“É cediço afirmar-se que a mulher não tem propensão para compor músicas. Costuma contarem-se nos dedos os nomes das mulheres compositoras. E a muita gente se afigura que nenhuma houve de real mérito. Será verdadeira a assertiva? Terão as mulheres ojeriza à criação musical (......Continuar leitura
“É cediço afirmar-se que a mulher não tem propensão para compor músicas. Costuma contarem-se nos dedos os nomes das mulheres compositoras. E a muita gente se afigura que nenhuma houve de real mérito. Será verdadeira a assertiva? Terão as mulheres ojeriza à criação musical (...)?”
Marina Moura Peixoto foi uma mulher à frente do seu tempo. Saiu em defesa da mulher na arte musical quando o movimento feminista ainda engatinhava no País. Em dois artigos virulentos, mas sem jamais perder a ternura, estampados em 1957 no “Diário de Notícias”, passeou pela História lembrando as grandes compositoras que marcaram época. Ressaltou o preconceito que atingia então o considerado sexo frágil, alfinetando, com firmeza, em seu texto: “É voz geral que não temos queda para a composição, motivo porque dificilmente os programas musicais aludem à mulher criadora”.
Pianista carioca que encantou o Brasil, Marina Moura Peixoto (1917 – 1975) relembrou o “desprezo público” que sempre cercou as mulheres compositoras, destacando a inglesa Ethel Smyth entre aquelas pioneiras que escreveram música toda a vida, lutando por conseguir para as criadoras musicais um lugar ao sol, equiparando-a, no particular, ao sexo masculino.
A PIONEIRA SANTA CECÍLIA
Marina, dotada de cultura e competência musical invulgar – aos três anos e meio já surpreendia plateias dedilhando as primeiras notas ao piano – pesquisou livros para situar Santa Cecília, há quase dois mil anos, entre as primeiras compositoras de todo o mundo. “Dizem que só em música a Deus se dirigia... E se nenhum documento comprobatório tenha sido exibido em favor dessa atividade, é incontestável que dela fizeram a padroeira da música” – contou no primeiro artigo sobre a mulher na composição musical, em 22 de setembro de 1957, publicado no “Diário de Notícias”, um dos mais importantes do Rio de Janeiro, então a Capital Federal.
NA ITÁLIA RENASCENTISTA
Mulheres de todos os continentes, que encontraram na composição de músicas a expressão de sua arte, foram também citadas por Marina Moura Peixoto. No século 16, encontrou duas madrigalistas eméritas. Em Veneza, na Itália, Maddalena Mezari, chamada Casulana, e em Ferrara, Vittoria Alleoti, freira da Ordem de São Vito.
No século 17, discorreu Marina, ainda na Itália, avultaram Francesca Caccini, Isabella Leonarda, Maria Francesca Nascimbeni, Barbara Strozzi e Maria Caterina Galegari. Em sua narrativa, Marina esclareceu que Francesca Caccini pertencia, como o pai, à Camerata Fiorentina, sendo ainda cravista, alaudista, guitarrista, cantora e compositora, nos deixando cantatas sacras e seculares, dois bailados e uma ópera.
AS COMPOSITORAS FRANCESAS
Marina Moura Peixoto percorreu séculos, países, sempre em busca de mulheres que abrilhantaram a composição musical. Num giro pela França, localizou quase meia centena de compositoras. Pela escassez de espaço, centralizou-se em Élisabeth Jacquet de la Guerre, protegida de Madame de Montespan e muito elogiada na corte de Luís 14. Harpista e improvisadora, ela produziu uma ópera, sonatas, cantatas, bailado, pastorais. E também falou, nessa mesma época, de Amélie Julie Candeille, atriz, cantora, pianista e harpista, que escreveu duas óperas – a mais notável é “A Bela Arrendatária”.
