Museu da Pessoa

Se o Senhor quiser, eu vou ser costureira!

autoria: Museu da Pessoa personagem: Rosaria Braga da Silva

Votorantim Fercal-DF
Depoimento de Rosária Braga da Silva
Entrevistada por Tereza Ferreira e Márcia Trezza
Fercal 10/06/2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV013_Rosária Braga da Silva
Transcrito por Liliane Custódio


P/1 – Rosária, a gente vai começar a entrevista, fale o seu nome completo.

R – Rosária Braga da Silva.

P/1 – Qual a data do seu nascimento?

R – Vinte e quatro de junho de 1954.

P/1 – Onde você nasceu?

R – Em Vazante, Minas Gerais.

P/1 – Você pode falar o nome do seu pai e da sua mãe?

R – Jeremias Rodrigues Braga e Maria Braga da Silva.

P/1 – Que lembranças você tem do seu pai?

R – Aquele sorriso dele, que ele tinha um sorrisinho safado, um sorriso assim apertando o olhinho, é a lembrança mais firme, mais forte que eu tenho dele.

P/1 – Você se lembra de coisas assim que ele falava pra você?

R – Meu pai era meio sem vergonha, ele gostava muito de falar sem-vergonhice, então as histórias dele não são assim tão bonitinhas. Mas ele também era carinhoso com a gente, nunca deu um tapa em nenhum filho. Como marido, a minha mãe reclamava, mas como pai, não tinha nada que reclamar dele, não.

P/1 – E a sua mãe, que lembranças você tem dela?

R – Agora, a minha mãe é mais forte, porque foi ela que trabalhou pra sustentar a gente. E assim, eu a vi muito tear, tecendo e lutando. A vida inteira dela foi luta, foi ela que batalhou para criar os seis filhos, porque meu pai não tava muito aí, não.

P/1 – Seis filhos. Vocês são quantas meninas e quantos homens?

R – Duas meninas e dois meninos.

P/1 – São seis filhos?

R – Seis.

P/1 – Você falou quantas meninas?

R – Duas.

P/1 – E quatro meninos?

R – Isso. Eu errei (riso).

P/1 – Quatro meninos.

R – Quatro meninos.

P/1 – Você é mais velha, a do meio, a mais nova?

R – Eu sou a terceira.

P/2 – E ela no tear, ela tecia para vender?

R – Não, as pessoas encomendavam, já levavam a linha prontinha e ela só tecia. Ela também fiava pra fazer roupa pra marido, para filhos. Eu mesma tive vestidinho de algodão feito por ela.

P/1 – O tecido feito por ela?

R – Feito por ela. E eu ainda tenho tecido que foi feito por ela.

P/2 – Que lindo.

R – Tenho. A gente chama de coberta, né? Que no caso seria uma colcha, mas ela é uma coberta que eu tenho, que ainda tem cores ainda, que ela ainda é coloridinha. E tenho lençol também, tenho toalha, toalha branca de tecido fino, de algodão. Eu tenho assim. Pra mim é relíquia.

P/1 – E quando ela fazia no tear as peças, o que ela produzia geralmente?

R – Tecido pra calça, pra camisa, pra lençol e essas cobertas.

P/1 – Mas o tear, você disse que além de tecer o próprio tecido, ela fazia peças também?

R – Não, só fazia o tecido.

P/1 – E ela teceu durante muito tempo?

R – Até a gente vir embora pra Brasília.

P/1 – E você viveu com a sua mãe e seu pai até vir pra Brasília?

R – Vivi até casar. Que quando eu vim pra cá, eu já tinha casado.

P/1 – E da sua infância, que brincadeiras você lembra da sua infância?

R – Cavalo de pau (riso), gangorra nos paus (riso), aqueles balancinhos que a gente amarrava a corda, sentava e balançava. Andava de bicicleta, brincava de roda, tudo que se faz na roça, porque eu fui criada na roça.

P/1 – Você e seus irmãos?

R – Todos.

P/1 – E tinha outros amigos além deles quando criança?

R – A gente só brincava com os primos, porque quem mora em fazenda é meio distante de tudo. Então a gente era turminha de primo. Eu tenho primos que são foliões de Folia de Reis, então a gente brincava ali, eles tocando violão e a gente brincando de dançar. Eu aprendi a dançar assim, brincando lá nos terreiros cheio de poeira, e a gente brincando.

P/1 – E esses primos moravam todos na fazenda?

R – Tudo nas fazendas.

P/1 – Seu pai produzia na fazenda?

R – Meu pai vendeu a dele muito cedo. Quando eu tinha 40 dias de nascido, ele vendeu a fazenda que ele herdou e nos criou na pior mesmo.

P/1 – E vocês moravam então em outra fazenda?

R – A gente morava em fazenda de outras pessoas, às vezes de parente, às vezes de pessoas não conhecidas também.

P/1 – E vocês iam para a escola? Como era essa parte de ir para a escola?

R – Outra coisa que foi difícil, a escola, por isso que eu só consegui chegar até a quinta série, porque a gente mudava pra uma fazenda que tinha escola, daqui a pouco ele mudava daquela fazenda e ia pra uma que não tinha escola. Eu tive duas chances de vir estudar, uma em Paracatu, outra em Brasília, mas a família muito rigorosa, muitos irmãos “porque não pode isso, não pode aquilo”. Então não me deixaram sair pra estudar por pura ignorância, que até que eu era uma menina quietinha. Casei com o primeiro namorado (riso).

P/1 – E, Rosária, seu pai trabalhava nessas fazendas?

R – É. Ele trabalhava na roça mesmo, capinando. E os meus irmãos também, até mudar pra Brasília.

P/1 – E o seu primeiro namorado, você conheceu onde?

R – Num baile.

P/1 – Onde foi o baile?

R – Lá nas fazendas em Minas. E, assim, o meu pai, mais o pai dele, e a minha mãe, mais a mãe dele, já eram conhecidos. Aí eles forçaram a barra pra eu casar com o primeiro namorado. Fiquei casada 23 anos com ele, não suportei mais.

P/1 – Esse encontro, esse namoro, esse casamento, foi um romance?

R – Ah, namoro de roça você sabe como é, né? Um de lá, outro de cá (riso). E as crianças vigiando na frente (riso). Foi desse jeito que namorei. Como você sabe que você gosta de alguém desse jeito? Não rola. Como você sabe que você gosta de alguém que você nunca tocou nele, que você nunca beijou?

P/1 – E casou assim?

R – Casei, me empurraram pro casamento. Por isso que eu separei mais tarde.

P/1 – Quantos anos você tinha quando casou, Rosária?

R – Dezesseis.

P/1 – Antes de casar, você ia nos bailes, o que vocês faziam? Tinha outras diversões assim quando você era adolescente?

R – Não. Não tinha muita coisa que fazer, não. Na verdade, eu fazia muito era trabalhar, desde criança. Eu ajudava a minha mãe a fiar, fazer a linha pra fazer os tecidos que ela fazia. E assim, quase não tinha aonde ir.

