Projeto: Memórias do Vale do Ribeira - Diálogos
Entrevistado por Danilo Eiji e Iamara Nepomuceno
Depoimento de Felix da Veiga do Nascimento
Iguape, 26/07/2011
Realização Museu da Pessoa e Associação Núcleo Oikos
Entrevista: MVRHV001
Transcrito por Andiara Pinheiro
Transcrição revisada por I...Continuar leitura
Projeto: Memórias do Vale do Ribeira - Diálogos
Entrevistado por Danilo Eiji e Iamara Nepomuceno
Depoimento de Felix da Veiga do Nascimento
Iguape, 26/07/2011
Realização Museu da Pessoa e Associação Núcleo Oikos
Entrevista: MVRHV001
Transcrito por Andiara Pinheiro
Transcrição revisada por Iamara Nepomuceno
P/1 – Senhor Félix, inicialmente gostaria de agradecê-lo por vir e aqui nos dar esse tempo precioso e entrevista.
R – Eu escuto só com um ouvido, hein!
P/1 – Está bom, vou falar mais alto.
R – Só com o direito porque com o esquerdo é negativo.
P/1 – Mas o senhor está me ouvindo?
R – Estou.
P/1 – Tudo bem? Maravilha! Estou agradecendo ao senhor por vir aqui e nós dar essa entrevista. Bom, para identificação da nossa fita, eu queria que o senhor falasse o seu nome completo, o lugar e a data de nascimento.
R – Sim.
P/1 – Por favor, o seu nome completo.
R – Félix Veiga do Nascimento.
P/1 – O senhor nasceu em?
R – Em Caiobá, Peropava.
P/1 – Caiobá, Peropava que é aqui em...
R – É município de Iguape.
P/1 – Município de Iguape. E data.
R – 23 de março de 1929.
P/1 – 23 de março...
R – De 29.
P/1 – Perfeito! Senhor Félix, antes de começar a perguntar sobre o senhor e a sua história, eu queria que contasse um pouco das origens de sua família. O senhor conheceu os seus avós?
R – Eu conheci só o meu avô da parte do meu pai.
P/1 – Mas o senhor sabe a história deles?
R – Não.
P/1 – Da família?
R – Não. A única história que eu sei que ele era descendente de português. Só o que eu sei. E me criei na zona rural, quando me mudei para a cidade estava com 15 anos de idade e aqui fui fazendo a minha vida, trabalhando em diversos serviços, até que entrei no serviço público e me aposentei. E assim foi a minha vida. Os meus pais saíram daqui, foram para São Paulo, lá findaram a vida. Minhas irmãs queriam que eu fosse com eles, mas não quis sair de Iguape, que é uma cidade que amo, e digo para vocês: quem tiver a oportunidade de gozar e viver uma vida mais longa, venha para Iguape.
P/1 – Deixa eu entender um pouco. Os seus pais são daqui.
R – Meus pais? É, também de lá, todos nascidos lá.
P/1 – Todos de Caiobá?
R – É.
P/1 –
Me conta
um pouco sobre seus pais. Eles nasceram ali e os seus avós então já estavam ali.
R – É.
P/1 – Como que era Caiobá nessa época?
R – Caiobá é um sítio que se plantava tudo, que era ... arroz,
feijão, mandioca, milho, tudo saía de lá. E foi um lugar muito habitado em Peropava, no Caiobá, aqui estiveram até japoneses quando imigraram para morar na região de Iguape. Depois eles foram saindo, mudando, muitos morreram, e a região ficou um lugar com poucos moradores. Agora, se não me engano, Caiobá
tem quatro ou cinco famílias de moradores. Eu tive a oportunidade, depois que me aposentei através da prefeitura, de construir a caixa d’água lá no Morro de Caiobá com capacidade para 20 mil litros d’água, esta rede de água que agora abastece a zona de Peropava
vem deste Morro.
P/1 – Ah, isso foi ao acaso? Foi por acaso ou o senhor escolheu esse projeto?
R – Não, não foi projeto meu , isso foi projeto da prefeitura. E o prefeito me encarregou de fazer aquilo e fiz a obra e está abastecendo Peropava com água de Caiobá. Foi um serviço que eu trabalhei e fiquei dois anos naquele mato construindo a caixa d' água.
P/1 – Voltou para lá, é isso? Voltou para as origens ali.
