Ainda hoje sou capaz de sentir no estômago o rangido agudo do portão de ferro se abrindo e fechando lentamente. Daí era contar nas unhas dos dedinhos da mão os cinco segundos passados em dez degraus até ver se abrir o postigo de vidro que, empurrado abruptamente, batia na parede lateral e volta...Continuar leitura
Ainda hoje sou capaz de sentir no estômago o rangido agudo do portão de ferro se abrindo e fechando lentamente. Daí era contar nas unhas dos dedinhos da mão os cinco segundos passados em dez degraus até ver se abrir o postigo de vidro que, empurrado abruptamente, batia na parede lateral e voltava moroso, tremendo, deixando espaço para que entre as grades surgisse uma mão obstinada em fazer girar o trinco, aquele trinco engastalhado que dificultava a entrada da rua em nossa casa.
Tento localizar no espaço aquela criança de 5 anos que eu era e me vejo sentada sobre o tapete, no centro da sala. Já agora demovida da TV, estou suspensa por um estado de vigilância e reverência. Nem bem a porta se abre e, num quase furor, rompo com aquela espera e me atiro contra umas pernas, deixando cair a cabeça atrás para ver a alegria se espremendo naqueles olhos miúdos lá no alto. E eu sabia que o dono dos olhos se abaixaria para se juntar a mim em beijos e risos e abraços impregnados de uma rotina que eu aspirava –fuligem, fumaça, asfalto, era um cheiro inteiro de rua bem cravado no peito fardado. Dali, eu saía levada por seus passos firmes até o quarto, o quarto dele, lugar mais urgente da casa a ser cumprimentado depois de mim. E era ali, com o meu pai já bem acomodado à beira da cama, que reescrevíamos o nosso roteiro.
Estou de novo ao chão, sentada diante dos coturnos lustrados que espelham o corredor atrás de mim. Calmamente, desfaço nós e laços, desamarro cadarços, esgarço. Desse lugar onde me encontro, posso ver a cabeça daquele gigante quase tocar o teto. Observo seu ritual de usar apenas dois dedos para puxar a gaveta do criado-mudo, coisa de quem sabe tratar bem das coisas delicadas, e de lá retirar um canivete, um pedaço de fumo de corda e retângulos de palha de milho. É a hora exata em que um odor amadeirado, úmido e agridoce começa a tomar conta do nosso ar, que aos poucos me invade, me irrita as narinas e vai logo ressoar dentro da minha cabeça, causando uma leve tontura.
Assoviando canções de outros homens, meu pai picava o fumo sobre a cova de uma das mãos, num sossego próprio de quem contemplava paragens nada urbanas. Minha insistência em descalçar seus pés puxando pelas botas causavam nele um riso frouxo, e meu cansaço nos relaxava. Rendida, eu me suspendia do chão e ia parar ao seu lado, sobre a cama, aguardando receber no colo uma tarefa mais pura e artesanal.
Amacio e dou forma cilíndrica à folha de palha, acomodando em sua parte côncava uma fileira generosa de fumo bem picado. Mais forte, aquele aroma me causa uma fisgada em uma das têmporas. Dou atenção à textura da palha entre os meus dedos enquanto a enrolo firme e suavemente até alcançar a outra extremidade, que umedeço levemente, de fora a fora, com a ponta língua, selando um fino cigarro.
Desde aquela idade, mais de trinta anos se passaram. Recentemente instalada em um novo apartamento, preparei a mesa com bolo de padaria e café de cafeteira elétrica para a visita do meu pai. Um lapso eu não me dar conta de que, para um senhor de 83 anos, sedentário e bem acima do peso, meros três lances de escadas se transformariam na escalada do Pico do Jaraguá.
Acomodei meu monstro frágil e esbaforido sobre o sofá, cuidando para que suas pernas repousassem logo sobre o pufe. Preferi me sentar ao chão para rapidamente livrá-lo dos sapatos e apressar seu merecido descanso, observando com atenção a regularidade de sua respiração. Já mais calmos e quase esquecidos de sua grande aventura até ali, os olhos do meu pai se puseram a passear a sala procurando outros confortos. Notei sua atenção se deter por segundos a mais na mesa ao seu lado, onde eu havia deixado algumas fotos recém-ampliadas, o carregador de celular e, ainda, ainda, algumas folhas soltas de papel de seda.
Vejo meu pai estender a mão até a mesa, alcançar um papel e, com testa franzida e uma sobrancelha torcida, começar a amaciá-lo entre os dedos. Baixando a cabeça, estremeço, prendo a mandíbula, tento em vão pensar em um assunto que o distraia daquela descoberta. Volto a respirar, encho o peito de coragem e, no exato instante em que me volto para o seu rosto, sinto no ar o tom da pergunta: “tem fumo de corda aqui, Su?”.Recolher