P/1 – Você estava dizendo que desde muito cedo você trabalhou. Eu ia te perguntar se você fazia o trabalho junto com a sua mãe, você disse que fazia, ajudava a tecer os fios.

R – Ajudava.

P/1 – E também você começou a costurar.

R – Com 14 anos.

P/1 – Com quem você aprendeu a costurar?

R – Primeiro com as bonecas. Quando eu comecei a fazer roupa pra mim, eu tinha 14 anos, mas antes eu pegava as bonecas das minhas primas, no caso tinha Festa de Reis, nas quais meus primos eram foliões, eu pegava as bonecas de todas elas, fazia as roupas.

Eu pegava as bonecas das minhas primas, trazia pra casa, costurava tudo na mãozinha, mãozinha de criança ainda, fazia umas roupinhas bem bonitinhas pra elas e colocava em cima de alguma coisa no quarto delas para as bonecas também participarem da festa. Eu não tive boneca na minha infância, tanto que hoje eu tenho uma boneca que ninguém toca nela. Tenho no meu quarto, não sei se você viu, lá tem uma boneca. Aí eu fazia boneca, eu colocava peitinho nelas, eu fazia o sutiãzinho, eu fazia a roupinha. Aí uma prima da minha mãe falou assim: “Uai, Maria, a sua filha vai ser costureira, porque ela já faz coisa que eu não sei fazer”. E elas eram costureiras. Daí eu com 12 anos, a minha mãe andou o dia inteiro, eu e ela, a pé, atrás de uma costureira pra fazer uma roupa pra gente ir a uma festa. E todo lugar que chegava tava cheio. Eu lembro que eu olhei pra cima assim, o céu tava com aquelas nuvens bem miudinhas, eu falei assim: “Senhor, se o senhor quiser, eu vou ser costureira pra eu não ver a minha mãe andar mais desse jeito atrás de costureira”. E aí eu comecei. Teve um dia que eu invoquei com ela e falei assim: “Agora a senhora vai cortar o meu vestido e eu vou fazer”. Ela: “Você quer que eu bote o pano a estragar?”. Eu falei: “Se estragar, estraga no cortar, não no costurar, por isso que a senhora vai cortar”. Na casa do meu pai não tinha uma mesa, não tinha nada pra poder fazer aquilo ali. Eu peguei uma lata, coloquei de um lado, peguei outra lata, pus do outro, peguei uma tábua, pus em cima, peguei um lençol, forrei, aí dobrei o pano e pus lá, dobrei o vestido e pus em cima, e falei: “Agora a senhora corta” (riso). Ela: “Você quer que eu ponho o pano a perder?” “Se vira”. E foi assim o meu primeiro vestido que eu fiz. Ele era assim um rosa pink, de um tecido molinho. Pensa numa festa que eu fui com aquele vestido, quantos rapazes quiseram me namorar. Só de uma aposta eram oito (riso). E eu me sentindo o patinho feio, os rapazes ali apostando, ver quem ia me namorar. É porque eu parecia uma potranquinha daquelas bravas, ninguém chegava perto de mim. Se chegasse um homem perto de mim, olha, eu não saía, eu corria mesmo (risos).

P/1 – Mas o vestido ficou bonito?

R – Deve ter ficado, porque pra arrumar tanto pretendente num dia só, com o sapato rasgado! Então eu acho que sim, que o vestido ficou legal. Daí eu fui fazendo pra mim, pra minha irmã, pra minha mãe. Aí comecei costurando pra família inteira, até que eu fui costurar pra fora. Quando eu fui aprender a fazer calça de homem foi muito engraçado, era de um senhor. Eu fiz a calça dele e fiz o gavião do mesmo tamanho na frente e atrás, e ele vestiu a calça (riso), e a calça não subia atrás (riso). E ele veio com um sorrisinho: “Oh, minha filha...” – eu com 14 anos – “Oh, minha filha, dá pra você ver o que você pode fazer nessa calça aqui? Porque aqui ficou meio pequeno”. Eu: “Ah, é mesmo, eu cortei do mesmo tamanho”. Assim, na maior simplicidade. Eu peguei a calça dele, olhei: “Ah, já sei o que eu vou fazer”. Aí coloquei uma nesga lá atrás, entreguei a calça de volta pra ele, ele: “Ah, agora ficou boa” (riso). Muita gente, ainda hoje, que eu já vou fazer 61 anos, e as pessoas chegam aqui e acham que vão dar de cara aqui com uma velhinha triste. Chegam aqui e falam: “Você não parece ter a idade que você tem”.

P/1 – É verdade.

R – Outros falam assim: “Mas você não fica velha”. Eu vou ficar velha pra quê, gente? Eu brinco: “Eu posso até ficar com o rosto cheio de ruga, mas o meu espírito vai ser sempre de uma pessoa jovem. Eu não quero envelhecer assim, não. Eu quero continuar sorrindo e brincando”. Eu amo criança. Nossa, eu acho assim, quando eu chego onde tem criança, eu acho a coisa mais linda. Não gosto de criança malcriada. Mas tem umas crianças tão boazinhas, que você chega, elas são assim... Eu tenho netos de vários jeitos, porque eu tenho quatro. Tem os que estão maiorzinhos agora, já cresceram, já estão educados.

P/1 – Que idade, Rosário?

R – Quinze e 13. E assim, ela já tá quase do meu tamanho e ele já tá mais alto que eu. Porque você não tem um neto grande assim pra você ver o tanto que é gostoso eles te abraçarem e te falarem: “Ai, vó, que saudade”.

P/1 – E, Rosária, o primeiro vestido você tinha 12 anos?

R – Quatorze.

P/1 – E de lá pra cá você continuou trabalhando com costura?

R – Quando eu vim pra Brasília, me disseram que aqui se não tivesse corte de costura, que não costurava. Eu falei: “Eu faço”. Eu paguei uma pessoa que costurava pra ensinar só pra mim. Eu já fazia roupa, eu precisava aprender riscar. Eu já fazia tudo, só precisava aprender a fazer o molde. Com três dias eu aprendi, aí ela falou: “Agora você vai pra casa, você risca e traz pra eu corrigir”. Depois no final ela falou assim: “Você não precisa riscar o resto do livro, porque você já faz tudo. Eu chego aqui, não tem nada errado”. E eu tinha três crianças pequenas na época. Eu tinha 22 anos e tinha três crianças pequenas.

P/1 – Agora, quando você costurava antes de vir pra cá, a sua mãe continuou cortando as roupas?

R – Não, ela só cortou esse.

P/1 – Só o primeiro.

R – Só o primeiro. Depois eu mesma mandava bala mesmo.

P/1 – E, Rosária, como faz pra cortar uma roupa assim sem ter aprendido? Como você fazia isso?

R – Do jeito que eu falei: pega o tecido, dobra, dobra uma roupa e põe em cima. Não é fácil, porque, assim, você tem que medir toda hora. Então não é fácil quem costura, como a gente chama lá, a machado. Porque hoje pra eu fazer uma roupa, eu tiro a sua medida, aí eu vou com a sua medida pra um papel, faço o molde no papel, daí que eu pego o papel, coloco em cima do pano, corto. Se a roupa tem um recorte, aquele molde vai ser recortado. Meu método é o Ioli, então tem roupa que eu faço que... Tem Tereza aí que às vezes vem aqui pra provar uma roupa e fala assim: “Ah, eu vou embora com ela”.

