulho e quebrou a associação, por isso que esse caminhão está parado aí até hoje.
P/1 – O senhor acha, por exemplo, que depois das coisas que vocês já conquistaram pela associação, agora já não teria tantas reivindicações, por isso que parou também?
R – Tem, tem, tem. Esse presidente que entrou aí é dinâmico, esse menino que entrou aí agora é dinâmico.
P/1 – O novo?
R – O novo que está aí.
P/1 – E tem o que buscar, ainda tem melhorias a serem feitas?
R – Tem. Nós temos um parque aqui atrás que só está uma parte feita para as crianças. Tem a parte dos idosos que é pra ser feito. Tem agora, eles vão começar, vê esse barro que está aí, eles vão começar a botar expurgo para asfaltar as ruas daqui, entendeu? Que é prioridade daqui, que o Michel no primeiro mandato dele, ele prometeu o asfalto pra aqui e agora está chegando. A iluminação pública, ele botou aqui, que só tinha nas ruas principais, agora tu entra em qualquer mato desse aí tem iluminação pública.
P/1 – Quem que botou?
R – Michel.
P/1 – Quem é Michel?
R – Deputado Michel.
P/1 – Então o senhor diz que tem muito a fazer.
R – Ainda tem muito a fazer. Esse muito a fazer que tem nós temos terreno pra construir o posto de saúde, a Terracato já autorizou o terreno e tudo, mas com a mudança de governo aí a verba saiu pelo ralo. Até agora não foi feito posto de saúde.
P/3 – Queria saber se senhor teve algum problema com relação à questão do meio ambiente e as fábricas, a comunidade. Como foi líder comunitário, como é que foi isso, o senhor teve algum problema?
R – Ó, no princípio, a Tocantins principalmente, nos ajudou muito com cimento na construção do nosso salão comunitário, entendeu, ele cedeu material pra nós. Na parte da escola também. O Sávio é um dos empresários dinâmicos aqui na nossa associação, que ele ajuda, ele gosta de ajudar. E o que está faltando na Boa Vista agora é esse asfalto. Asfaltou a Boa Vista, ela vira cidade, já pode ser até independente.
P/1 – E o senhor acha bom que vire cidade?
R – Eu quero a evolução do local, porque aqui sendo urbano nós podemos ter aqui até uma universidade para as crianças, você entendeu? Podemos ter uma UPA maior, não vamos ter posto de saúde. E outras coisas mais que vêm de benefício quando se passa a ser urbano. Nós vamos pagar o imposto, que é isso aí que eu desejo, é que todos paguem esse imposto, porque aí nós podemos reivindicar ao governo pra trazer melhoria pro local. Se nós não pagamos nada, nós estamos vegetando.
P/1 – Agora em relação a essa beleza aqui, que o senhor diz que sempre tem um lugar assim bonito, como era lá no Rio antigamente com essa vegetação. As empresas que se instalaram aqui, influenciaram nesse ambiente?
R – Principalmente a Tocantins, que comprou essa parte aqui pra não ser desmatada. Por quê? Porque isso aí é o filtro pra eles. A poluição que vem da fábrica não se espalha por aqui porque ela morre dentro dessa mata aí. Porque se fosse vendido para outras pessoas isso aí, já estava tudo desmatado, já estava tudo loteado aí. Então o Iron, ele pensou bem, entendeu? Ele aceitou a oferta da Tocantins, então a Tocantins comprou e não deixou que desmatasse isso daí. Então aí dentro não se mexe nada. Porque tem o pessoal do outro lado lá, eles têm a mina d’água que tem aqui dentro, sai de lá. Todo mundo aqui cria peixe, tem criação de peixe, tem tudo aí.
P/1 – Não corre o risco da Tocantins vir ficar aqui?
R – Não. Não, porque já pararam lá na frente. Por aqui eles não têm material, fizeram pesquisa aqui tudinho, não tem material para fazer o pó pra fazer cimento. Aqui não tem rocha.
P/1 – Eles primeiro fizeram a pesquisa.
R – Primeiro fizeram a pesquisa.
P/1 – Depois que compraram.
R – Depois compraram.
P/3 – E o senhor como líder comunitário, qual é o sonho do senhor para Boa Vista? Como o senhor quer ver a Boa Vista daqui um tempo?
R – Eu quero ver a Boa Vista evoluída. Eu quero desenvolver aqui pra ser uma parte urbana mais organizada, entendeu? Organizada. Aqui nós precisamos de um posto avançado de polícia, um posto avançado de bombeiros é necessário, que a distância daqui pra Sobradinho é muito longe. Que às vezes há uma batida de carro aqui, até que chega o socorro de lá a pessoa já morreu aqui. Se um cara aqui quer matar um, tendo um posto policial já evita. Não é que a polícia vai prender ninguém, não, é só pra evitar esse acidente que existe, né?
P/1 – Seu Belmiro, como o senhor tem muita experiência, vendo todas essas melhorias, esse avanço que o senhor diz até de se tornar urbano nesse sentido, de ter estrutura, será que mudaria também essa beleza natural?
R – Eu acho que não porque o Rio de Janeiro, desde quando eu nasci, existe os pontos turísticos bonitos no Rio de Janeiro que nunca foram tocado. Tem a vegetação no meio da cidade. Nós temos uma praça que se chama Praça da República, a senhora chega lá, a senhora pensa que está dentro de uma floresta. No meio da cidade!
P/1 – E como fazer pra que aqui também ficar assim? Melhoria e preservação.
R – Preservação vai do próprio dono de onde está morando, não deixar que mexa. E o governo também, o meio ambiente, não deixar mexer. Porque não pode destruir uma montanha dessa que tem aqui na frente, um morro desse chama-se Boa Vista, entendeu? Não pode se mexer numa mata dessa aqui, ó, que é o pulmão aqui nosso. Vê que na Fercal ali, todo mundo tem que estar molhando dia e noite aquela pista lá por quê? Por causa da poluição da fábrica, e aqui ela não vem pra cá. Não é que um caninho vai dar uma explosão lá, e aqui, ouço aquele pum, pronto acabou. E lá, eu tive o prazer de estar lá na Fercal, mexe tudo, treme tudo. Aqui não. Mas por quê? Por causa da vegetação e esses morros que nós temos aqui em volta, nosso, essa proteção que nós temos aqui, ambiental.
P/1 – A gente já está terminando.
R – Agora eu queria pedir uma coisa a vocês. Queria apresentar minha esposa aqui, vem cá minha filha.
P/1 – Depois nós vamos tirar uma foto com ela.
R – Porque se não fosse ela, eu não estaria aqui e não estava fazendo o que eu fiz, porque foi com a ajuda dela.
P/1 – A gente vai tirar então uma foto com ela.
R – Tá bom.
P/1 – O senhor já gravou esse depoimento falando sobre ela, e pra terminar o senhor gostaria de falar mais alguma coisa que a gente não perguntou?
R – Eu quero agradecer a vocês e agradecer à Tereza por essa lembrança que teve, porque nós somos oriundos daqui, né, Tereza, agora. Nós fazemos parte agora da Fercal, enterramos nosso imbigo aqui, acho que agora pra tirar daqui vai ser difícil (riso). E eu tenho dois filhos que são filhos daqui, uma com 25 anos e outro com 22, então eu já plantei e já colhi fruto daqui da Boa Vista, então daqui, porque a vontade de fazer aqui era fazer um cemitério pra gente não sair daqui, ficar enterrado aqui mesmo (risos).
P/1 – Está ótimo, muito obrigada, viu, seu Belmiro. E parabéns pela sua história!