Museu da Pessoa

Comida de vó

autoria: Museu da Pessoa personagem: Catharina Pugliese Serroni

Projeto: História em Multimídia do São Paulo Futebol Clube
Depoente: Catharina Pugliese Serroni
Entrevistado por: Cláudia e Itamar
São Paulo, 11 de dezembro de 1993
Entrevista nº 022

P - Dona Catharina, em que dia a senhora nasceu e em qual cidade?

R - Eu nasci em quinze de abril de mil novecentos e nove...

P - E seu nome completo?

R –... Em São Paulo.

P - E seu nome completo?

R - Catharina Pugliese Serroni.

P - Agora, conta pra nós... Aquela primeira, a mais antiga lembrança que a senhora tem da sua infância a mais tranquila...

R - Eu vou começar do começo. Eu fui pro São Paulo... Em dezembro de 1935, para trabalhar. O São Paulo, aquele dia, fez fusão com os Estudantes.

Depois, fizeram uma festa lá no... No... Na... No clube.

Fizeram essa festa para unir os jogadores um com o outro, não?

Pra fazer... Unir, em nome de Deus... Aí, começamos o trabalho no São Paulo, eu e meu marido Matheus Serroni, e...

E nós trabalhamos muito tempo lá.

No começo do São Paulo... No começo do São Paulo, o São Paulo era pobre. O São Paulo não tinha dinheiro nem pra pagar a sede, e nem pra pagar os jogadores, não é? Então, o que eu fazia? Eu pegava e falava pro tesoureiro, pegava uma bandeja, juntava em cima da mesa e todo sócio colocava um dinheiro lá.

Quando acabava, a reunião lá, eu pegava a bandeja e levava pro tesoureiro.

Pegava, fazia café, o Dr. Frederico Menzen, trazia o pó de café. Eu fazia café e vendia pro sócio duzentos réis cada xícara de café...

P - Para arrecadar dinheiro para o São Paulo?

R - Era assim, tinha pingue-pongue. Quem marcava o pingue-pongue era eu, cobrava. Tudo eu cobrava pra ajudar o São Paulo. Que eu fazia tudo, eles largavam tudo na minha mão para fazer tudo. Eu fazia a limpeza, eu lavava as camisas, eu fazia a comida pros jogadores... Eu fazia tudo! E com três filhos e marido, tudo pra cuidar.

P - Certo. Dona Catharina...

R - Estive, estive no São Paulo... Ah?

P - Vamos, ah... Vamos voltar um pouquinho para quando a senhora era criança.

O que a senhora fazia quando era criança?

R - Eu ia para a escola.

P - Como era a escola dessa época?

R - Era... Acho que nem agora, não? Que era a mesma coisa de agora.

P - Onde que a senhora estudou?

R - Estudei... Na Consolação, no grupo escolar. Fui até o terceiro ano.

P - A senhora sabe se tem esse grupo escolar ainda hoje ou não?

R - Ahn...?

P - Ainda tem essa escola hoje ou já...

R

- Não, não tem.

P - Não tem mais, né?

R - Não.

P - A senhora morava em qual bairro, nessa época?

R - Eu morava em Pinheiros... Na Avenida Rebouças.

P - Como que era a Avenida Rebouças?

Como que era a cidade nessa época?

R - Era naquele tempo... Era mixuruca. Não tinha quase casa, agora que tem casa, agora que está bonito, hã?

Mas naquele tempo era... Puxa vida!

P - O que tinha?

R - Feia... Terreno vazio... Mato, tudo assim. Era o... A Avenida Rebouças.

P - E o Rio Pinheiros, a senhora se lembra como que era?

R - O quê?

P - O Rio Pinheiros, lá embaixo?

R - Ah! Não lembro.

P - Não lembra.

R - Não lembro.

P - O Tietê também nessa época...

R - Não.

P - A senhora não lembra?

R - Não. Não lembro porque eu nunca fui, não passei para esse lado.

P - E como que eram as brincadeiras?

R - Brincava assim de roda... De pular corda...

P - Com quem a senhora brincava?

R - Com as meninas da escola.

P - E com seus irmãos, brincava também?

R - Brincava.

P - E brigava também, ou não?

R - Brigava também.

P - É?

R - Brigava.

P - E o pai batia quando brigava ou não?

R - Se não batia!

P - Batia de que jeito?

R – É... Com... Com uma cinta.

P - É?

R - É, ele tinha uma cinta.

P - Ele era muito bravo?

R - Ô! Nós tínhamos medo dele.

P - Mas vocês aprontavam alguma coisa?

R - Aprontávamos! (risos)

P - Qual foi a... A maior travessura que a senhora fez quando era criança? Conta para nós...

R - Um dia eu fiz a travessura... Que um dia minha mãe saiu e falou para mim, me explicou como tinha que fazer o arroz, né? Minha mãe precisou sair e eu peguei e fiz o arroz, e queimei tudo o arroz, deixei a... Quando minha mãe veio, viu o arroz tudo queimado... Ah! Eu apanhei!

P - E a senhora deixou queimar porque se esqueceu ou foi de travessura mesmo?

R - Es... Esqueci. Esqueci como ela me tinha ensinado...

P - A senhora foi brincar, né?

R - Sempre... Brincar...

P - E seus irmãos, porque eles apanhavam?

R - Também com a correia.

P - Com a correia também?

R - Eu tinha quatro irmãs mulheres e um homem. Eu, Catharina, Vitoria... Francisca... E... Rosinha e José, o meu irmão.

P - E era mais velho que a senhora?

R - Não, eu. Eu sou a mais velha de todos.

P - A senhora que comandava os irmãos?

R - Eu comandava tudo.

P - É?

R - A casa, tudo... Porque minha mãe trabalhava, né?

P - Ela trabalhava onde?

R - De costureira.

P - Ela vendia roupa para fora, é isso? Para fora?

R - Ia à oficina.

P - Onde que era a oficina, a senhora se lembra?

O endereço dessa oficina?

R - Não sei... Não me lembro... Muitos, muitos anos.

P - Que tipo de roupa que ela fazia, a senhora se recorda?

R - Calças... Calças de homem.

P - E o seu pai, dona Catharina, como ele se chamava? O que ele fazia?

R - Francisco Pugliese. E meu... Meu pai era guarda... Gua, gua, gua... Guarda de... De soldado, de rua, né?

P - Ele nasceu no Brasil?

R - Nasceu na Itália.

P - E a sua mãe?

R - Minha mãe também nasceu na Itália, em Provinzia di Salerno.

P – O que a senhora lembra que eles contavam? Como que era a Itália...

R - Não, não contavam nada.

P - Não contavam, não?

R - Não, não contavam nada.

P - E a se... E a senhora sabe por que eles vieram para cá?

R - Vieram para cá por que... Vieram para cá, no mesmo navio. E no navio eles se gostaram...

P - Hã?

R - E no navio, no navio namoraram, chegaram aqui em São Paulo, não demorou e se casaram.

P - E foram morar aqui na capital, mesmo?