P/1 – E você faz nesse método.

R – No Método Ioli.

P/1 – O que é esse método?

R – É um método da Iolanda Resende Nolli, que ela é de Belo Horizonte, então ela que criou esse método, que não tem exata, não tem o industrial, tem uns outros aí. Mas o meu é tão bom que eu nunca me interessei em aprender outro. Eu tinha 22 anos quando eu fiz o corte. E assim, eu já costurava e nunca parei. Enquanto Deus me der vida e saúde, eu vou trabalhar.

P/1 – E a machado, cortar a machado, é sem riscar, sem nada.

R – É. Sem riscar, sem nada. Põe a roupa lá em cima e vai. Depois, às vezes você costura, ou fica maior, ou fica menor.

P/1 – Se ficar menor?

R – Aí não tem jeito. Se ficar maior, dá um jeito.

P/2 – E você continuou fazendo roupa pra homens ou a sua preferência é só costurar pra mulher?

R – Aqui não tem preferência, não. O que vier, homem, mulher, criança, veado, tudo (risos).

P/1 – Você faz.

R – Tudo eu faço. Eu falei isso pra um homem um dia, ele regalou um olho tão grande em mim (riso).

P/1 – Mas é, né, Rosária? Você faz qualquer tipo.

R – Não, assim, eu amo, eu amo o que eu faço. Vem fazer uma roupa de criança, de festa, essas roupinhas temáticas, então aparece da Minnie, da Moranguinho, da Gatinha Jolie? Tudo que vem pra eu fazer, eu faço. E assim, as mães ficam apaixonadas. Criança de um ano, criança de dois anos, de três anos, as mães ficam apaixonadas.

P/1 – E pra homem se vier também, calça, né?

R – Calça e camisa. Terno eu fiz um pra ver. Que eu sou assim, invocada. Quando eu penso assim: “Eu vou ver se eu dou conta de fazer”. O do Chico, quando ele foi casar, eu fiz o terno dele de casamento, um terno marrom. Eu achei que dá trabalho demais, que não compensa. Eu falei: “Não quero mexer com isso mais, não”. Hoje se pedir pra eu ajustar um terno, eu falo: “Não. Pode procurar outra pessoa, que eu não quero mexer com isso, não”. Porque é muito difícil.

P/2 – E ficou bom?

R – Ficou lindo nele. Deve ter as fotos do casamento. Ele era magrinho...

P/1 – Mas não compensa?

R – Não. Ainda fiz alguns blazers, mas aí eu falei: “Não. Também não quero, não”. Eu já falo: “Faço calça e camisa”. E roupa de criança. Quando me perguntam se eu faço biquíni, eu: “Bom, se eu quiser fazer, eu até faço, mas eu não quero”.

P/1 – Biquíni não vale a pena?

R – Não. Primeiro porque eu não fiz curso pra fazê-los, e depois é uma coisa que leva muito tempo, a pessoa tem que ter muita paciência. E no caso, eu trabalho com máquina industrial, eu piso lá e ela manda ver, rapidinho tá pronto. Eu vou fazer biquíni nada! E assim, graças a Deus aqui não falta serviço pra mim. Você vê, eu moro aqui afastada, mas o povo vem de longe.

P/2 – Eles vêm de outros lugares pra você costurar, Rosária?

R – Eu tenho cliente de Formosa, eu tenho cliente de Taguatinga. Você quer uma bem de longe que eu já fiz roupa pra ela? Para Palestina.

P/1 – Como você chegou a conhecer essa pessoa?

R – A moça da loja me indicou pra uma da família dela. Eu fiz um vestido de festa pra menina dessa pessoa, chamada Rai. A cunhada dela viu e mandou uma calça dela de lá pra cá pra eu fazer, acho que três calças, e mandar pra ela. Ela falou pra mãe dela que nem as que ela mandava fazer tirando a medida lá tinha ficado boa quanto as que eu tinha feito. A irmã dela veio, que eles têm família aqui em Sobradinho, e ela pediu pra eu fazer pra ela mais cinco calças e parece que foram sete ou oito blusas. Então posso falar já costurei pra ir pra Palestina.

P/1 – Olha só.

R – E já fiz também umas blusas pra outra pessoa, que essa eu nem conheci, o marido veio, aí ela é conhecida dessa moça lá da loja que eu tou falando, ela mandou uma blusa e os tecidos pra eu fazer a blusa e mandar de volta.

P/1 – E, Rosária, você também faz pra lojas? Você costura pra loja?

R – Não. Nunca aceitei, não. Minha filha vive me cutucando pra eu fazer isso, mas eu falei pra ela é muita responsabilidade. Eu já não dou conta de atender todo mundo aqui a tempo e a hora, porque tem gente que chega e não dá pra fazer na hora que quer. Porque tem gente que chega hoje: “Eu quero pra amanhã”. Hoje mesmo chegou uma roupa de uma criança aqui, que o pai vem pegar amanhã.

P/1 – E você acabou aceitando?

R – Vou fazer amanhã de manhã.

P/1 – Mas quando é assim você acaba cedendo?

R – É, porque eu tou fazendo uns uniformes, então são várias peças. Então como eu tou em dia com o uniforme, dá pra eu afastá-los um pouquinho e colocar essa roupinha da criança e fazer, e deixar todo mundo feliz. Porque eu só não faço se eu não tiver condições, se eu não der conta. Mas eu sempre gosto de atender todo mundo.

P/2 – Você falou uniforme, esses uniformes são pra escola ou são pra empresa?

R – De empresa eu já fiz. Já fiz uniforme pra Pedreira acho que umas duas vezes. Esse que eu tou fazendo agora é de coral de igreja, pra Manancial.

P/1 – Rosária, voltando um pouquinho para o seu casamento, você casou, teve os filhos cedo, e depois como foi indo a sua história? Você morava lá ainda, eu estou na sua vida lá em Minas.

R – Lá em Minas?

P/1 – É. Você teve os filhos lá...

R – Eu tive três lá. A caçula nasceu aqui.

P/1 – E como foi? Conta pra gente.

R – A gente morava em Unaí. Já tinha saído de lá de Vazante, já tava em Unaí. A minha família queria vir, e o meu ex-marido não. E eu fiquei: “Eu quero ir pra Brasília, eu quero ir pra Brasília, eu quero ir pra Brasília”. E foi uma confusão danada até que ele resolveu vir, mas veio. Quando chegou aqui, a gente teve briga no meio da rua, e ele dizendo que não queria estar, e ele xingava aqueles nomes que eu não repito por nada desse mundo. E assim, brigou, brigou, mas pra ele só fez bem, porque ele capinava roça, trabalhava na roça. Chegou, entrou na Ciplan, tirou carteira de motorista, foi trabalhar de caminhão, que é bem melhor. Ele tirou essa carteira e eu queria que ele arrumasse logo um serviço, mas ele ficou oito anos com essa carteira sem arrumar um serviço. E eu tinha ajudado ele a tirar essa carteira pra ver se facilitava minha vida. Porque quando eu morava lá em Unaí, eu costurava, eu tinha três filhos pequenos, e fazia comida pra levar na roça, que ele trabalhava na roça, nove horas eu tinha que estar com o almoço pronto, e duas horas da tarde tinha que ter um bolo, ou um arroz doce, ou uma canjica, alguma coisa que eles chamavam de merenda. E cinco horas estar com janta pronta.

