Cá estou eu procurando as palavras para contar minha história e me assalta a lembrança de um livro que fala de coisas que parecem encontradas dentro de mim. É Gaston Bachelard que, em A Poética do Espaço, escreve quase que sobre mim, e certamente para mim. Este autor - que eu nem conheço tã...Continuar leitura
Cá estou eu procurando as palavras para contar minha história e me assalta a lembrança de um livro que fala de coisas que parecem encontradas dentro de mim. É Gaston Bachelard que, em A Poética do Espaço, escreve quase que sobre mim, e certamente para mim.
Este autor - que eu nem conheço tão bem, mas que me conhece profundamente - me dá a chave para esta escrita ao me soprar no ouvido: “mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços da nossa intimidade.” Estes “espaços da nossa intimidade” são nossas casas. Espaços que tentam conter, reter o tempo vivido. Vou narrar os espaços para falar do tempo.
Desde muito pequena fui apegada a minha casa de um jeito especial. E durante muitos anos – até conhecer o texto de Bachelard – eu achava que esta era apenas mais uma das minhas esquisitices. O curioso é que, diante desta relação especial que tenho com a casa, poderiam pensar que nasci e cresci no mesmo lugar e por isso me apeguei. Mas não. Não sei contar em quantas casas morei. Mudávamos muito. Tanto de casa, quanto de cidade. Resultado disso é que não me sinto nem paranaense, nem matogrossense, talvez um pouco catarinense ou também paulista. Mas não sei ao certo, depende do vento. Uma coisa que eu sempre pensava (e ainda penso) quando mudava para uma casa nova era “quando será que vou me sentir ‘em casa’ aqui?” Queria saber quando aquela sensação de casa nova e estranha iria embora. Nunca notei o tal momento, mas sempre havia uma hora em que eu me apropriava daquele lugar. Meu corpo desviava dos móveis automaticamente, eu podia acender a luz do quarto no meio da noite sem tatear metros procurando o interruptor ou andar até outro cômodo mesmo no escuro pois o caminho estava gravado no meu corpo, na minha mente. Eu havia internalizado aquele espaço e, finalmente, me sentia em casa. Talvez eu não seja capaz de descrever cada casa em que morei com minha família, mas posso falar de algumas. Nos primeiros cinco, seis anos de vida morei na casa em que nasci, em Maringá-PR. Tenho poucas lembranças. O pessegueiro no quintal, o chão de assoalho, a enceradeira na varanda de vermelhão. O gato amarelo, meio meu, meio da vizinhança, tomava a água que pingava da torneira do tanque.
Quando soube que íamos nos mudar para Dourados-MS, porque meu pai havia sido transferido pelo banco, eu não sabia direito o que isso significava, mas não gostei da ideia. Chegando lá que confusão! Não era a minha casa! Minha mãe precisou voltar comigo à casa de Maringá e mostrar que já havia outra família morando lá, com outros móveis e outros aromas. Enfim, aquela não era mais a minha casa, então fui me adaptando. Moramos em várias casas em Dourados, mas vou pular para outra mudança cinco anos mais tarde: Blumenau-SC. Meu pai cansou do banco e junto com minha mãe decidiu que nos mudaríamos para Blumenau, onde haviam outros tipos de trabalho. Lá já morava minha tia. Chegamos então para ocupar uma casa no centro da cidade na qual até ali havia morado um primo. A casa era diferente. A cidade foi colonizada por alemães e muitas casas foram construídas com esta influência. Esta tinha sótão. Eu nunca havia entrado em um sótão. Eu e minha irmã menor brincávamos muito ali. Também íamos juntas para a escola que ficava a umas três quadras de distância. Moramos ainda em outras casas nesta cidade até podermos ocupar o tal apartamento próprio que meus pais pagavam e que estava em construção. Meu pai faleceu na penúltima casa de aluguel na qual moramos. Ele nunca morou no apartamento. Ainda hoje, quando sonho – aqueles sonhos que a gente tem enquanto dorme mesmo -
e na delirante mistura de lembranças e desejos estou em uma casa, a casa é a do centro em Blumenau. A primeira que moramos nesta cidade. Aconteceu ali tanta coisa! Meus pais adotaram meu irmão Anderson, minha irmã mais velha Silvana mudou-se para São Paulo-SP, minha irmã mais nova começou a namorar o futuro marido e eu vivi mil imaginações em minha mente ... Também vivi coisas concretas, mas sempre preferi viver a fantasia. É do livro de Bachelard a ideia de que tudo o que existe no mundo, nos bosques, nos mares ou nos ares cabe entre as “paredes que creem fechar um quarto”. Foram muitas experiências marcantes naquele espaço (talvez por isso, às vezes, eu me sinta mais catarinense. Mas não sempre).