R - Foram morar aqui, mas não me lembro o lugar.

P - E seu pai tinha que tipo de atividade profissional?

Ele fazia o quê quando ele chegou ao Brasil?

R - Era soldado.

P - Já começou como soldado?

R - Começou como soldado. Ele ficou lá...

P - E a senhora na escola, era uma boa aluna?

R - Eu era uma boa aluna. Fui até o terceiro ano. Não pude ir mais porque a minha mãe me pôs para trabalhar...

P - A senhora começou trabalhar de quê? Fazendo o quê?

R - Trabalhando?

P - É.

R - Olha, vou dizer a verdade. Eu... Eu trabalhava na Companhia Telefônica, telefonista.

P - E o que a senhora fazia? Telefonista, mesmo?

P - Onde que ficava seu prédio, a rua?

R - Não lembro agora a rua... No Paraíso, aquela Companhia Telefônica que tem lá no Paraíso.

P - A senhora se lembra, assim, de alguma pessoa famosa... Que fez a ligação pra senhora, que fez interurbano de longe, assim? Não?

R - Não lembro nada.

P - A senhora gostava de ser telefonista?

R - Ah! Adorava!

P - Gostava de fazer...

R - Trabalhei por oito anos como telefonista, depois eu casei, né?

P - E como que foi o casamento da senhora?

R - Foi, foi bom. Casei dia cinco de... De outubro de mil novecentos e vinte seis.

P - Como que a senhora conheceu o seu marido?

R - Eu conheci na casa da minha madrinha. Eu fui passear lá, e o conheci lá. E ali ele me... Declarou-me tudo e...

P - No mesmo dia?

R - No mesmo dia... Antigamente era assim, viu?

Já namorava, já ia pedir em casamento. Não que nem agora, que fico... Fico namorando e... Nada resolve. (risos)

P - A senhora casou e foi morar em que bairro?

R - No Brás, na Rua Oriente.

P - E como era a casa da senhora lá no Brás?

R - Era uma casinha pequenininha, dois cômodos e cozinha.

P - E a vizinhança, como que era?

R - A vizinhança era boa.

P - Maioria de italianos?

R - Hã?

P - A maioria dos vizinhos era de italianos?

R - As vizinhas?

P – É.

R - Não... Num... Num cheguei a conhecer.

Num saía fora pra...

P - Por que senhora não saía fora?

R - Não saia por que... Tinha muito... Eu não tava acostumada no serviço e tinha muito serviço, roupa para lavar... Cozinhar, comida para fazer... Tudo, e não dava tempo de ir para fora.

P - Mas aquele tempinho assim, que sobrava prá se divertir, como é que se divertiam, a senhora e seu marido, na época?

R - Eu saía... Eu saía com meu marido e ia pra casa da minha mãe.

P - Saía do bairro que a senhora morava?

R - É... E ia para... Pra minha mãe... Onde ela morava? Não lembro agora, não lembro.

P - Mas fora isso fazia uma viagem... Saía de São Paulo ou não?

R - Eu ia muito pra Serra Negra... Porque morava minha prima lá, em Serra Negra.

Eu ia muito pra Serra Negra. Agora ela faleceu, agora não... Já fazem uns três anos que eu já não vou mais, né?

P - Como, que ia para Serra Negra? Ia de ônibus, de carro...

R - De ônibus, ia de ônibus.

P - Até Serra Negra tinha ônibus?

R - Tem, tem... Tem um ônibus.

P - E como que estava... Vamos chegar próximo ao São Paulo. Quando que a senhora se aproximou do São Paulo? Como que a senhora começou a trabalhar para o São Paulo?

R - Eu comecei a trabalhar no São Paulo porque o meu marido se deu com o Mecca.

O Mecca que era o presidente do São Paulo. Mecca... Mecca, né? Mecca. O Mecca. Era, ele era amigo do Mecca. E ele, diz: "vamos começar o São Paulo outra vez, de novo. Eu quero você e a sua senhora para trabalhar no São Paulo...". Aí, começou a vida, começamos a trabalhar no São Paulo. Começamos a trabalhar... Seis meses já, o São Paulo não tinha dinheiro nem para dar aos jogadores, nem para pagar o aluguel.

P - Pagava a cozinheira ou não?

R - Hã?

P - Pagava para a cozinheira ou não?

R - Eu que cozinhava!

P - Então, a senhora recebia um salário nessa época ou não tinha para pagar também? O São Paulo conseguia pagar a senhora ou não?

R - Não.

P - Também não conseguia.

R - Não. Eu fiquei dois anos sem receber no São Paulo.

P - E por que senhora ficou esse tempo todo sem receber?

R - Porque eu tinha minha casa para morar lá. Onde é que eu ia?

P - Como que era a casa da senhora, lá?

R - Era... Descia uma escada era por debaixo.

P - Era onde?

R - Na Praça Carlos Gomes, mesmo. Na sede, mesmo.

P - Ah, tá!

P - Na Liberdade, não?

R - Aí, eu... Teve um jogo. São Paulo e Corinthians. E não tinha dinheiro para fazer comida pros jogadores, não tinha nada. O jogador concentrou na sede mesmo. Ai eu peguei e telefonei pro Jaime Russo, que era o diretor... Ele, da farmácia e... Pedindo dinheiro, para ele me mandar dinheiro pra fazer comida, que foi. Aí ele mandou a menina trazer dinheiro, já o... Era pra comer as onze horas, comeram ao meio-dia. Peguei, fui comprar arroz, fui comprar feijão, alface, ovo, e... Não encontrava carne.

Comprei linguiça. Peguei, comprei linguiça e fiz a linguiça, dois pedaços para cada um dos jogadores. Ovo, a salada e arroz, e eles comeram. Não comeram nem sopa, não tinha. Então... Aí eu fui lá perto dos jogadores e disse pros jogadores: "Olha, vocês precisam ganhar esse jogo, hoje. Faz fora, que eu vou pedir para vocês ganharem esse jogo. Você sabe que tem que receber e sabe... Vocês ganham o bicho vocês ganhando."; "Oh, vó”, eles me chamavam de vó, "Vó, nós vamos fazer o que senhora pediu..." Né? Aí, foi o jogo... Quando acabou o jogo, eles vieram “tudo” em casa e me abraçaram. Nós empatamos em zero a zero. Olha, naquele tempo para ganhar do Corinthians era... Isso! Aquele tempo o Corinthians era o Corinthians, né!

P - A senhora se lembra de alguns jogadores nessa época, que vieram abraçar a senhora? Alguns nomes deles, a senhora se lembra de alguns?

R - Não lembro mais... Deles não lembro mais.

P - Nem do Corinthians? Os grandes craques do Corinthians, dessa época?

R - Não.

P - E era a senhora que decidia o quê os jogadores iam comer?

R - Não. O médico que dava, né? O menu...