P/1 – Você ficava levando pra roça tudo isso?

R – Eu que levava. E ainda costurava pra fora numa máquina de pedal. Maquinha de pé, com três crianças pequenas, fazendo tudo isso. E às vezes eu costurava à noite com aquela lamparina ali. Aquela lamparina foi que iluminou muitas das minhas noites lá em Unaí, com as crianças pequenas.

P/1 – E não tinha luz lá ainda?

R – Não, era fazenda, né? Naquele tempo fazenda, isso há quase 40 anos.

P/1 – Tinha água encanada?

R – Tinha que buscar na cabeça lá na cisterna da vizinha ainda, porque a cisterna da minha casa não tinha. E, detalhe, minhas crianças não eram brincadeira. Eu acho que a Tereza já conhece essa história. Teve um dia que eu fui buscar água, aí eu vinha com a lata na cabeça, e esses meninos arrumaram um berreiro, eu joguei essa lata pra lá e saí correndo.

P/1 – Ela tava na casa?

R – Cheguei lá, eles estavam brincando. Mas por que o meu susto? Porque antes, do nada, um com dois anos pegou uma faca, tacou na testa do outro, que fez um corte que a marca existe até hoje na testa do outro. Eu saí correndo, porque eu pensei: “Estão se matando de novo”. Tá. Uma semana depois, o que tinha levado aqui pegou a mesma faca e tacou no lado da testa aqui, que também tem a marca, todos os dois têm a marca.

P/1 – Ele na própria testa?

R – Um tacou no outro. Agora pensa que vidinha mais ou menos que eu tinha lá. Dando conta dessas comidas no fogão de lenha, e tudo a tempo, eu dando conta disso tudo e essas crianças brigando desse jeito (riso). Hoje é de rir, mas na época era de chorar, viu?

P/1 – Imagino.

R – Lá a gente lavava a louça e colocava pra secar no jirauzinho, lá no sol quente. Eu pus essas vasilhas lá pra secar, todos os meus garfinhos, que era pouquinho, as colheres de mexer as panelas, também era pouquinho, botei tudo lá. Na hora que eu fui fazer janta, eu olhava pra um lado: “Ué. Gente, mas eu lavei” – falando sozinha – “mas eu lavei e deixei aqui. Onde foi parar isso? Meu Deus do céu, cadê isso?”. O outro maiorzinho falou assim: “Mãe, a senhora tá procurando os trens que tava aí em cima do jirau?”. Eu: “É”. Ele: “O Milton pegou tudo e jogou dentro da cisterna” – uma cisterna seca que tinha lá – “Mãe, e ele ficou assim na pontinha do pé escutando, fazia assim lá dentro, olha, batia na pedra, ti pim. Ti pim”. Ele jogava tudo. Ele jogava os shortinhos dele, ele jogava sapato dele, ele jogava tudo dentro da cisterna velha. Eu estive aqui conversando com uma médica, aí a gente tava contando a história de uma pra outra, na época ela tava sofrendo, tava separada, aí ela ficou assim do outro lado da mesa, ela virou assim pra mim: “Rosária, olha, pra passar por tudo que você já passou e ser do jeito que você é hoje, sem buscar ajuda de médico é difícil”. Eu: “Não, eu busquei o melhor deles. Ele que me dá força pra eu seguir em frente. Ele que me sustenta, ele que sustenta a minha família, é com ele que eu vou”. Aí ela começou a rir, falou: “É!”. Pior que às vezes os outros é que me fazem de psicólogo, porque costureira escuta muita coisa. Mulher que tá triste com o marido, com o namorado. Não escuta muita coisa de homem, mas até de homem às vezes eu ainda escuto. Mas de mulher assim, eu escuto muito desabafo. Elas falam assim pra mim: “Não conta pra ninguém, não” “Se é boba? Daqui a pouco eu já esqueci. Não vou lembrar mesmo, não. Não precisa preocupar, não”.

P/1 – E, Rosária, aí ele veio pra cá, tirou a carta, e não ia capinar também?

R – Ele começou a trabalhar na Engesp e lá era operador de um negócio lá, que eu não sei o que é o nome, eu esqueci agora. Ele falou que tinha uma carta de motorista e os colegas dele falaram assim: “Se você tivesse, você não tava comendo essa poeira que você tá comendo aqui não, rapaz”. Ele chegou pra mim e falou assim: “Eu vou ter que levar a minha carteira e esfregar na cara daquele povo lá, porque eles dizem que eu não tenho”. Eu: “Também, né, com oito anos que você a tem e você nunca quis trabalhar de motorista”. Ele virou assim pra mim: “Você tem que ter paciência!”. Eu falei: “Eu não sei se eu vou rir agora ou chorar. Eu tenho que ter paciência? Oito anos esperando que você melhore de situação, que você arrume um trabalho pra ganhar melhor. Você quer continuar comendo poeira o resto da sua vida?”. Eu vivi o quanto pude com ele, mas chegou a um ponto, porque assim, eu gosto muito de família, família pra mim é uma coisa muito assim, sagrada, mas chegou a um ponto que eu não dei conta, não. Pra você ter um marido e sentir sozinha, é melhor você não ter ninguém. Que a minha vida era essa, ele tava ali do meu lado, mas eu não sabia o que era um toque de carinho, uma palavra de calor humano, uma coisa gostosa de ouvir, sabia nada disso. A gente vivia mais como dois irmãos. Eu falei: “Não, pra mim basta”. E graças a Deus nunca me arrependi de ter separado. A única coisa que eu tinha medo era de que os homens não me respeitassem porque eu era uma mulher separada.

P/1 – Entendi.

R – Depois que eu separei que eu vi que quem me fazia ser respeitada era eu, e não o homem que tava do meu lado. Eu vi que eu, sim, é que fazia ser respeitada.

Se for preciso enfiar a mão na cara de um cidadão assim, quando eu vejo, eu já fiz. Já. A Tereza me viu fazer isso um dia. Pá a mão na cara do cara.

P/1 – O que aconteceu? Por que você deu com a mão na cara?

R – Porque ele queria morder na minha bochecha. PÁ! E depois que eu separei, eu fui pra Corumbaíba...

P/1 – Quantos anos você tinha quando você separou?