R – Ah, sim. E é um lugar muito produtivo, Caiobá, tem terra muito boa. Foram as primeiras terras onde foram produzidos muito arroz de Iguape, que eu não sei se vocês sabem sobre a história do arroz em de Iguape. O melhor arroz que foi exportado, foi o de Iguape,
sobre isto tem uma história longa. Depois cessou esse plantio e veio o da banana, entraram os bananeiros. Todas as zonas de Peropava eram só de plantação de banana, inclusive quando eu tinha quatro ou cinco anos de idade, meus pais trabalharam com os primeiros bananeiros que foram trabalhar no Peropava, meu pai foi empregado deles e naquele tempo até em Iguape corria muito dinheiro, hein! Acho que mais do que agora. Para vocês terem uma ideia, em Iguape saíam e entravam dois barcos por semana para tirar banana e levar para Argentina, além de exportar para outros lugares, levavam para o porto de Santos e daqui a outros lugares. Foi uma temporada boa de muita produção de banana em Peropava. Com o tempo isto foi acabando, entrou a produção da verdura. Dois caminhões, três caminhões tirando verdura por semana lá do Peropava. Depois começaram as enchentes e isto também foi acabando,
agora está muito devagar. Têm uns moradores lá, mas já não produzem quase nada.
P/1 – Senhor Félix, deixa eu voltar um pouco aqui. O senhor nasceu em um sítio na zona rural?
R – É.
P/1 – O senhor comentou que primeiro veio o arroz...
R – Veio o arroz.
P/1 – E comentou, por acaso, que tinham os imigrantes japoneses.
R – Ah, sim.
P/1 – Eram várias famílias que se estabeleceram ali? O senhor tinha vizinhos japoneses?
R – Tinha vizinhos japoneses. Naquela época, Caiobá tinha mais de dez famílias de moradores só nesta região, no morro. Tinha mais de dez famílias de moradores.
P/1 – Mas eram famílias de imigrantes?
R – É, famílias de imigrantes. Tinham duas famílias japonesas de imigrantes lá em Caiobá.
P/1 – O senhor tinha contato com eles?
R – Tinha. Os meus pais, inclusive, até trabalhavam para eles, entende? Faziam o plantio e recebiam a diária, ou seja, recebiam pelo dia de trabalho. E assim era a vida da zona rural.
P/1 – Como foi a sua vida lá na zona rural? O que o senhor fazia ? Conta como que era essa vida na zona rural.
R – A zona rural era plantar, mandioca, arroz e milho; criar galinha e porco. Tinham alguns, no final da história, que tinham uma vaquinha ou duas no pasto e a vida era assim. Naquela época, até quem trabalhava nas fazendas não
comprava na cidade porque os armazéns daqui eram parecidos ao de uma loja na cidade, tinham tudo, não precisavam nem se preocupar de vir à cidade. E eu ainda alcancei esse tempo, todos esses armazéns abastecidos com tudo isso, eu era criança e tinha na época oito anos ou sete anos, mas lembro perfeitamente que era assim. E foi-se levando a vida, depois nós nos mudamos, saímos de lá do Peropava, voltamos para um lugar perto
da Juréia,
moramos perto da Barra do Ribeira. Também era um sítio produtivo que... (o celular desperta na hora de dar o remédio para
a esposa).
P/1 – Por que a sua família saiu dessa região?
R – Do Peropava?
P/1 – Isso.
R – Ah, do Peropava foi como eu falei agora a pouco, os bananais foram,
da mesma forma que a produção do arroz, acabando, desaparecendo. Os fazendeiros de banana foram acabando, até o pessoal também foi saindo, inclusive, os moradores daquela época e os terrenos que eles tinham venderam para os bananeiros fazerem o bananal, com isto, ficaram sem terra para trabalhar, então muitos mudaram para outros lugares, mudaram para a cidade. A maioria do povo hoje da cidade, é este pessoal da zona rural que mudou para lá.
P/1 – Como que era isto? Quando era criança, o senhor trabalhava na roça? O senhor se lembra quando vieram os bananais?
R – Como é que veio a banana?
P/1 – Nesse movimento de mudar de plantação do arroz para banana, o senhor se lembra disso?
R – Lembro.
P/1 – Como que era?
R – Olha...
P/1 – Como foi isso...