Mas, como não tinha arroz, não tinha nada, não tinha... Então, eu mandei pedir dinheiro pra fazer comida para, pros jogadores. Bom... Aí, o que eu fazia? Pus aquela bandeja, todo sábado eu botava a bandeja, os sócios todos enchiam a bandeja de dinheiro, eu levava pro tesoureiro. O tesoureiro guardava para as despesas, para... Para tudo. Comprar sabão, pra lavar roupa, pra tudo. E... E fazia o café, e vendia duzentos réis cada xícara de café, que o... Frederico Menzen trazia o pó de café. E... E... O pingue-pongue eu cobrava, cada partida eu cobrava. O bilhar eu cobrava. Tudo lá era eu que fazia, eu que cobrava. Eles me queriam um bem que só vendo! Certo. Aí, nisso... Hã... Lacraram a sede. Não pagaram um, um... Parece que um ano, lacraram a sede, a Justiça lacrou a sede. O... O tesoureiro me telefona: "Corre lá em cima, pega uma máquina...", tinham duas máquinas, "pega uma máquina e esconde." Eu peguei a máquina de escrever, levei para baixo e, enfiei embaixo da minha cama. Eles foram lá, levaram tudo. AÍ, dali uma hora mais ou menos, o tesoureiro... O tesoureiro: "Já foram embora?" Eu disse: "Já foram embora."; "Levaram?"; "Levaram o que tinha, levaram tudo." Aí, e... "E a máquina, a senhora escondeu?"; "Escondi. Não levaram, está embaixo da minha cama." Né? Aí, depois ficaram lá mais um tempo, mais um pouco, e aí eles voltaram pra Praça Júlio Mesquita, né? O senhor lembra? Praça Júlio Mesquita.

P - O São Paulo mudou pra lá?

R - Prá lá. Aí eu fazia tudo, lavava roupa, passava... Eu tinha só um, um time de camisa, toalha, tudo. Precisava lavar depressa, para... E tinha um time de, de, de... Pra fazer o treino. O treino e outro pra jogar futebol. E eu lavava tudo, limpava a sede, fazia comida pros jogadores, fazia tudo sozinha! Sozinha!

P - Dona Catharina, verdade que houve época que jogavam o primeiro tempo do jogo, aí, no intervalo, a senhora lavava a roupa rapidinho, passava com ferro quente...

R - Com ferro quente para eles vestirem pra jogar.

P - Para jogar o segundo tempo?

R - Para jogar o segundo tempo.

P - Porque só tinha um uniforme.

R - Tinha um uniforme só... E quando chovia, eu lavava as camisas e secava tudo no ferro, porque num... Estava chovendo e precisava jogar, não tinha roupa.

Secava, e com ferro a carvão!

Com ferro a carvão!

Não era ferro elétrico, não. Não tinha ferro elétrico... Depois voltamos para a Praça Júlio Mesquita, ali continuou a vida outra vez...

R - Não! Não, não, não, não... Voltemos pra Praça Júlio Mesquita. AÍ, foi continuar a vida outra vez, limpeza, tudo pro jogador, tudo. AÍ ficamos lá, parece que uns cinco anos, na Praça Júlio Mesquita. Nisso, da Praça Júlio Mesquita eles foram pro Dom José de Barros, com a Av. São João, num prédio lá. Fizeram lá a sede, os escritórios. AÍ, o presidente falou pra mim: "A senhora não, não... Não, volta pra casa do doutor Décio Pedroso..."; lembra o Décio Pedroso? ; "E fica ali que nós vamos comprar o Canindé." O clube Canindé, dos alemães, né? Aí, ficamos lá, eles compraram o clube dos alemães e... Lá, tinha só escritório. Não tinha concentração, não tinha nada. Então, o que o clube fez, o presidente fez? Eles dormiam lá, e vinham comer na minha casa, que eu morava na Júlio... Trinta e seis, perto do São Paulo... Aí, nessa casa, em 43 foi que a moeda caiu de pé. Em quarenta e cinco, quarenta e sete, quatro campeonatos, na minha casa jogador comendo lá, foram quatros campeonato que o jogo... Que o São Paulo ganhou.

P - Sua comida dava sorte, então?

R - Ah! Comida dava sorte. E aí, foi indo, foi indo, foi indo... Eles fizeram cozinha, fizeram tudo lá no, no Canindé. Aí eu fui pra lá. Fui pra lá, lá eu cozinhava tudo pros jogadores, mas não lavava roupa porque tinha lavanderia, só cozinhava, né? E...

P - Quando os jogadores viajavam algum dia a senhora viajou junto com...?

R - Eu já viajava junto para cozinhar pros jogadores.

P – Tem alguma excursão que a senhora lembra, que foi mais para longe, assim, com eles?

R - Foi muito lugar, assim, um pouco longe, mas não pro estrangeiro. Quem ia pro estrangeiro era o meu marido... E... Esqueci de falar que o meu marido levava o saco nas costas e eu levava o saco de roupa na cabeça, até no ponto do bonde, que tinha bonde aquele tempo. E... Quando eu morava na Praça Carlos Gomes.

Melhorou, quando passou pra Júlio Mesquita. Quando na Júlio Mesquita tinha o Sargento Aristão, que tinha um carro. E ele vinha buscar roupa, levava o meu marido, levava alguns jogadores junto pro campo. O campo era lá na Mooca, no Parque Antártica da Mooca.

P - Que carro era, a senhora se lembra?

R - Não lembro. Era um carro... Daquela época. Depois, foi indo... Foi indo, foi indo, foi jogando, foi indo, foi jogando... E...

P - E a torcida, a senhora lembra como que era a torcida? Crescia a torcida, o time ficava mais popular ou não?

R - Não... Aí fui pro Canindé e ali tinha um bode, chamado Augusto. Eu não podia passar que aquele bode corria atrás de mim (risos). Eu passava de manhã com o pão, a cesta de pão e leite e tudo, ele vinha... Eu corria com a cesta, tudo, para ele... Me dava aqui nas costas e me jogava no chão.

P - Hã?

R - É.

P - E como que resolveu essa briga com o bode?

R - Quem tomava conta do bode era o Augusto. Ele era meio retardado, era retardado. Era só ele, que o bode respeitava.

P - Depois o bode pegou o nome de Augusto, isso?

R - É... Ficou nome de Augusto.

P - Ficou como símbolo do São Paulo?

R - Ficou que nem...

P - Mascote?

R - Mascote do São Paulo. E depois assim, o São Paulo foi pro Morumbi, foram fazer... Estavam fazendo o Morumbi. Então, e o bode não sei onde que foi, se mataram... Não sei o que aconteceu com o bode. Aí o São Paulo, depois... Hã... Passou pra, pro... Portuguesa, foi a Portuguesa que foi pra lá.

P - Que o São Paulo vendeu o Canindé para a Portuguesa, né?

R - Para a Portuguesa, pra Portuguesa.

P - Conta um pouquinho como que foi a escolha do terreno do Morumbi... Se seu marido foi junto, a primeira vez que foi escolher o terreno, conta essa história.

R - Foram junto com ele os diretores, né?