Em nível internacional enfocou atenção em Lili Boulanger, a primeira mulher a conquistar o Grand Prix de Rome de Música, em 1913 - então a mais importante premiação nessa área - dividindo o primeiro lugar com Claude Delvincourt, um compositor, fato inédito – neste ano concederam-se dois principais prêmios.
É Marina quem conta: “Com a cantata ‘Fausto e Helena’, Lili, aos 19 anos, demonstrou que a mulher podia emular-se ao homem na arte de compor. Seu organismo frágil, doentio, levou-a depressa à morte, em 1918. É pena, pois dizem os entendidos, nunca houve mulher de igual talento criador em música”.
NA AMÉRICA LATINA
Depois de buscar, em longa pesquisa, nomes femininos de destaque na composição musical também na Alemanha, Inglaterra, Áustria e Rússia, centrou sua atenção final nas mulheres da América Latina que engrandeceram o continente com sua arte. Apontou, então, Carmela Mackenna e Maria Luisa Sepúlveda, no Chile; Célia Torra, Irma Williams e Isabel Aretz-Thiels, na Argentina. Em Cuba, referiu-se a Virginia Fleites, Gisela Hernandez e Esther Rodrigues – as três pertenciam ao Grupo de Renovação Musical. Na então República do Salvador, lembrou Maria de Barata.
E agora, já no Brasil, deu ênfase a Helza Camêu – “Suíte opus 9”, “Quadro Sinfônico”, além do poema sinfônico “Terra de Sol”. Falou de Dinorá de Carvalho – “Fantasia para Piano e Orquestra” – e de Eunice Catunda – ópera para títeres “Negrinhos do Pastoreio”. E mencionou ainda - sempre lembrando ser impossível enumerar todas as outras grandes compositoras -, Nadile de Barros
Marcarian, que compôs peças para piano, violino e violoncelo, além de poema sinfônico para piano e orquestra, e cantata para solos, coros e orquestras.
OS ELOGIOS DA CRÍTICA
Conclusivamente, ao término de sua argumentação, Marina Moura Peixoto afirmou: “Exceto manifesta má vontade, não dá mais para afiançar que a mulher, além de intérprete genial, não ultrapassa em música o papel secundário de inspiradora de obras-primas. Ela é também uma voraz criadora”.
As matérias de Marina no “Diário de Notícias” valeram calorosos elogios dos críticos da época. Um dos mais destacados, Octavio Bevilacqua, em “O Globo na Música”, em 3 de outubro de 1957, referiu-se assim aos artigos que ela publicara: “Não é novidade para nós o valor musicológico de Marina Moura Peixoto (...).
Agora, porém, sua erudição sai a campo na defesa, ou melhor, contra preconceitos que consideram a mulher pouco apta para a criação musical... De tanto conjeturar o assunto, Marina pôs-se em campo e apresenta trabalho de tipo e vulto que não conhecemos outro sobre o caso”.
Marina Moura Peixoto escreveu ainda outros textos, especialmente para o jornal “Diário de Notícias”, como “O Saxofone e a Música Erudita” (julho de 1957) e “Oratório do Natal de J. S. Bach” (dezembro de 1960), obtendo sempre o louvor da crítica especializada.
PRA-2 E DITADURA
No coração inquieto e ardente de Marina, que encerrou a carreira pianística (iniciada aos três anos e meio de idade, precocemente) depois do casamento, em 1945, com o médico, radialista e jornalista Perilo Galvão Peixoto (1913 – 2002) e o nascimento dos filhos Fernando José (1946), e Teresa Cristina (1951), ainda sobrou espaço para abrigar e proteger os amigos.
Na antiga Rádio Ministério da Educação e Cultura desde 1942 - onde organizava os programas “Atendendo Aos Ouvintes”, “Em Resposta A Sua Carta”, “Música de Todos os Tempos”, “Música, Apenas Música” e “Quartetos” -, foi a principal testemunha de defesa, no início dos anos de chumbo (a ditadura militar de 1964), do jovem Hermínio Bello de Carvalho, produtor musical e compositor, e da professora Maria Yedda Leite Linhares, diretora da emissora havia apenas oito meses.