R – Os primeiros bananeiros que apareceram foram três fazendeiros de banana. Compraram o sítio, fizeram os plantios e depois começaram a produzir e a entrar dinheiro, porque como eu falei, entravam no Peropava por semana, dois barcos que eram carregados e retiravam, de lá, esta produção. Então os outros pequenos produtores também foram incentivados pelos maiores e começaram plantar assim foram levando a vida deles, uma vida melhor. Quando acabou a produção dos grandes, a dos pequenos também acabou: assim ficou toda a produção de banana do Peropava. Depois a vieram as enchentes que acabaram com a zona rural por isso que ficou pouca gente morando agora no Peropava, mesmo na Ribeira aqui do lado de Registro, acabou com muita plantação de banana dos plantadores que foram saindo.
P/1 – Enchentes?
R – É, enchentes. Para eu historiar as enchentes, eu vou falar do Valo Grande. Este Valo não existia antes, não havia como passar para o outro lado, era tudo continente. Como o porto da cidade era do lado de cá onde existia o mercado municipal, (agora é uma casa de artesanato que foi construída após terem
desmanchado o antigo mercado de peixe), por isto os moradores daquela época inventaram de abrir uma vala lá da barragem para chegar até o porto, perto deste mercado. Abriram esta vala feita à enxada, diz a história que eles pulavam assim, de um lado para o outro, porque eles abriram um canalzinho para entrar uma canoa com as mercadorias que vinham do sítio e trazer para o centro da cidade. Depois a força d’água foi carregando a terra, e abrindo o caminho, que deixou o rio medonho, por isto foi preciso colocar Ferry Boat para atravessar de lá para cá e agora fizeram uma passarela para travessia, de tão largo que está o tal do Valo Grande. Então, quando vêm essas enchentes grandes, inundam toda a zona rural porque o rio Ribeira está tão assoreado que só quem conhece como eu conheço o rio Ribeira para atravessar. Tem um lugar chamado Jurumirim, lá perto de Registro, era um lugar, era baixo, muito raso, entende? Para passar embarcação tinha-se um prático da antiga Fepasa (Ferrovia Paulista S/A) que morava lá, ele fazia a sondagem do rio, do canal, para as embarcações que iam daqui de Iguape para chegar até Registro, eles sondavam por onde passava o canal, pegavam o barco e levavam até Registro porque a correnteza da água de noite mudava o curso do canal, a areia é movediça e a força d’água vai mudando; então tinha aquele prático que todo dia fazia a sondagem daquele trecho a noite para passarmos de manhã para Registro; nós dormíamos e no outro dia cedo ele saía de lá, vinha sondar novamente onde é que estava o canal e voltava,pegava o barco novamente para passar pleo lado de cá. Hoje em dia, para vocês terem uma noção, passa-se a pé neste local porque aterrou tudo, não tem mais canal para passar embarcação. Há cerca de cinco anos atrás fui de carro aqui pelo Peropava que tem uma estrada que vai à Registro, tinha uma montanha de areia no meio do rio, com mata mais alta do que essa casa aqui. O Valo assoreou toda a Ribeira e quando dá enchente aqui, ele inunda toda a zona rural como acontece em Peropava, o rio inunda tudo.
P/1 – O senhor usava muito o rio?
R – Muito o rio.
P/1 – No quê?
R – Usava muito o rio. Essas embarcações da Fepasa, foram compradas dessa companhia de navegação fluvial que eu mencionei no começo, a antiga
Sorocabana. Então nós éramos funcionários dessa navegação da Fepasa. Quer dizer, não tinha estrada, não existia estrada. O único acesso dos moradores da zona rural a outros lugares era por meio da embarcação; nós fazíamos a linha em Iguape, Iguape a Registro, Juquiá, Sete Barra e Eldorado Paulista. Eu trabalhava nessa linha. Depois eu fazia outro trajeto, porque não tínhamos condição também para tirar o pessoal da zona rural, nós trabalhávamos a embarcação que ia
pelo Peropava, Barra do Ribeira, Rio de Una e Rio Pequeno até o Rio das Pedras, tudo de barco. Nesta é poca a Fepasa criou uma linha de navegação do porto de Iguape à Cananéia. Depois ampliaram de Cananéia até Paranaguá, então todas essas margens do rio não tinham estrada, não existia esse meio de acesso.