Que foram lá escolher, que foi... Se eles ganharam o terreno. Não sei... Assim, falam... Uns dizem que ganharam, que o... Adhemar de Barros deu, que ele era são-paulino. Outros dizem que o São Paulo comprou aquele terreno todo. Agora não sei, falar a verdade. Eu acho que o São Paulo comprou tudo aquilo. Aí, quando estavam já quase prontos os dormitórios, a cozinha, tudo lá, me mandaram prá lá. Eu levantava quatro horas, saía as quatro e meia, quinze pras cinco, pra chegar ao Morumbi às sete horas da manhã.

P - A senhora continuava morando no Brás, no Canindé?

R - Eu morava no Canindé. E... Aí, esqueci de falar... Quando o São Paulo tava no Canindé, a seleção do Uruguai concentrou lá. Concentrou lá no Canindé, e... E comeu lá em casa.

P - Isso na Copa de mil novecentos e cinquenta, né?

R - No, na... Na Copa da cinquenta. E... E nisso aí, eles foram campeões. Quando foram campeões, depois de uns quinze dias, mandaram o... Como que chama?

P - O álbum.

R - O álbum e mandaram uma, passagem pra mim e pro meu marido, pra ir passar quinze dias no Uruguai, porque eu que cozinhei pra eles “tudo”. Aí, depois disso, nós fomos pro Morumbi.

P - Só um pouquinho, sobre a questão dos uruguaios, dona Catharina, a senhora conheceu pessoalmente o Obdúlio Varella, que era o capitão do time do Uruguai?

R - Era, era... Era.

P - Como que ele era?

R - Ele era meio altinho... Num, não muito gordo...

P - Era bravo ou não?

R - Bravo. Gritava com os jogadores. Ele que mandava nos jogadores, ele era o capitão do time.

P - Aquele que ergueu a taça, né?

R - É.

P - E quando eles foram campeões, que o Brasil inteiro ficou chorando, que tipo de sentimento que a senhora teve em relação a eles, a senhora que tinha ficado tão amiga deles?

R - Eu fiquei sentida porque eu queria que o Brasil ganhasse. Porque eu “to” aqui no Brasil, eu vivo no Brasil, né? Por isso que eu fiquei sentida.

P - Algumas pessoas confundiram um pouco as coisas, ficaram um pouco chateadas com a senhora, porque a senhora serviu comida para eles, é verdade?

R - Não... Não, não, não. Eles eram muito educados. Às vezes, eles vinham do Canindé até a minha casa que era perto, a pé. E vinha tudo junto, numa, numa fileira tudo junto, vinha.

P - Não, eu perguntei se alguns brasileiros não gostaram muito que a senhora tinha feito comida pra eles?

R - Não, não. Ninguém disse nada...

P - Que jeito de comida que eles gostavam?

R - Ah... Só carne! Carne, carne, carne, carne, arroz, macarronada, sopa.

P - Do seu tempero, eles gostavam então?

R - Aí nisso, depois nós fomos pro Morumbi. Aí no Morumbi, concentrou a seleção brasileira, do Pelé, que teve... Como que teve?

P - A Copa de cinquenta e oito?

R - A Copa de, de...

P - Cinquenta e oito, na Suécia?

R - Parece que foi...

P - Setenta.

R - Setenta. Na de setenta... Não me lembro se foi setenta. E concentrou lá no Morumbi. Concentrou no Morumbi, eu cozinhei para eles, o Pelé, todos eles, vinham na cozinha me abraçar, gostavam da comida que eu fazia. Em oito dias, eu emagreci o Pelé. Em oito dias fiz regime, emagreci o Pelé. Ele vinha lá, até ele está abraçado comigo e o fotógrafo foi para tirar fotografia.

P - Como que era o regime, a senhora lembra?

O que a senhora fazia pra ele emagrecer? Que tipo de comida a senhora fazia?

R - O feijão era todo dia... Fazia feijão, peixe à milanesa, fazia bife à milanesa, fazia carne enrolada, fazia... Carne assada, fazia macarronada, fazia feijoada... Feijoada fazia... Para ele. Fiz... Hã... Tripa, como que chama?

P - Buchada?

R - Hã?

P - Buchada... Dobradinha?

R - Dobradinha. Eles comeram que só vendo! Fazia tudo pra eles, comiam tudo.

P - O que eles falavam pra senhora?

R - Que gostavam, adoravam a comida. O... Aquele do Corinthians, o... Aquele baixinho que era do Corinthians, chegava no Corinthians.. .

P – Baltazar...

P - Rivelino.

R - Hã?

P - Rivelino.

R - Ah! Rivelino! Vinha, vinha do Corinthians, vinha comer lá no São Paulo... Ele vinha lá no São Paulo porque ele era louco da comida: "Me guardou minha comida?" Quando ele ia lá ver que subia, ele comia a comida. Aí foi, foi... Foi indo, foi indo... Trabalhei dez anos lá, mais lá no São Paulo, depois eu fiquei doente, porque não aguentava mais. Das sete horas da manhã até dez horas da noite, ali correndo naquele fogo e fogão, cada panela assim, tudo!

Não aguentava mais, tava que não aguentava mais. Me tinha saído, como que chama?

P - Varizes...

R - Não, Não.

P - Erisipela?

R - Erisipela nas pernas. Me saiu que eu não podia trabalhar. Aí o doutor, o doutor me disse: "A senhora precisa ficar um pouco em casa, curar essas feridas e depois a senhora volta." Mas depois, olha, eu curei o... Custou pra sarar as feridas e eu não fui mais trabalhar. Por isso eu estou aqui, senão ainda estava no São Paulo.

P - E nesse tempo todo, a senhora ia pro estádio ver algum jogo ou não?

R - Ia, ia... Na hora do intervalo eu ia. Porque depois quando eles vinham, eles tomavam o lanche “tudo”, quando acabava o jogo. Eu ia, porque tinha que estar lá pra dar o lanche pra eles.

P - A senhora se lembra de algum jogo assim, que foi muito emocionante, que a senhora ficou muito contente com uma vitória do São Paulo, um título?

Lembra do... De um jogo assim que está guardado?

R - (silêncio)

P - Não?

R - Não, não lembro não.

P - E os jogadores, quais que eram?

R - Eu trabalhei no São Paulo quarenta e três anos. Quarenta e três anos! Trabalhei no São Paulo... Ah! O doutor, o doutor... Aquele da, da... Da Rua Direita. Marcel, seu Marcel. O...

P - Médico também?

R - Não, não. O Cícero Pompeu e ele foram tomar café. Então o Marcel falou pro Cícero, eu que servi o café pra eles, falou pro Cícero: "Cícero, essa mulher merecia metade do Morumbi pra ela, porque ela trabalhou no Morumbi." Ele disse: "Não, deixa, quando o Serroni morrer, quem vai cuidar dela é o São Paulo. Quem vai tomar conta dela é o São Paulo, vai dar uma casinha para ela morar." Até agora eu “tô” esperando a casa.

P - (risos).

P - Não saiu a sua casa ainda?

R - Hã?