R – Quarenta. Eu fui pra Corumbaíba, aí chegou lá, o povo arrumou um tal de um churrasco na beira de uma piscina, e começaram a jogar as pessoas dentro da piscina, e eu não gosto dessas brincadeiras. Eu não gosto desse negócio de quebrar ovo na cabeça, eu não gosto de brincadeira idiota, não, que isso pra mim é brincadeira suja. Aí minha filha tava com eles já na piscina e eles falaram assim: “Agora é a vez de nós jogarmos a Rosária”. Ela falou assim: “Se eu fosse vocês, não mexia com a minha mãe” “Ela não é melhor que os outros, nós já jogamos todo mundo, por que nós não vamos jogar ela?” “Então não diz que eu não avisei”. E eu tava em pé do lado de uma churrasqueira e tinha uma faca daquelas de churrasco bem grandona assim, e vieram três homens, cada um mais forte que o outro, disseram que iam me pegar a pulso e me jogar na piscina. Eu só catei essa faca e arregalei o olho, que acho que até eu fiquei com medo do meu olho arregalado (risos). E eu fazia assim com a faca no rumo da barriga deles e falava assim: “Eu quero ver qual o macho que me joga nessa piscina agora, que eu vou arrancar as tripas dele aqui e jogar no chão” (riso). Afastou todo mundo. E o dono da casa: “Olha, vocês não chegam perto dessa mulher, não, que ela é minha protegida”. Eu: “Some daqui você também, que senão vai sobrar pra você”. Mas eu fiquei com tanta raiva naquele dia, que me subiu um negócio assim, que eu não sei o que foi, não, viu? E eu: “Meu Deus, se ele chega perto de mim, o que eu ia fazer?”. Eu não sei o que podia acontecer.

P/1 – E os filhos, como eles te viam quando acontecia isso?

R – Esse dia, dessa vez já era o cara que eu tentei um segundo casamento, aí só tinha ido a caçula comigo. E assim, a minha vida com o pai deles, eles nunca viram muita briga, porque a gente nem brigar brigava. A gente vivia um pra lá, outro pra cá. Então pelo menos tranquilidade pra eles a gente deu. Chegou um ponto que a minha filha falou assim pra mim: “Mãe...”. É a mais velha, a que é a filha da Tereza também. “Mãe, se fosse pra eu viver uma vida igual a senhora vive, eu não dava conta. Eu tou com a senhora para o que der e vier.” Aí eu chorei mais ainda. E eu já tava pensando que eu precisava procurar um psicólogo, ou um psiquiatra, porque eu achava que eu já tava louca. Porque o casamento tava me fazendo tanto mal que eu tava tomando remédio controlado. E quebrava as coisas. Eu lembro que a última vasilha que eu quebrei foi bem aqui, aí a minha filha tava lá fora e gritou: “Mãe, a senhora quebrou na área ou na cozinha?”. Eu: “Você quer que eu quebre outra onde?”. Ela: “Mãe, pelo amor de Deus, não quebra mais, não, que a senhora nunca limpa”. Eu tomava remédio e um dia ela falou assim: “Mãe, quando a senhora tá sob o efeito do remédio, a senhora é tão boazinha, mas quando passa, ai, é duro de aguentar a senhora”. Eu falei: “Eu também não tou me aguentando”. Eu pensava assim: “Mas que médico eu tenho que procurar?”. O que é que eu fiz? Eu cheguei no banheiro, olhei assim bem dentro dos meus olhos lá mesmo e conversei como se eu estivesse conversando com outra pessoa. Primeira coisa que eu falei: “Toma vergonha na sua cara, sua safada. Você não precisa de psicólogo, nem de psiquiatra, que você não tá doida coisa nenhuma. Você precisa separar do seu marido, que é quem tá te fazendo mal”. E aí eu devo ter conversado comigo mesma durante uns 20, meia hora. Aí falei, falei, falei, falei! Falei tudo que eu acho que eu gostaria de ouvir, que eu precisava ouvir. Mas como eu não desabafava com quase ninguém, e assim, não saía de casa, porque nessa época eu trabalhava mais ainda, porque eu trabalhava com uma mulher que vendia roupa na torre. E aí eu conversei, conversei, conversei, dei assim aquela respirada funda e falei assim: “Na primeira oportunidade você vai pedir a separação”. E fiz. Fiquei com aquilo na cabeça, não levou tempo nenhum. A primeira oportunidade que eu tive, eu falei: “Eu quero separar”. Ele ficou um mês aqui dentro de casa pensando que eu ia voltar atrás. Quando eu falei pra minha mãe, ela: “Minha filha, pensa direito”. Eu falei: “Mãe, eu tou pensando há muito tempo na minha vida. Ou eu separo, ou eu acabo com a minha vida tomando aquelas drogas que eu tou tomando”. Nunca mais tomei um Diazepam na minha vida, nunca mais quebrei nada na minha casa. E depois ele até andou perguntando para os meninos se eu tava mais calma, se eu não tava quebrando as coisas. “Uai, pai, nunca mais quebrou nada, não.” Ele: “Então era eu o motivo”. Mas tou aqui firme e forte.

P/1 – Rosária, seus meninos tinham que idade quando você se separou, mais ou menos?

R – A Sheila tinha 13, que é a mais nova, a outra tinha 18, um tinha 20, e o outro 22.

P/1 – Já eram moços e moças.

R – Eu esperei eles crescerem, porque a única briga que eles viram, eu não tinha a Sheila, a gente brigou, teve uma discussão feia, e foi a única vez também que eles viram. Ele falou que então podia separar, eu falei: “Não vou criar meus filhos sozinha”. Então eu segurei mais a onda pra ver meus filhos maior com a presença do pai por perto. E nesse tempo eu engravidei da Sheila. Aí esperei ela ficar com 13 anos pra eu poder pedir a separação. Eu pensei neles antes de mim, porque eu queria ver meus filhos bem. E assim, graças a Deus todo mundo sabe trabalhar, um é motorista, outro é serralheiro, uma é secretária executiva, outra é analista comercial. Então graças a Deus consegui encaminhar todo mundo.

P/1 – E você depois de um tempo, falou “quem sabe um segundo casamento”?

R – Foi nessa vez que eu fui embora.

P/1 – E aí?

R – Mas o que acabou com esse casamento lá é porque o cara achou eu ia trabalhar pra sustentá-lo.

P/1 – O segundo?

R – É. Eu falei: “Tou fora. Não tou matando cachorro a grito, não”. Você sabe quanto tempo eu fiquei lá? O dia que fez um mês que eu fui embora de mudança, eu estava voltando. Eu liguei pra Tereza, que a gente não tinha telefone aqui, e só ela que tinha celular, liguei pra ela e falei: “Tereza, você sabe se o baiano tá em casa?”. Ela: “Eu tou vendo uma bunda ali, tá parecendo a dele”. E subiu com o celular já. Chegou e passou o celular pra ele, eu: “Baiano, que dia você vem me buscar?”. Ele: “O cara aí não vai pegar a gente com uma espingarda, não?”. Eu falei: “Se esse tampinha inventar alguma coisa aqui, eu dou um chute lá naquele lugar dele” (riso).

P/1 – Quem é o baiano?

R – Era o marido da minha irmã na época. Ele falou assim: “Eu só vou regular os freios do caminhão e tou indo”. Tava fazendo um mês certinho que eu tinha ido.

P/1 – Agora vamos voltar quando você veio pra cá. Onde você chegou aqui em Brasília?