P/1 – Quando o senhor morava em Peropava, o senhor vinha para cidade de Iguape?
R – Só de canoa.
P/1 – Canoa. O senhor fazia isso?
R – Só de canoa a remo. Mas já tinha embarcação da antiga Companhia Fluvial Sul-Paulista. A maioria do movimento era só de canoa a remo.
P/1 – Vocês ficavam quase separados então.
R – É.
P/1 – Ficavam isolados.
R – Isolados. Agora tem estrada de todos os lados do rio e em todos esses lugares não precisa mais de embarcação.
P/1 – Senhor Félix, pensando nesse passado quando o senhor ficava um pouco ilhado, o senhor costumava ir com frequência para cidade de Iguape?
R – Não.
P/1 – Não vinha.
R – Não, não era frequente.
P/1 – Tinha escola?
R – Tinha. Na zona rural tinha escola, lá onde eu morava tinha escola.
P/1 – E como era essa zona rural? Tinham poucas famílias? O que tinha? O que vocês faziam por exemplo?
R – Tinha bastante.
P/1 – Tinham muitas famílias?
R – Tinham muitas famílias.
P/1 – Como era esse dia a dia ali? Como era, vocês tinham festas, como funcionava?
R – Festa?
P/1 – Por exemplo.
R – Olha, festa lá era difícil. Quando o pessoal queria uma festa, pegava uma canoa e ia para Iguape, mas a festa de vinho era no Natal, no fim do ano que aconteciam. Era muito difícil vir em Iguape mas haviam aqueles que podiam mais, os que podiam menos só escutavam foguetes daqui e dali, porque vir em festa que era bom, não vinham.
P/1 – Mas qual era a diversão do pessoal?
R – Lá?
P/1 – Quem não tinha dinheiro por exemplo, qual era a diversão?
R – Lá no sítio, a diversão do pessoal que gostava era o baile.
P/1 – Baile.
R – É, baile. Esse, o pessoal gostava. Faziam bailes, aquelas festinhas para quem ajudava no trabalho, no fim a festa era baile, era só essa a diversão que tinha. Acontecia em uma igrejinha lá, no lugar que o padre comia, ficavam dois dias lá, faziam aquela festinha. Quando o padre aparecia, acabava, essa era a diversão. O pessoal do sítio á gostava de uma bola e em um campo de futebol. Iam assim. Nós, eu e meus pais, exemplo, somos evangélicos. Então nossa diversão era
de ir aos domingos à igreja que nós tínhamos lá, temos até hoje. Passávamos a tarde lá na igreja, com os irmãos ali conversando e no final do dia
voltávamos para casa, trabalhávamos a semana toda retornando no domingo seguinte à igreja, com aquela mesma
comunidade, com os irmãos esta era a nossa única diversão.
P/1 – E daí o senhor resolveu ir para Iguape, é isso?
R – É.
P/1 – Mudar.
R – Mudar.
P/1 – O senhor, né?
R – Minha mãe, quando eu tava com 15 anos, falou ao meu pai, “Olha, escute, nós vamos sair daqui do sítio, vamos mudar para a cidade. As meninas estão moças; os rapazes estão aí, precisam arrumar um meio de vida, não podemos ficar nessa situação aqui”, resolvemos mudar para cá e graças a deus, foi uma boa hora isso que a minha mãe resolveu. Eu vim para cá, entrei na cidade, logo
arrumei serviço, os meus pais começaram a trabalhar e já tiveram outro nível de vida, melhor do que aquele que vivíamos. As minhas irmãs, todas trabalhando, depois o meu primo, o sobrinho dele foi embora pra São Paulo arrumar um lugar, o levaram lá para trabalhar, depois levaram a minha mãe, minhas irmãs e se arrumaram por lá; as minhas três irmãs, casaram, viveram e morreram lá. Meus pais e minhas irmãs morreram e eu fiquei sozinho aqui e ainda queriam que eu fosse para lá, eu digo, “Não vou, que quero ficar em Iguape porque eu não acho um lugar melhor do que Iguape” e até hoje eu não acho, por isso que eu falo, “Iamara, você venha para Iguape, Iamara” (risos).
P/1 – A gente vai comentar sobre isso, senhor Félix. Me conta um pouco: como é que foi chegar nessa cidade, como era Iguape quando tinha seus 15 anos, como era essa cidade aqui?