P - Conta um pouquinho pra gente, o que o marido da senhora fazia?

R - Era roupeiro. Ele carregava roupa, limpava chão, ca... Levava, botava as camisas no saco...

P - Quando o time entrava em campo, qual que era a função dele?

R - Ele entrava com as duas bolas no campo. E todo mundo batia palma! Com o uniforme todo branco, bem branco, um distintivo do São Paulo aqui, e entrava no campo, todo mundo batia palma, pra ele!

Ele trabalhou também, trinta e cinco anos no São Paulo.

P - Se aposentou lá no São Paulo...

R - Aposentou lá no São Paulo... E eu também agora to aposentada, né?

P - E essa camisa que a senhora tem do Friedenreich? Quem deu, como que chegou até você? Qual a história dela? A senhora se lembra dessa camisa?

R - Essa camisa aqui?

P - É.

R - O Friedenreich que deu pro Serroni, pro meu marido, né? E o meu marido guardou por estimação, muita estimação. Esta aqui a camisa... Quer ver? Vê...

P - Tá mostrando.

P - Tá mostrando.

R - Tá mostrando.

P - É relíquia do São Paulo.

R – É relíquia do São Paulo... Nós temos a camisa do Joreca também... Do Joreca também de lembrança. Ah...

P - Ele que deu pra senhora?

R - Pro meu marido. Essa aqui é a camisa do Joreca.

P - Conta pra gente, quem que era o Joreca, do São Paulo.

R - O Joreca do São Paulo era um bom técnico, era um bom treinador.

P - Ele foi durante vários anos treinador, né?

R - Foi, foi no São Paulo. E... E fez do, do... Quarenta e três, quarenta e dois que ele teve no São Paulo, o São Paulo era campeão. Aí veio o Sastre, o Sastre falava: "Pessoal...Hoje de quatro. Vamos ganhar de quatro." Sastre. Quando era de tarde, quatro. Quatro a um, quatro a dois, o que São Paulo ganhava.

P - É verdade que o Sastre também era meio líder, comandante do São Paulo, era...

R - Era...

P - Meio mandão?

R - Não, o Sastre era uma maravilha!

P - A senhora gostava... Se dava bem com ele? Ele falava muito enrolado?

R - Falava, falava.

Eu fazia a comidinha pra ele, ele falava: "Deixa que eu frito o ovo pra mim como eu quero." Ele mesmo ia lá, na panela, e fritava o ovo dele.

P - Mas ele como bom argentino, ele só gostava de churrasco também ou não?

R - Hã?

P – Ele como bom argentino devia gostar de churrasco também.

R - Ah... Sabia fazer churrasco, era churrasco grande. Fazia churrasco grande, fazia pra ele.

P - E o Poy, muita gente... A senhora conheceu o Poy?

R - Ah, o Poy? O Poy quando veio da Argentina, ele ficou, ele ficou na minha casa quatro meses. Ele... Ele não, porque ele ficou lá no São Paulo na concentração, lá no Canindé. E a mulher dele e a filhinha ficaram em casa, dormiram em casa, comiam em casa, tudo. Depois que ele arrumou casa, aí ele foi pro... No Canindé, foi pra casa dele.

P - E a senhora conheceu o Leônidas pessoalmente ou não?

R - Ah... Leônidas. O Leônidas era uma maravilha! Ele comia em casa também, junto com os jogadores. Mas ele queria comer sozinho, ele comia na cozinha, sozinho. Não queria comer junto com os jogadores.

P – Por quê? A senhora sabe?

R - Nem sei... Brigava. Quando eu botava a mesa, ele servia lá na cozinha, ele comia na cozinha... Num, num...

P - Quem que comia mais a senhora lembra? O mais comilão?

R - O mais comilão? Era o King.

P - Era o maior também, né?

R - Era o King.

P - Ele era do Paraná, isso?

R - O King é do Paraná. Era, porque ele morreu.

P - Era um bom goleiro ou não? A senhora...

R - Era, era bom goleiro... Era bom goleiro.

P - E o Leônidas?

R - O Leônidas jogava muito bem, foi um bom jogador pro São Paulo! Jogador que jogava com amor a camisa.

P - Hoje a senhora tem visto jogos pela televisão?

R - Se eu tenho visto?

P - Mais recentemente, o time atual, a senhora vê jogar na televisão ou não?

R - Não... Depois disso que eu peguei não fui mais trabalhar, fiquei doente, não fui mais trabalhar.

P - Quando o Gerson jogou no São Paulo, a senhora tava trabalhando lá ainda ou não?

R - O...

P - O Gerson.

R - Ah... Tava! Tava no São Paulo. Ele tava no Canindé, ele jogava, quando o São Paulo tava no Canindé, o Gérson era de lá do Canindé.

P - Dentro de campo ele reclamava muito...

R - Uh... Ih... E brigava, e brigava com os amigos, brigava.

P - E da comida, ele reclamava também ou não?

R - Quem?

P - Ele reclamava da comida também, ou não?

R - Não! A comida, a seleção... Eu fui também cozinhar pro... Copa do Mundo em São Lourenço. Fui cozinhar pros jogadores da Copa do Mundo lá, em São Lourenço!

P - Minas, né?

R - É, em Minas.

P - Por quanto tempo, a senhora se lembra ou não?

R - Foi um que ficamos concentrados lá. Mas...

P - E a comida? Era, era receita da senhora ou tinha que fazer uma comida de receita da seleção? Como que era?

R - Era uma comida recomendada pelo médico, né? O médico dava o menu, a gente cozinhava pelo menu.

P - O que ele recomendava para eles comerem?

R - Tudo, tudo. Era tudo frango, todo dia... Tudo, tudo, tudo... Carne assada, peixe e... Frango à milanesa, tudo, tudo, tudo... Comiam tudo. Só que pouco, né? Não muito, ia pouca comida pra eles.

P - E essa seleção, a senhora lembra se o técnico era o Feola? Dessa vez que a senhora ficou em Minas, em São Lourenço?

R - Não, não era o Feola.

P - Mas quem... A senhora?

R - Não me lembro se era o Zezé Moreira, se era o Moreira, o Zezé Moreira... Não... Não me lembro, não me lembro.

P - E o pessoal da seleção, também se dava bem com a senhora ou não?

R – Ô! Como eles gostavam de mim!

Eu fazia tudo o que eles me pediam.

P - Por que a senhora acha que o povo gosta tanto de futebol, dona Catharina?

R - É um divertimento. Agora não tem nada para o pessoal se divertir, vai pro futebol... Que tem pra divertir? Não tem nada!

P - Nessa época, a senhora se lembra de uma grande tristeza que a senhora teve, assim com o futebol ou não teve?

R - Não lembro.

P - O marido da senhora também jogava futebol?

R - Não, ele era roupeiro.

P - É?

R - E ele só limpava chão, carregava roupa pro campo, que o campo era na Mooca, ele que pegava o saco de roupa, né? Ia pro campo. O São Paulo não tinha dinheiro pra dar pro carro, ele carregava o saco nas costas. Ele carregava o saco das chuteiras e eu carregava o saco das roupas, até no bonde lá, que antigamente era o bonde, né?