R – Eu cheguei em Sobradinho, fiquei acho que um ano e meio, mais ou menos, em Sobradinho.

P/1 – Sobradinho I ou II?

R – Sobradinho I, o II não existia ainda. Daí a gente veio pra essa chácara da Ciplan. Foi nessa chácara que os meus filhos cresceram.

P/1 – Só uma coisa, os seus pais também vieram nessa época?

R – Vieram. Veio a família toda, meus irmãos. Só um que já era casado, tava fora, mas os outros vieram tudo. Meus pais faleceram morando em Planaltina de Goiás.

P/1 – Agora, veio a família toda pra essa chácara?

R – Não. Só eu com o marido e as crianças.

P/1 – E por que vocês escolheram esse lugar?

R – Por que ele trabalhava na Ciplan e eles precisavam de alguém pra cuidar da chácara, então ele foi pra lá cuidar dessa chácara. Aí fazia horta, engordava porco, o serviço dele lá era esse.

P/1 – Antes você foi pra Planaltina?

R – Sobradinho.

P/1 – Sobradinho. Os seus pais, Planaltina.

R – Não. Os meus pais moraram em Sobradinho também, depois que eles foram pra Planaltina de Goiás.

P/1 – E de Sobradinho, depois que seu marido foi pra chácara da Ciplan?

R – De Sobradinho eu vim pra cá e nunca mais saí.

P/1 – Essa chácara é próxima?

R – É. Daqui lá não dá nem um quilômetro.

P/2 – Em que ano você veio pra Fercal?

R – Olha, eu acredito que foi 78... Acho que 90, por aí.

P/2 – Em 90?

R – É, porque quando eu vim pra Brasília, a Leila tinha 11 meses. Eu fiquei um ano e meio lá em Sobradinho, ela nasceu em 78.

P/1 – Ah, 80.

P/2 – Veio em 80 pra cá.

R – É.

P/2 – Foi 80 ou 90?

R – Não, 80 e... Acho que 82, por aí, que eu vim pra Fercal. Aqui já tem mais de 30 anos que eu moro aqui.

P/1 – Então conta pra gente, você foi morar nessa chácara, e lá você disse que criou seus filhos, e como você chegou aqui nessa casa?

R – Aqui essa casa foi mais uma bênção de Deus na minha vida, porque quando eu cheguei lá, eu saí de lá de Sobradinho atormentada, porque você é criada na roça, é de uma maneira bem diferente. Então a dona do barraco lá, que era um quarto só que eu morava, ela prejudicou muito a minha vida lá. Quando eu comprei a máquina a motor, ela desligava a luz pra que eu não costurasse. Aí ele teve essa proposta de vir pra chácara, aí ele falou: “Mas lá não tem luz”. Eu falei: “Vamos comprar um pedal e colocar na máquina”. E eu mudei pra essa chácara fazendo 30 vestidos pra uma pessoa que vendia roupa lá na torre por semana. Trinta e dois vestidos por semana no pedal. O dia que eu cheguei a essa chácara, eu dobrei o meu joelho no meio da sala e falei assim: “Senhor, eu quero sair daqui pra minha casa”. Aí comecei a fazer uma poupança. A vizinha aqui chegou lá em casa um dia e falou assim: “Seu Gerson tá vendendo um lote, e você vai comprar um”. Quando falaram pra ele, nada pra ele tinha jeito, foi o marido da minha irmã que chegou lá e falou assim: “Olha, eu vou comprar, mas eu vou comprar se você comprar também”. Ele falou assim: “Mas não tem jeito, eu não ganho que dá pra isso”. Ele falou assim: “Não, eu pago pra você” – que ele só vende à vista – “eu pago pra você e você me paga parcelado” “Mas não tem jeito, o que eu ganho não dá”. E tava um sentado aqui, o outro aqui, eu sentada num banquinho bem baixinho, e os dois me ignorando ali, como se eu nem existisse, conversando em cima de mim e sem ninguém me perguntar nada. Aí eu levantei no meio dos dois, olhei na cara de um e do outro, aí eu falei com o meu cunhado: “Você paga pra eu te pagar parcelado?”. Ele: “Ah, eu tou falando com o Dima, mas nada pra ele tem jeito”. Eu falei: “Não tou falando do Dima, eu tou falando de mim. Você faz isso por mim?”. Ele: “Uai” – assim meio assustado – “faço”. Ele não sabia nem que eu tinha dinheiro na poupança. Eu falei: “Então vamos lá ver o lote”. Aí a gente veio ver o lote, eu falei: “Vamos comprar o lote”. Comprei esse lote, que era pra eu pagar de três vezes, eu paguei de três vezes. Foi 30 mil na época, eu dei 20 mil a ele de uma vez, que já tava na poupança, e ele falou assim: “Daqui 30 dias você me dá os cinco, e daqui mais 60 você me dá os outros cinco”. Aí com 15 dias eu dei os cinco, e com 60 eu terminei de pagar. Aí comecei, fiz outra poupança pra comprar as telhas. Não sei por que eu pensei primeiro na telha, sendo que a casa precisa de outras coisas primeiro (risos).

P/1 – Você queria um teto, né?

R – Eu queria um teto pra eu morar. Eu falei assim com ele, falei: “Tá bom, agora você tira o cimento e o pó de brita”. Pra fazer aqueles blocos, que ela é levantada com aqueles blocos de cimento.

P/1 – Falou pra quem?

R – Para o marido, que nessa época ainda tinha. Aí ele fez isso. Eu falei assim: “Bom, aí vai vir descontado no seu pagamento e eu vou cobrindo a despesa”. Foi aí que eu comecei... Eu já tinha pagado o terreno e comecei a juntar, a comprar material daqui, dali. Ganhei tanto que tem vitrô de um jeito, vitrô de outro, mas tou dentro da minha casa feliz da vida, porque isso aqui é um presente de Deus pra mim.

P/1 – E é boa, né? Gostosa.

R – Assim, não é a casa, porque não é uma casa bem feita, porque eu não tive condições de fazer aquela casa bem feita, mas eu me sinto muito bem dentro dela, e todo mundo que é acolhido por mim aqui também acha que a minha casa tem muita paz, que é um lugar gostoso de ficar. Tem muitas pessoas que chegam aqui e falam assim: “Ah, mas é tão gostoso aqui”. Eu falo assim: “Porque Deus mora aqui, então onde ele tá, tudo é paz”.

P/1 – E, Rosária, você conseguiu mudar pra cá em quanto tempo mais ou menos?

R – Pra construir aqui? Eu acho que uns dois anos. É, porque quando a gente começou, botou fechado, daí ele foi demitido da fábrica, tinha que desocupar a chácara, aí a gente veio pra cá, eu não tinha dinheiro pra pintar a casa, arrumei dinheiro emprestado. Eu mesma que pintei. Até hoje eu que pinto. Quando as paredes não estão muito boas, eu compro uma lata de tinta, pego um rolo e mando ver.

P/1 – E ficaram aqui ainda um tempo até que se separaram?

