“Não foi nada, não, tia. Foi minha mãe que me queimou com o cigarro”. Desse jeito inocente e com um sorriso largo é que Lilica me respondeu o que era aquela cicatriz que tinha no pescoço. Fulaninha certa vez me contou que seu padrasto lhe batia até arrancar-lhe sangue do nariz. Beltraninha...Continuar leitura
“Não foi nada, não, tia. Foi minha mãe que me queimou com o cigarro”. Desse jeito inocente e com um sorriso largo é que Lilica me respondeu o que era aquela cicatriz que tinha no pescoço. Fulaninha certa vez me contou que seu padrasto lhe batia até arrancar-lhe sangue do nariz. Beltraninha tinha chegado à Casa de Passagem depois de ser resgatada pelo Conselho Tutelar às duas horas da madrugada, numa noite gelada do Rio Grande, em que as temperaturas estavam abaixo de zero. O pai estava desde a manhã anterior ziguezagueando pelos bares com ela e seus irmãos. Ela contava com seus nove aninhos de idade, o menino com onze e a menorzinha com apenas três. Perguntada, ela narrou que o pai cuidava-lhes bem, tinha lhes dado uma pastel ao meio-dia para dividir entre os três. Que era homem bom quando não estava bêbado e quando não lhes batia. O rostinho não estampava nem rancor dos maus-tratos e nem as mostras das mazelas sofridas. Somente as marcas denunciativas que as carnes traziam.
Lilica era pequena demais para tantas alegrias que aquele parquinho tímido da casa de passagem lhe garantia. Embalava-se sem parar com um sorriso fácil e que não lhe saía do rostinho, agora corado. Saía do balanço correndo agora para alcançar o topo do escorregador, que subia às avessas, não pela escada, mas pela esteira escorregadia, fazendo travessuras com seus pezinhos descalços. Açambarca-se de tudo ali como se o tempo fosse curto e tudo podia lhe ser tirado de uma para outra hora. Beltraninha mostrava-se seriamente responsável pela irmãzinha. Franzia a testa e se mostrava adulta, condição que corria perigo de ir por terra a todo minuto. A infância lhe traía porque voltava à atenção às brincadeiras que rolavam soltas entre as colegas da casa. A maturidade pretendida era anacrônica. O que se impunha eram as canseiras de tanto brincar que eram afetas a sua idade. Mas se fazia irredutível e se mantinha em pé, ao lado da pequeninha. Tratava de limpar-lhe as mãozinhas sujas de terra e de segurar-lhe para galgar os obstáculos do trepa-trepa. Lembrava-se do irmãozinho e queria saber como ele estava agora, aonde e com quem. Quisera estivesse bem cuidado e alimentado.
Estavam seguros, ao menos parecia assim. Mas sentia saudades do pai. A mãe já era morta, nem lembrava mais dela. Fulaninha era a mais lépida entre todas ali. Nasceu com um de seus bracinhos pela metade, o tinha só até o cotovelo. Mas não lhe fazia falta aquele pedacinho de braço. Qual nada porque lhe deixava mais leve que as outras. Era ágil e sem sossego. As outras se entregavam à canseira e ela ia horas ainda serelepeando pela casa. Dormir lhe parecia perda de tempo, sempre o fazia regado aos ranços e às reclamações, quase choro. Onde estão guardadas a dores de todas e que fora sofridas até ali? Tantas judiações e injustiças que quiseram tolher a inocência e a pureza daquelas infâncias. Fariam elas questão de esquecê-las ou, num faz-de-conta, deixar de sentir as tristezas causadas, cauterizando às feridas às duras penas para não querer mais lembrar? E o sono segue sereno, sem sobressaltos. E a cicatriz no pescoço de Lilica revela-se insistentemente, não é possível esconder, é inevitável recordar. Ao menos para mim, que assisto a tudo com os olhos marejados e um choro contido, quase um soluço.Recolher