P - E as compras de mantimento, a senhora que fazia ou tinha alguém que comprava?

R - Eu na cozinha, quem fazia era um chofer, chamado Ambrósio. Vinha lá, eu dava a listinha pra ele, ele me comprava tudo.

P - E era muito caro?

R - Depois, eu pegava as notas, tudo direitinho, ele levava na sede e a gente recebia e trazia o dinheiro.

P - Tinha bastante oferta de comida ou faltava algum mantimento?

R - Eu fazia a comida certa.

P - Fazia sim, mas tinha bastante produto em oferta ou tinha alguma coisa que faltava no supermercado?

R - Não, nunca. Nunca porque eu marcava tudo. E depois, quem, lá no... Morumbi, quem era nosso chefe lá era o Antenor Reis, o Antenor. Ele que era o chefe, ele que mandava em tudo lá. Ele que fazia as compras, ele fazia tudo.

P - Mas, um pouquinho mais antiga, lá na Praça, na Praça Carlos Gomes, a senhora achava que a comida era muito cara, havia muita inflação ou era mais fácil viver naquela época?

R - Aquela época era mais fácil viver porque era mais barato, né?

Agora não, agora é muito caro.

P - Tinha muita pobreza naquela época, dona Catarina?

R - Uh! Em São Paulo?

P - Não, no Brasil, na cidade de São Paulo...

R - Eu... Acho que tinha. Tinha, apesar que era tudo barato, mas tinha...

P - E a cidade de São Paulo, o que a senhora lembra, dos pontos mais bonitos onde a senhora andava nessa época toda... O que a senhora gostava mais em São Paulo, quando a senhora era mais jovem?

R - Eu gostava do São Paulo?

P - É?

R - Gostava do time.

P - E da cidade, também?

R - Da cidade também. Gostava do time, era são-paulina. Eu dizia: sou são-paulina.

P - E a senhora tinha alguns amigos que eram corintianos, palmeirenses... Sim ou não?

R - (silêncio)

P - Não tinha? Nunca brigou com nenhuma palmeirense ou com nenhum corinthiano, não?

R - Briguei. Briguei com um corinthiano. Quando me fala que é palmeirense ou corinthiano eu não converso. Porque eles me ofendem e eu brigo.

P - Fala um pouquinho mais da sua família, dos seus filhos, de quando que eles nasceram, o nome deles, onde estudaram... A senhora teve quantos filhos?

R - Três filhos. Dois homens e uma mulher: Rina, Nelson, Matheus.

P - Eles estudaram aonde, a senhora se lembra? Que colégio eles estudaram?

R - Ah, não lembro. Eu, eu... Eu sei que eles estudaram no grupo. Agora não me lembro o lugar.

P - Eles se formaram, estudaram...

R - Não, não formou nenhum.

P - O que eles fazem hoje?

R - O... O Matheus tá aposentado, que é o mais velho.

P - Trabalhou com o que, assim?

R - Na Prefeitura. Ele era tesoureiro da Prefeitura.

P - Da Federação.

R - Hã?

P - Da Federação.

R – Ah, da Federação.

P - Paulista de Futebol.

R - Federação de Futebol. O Nelson trabalha no, no banco. E a Rina, trabalha em casa, né?

P - O marido da Rina faz o que?

R - Trabalha no banco.

P - No banco.

R - No banco.

P - E a senhora hoje é viúva, né?

R - Eu sou viúva, já há vinte e três anos.

P - A senhora sente muita falta do seu Serroni?

R - Sentia primeiro, agora não. Agora já esqueci, né?

P - Como a senhora passa os seus dias, dona Catharina?

R - Hã?

P - Como é que a senhora passa os seus dias? A senhora acorda e faz o que? Como que a senhora...

R - Eu levanto de manhã, me benzo, faço o sinal da cruz, peço a Deus que me dê um bom dia... Pego, vou ao banheiro, me lavo, tomo banho, tomo café e depois vou fazendo o serviço da casa... faço comida.

P - O que senhora gosta de comer no café-da-manhã, por exemplo?

R - De manhã?

P - Sua comida predileta, de manhã.

R - No almoço?

P - Não, de manhãzinha, no café-da-manhã.

R - Eu só tomo uma xícara de café. Só, sem pão, sem nada.

P - E no almoço, na janta... O quê senhora gosta de comer mais?

R - O... O almoço, eu faço comida, salada. Uma salada mista, e... Eu não como arroz e feijão... Só como salada mista, com pão. Pãozinho e pronto. De noite, às cinco horas, tomo um chá, com pãozinho, queijo e pronto.

P - No dia que inaugurou o Morumbi, a senhora estava lá no estádio?

R - Hã?

P - No dia em que inaugurou, o primeiro jogo do Morumbi, do estádio do Morumbi, a senhora estava lá?

R - Estava, eu fui pra lá. Fui... Logo que inaugurou o Morumbi, teve uma festa, teve um almoço.

P - Quem fez a comida, dona Catharina?

R - Eu... Eu... Trabalhei lá, trabalhei! Trabalhei... Depois esteve concentrada uma porção de time, lá. A... Eles vinham de fora e concentravam lá, né?

P - Algum dia teve alguma receita assim, alguma comida, que a senhora achou difícil de fazer, que a senhora nunca tinha feito? Quebrou a cabeça pra acertar o ponto lá, ou não?

R - Alguma vez... Alguma vez eu... Pegava no livro, lia as receitas e fazia.

P - E algum dia assim, a senhora esqueceu a comida...

R - Queimou?

P - Queimou a comida de jogador?

R - Não, graças a Deus nunca. Nunca! Quarenta e três anos, e nunca me queimou a comida. Fazia aquele arroz soltinho, que eles gostavam... Do arroz, só vendo!

Feijão, feijoada...

P - Tinha jogador que bebia, durante a refeição? Bebia bebida alcoólica ou não?

R - Não, não. Só guaraná.

P - E fora da refeição, tinha alguns que gostavam de beber pinga ou não?

R - Ah, isso eu não sei, não! Eles não bebiam na frente da gente, né?

P - A senhora conheceu o seu Laudo Natel?

R - Hã?

P - O seu Laudo Natel, presidente do São Paulo e governador, a senhora conheceu pessoalmente?

P - Ô!

P - Como que era ele?

R - Ah... Amigão. Ele era bom que só vendo! Era uma coisa de louco, tão bom que ele era!

P - Mesmo depois que virou governador?

R - Mesmo assim. Quando ele era governador ele largava a comida de lá do Palácio, vinha comer com os jogadores do São Paulo.

P - Era perto também o Palácio?

R - Era perto. Ele vinha até de avião, aquele avião.

P - Helicóptero.

R - Ele descia lá na Praça. Uma vez ele desceu lá, um carro virou assim, tava passando longe, e virou, virou o carro que só vendo. AÍ ele foi lá veio, o que tinha acontecido com o chofer, não tinha acontecido nada. Só ficou muito tonto, né?

