Quando se enxerga pouco, a vida tem um sabor diferente. As dúvidas são constantes, bem como a insegurança. São coisas crescentes, que não se vê o fim e, ao mesmo tempo, nasce alguma coisa especial: a teimosia.
Eu nasci enxergando muito pouco, tudo era distante, complicado. Eu me sentia diferen...Continuar leitura
Quando se enxerga pouco, a vida tem um sabor diferente. As dúvidas são constantes, bem como a insegurança. São coisas crescentes, que não se vê o fim e, ao mesmo tempo, nasce alguma coisa especial: a teimosia.
Eu nasci enxergando muito pouco, tudo era distante, complicado. Eu me sentia diferente, sem coragem para soltar o corpo, sem jeito de andar na rua sem dar a mão para o pai ou para a mãe. Ah Nem pensar em andar sem ser de mãos dadas. Um dia, saindo de casa com o meu pai e o meu irmão, na rua Dom Duarte Leopoldo, não sei a razão, meu pai dizia: “não quero dar a mão, não quero dar a mão”. Com certeza, foi um dos dias mais difíceis da minha infância.
Mas aí resolveram me levar ao oculista.
Quanta sabedoria implícita nessa atitude Um oculista Confesso que eu não sabia o que era isso, mas achava tudo uma grande babaquice: as observações, as perguntas... Fiquei o tempo todo balançando a perna esquerda pra lá e pra cá e acabei tendo que tomar o meu primeiro calmante – que, aliás, tinha gosto de dor de ouvido. Para confortar minha alma, a minha mãe me dava um golinho de soda Antarctica depois.
Nunca mais tomei esse refrigerante, porque achei que ele também tinha gosto de dor de ouvido.
Chegou o grande dia – fomos à ótica encomendar os óculos Foi um verdadeiro cerimonial. Meu pai, todo engravatado, bem barbeado como sempre. Minha mãe, bonita e perfumada. Fomos à ótica A Especialista, na rua 24 de maio, no centro de São Paulo.
Foi aí que um intrometido resolveu dar palpite na escolha da cor da armação. Meu pai logo disse que não era para dar palpite. Eu escolhi a armação: era branca, quadradinha. Era início dos anos 1960, a armação era pesada, daquelas de fazer ferida atrás das orelhas, pesar no nariz... Mas era uma necessidade imperiosa, como o ar, como a comida. Escolhi bem. Naquele momento, acredito que comecei a escolher as cores com as quais eu passaria a enxergar o mundo, com o meu jeito, mesmo pesando nas orelhas e no nariz.
Chegamos em casa. Lá fui eu assistir televisão. Era a TV Tupi que marcava presença nas casas. Sentei e assisti. Foi ali que pude ver, que comecei a amar e a respeitar o Mário Lago, na sua infinita sabedoria e postura diante da vida. Mário Lago foi reprovado várias vezes em matemática, mas dizia que sabia mesmo era dividir. Bondoso Mário
Até hoje quando vou a São Paulo gosto de passar em frente do prédio da antiga TV Tupi.
Mas a grande questão é o que veio depois: eu tinha que fazer os chamados exercícios de vista na Clínica Santa Luzia. A clínica ficava no centro, atrás do prédio do Mappin e conheci ali o que era tortura psicológica. Aliás, complicado mesmo já era tomar o ônibus elétrico. Era uma coisa monstruosa, sempre cheio. Um dia, eu até vomitei lá dentro, tamanha era a tensão em estar me dirigindo para a clínica.
Era um local escuro, de pouquíssimas janelas, tudo cinza e sem vida. As crianças entravam numa sala escura e tínhamos que ficar olhando para um desenho na parede. A luz acendia e apagava interminavelmente. A assistente vinha periodicamente e aplicava um flash de luz nos nossos olhos... depois, outro... outro... e víamos tudo em círculos concêntricos, mas o centro deveria ser o desenho na parede. Confesso que não foi nada agradável. Sem contar a falta de educação daquelas atendentes.
Afinal, eu já estavam ficando grande. Pelo menos aos olhos dos meus pais. Fiz cinco anos e ganhei um presente de aniversário: um piano Schwartzmann novinho em folha. Compreendo o orgulho do meu pai, a satisfação da minha mãe. Afinal, era um piano que ninguém do nosso meio tinha. Eu, pequena e de óculos ainda novos, ao ver entrar aquela coisa imensa, marrom, pela sala, senti tanto medo, mas tanto medo, que precisei discutir o evento com a minha terapeuta trinta anos depois. Nossa Senhora da Acheropita O que era aquilo? Pela vontade do meu pai, eu deveria tocar como o Pedrinho Mattar. Naquele tempo eu não sabia quem era o Pedrinho Mattar. Passou o tempo e eu tive a felicidade de acompanhá-lo pela Rede Vida de Televisão no seu programa Pianíssimo. Em 2007, tive o desprazer de chorar a morte súbita do grande musicista.
(História enviada em outubro de 2007)Recolher