Era o ano de 1954. No Nordeste brasileiro, a ausência de chuvas que acabava com o verde e ceifava vidas, expulsava também os filhos daquela terra, que partiam rumo a um lugar que lhes oferecesse trabalho e chances de sobreviver com dignidade. Foi diante desse quadro desolador que uma mulher de...Continuar leitura
Era o ano de 1954. No Nordeste brasileiro, a ausência de chuvas que acabava com o verde e ceifava vidas, expulsava também os filhos daquela terra, que partiam rumo a um lugar que lhes oferecesse trabalho e chances de sobreviver com dignidade.
Foi diante desse quadro desolador que uma mulher destemida acatou a decisão do marido e, junto com seus nove filhos (o mais velho com 12 anos e o mais novo com 4 meses de idade) decidiu cruzar o país para chegar até a pequena Santa Helena de Goiás.
Aos 33 anos, ela deixou tudo para trás (pai, mãe, irmãos, parentes, amigos, lembranças e todos os laços daquele chão que lhe dava, apesar de tudo, segurança e identidade) para cumprir a nobre missão de esposa, de mãe e de mulher que não foge à luta.
Esqueçam as facilidades de locomoção dos dias atuais. Foi na carroceria de um caminhão, lotada por outros tantos viajantes que a seca castigava, que essa mulher cuidou de marido e filhos durante mais de um mês numa viagem que parecia infinita.
Poeira, calor, cansaço, fadiga mesmo, medo e apreensão... Tudo isso era pouco diante da fé e do sonho de criar sua família numa terra de fartura. Foi assim que Adélia Amélia de Queiroz, a Dona Adélia, chegou às terras goianas com o esposo José Procópio e os filhos Manoel, Ademar, Ademir, Evanir, Américo, Arlindo, Maria, José e Agenor.
Se o cenário era promissor, o desafio se mostrava também mais amplo. Para sobreviver e prosperar num lugar de costumes tão distintos, Dona Adélia e sua família tiveram que "suar" muito. Do vocabulário até os hábitos alimentares, eram muitas as barreiras a serem superadas.
Mas a guerreira Adélia começou a mostrar aos goianos que nascera pronta para as batalhas. Enquanto o marido e os filhos maiores partiam para a lida diária na roça, ela fazia sua parte para que tudo estivesse em ordem no seu novo lar.
Cuidava da casa, tratava das criações, fazia comida no fogão a lenha, costurava, lavava e passava com ferro a brasa, cuidava da higiene e da educação de seus doze filhos. Sim, porque em Santa Helena nasceram Antenor, Waldemar e Waldemiro.
E que ninguém seja ingênuo de pensar que os doze filhos de Adélia eram só harmonia. Como em toda família, os desentendimentos entre irmãos existiam. Se um grito ou repreensão não resolviam, ela não se intimidava e aparecia com uma boa colher de pau para separar os brigões.
Vocês que têm dois ou três filhos conseguem imaginar a rotina diária dessa mulher para criar e manter no caminho reto e correto essa grande família? E sem contar com as facilidades eletroeletrônicas que dominam os nossos dias?
Mas não pensem que ela achava que fazer tudo isso fosse algo demais, fosse pesado. Morando na zona rural ou na cidade, pelo sonho de uma vida melhor, Dona Adélia - que fazia todo o trabalho doméstico de uma casa com 14 pessoas - ainda encontrava tempo para realizar tarefas extras que significavam economia para a família.
Ora colocava seu tacho no fogareiro para fritar toucinho e armazenar banha de porco para a comida. Ora mexia por horas a fio a mistura de sebo, soda e breu até o ponto de enrolar o sabão de bola. Sem contar os doces que fabricava para que os filhos menores vendessem nas ruas a fim de melhorar o orçamento familiar.
Tanto esforço trouxe bons resultados. Ao longo dos anos, a prosperidade se aninhou naquela casa. E depois de muita luta, Dona Adélia viu que sua família não estava apenas criada, mas que deixara sua marca na história de Santa Helena de Goiás e na vida de milhares de seus cidadãos. Sinal mais que evidente de que o seu sonho tinha virado realidade. Sua família crescera, vencera e se multiplicara - não necessariamente nessa ordem.
E em 2003, quando se achava que essa mulher já tinha ensinado tudo, ela veio com outra lição: apesar do muito que sofreu e lamentou por causa da perda do esposo José Procópio, ela seguiu firme no seu caminho e na sua tarefa de manter forte e unida a família que os dois construíram. Ao longo de mais de dez anos como matriarca absoluta, continuou semeando alegria e força com seu exemplo, sua coragem, suas histórias, suas cantorias, seus cuidados e suas bênçãos.
Até que na tarde de 16 de maio de 2014, depois de lutar por várias semanas contra as sequelas de uma parada cardiorrespiratória e de uma pneumonia, a guerreira Adélia entendeu que era hora de descansar. Ao receber o amor, o cuidado e a gratidão de seus filhos, noras, netos e bisnetos, compreendeu que a missão que Deus lhe dera tinha sido muito bem cumprida.
Passados 60 anos desde sua chegada a Santa Helena, ela deixava uma grande família de homens e mulheres de bem. De homens e mulheres seguidores da trajetória de dignidade, respeito e união que - mesmo com todas as dificuldades - ela e seu José Procópio deixaram como valiosa herança.
Certamente, apesar dos laços de amor que a prendiam aqui, foi assim que Dona Adélia partiu: feliz e orgulhosa dos frutos de sua existência. Com certeza, ao lado do esposo, ela estará olhando para (e por) sua família, que fica com o honroso desafio de manter unida e forte a grande família Procópio, pela qual eles tinham muito amor e orgulho e tantos sacrifícios fizeram para bem criar e educar.Recolher