R – Como era a cidade?
P/1 – É. Mudou muito?
R – Ah, mudou bastante, muito, muito.
P/1 – O que o senhor lembra da cidade, como era?
R – Mudou bastante. Para começo de conversa: quando nós chegamos aqui, foi depois da guerra, guerra de 45. Quando terminou a guerra, nós nos mudamos para cá. No tempo da guerra, nós estávamos no Peropava, difícil, precisávamos
vir aqui na prefeitura
que não tínhamos lá: sal, querosene e açúcar. Eram as únicas coisas que não eram produzidas e não davam na zona rural que eles forneciam, um quilo, dois quilos para cada pessoa. Terminou a guerra e a coisa melhorou e nós nos mudamos para a cidade. Era difícil a vida...
P/1 – Como vinham essas notícias da guerra? Fiquei curioso.
R – Como vinham?
P/1 – É. O senhor acompanhou, a sua família as notícias da guerra? Como foi?
R – Não, naquele tempo, aqui nós só ouvíamos o avião que passava por cima das casas, não cessava de passar avião, então nós sabíamos que a coisa estava quente.
P/1 – Mas vinham notícias?
R – Ah, aqui na cidade tínhamos notícias porque um batalhão do exército
que veio tomar conta da cidade de Iguape. Depois, terminou a guerra nós viemos para cá; em 49 tinha aqui na prefeitura o tiro de guerra de Iguape. E eu inclusive, servi neste tiro de guerra
não saí, fiquei aqui. O tiro de guerra ficou por aqui durante dois anos.
P/1 – Depois saiu. Isso foi no contexto da guerra.
R – É, foi, depois da guerra. E daí a cidade, como você me perguntou agora, como era no começo quando eu vim para cá, ela era muito mínima, muito mínima. Naquele tempo eu alcancei a luz de lampião na cidade, ainda tinha luz de lampião na rua, não era luz elétrica. Depois veio a luz elétrica, com
a usina elétrica...
(PAUSA)
P/1 – Seu Félix, então a gente estava retomando. Quando o senhor chegou na cidade, como ela era?
R – A usina elétrica é bem na subida do Cristo Redentor, na estrada que vai para Barra. Meu tio trabalhava nela como foguista, morava com a gente e era quem nos sustentava quando criança porque naquela época meu pai estava doente; eu era ajudante dele e entrava dentro da caldeira para limpar seus tubos; eu era pequeno, então ele dizia, “Você que é pequeno, entra para mim e limpa os tubos da caldeira” e eu entrava lá com uma bucha, com uma vareta de ferro e limpava toda aquela tubulação. Todos os dias eu fazia aquilo. Eu saía de lá na cor de isso aí, de coisa queimada, tinha que tomar banho. Mas era menino com oito, dez anos. Bom, a usina era ali. Depois disto, os patrões compraram um motor a óleo diesel, mudaram a empresa para perto da avenida, assim desativou a caldeira à lenha. Então veio a luz elétrica e aí não teve mais o motor. Na época, quando eram dez horas apagava a luz, ficávamos todos no escuro mas era... em compensação, naquela época a cidade era mais bem guardada que agora, tinha policiamento rondando a cidade, a noite toda vigiando e havia pouca gente. Hoje em dia não se vê mais isso aí.
P/1 – Isso quando o senhor era novo.
R – É, não se vê mais isso aí. Antigamente tinha isso, agora não se tem mais esse tipo de policiamento. Bom, nessa época, ainda existia, de tão pequena que era a cidade, uma parte que havia rancho de palha, não era casa de telha,
era casa coberta com palha. Tinha uma rua ali perto da avenida, que ainda era rancho de palha. Essa avenida da entrada da cidade, onde tem todas essas casas de comércio, era
cheia de bambu, era um bambuzal medindo a partir
daqui de perto do campo de futebol, quase até chegar lá na barragem. Veio o progresso, arrancaram aqueles bambus, fizeram a avenida e hoje está aí, o comércio de todos os lados, a cidade cresceu bastante. E ficou bem melhor, foi melhorando aos poucos, antes era tudo de areia, com o passar do tempo foram calçando tudo até ficar do jeito que é hoje.
P/1 – Desculpe, o que é que era tudo areia?