Até este ponto as mudanças de casa ou cidade haviam sido decididas pelos meus pais. A minha primeira decisão de mudança aconteceu quando eu, minha mãe e meu irmão já morávamos no apartamento próprio (meu pai havia falecido, minha irmã mais velha Silvana havia mudado para São Paulo, e a mais nova se casado). Eu havia terminado a faculdade, continuava trabalhando numa empresa em uma função burocrática (o que me permitiu pagar a faculdade) mas não tinha muita certeza do que fazer. Eu só sabia que precisava fazer algo com um sentido. Foi então que a Silvana me convidou para ir morar com ela. Eu fiquei em choque! Mudar novamente? Para São Paulo? Por vontade própria? Mas fui! E foi a mudança de casa/cidade que mudou minha vida! Mudamos juntas para um apartamento pequenino na Rua Vergueiro. Mas cabia o mundo inteiro ali! A nova casa significava novas possibilidades! De trabalhar, de estabelecer relações, de existir! E este sentimento de caber um mundo inteiro dentro de um quarto e sala existia por meio de coisas simples como, por exemplo, fazer o lugar ficar “com a nossa cara” com uma decoração criativa e um orçamento muito pequeno, ou fazer as próprias compras de mercado escolhendo as coisas preferidas para ter na geladeira... Parece bobo, eu sei, mas não é. Era a possibilidade de construir ao meu redor o espaço no qual eu queria estar. Assim, eu me construía. Três anos mais tarde, quando eu já estava melhor empregada, nos mudamos para um apartamento maior na Vila Mariana. Estes apartamentos foram espaços de descobertas pessoais, de aprender a escolher as batalhas que valem a pena e deixar bem longe os ruídos que me afastavam de mim mesma. Mudar-se para São Paulo para afastar-se de ruídos? Loucura! Mas não foi. Até hoje quando alguém fica sabendo que eu morava naquela metrópole caótica a pessoa exclama “Poxa vida! Que barra heim!” Nunca foi barra. Não me lembro de ter sido barra, porque tudo o que eu enfrentei fazia parte das minhas escolhas. Então, foi um lugar de cura. Aqueles apartamentos onde morei com minha irmã não estavam na cidade caótica. Estavam ao redor de mim, abrigando-me, protegendo meus sonhos e me permitindo sonhar em paz*. Este ciclo foi encerrado por mais uma mudança de casa e de cidade. A Silvana para Atlanta-US e eu para Curitiba-PR. Escolhas pessoais. Mudei-me para o apartamento do Manassés logo depois que nos casamos em abril de 2011. A pergunta voltou: “quando será que vou me sentir ‘em casa’ aqui?” Ele já morava no apartamento há dois ou três anos e o havia mobiliado parcialmente. Alguns móveis sob medida ficaram do primeiro morador, outros ele mesmo providenciou. Comecei a interferir aqui e ali no espaço. Mudar móveis de lugar, comprar almofadas, tapetes... Sem eu perceber chegou um tempo em que eu já me sentia em casa. Mais uma vez.
Guardo lembranças de tantos espaços que habitei, nos quais investi emoções e com os quais construí relações. Construindo-me, me reinventando para em algum momento conseguir me sentir em casa. Percebo que esta história não está acabada. Sonho com outras casas, outras cidades, distantes, quase impossíveis. E Bachelard surge novamente para me mostrar que não estou sozinha neste devaneio. Ele sussurra no meu ouvido “talvez seja bom guardarmos alguns sonhos para uma casa que habitaremos mais tarde, sempre mais tarde, tão tarde que não teremos tempo para construí-la.”
* É de Bachelard a ideia de que a casa permite ao sonhador sonhar em paz. A referência do livro é esta: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.Recolher