R – Ele ainda ficou um tempo comigo nessa casa quando a gente se separou. O povo disse que eu tinha esperado ele construir e tinha sentado o pé na bunda dele. Eu falei: “Só quem me conhece sabe que eu é que tava na frente da construção”. Ele me ajudou, mas quem fez tudo, quem comprou o terreno, quem comprou o material todo fui eu. E, assim, tudo da máquina de costura. Quando eu morava nessa chácara, que eu fazia esses 32 vestidos por semana, no sábado eu tava levando oito lá na torre Entregava a ela em Sobradinho os 22, aí ia levar... Ou 24, assim, quanto mais eu fizesse, melhor ela achava. Hoje ela mulher sumiu da minha vista, não sei aonde ela foi, mas assim, eu devo a Deus e a ela, porque foi graças a esse serviço que eu a mulher vendia roupa lá na torre que eu consegui tirar dinheiro pra ter a minha casa, porque isso aqui pra mim é meu paraíso, é meu cantinho.

P/1 – Mas você falou que tava levando vestido pra ela, os 26 vestidos?

R – Eu levava 22 na quinta-feira, aí completava na sexta-feira, e sábado até meio-dia. Sábado eu ia levar os outros pra ela. Era assim, 30, 32 por semana que eu fazia pra ela, e na máquina de pedal e com luz de lamparina. E eu trabalhava das sete da manhã a uma da madrugada nessa época que eu construí a minha casa.

P/1 – Então foi uma vitória, né, Rosária?

R – Foi. Eu não tenho consciência pesada de que ele fez casa. Não, ele não fez, ele me ajudou a fazer. E os meninos ficaram tudo comigo, eles quiseram ficar comigo, foi uma preferência deles. E depois que ele saiu, eu comprei o meu carrinho velho, mas comprei e paguei. Tirei a minha habilitação. Eu falei, eu já não dependia muito de ninguém, agora eu quero depender menos ainda.

P/1 – Rosária, quando você chegou aqui, como era esse lugar?

R – Não tinha quase ninguém. Tinha a Tereza ali, com o padre Osvaldo aqui do lado, a mãe Tina lá na beira do asfalto, e a pessoa que me incentivou a comprar o terreno aqui, que mora nessa chácara aqui do lado, que ela até já faleceu também. Então foi desse jeito que eu cheguei aqui.

P/1 – E ao redor, você lembra se era muito diferente?

R – Não, não tinha casa, era morro, barranco, aí o povo foi acertando e construindo. E estão esbarrancado e construindo até hoje. Mas sou eu, a minha irmã, Tereza, foi assim dos que chegou, a não ser a mãe Tina, que já tava. João da Mata também já existia aqui quando a gente chegou, a Dona Nega, que hoje é Caldeirão da Serra, não tinha muita gente aqui. Depois que a gente veio pra cá é que aumentou bastante o povo aqui.

P/1 – E tinha luz?

R – Não. Quem colocou luz pra gente aqui... Primeiro, o Zé Aparecido veio, tirou a luz de quem não tinha documento dos terrenos. Aí o Joaquim Roriz veio e arrumou luz pra nós. Aquele lá sim, a gente deve! Porque ele trouxe telefone, trouxe luz pra gente, trouxe água. Então tudo foi vitória na vida da gente.

P/1 – Mas pra ele trazer teve alguma situação que fez até chegar de ele trazer?

R – Na política, a gente tava ali atrás, acompanhando, ajudando. Quando ele se tornou governador, ele foi um governador que depois de eleito veio aqui a nossa comunidade apertar nossas mãos de novo. E aí falou para o pessoal do centro comunitário que o que a comunidade aqui estivesse precisando, que fosse prioridade, que ele queria por escrito lá no gabinete dele, com parte dos diretores da comunidade. Isso foi feito e ele cumpriu. O que ele falou que ia fazer, ele fez.

P/1 – E você convivia com o pessoal da associação, Rosária?

R – Eu fui até vice-presidente lá.

P/1 – E como era essa participação? O que vocês faziam?

R – A gente buscava. A gente queria que essas coisas que a gente conseguiu, a gente queria que viesse melhoria pra cá. A gente queria não, a gente ainda quer mais. A gente quer uma rua ali, pelo menos calçada, porque a nossa ainda não é. A gente ainda quer isso. A gente lutava por isso. Enquanto tinha bons presidentes, era muito bom. Só que depois o pessoal achou que ser presidente de comunidade era ganhar dinheiro, e não é! É buscar as coisas pra beneficiar todo mundo. Depois que ficou assim, entrou um presidente que deixou uma conta de luz um rombo, depois entrou outro que até o padrão de lá foi arrancado. Então tem um belo de um galpão ali, mas nem luz lá tem por causa de má administração. Porque é o único nome que eu dou pra isso. Depois que as pessoas que trabalhavam direto deixaram... Quando Tereza era presidente ali, aqui era um lugar que se tivessem as mesmas pessoas que têm hoje, era melhor ainda, porque na época que ela lutava não tinha nem ninguém aqui. Então as pessoas chegaram aqui sem água, sem luz, sem telefone, e foi lutando com um bom governador, a gente conseguiu. E na época a Fercal também não tinha administração, porque faz pouco tempo que ela tem administração. Então era difícil correr atrás por isso.

P/1 – Que tinha que ir direto no governador?

R – Tinha que ir direto nele. E pra ir nele, tinha que ser os presidentes de associação, senão não chegava. Eu me lembro de um rapaz ali que a gente tava lá no palácio, aí fiquei assim olhando a estátua do Juscelino, ele virou assim pra mim: “Uma vez por mês eles a tiram dali”. Eu: “Por quê? Ela nem vai ao banheiro e nem toma banho”. Ele falou assim: “Ave Maria, a sua resposta veio na ponta da língua”. Eu: “Que papo mais besta vocês tirarem a estátua dali. Pra quê?”. Nessa época do Roriz era muito bom, viu? Roriz fez muita coisa boa não só pela Fercal, mas assim, eu acho que quem mais trouxe benefício pra Fercal foi Roriz. E pra Brasília também ele fez muita coisa boa.

P/1 – Ele fazia a partir desse movimento de vocês?

R – É, a gente pedia e ele ajudava. E na campanha a gente também tava ali ajudando. Eu saía atrás da Tereza. Onde a Tereza ia, eu tava atrás. Eu e às vezes as duas meninas, porque os meninos nunca foram de política, não. Mas as duas meninas, às vezes só a maior. Porque a minha filha maior, ela é uma pessoa assim que você precisa de ver que menina incrível ela é.

P/1 –

Por que, Rosária?

R – Assim, eu chamo de incrível aquelas pessoas que correm atrás, que vão à luta. Você vê, filha de uma costureira, que separou do pai ela ainda era uma adolescente, era uma menina novinha ainda, ela correu, fez a primeira faculdade, depois chegou pra mim e disse: “Mãe, não tou satisfeita, não quero ser professora, eu vou correr atrás, eu vou fazer outra faculdade, eu quero ganhar melhor”. Foi e fez uma faculdade de secretária executiva bilíngue. Então, assim, é minha filha e eu admiro muito a coragem dela. Ela enfrentou uma gravidez lá no Conselho do Negro com a Tereza, uma gravidez de alto risco, e trabalhava fora, e fazia faculdade, tudo ao mesmo tempo. Foi uma vida puxada. Então eu sou admiradora dessas mulheres que vão à luta.