Ambos foram acusados de subversão, quando, em abril de 1964,
Eremildo Luiz Vianna, professor da Faculdade Nacional de Filosofia, de arma em punho e acompanhado de asseclas - estudantes e truculentos policiais - tomou de assalto a Rádio MEC (como primeira medida, proibiu a transmissão de músicas de autores russos, além de mandar espionar os funcionários, com seus sequazes usando “walkie-talkies”, esgueirando-se pelos corredores e sussurrando informações, sigilosamente, em inglês).
A aguerrida Marina saiu em defesa dos colegas. Intimada, compareceu diversas vezes ao DOPS (sempre com o marido Perilo Galvão Peixoto), o departamento de ordem política da ditadura militar que se implantava no País. Hermínio Bello de Carvalho e Maria Yedda Linhares acabaram sendo absolvidos por falta de provas – para decepção de alguns radialistas da MEC francamente favoráveis ao golpe e ao regime de exceção (os poucos que sobreviveram ao tempo posam hoje de bons velhinhos, agrupados em sinecurismo, a soar mal, numa ONG).
A VOLTA AO PIANO
Em represália ao ato de solidariedade, Marina Moura Peixoto foi afastada do cargo de chefia do setor musical, e deslocada para a função de músico da emissora. Após 20 anos de inatividade, passou a acompanhar a soprano Leda Coelho de Freitas - uma grande amiga -, gravando também com Maria de Lourdes Cruz Lopes e Dircea de Amorim, recitalistas da casa, entre outras.
A paixão pelo piano sempre calou forte no peito de Marina. Acostumada a divulgar a música de classe, ela enfrentou mais este desafio, em missão hercúlea, preparando-se exaustivamente por dois meses. O longo período passado longe dos teclados lhe provocava fortes dores nos dedos, punhos e cotovelos, depois dos ensaios. À noite, colocava as mãos em uma bacia com água morna para aliviar as dores. Os filhos Fernando José, em casa, e Teresa Cristina, nos estúdios da Rádio MEC, se revezavam na tarefa de virar as páginas das partituras enquanto a mãe tocava.
FIM PREMATURO
O jornalista Antonio Castigliola (1951 – 2010) - coautor deste texto - escreveu, em 2005, que “Marina tocava e encantava. Até que, em 26 de fevereiro de 1975, tocada pela morte, aos 57 anos, uma sinfonia de dor e saudade se abateu sobre todos - uma legião de fãs que amealhou ao longo de sua existência, onde a arte era sua marca registrada. Viveu com intensidade e desassombro tudo o que lhe ditava o coração de mulher adiante do seu tempo. Marina Moura Peixoto, uma mulher de todos os tempos, uma artista de todos nós”.
Em memória à pianista, celebrou-se a Missa de Réquiem, no dia 6 de março de 1975, uma manhã de quinta-feira, na Igreja N.S. da Paz, em Ipanema (a mesma do seu matrimônio religioso trinta anos antes, em 1945). E “Perilo Galvão Peixoto, Teresa Cristina e Fernando José de Moura Peixoto, ainda lancinados de dor, agradeceram comovidos a quantos a eles se solidarizaram no desaparecimento de sua angelical MARINA”. A consagrada soprano Leda Coelho de Freitas, recitalista da Rádio Ministério da Educação e Cultura, homenageou a colega e amiga, cantando no coro alto durante toda a belíssima cerimônia litúrgica.
No entender de Lúcio Cardoso (1912 – 1968), escritor, poeta, dramaturgo e jornalista, “não há morte para aqueles que não são amados, mas há uma única e que dura sempre, para os que foram muito”.
Na trilha sonora, em gravação de 19 de agosto de 1965, a pianista Marina Moura Peixoto acompanha a soprano Dircea de Amorim interpretando “Minha Marília”, modinha de Cândido Inácio da Silva (1800 – 1838).Recolher