Porque o carro virou (risos).

P - E algum dia, ele chamou a senhora pra ir à casa dele, no Palácio do Governo, ou não?

R - Não.

P - Não.

R - Não.

P - A senhora não conhece o Palácio do Governo do Estado?

R - Não, não... Não. Eu já fui convidada pra trabalhar lá de ajudante de cozinha, já fui chamada. O Sargento Aristão que tinha arrumado, mas eu não quis largar o São Paulo pra ir lá.

P - O São Paulo foi a grande paixão de sua vida, né?

R - A minha vida, minha paixão, minha, minha... Vida, paixão... Minha vida, o São Paulo.

P - E o Monsenhor Bastos?

R - Ah! Uma maravilha. Ele que fez o meu casamento.

P - É mesmo? Então conta mais do seu casamento, como que foi a cerimônia, o vestido que a senhora usou... O que ele falou pra senhora...

R - Simples, né? Simples.

P - Hã?

R - Ah, não lembro mais. “Num” lembro.

P - A senhora comprou vestido aonde, a senhora lembra?

R - Não, não lembro... Não lembro mais.

P - E os padrinhos de casamento? A senhora se lembra quem foram, os padrinhos?

R - Até morreu, já.

P - Mas era do São Paulo?

R - Não, não, não.

P - E seus netos, como que a senhora se relaciona com eles?

A senhora tem netos, né?

R - Tem... Eu só... Tenho neto e bisneto, tenho sete bisnetos.

P - Tem algum corinthiano?

R - Não, tudo são-paulino. A família toda são-paulina.

P - E se algum deles virar corinthiano?

R - Não vira (risos).

R - Só se ele virar corinthiano!

P - Imagina!

P - Quem, o Francisco?

R - Hã?

P - Por quê? Ele tem cara de corinthiano?

R - Não. Não quero que ele vire corintiano. Eu quero que fique são-paulino (risos).

O meu genro também era corinthiano, agora ele é são-paulino.

P - Quem que virou ele, dona Catarina? Quem que fez...

R - Acho que a bondade dele, né? (risos)

P - A inteligência dele.

R - É.

P - (risos) Hoje o São Paulo vai disputar o Campeonato Mundial...

R - Ah, hoje eu não vou dormir. Hoje nós não vamos dormir...

P - Vão jogar na madrugada, a senhora vai estar acordada?

R - Vou... Vou ficar, até... Uma hora começa, né?

P - Uma da madrugada...

R - Ah...

P - E o coração aguenta?

R - Por enquanto, graças a Deus, está bom. É a pressão, só tenho um pouco a pressão alta... Tenho a pressão alta, que eu sempre, me bate o coração, eu deito, a pressão, fico lá esticada, pronto já... Começa, devagar para o coração para a pressão.

P - Dos jogadores mais recentes, a senhora conheceu algum pessoalmente, Careca, Serginho, Raí... Conheceu algum deles ou não?

R - Não.

P - Não... A senhora nunca mais voltou...

R - Hã?

P - A senhora nunca mais voltou no Morumbi? Faz quanto tempo que a senhora não vai ao São Paulo?

R - Ah! Faz tempo que eu não vou lá.

P - Sente saudades?

R - Tenho saudade, tenho saudade. Eu, eu... Não vou lá, porque não tem ninguém lá. Eles estão tudo na Barra, na Barra Funda, né?

Agora tudo lá, né?

P - Na Barra Funda também a senhora, não dá vontade de voltar prá lá? Não dá saudade?

R - Eu tinha vontade de... De conhecer lá a Barra Funda, né? Mas já estou velha, já...

P - A senhora, geralmente tem grandes sonhos na vida, ainda não tem?

R - Hã?

P - Que quer fazer ainda na vida? Um grande sonho...

R - Ah, graças a Deus! Graças a Deus, Deus que me ajude! Fazer esse grande sonho...

P - Qual que é o sonho?

R - Viver... Viver mais uns anos pra eu ver a minha família.

P - A vida pra senhora é um grande sonho?

R - Um grande sonho.

P - A senhora é religiosa, dona Catharina?

R - Eu sou. Eu sou religiosa sim.

P - A senhora se dá bem com Deus?

R - Dou, dou.

P - O que a senhora conversa com ele?

R - Eu peço tudo. Peço saúde, eu peço de noite, eu... Eu moro sozinha, de noite às vezes eu, escuto um barulho, fico com medo... Eu chamo, chamo Deus, chamo Nossa Senhora Aparecida, chamo todos.

P - E São Paulo, a senhora chama?

R - Chamo.

P - (risos)

P - A senhora não chama São Jorge, né, dona Catharina?

R - Ah, São Jorge, não. São Jorge os corinthianos é que chamam.

P - (risos)

R - Tá, tá, tá...

P - Tá gravando!

P - Não tem problema (rindo)!

P - Isso é natural!

P - Os corinthianos também gostam da senhora. O Rivelino gostava da senhora e jogava no Corinthians!

R - Quem?

P - O Rivelino, ele gostava da senhora.

R - Ihhh! Ele era apaixonado... Ele queria que eu fosse pro, pro... Cozinhar lá no Corinthians, ele queria que eu fosse co... Ele tinha almoçado e: "Ah, dona Catharina! Vamos pro Corinthians, eu arranjo pra senhora. A senhora vai morar lá no Corinthians, tudo.";

"Do São Paulo eu não saio, você que vem comer aqui, você vem, mas do São Paulo eu não saio."

P - O quê senhora acha do Brasil hoje? A senhora acompanha o que acontece no Brasil, situação política... A senhora gosta de política? Não?

R - Não gosto... Eu não gosto do Corinthians, eu não gosto do Palmeiras... Eu não gosto de nada e só gosto do São Paulo.

P - (risos)

R- Adoro o São Paulo.

P - A senhora tem título de eleitor, a senhora vota ou não?

R - Hã?

P - A senhora vota? Quando tem eleições... Para presidente, para prefeito... A senhora vota ou não?

R - Eu vou, eu gosto mais que... Vem presidente bom, né? Agora nós temos um presidente que é uma maravilha, né? O presidente é uma maravilha, bom, de bom coração, tudo!

P - Se a senhora fosse falar alguma coisa pros mais jovens, o que a senhora falaria da sua experiência de vida? O que a senhora gostaria de transmitir?

R - Eu transmiti saúde, né? Saúde, felicidade... Estar bem... Tudo de bom!

P - Falando de presidente, a senhora conheceu Getúlio Vargas?

R - Tive no tempo Getúlio Vargas. Conheci-o... Que presidente que ele era viu! Que presidente! Nós temos muita coisa ainda do tempo do Getúlio, do Getúlio Vargas.

P - O que a senhora lembra?

R - Aposentadoria. Foi ele que pôs a aposentadoria, não foi?

P - A senhora se lembra de um desfile, que teve no Pacaembu, que ele tava presente ou não? A senhora se lembra disso?

R - O quê?