Não acho engraçado essas mulheres que ficam esperando tudo que o marido traz, não. Mulher tem que correr atrás também. Hoje se for pra eu estar com uma pessoa é porque eu quero estar, não porque ele vai me sustentar. Eu quero andar com as minhas próprias pernas.

P/1 – Muito bem. Tereza, quer perguntar alguma coisa? Que nós já vamos terminar.

P/2 – Qual o seu sonho? Porque a gente nunca deixa de sonhar, a gente sempre quer mais.

R – Posso falar mesmo qual o meu sonho?

P/2 – Então qual o seu sonho? Você ainda é muito nova, muito jovem, uma pessoa bastante otimista, positiva. Qual o seu sonho daqui pra frente?

R – Meu sonho era ter um carro novo, mas como eu não dou conta de comprar um carro novo, me deixa ficar com o meu velhinho ali mesmo (risos). Assim, vida conjugal, hoje eu já perdi muito a esperança, porque depois de tantas decepções a gente fica meio desiludida.

P/2 – Do que você falou, ficou alguma coisa que você gostaria de acrescentar na entrevista?

R – Acho que eu falei tudo que eu lembrei. Acho que eu falei até demais! Ela não cochilou (risos).

P/1 – Você quer deixar alguma coisa gravada ainda da sua vida?

P/2 – Uma mensagem?

R – Eu quero que todas as mulheres segurem na mão de Deus e de Nossa Senhora, porque eu sou católica, e que siga em frente com o pensamento positivo, sonhando e conquistando tudo aquilo que elas desejarem.

P/1 – Muito bom. Então a gente tá terminando, muito obrigada pela sua história.

R – Eu que agradeço por poder participar.

P/1 – Muito bom.

P/2 – E pra gente é uma honra ter assim gravado a experiência de uma mulher que acabou de colocar pra gente a sua luta, e através da sua luta você venceu. Isso é um grande incentivo pra todas as mulheres.

R – E assim, ainda fui uma pessoa que não tive estudo, porque a quinta série não é nada.

P/2 – Porque às vezes as mulheres pensam que por serem mulheres, elas não conseguem vencer, mas depende da vontade de Deus e acreditar em si mesmo.

R – Eu só penso assim quando eu tou doente. Igual agora com a dengue, teve um dia que eu deitei e não tava conseguindo dormir, aí eu falei assim: “Senhor, se eu for morrer, me perdoe por todos os meus pecados, que eu não sei se eu aguento mais, não, tá doendo demais, tá doendo tudo” (riso). Isso já é um pensamento de desistência, né? Eu não gosto de pensar negativo, eu gosto de pensar assim bem positivo. Eu gosto “mas eu dou conta, uai, eu consigo”. Eu comprei uma mesinha lá em Brasilinha um dia, o cara falou: “Ah, precisa de um homem pra montar isso aqui pra senhora”. Eu: “E quem falou pra você que precisa de um homem pra montar isso aqui? Tá desfazendo de mim, é?” (risos). Ele: “Não, eu só achei que pra um homem era mais fácil”. Eu falei: “Pois eu vou montar isso aqui”. Mas montei mesmo. É a mesinha que tá lá na sala até hoje.

P/2 – Muito bem.

R – Eu não sou mulher de desistir. Eu desisti de andar a cavalo, porque eu era muito mole (riso). Levei umas quedas boas de cavalo quando eu era criança, mais a minha irmã, um dia eu caí, caí e a derrubei também. Eu tava na garupa, fui segurar nela, fui descendo assim, caí e a puxei. Aí foi aquele monte de menina lá no chão. E o pior que era uma égua e a égua mijou nela, mas ela ficou brava demais (riso). Foi assim uma vidinha bem difícil lá nas fazendas que a gente viveu. Foi bem difícil, viu? Eu digo que hoje eu tenho uma vida de rico, que eu fui criada de pés no chão, não tinha calçado pra calçar, não tinha roupa pra vestir, não tinha nada. Tinha dia que na casa do meu pai que não tinha nem sal pra comer. Eu fui criada assim de pé no chão mesmo. Então tudo que eu conquistei... Um dia eu falei para o meu ex-marido, para o meu pai e pra minha mãe, botei o dedo no nariz de cada um deles e falei: “Não devo nada pra você, nem pra você, nem pra você, porque vocês não me ajudaram em nada. Tudo que eu conquistei, que eu consegui, foi com a ajuda de Deus”. Eu tive que viver e sofrer pra aprender. E, assim, não fiquei triste com isso. Eu acho que hoje eu vivo uma vida de princesa, eu tenho água dentro de casa, eu tenho televisão, eu tenho telefone, eu tenho uma caminha quentinha pra eu dormir. Porque não tinha. Eu fui criada, pra você ver, meu pai vendeu foi 40 alqueires de terra e criou os filhos nessa situação. Ele tinha irmão fazendeiro que tirava leite lá em Vazante e levava pra Quatá lá. Inclusive eu tenho primo que faz isso ainda, que eles têm caminhão já com ar-condicionado e levam. Mas assim, meu pai não fez questão, que a minha mãe disse que ele falava assim: “Eu não vou fazer fortuna pra ninguém brigar depois por causa disso”. Vendeu tudo. E quando ele morreu, ele morava no fundo da casa do meu irmão. Morava de favor na casa de um filho.

P/1 – Foi uma vitória mesmo, né, Rosária? Parabéns.

R – Por isso que a doutora Ana falou pra mim. Hoje foi aniversário do meu genro, aí eu liguei pra ele, ele falou assim: “Olha, dona Rosária, a senhora sabe que a senhora é a segunda mãe pra mim. E hoje eu me lembro muito dos meus pais, porque nesse dia eles não esqueciam nunca de me ligar. E hoje a senhora me ligando assim, a senhora sabe que todo dia está nas minhas orações, a senhora é uma segunda mãe pra mim”. Então isso assim, ele disse que nesse dia ele faz um replay da vida dele. Eu falei: “Tem dia que eu paro também e penso em tudo que aconteceu, em como eu fui criada”. O primeiro sapato que eu ganhei, eu tinha uns oito anos, eu ia à festa, o calçava nos dedinhos, porque se eu botasse no pé, o pé machucava, porque não era acostumada a calçar. Eu andava em cima das pedras, naquelas estradas de chão cheias de pedra, e o sapatinho no dedo, porque eu não conseguia calçar. Eu ia pra festa e esquecia que tinha sapato. Chegava lá, eu via as meninas de sapato, eu: “Uai, eu tenho um também. Esqueci lá em casa”. Pra você ver d onde eu vim. E assim, hoje tenho minha casa pra morar, meu carrinho é velho, mas eu tou satisfeita.

P/1 – Parabéns, foi uma grande vitória. Obrigada mais uma vez, viu, Rosária?


FINAL DA ENTREVISTA