P - Teve um desfile no Pacaembu, das equipes de futebol, que Getúlio estava presente, a senhora se lembra desse dia ou não?

R - Não, não lembro... Não lembro.

P - E o General Porfírio, a senhora conheceu?

R - Oh... Oh!

P - Fundou o São Paulo, não é isso, ajudou a fundar?

R - Ele... Ele não era são-paulino. Quando lacraram o São Paulo, o... Só tinha roupa do São Paulo na casa, na Sede. Ele ficava no muro, do outro lado do vizinho, pedindo pro vizinho deixar pular o muro com o saco da roupa para carregar pro campo, porque não podia sair, não podia sair porque estava tudo lacrado tinha guarda na porta... É, ficava lá e pedia lá pro pessoal, aí pulava o saco, outros, ajudavam a pular o saco...

P - E a senhora ficou muito triste nesse dia em que lacraram a porta do, do...

R - Ah, se não fiquei triste! Não podia sair... Tinham três jogadores em casa para comer, tudo, e, e... Comida, como que eu fazia? Como é que eu fazia?

P - Quando lacrou a senhora ficou dentro da sede, é isso?

R - Hã?

P - Quando lacrou a porta, a senhora ficou, a senhora morava...

R - Eu morava embaixo da sede, de um porão bonito, né? Eu morava embaixo.

P - Quem eram os três jogadores que moravam lá, a senhora lembra?

R - Os jogadores?

P - Que moravam três lá, a senhora se recorda?

R - O... O Camargo, o... King e Zé, e Zé Mole, tratavam ele de Zé Mole.

P - Por quê. A senhora lembra por que pegou esse apelido?

R - Ele... Ele veio de lá do Paraná já com esse apelido.

P - Zé Mole?

R - É.

P - E o King, por que ele chamava-se King, a senhora sabe?

R - Porque ele era grandão... Era grandão, um baita! Não chegou a conhecer ele?

P - Só de fotografia.

R - Hã?

P - De fotografia, sim. Um negro forte, né?

R - É.

P - Mas King era o quê, a senhora lembra o quê que era King?

R - Ele tinha um irmão que jogava no Corinthians, o King... Esqueci o nome dele agora... Hã?

P - Teleco.

R - Ah, Teleco... Era um grande jogador, o Teleco. E o São Paulo jogou com ele e empataram zero a zero. Aí, que alegria! Que alegria porque eu falei aquelas palavras pros jogadores.

P - A senhora pediu para... Pra garantir o resultado.

R - É.

P - A senhora lembra a primeira vez que o São Paulo foi campeão? Quarenta e três, né?

R - Foi quarenta e três que a moeda caiu de pé.

P - A senhora se lembra desse dia, desse jogo? A senhora chorou de alegria ou não?

R - Ah... Nem fala como eu fiquei contente!

P - A senhora tem várias medalhas aí...

R - Ah, do meu marido... Do Serroni todas essas medalhas que ele ganhava.

P - E as fotografias?

R - Essas fotografias são tudo do São Paulo. Se o São Paulo quer, né? Pode levar “tudo” aquelas fotografias antigas. O senhor viu, né? Tudo fotografia. Essas que deviam estar lá... Pro pessoal ver, né?

P - O marido da senhora que colecionava? Mandava enquadrar, tudo?

R - Tudo! Tudo, tudo, tudo, tudo... Tem mais ainda, tem mais, né Francisquinho? Tem um montão ainda... Sabe que a minha casa lá no Canindé, quando eu morava lá, meu marido estava vivo, do teto até embaixo, que era tudo quadro na parede! Tudo em volta, era tudo quadro do São Paulo. Ele era são-paulino, são-paulino que só vendo!

P - Algum dia a senhora tinha dado entrevista pra televisão, pra cinema, pra rádio ou não?

R - Hã?

P - A senhora... Já tinha dado entrevista prá televisão, por exemplo?

R - Ah, eu... Lá no Canindé, quanta entrevista! Os... É “críticos” que chamam?

P - Jornalistas.

R - Vinham tudo almoçar lá, com os jogadores, porque os jogadores comiam em casa e... E eles me mandavam falar... Falar deles, falar do Mauro... O Mauro que era um amor de moço, viu? O Mauro.

P - Qual era o apelido do Mauro, a senhora lembra ou não? O apelido do Mauro?

R - Não tem lá? Tem lá fotografia...

P - Não, o apelido dele... A senhora lembra como era o apelido do Mauro?

R - Não, não.

P - Marta Rocha.

R - Ah! Marta Rocha, isso mesmo!

P - Por que Marta Rocha, a senhora sabe?

R - Porque ele era bonito, porque ele se tratava, se enfeitava, se... Ele era um... Uma, uma moça... Se vestia, se arrumava.

P - Tinha jogador que era muito relaxado, que se vestia muito mal?

R - Ihhh...

P - A senhora passava roupa tão bem...

R - Tinha o Remo... Tinha o Remo, tinha o Pardal, o Pardal andava relaxado!

P - (risos)

P - E o Canhoteiro?

R - Ih! O Canhoteiro era outro... Agora quem andava bem vestido era o Mauro, era o... O Noronha, era o...

P - O Sastre também era muito elegante, não era?

R - Era, o Sastre era. O Sastre era... Que pena que ele foi embora logo, né? Ele foi embora logo pra Argentina.

P - E o Zizinho? O Zizinho também era...

R - O Luizinho?

P - Não, o Zizinho.

R - Ah, o Zizinho ficou pouco tempo no São Paulo.

P - Porque que ele foi embora, a senhora se recorda?

R - Não sei.

P - A senhor falou do Luizinho. O Luizinho a senhora conheceu melhor, né?

R - Ah, conheci... Agora teve festa lá... Até eu fui uma homenageada, como que... Fui homenageada e ganhei o troféu, também. Eles me chamaram lá em cima no...

P - No palco.

R - No palco e, e... E me deram o troféu. Bonito mesmo! De quarenta e três, o troféu.

Não sei se o senhor viu.

P - Tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de ganhar do São Paulo, além daquela casinha que a senhora não recebeu?

R - Eu gostaria de ganhar, se o São Paulo me der, a casinha pra morar... O que eles me prometeram... Porque todo o mês, eles me mandam o ordenado. Agora esse mês foi quinze mil, né? Todo mês eles me mandam o ordenado.

P - E a casinha, a senhora gostaria que fosse aonde? Que bairro a senhora gostaria de morar?

R - Eu não sei, onde eles me dessem a casa, né?

P - Já estava bom, né?

R – É, já... O lugar que eles me dessem já...

P - A senhora acha importante a senhora dar esse depoimento da... Da sua vida aqui?

Da senhora, dos seus filhos, do São Paulo... A senhora gostou de dar essa entrevista?

P - A senhora achou importante dar essa entrevista?

R - Ah! De dar essa entrevista?

P - A senhora gostou de dar essa entrevista?

R - Essa entrevista aqui, gostei, gostei!

P - Achou importante?

R - Achei muito importante... Acabou?