R – Tudo areia, só na areia, a cidade era só areia, não tinha nada, o calçamento da cidade melhorou de uns 50 anos para cá.
P/1 – Como era a casa de vocês quando mudaram para cá?
R – A casa? Piso sem nada, só aterrado, de barro. A maioria das casas aqui eram assim, só aterro de barro, ao contrário de hoje que todas as casas são com piso, cimentado. Naquela época nem cimentado era, era tudo barro batido, só barro do morro, aterrava bem aterrado, muito bem batidinho, muito bem lisinho e não tenho vergonha de te contar. Vou te contar uma coisa: quando eu vim para cá, a primeira casa que eu morei foi rancho de palha nessa rua onde eu estou te falando, viu? Com 15 anos de idade eu morei em rancho de palha aqui na cidade e graças a Deus fui trabalhando, fui lutando, fui vencendo e hoje tenho uma casa boa para morar nela.
P/1 – Quando o senhor chegou, disse que todo mundo conseguiu um emprego?
R – É.
P/1 – O que estava acontecendo na cidade assim, que tinha tanto emprego?
R – Naquele tempo, sabe o que acontecia? Em Iguape já gcorreuh, parece, mais dinheiro do que gcorreh agora. Havia aqui quatro engenhos de beneficiar arroz; tinha 16 indústrias que secavam a manjuba; cinco fábricas que industrializavam o palmito; uma fábrica de tamanco na entrada, perto da barragem; três serrarias para tirar tábua que era a caxeta para fazer lápis da Fritz Johansen. Hoje em dia não existe nada, acabou tudo isso. Haviam compradores de esteira de “piri”, não sei se vocês conhecem, carregava-se caminhões a caminhões para levar para Santos para forragem de navio. Não tem nada disso hoje.
P/1 – O que aconteceu, seu Félix?
R – Acabou tudo.
P/1 – Como foi? O que foi acontecendo?
R – Primeiro é o seguinte: naquele tempo foi proibido o corte da madeira
de caxeta, hoje as terras legalizadas têm ordem para cortar essa madeira; o corte de palmito também foi proibido e permanece até agora; a manjuba, deixaram de industrializar porque o que se pesca agora não vence o consumo de levar fresca para o Ceasa (Centro de Abastecimento S/A), o caminhão fica esperando, é carregado, vai para o Ceasa mas não dá tempo de secar, se vende tudo fresco. Naquela época, o consumo era pouco, com a secavam
podia até exportar para outros lugares; e a esteira de forragem de navio, hoje em dia, não existe mais também, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) não deixa mais cortar
nada na mata, não deixa cortar nada, isto para limpar o rio, é tudo feito debaixo de ordem, então não pode cortar mais e nem há procura mesmo disso. Inclusive eu, quando estava trabalhando, levei muita esteira para Paranaguá, enchia o barco de esteira e levava, pois tinha muito consumo no porto de Paranaguá para forragem dos navios. Até 1980, quando me aposentei, ainda tinha a saída de esteira de forragem de navio, hoje em dia não tem mais. Foram coisas que fizeram desaparecer todo o trabalho do povo de Iguape, sumiu tudo, não existe mais.
(TROCA DE FITA)
P/1 – Senhor Félix, então só retomando. O senhor comentou que haviam muitas empresas, muitas indústrias e que de repente foram surgindo leis, proibições pelo Ibama. Eu queria que o senhor contasse um pouco como foi, sendo morador daqui, como foi a chegada dessas leis, dessas reservas que foram sendo criadas. O senhor se lembra disso?
R – Olha, sobre isso eu não tenho muito conhecimento, da forma como
começou. Não posso detalhar para vocês como era a lei que chegou, se era do Ibama, eu não sei. Só sei que está aí e num certo ponto até foi bom, sabe, porque estava muito devastada a mata, estavam devastando demais. Caça, por exemplo, estava sendo extinto demais, porque o pessoal estava
acabando com tudo , por esta parte até que foi bom. Só isso o que eu posso dizer, porque para muita gente que usufruía disso, as proibições foram ruins. Mas eu, por exemplo, não usufruí disso, eu acho que até certo ponto foi bom.
P/1 – O senhor se lembra disso? Quando começaram as proibições, ou por exemplo, essa questão da caça. Era comum as pessoas caçarem assim?
R – Era.
P/1 – As pessoas de Iguape?
R –
A sobrevivência do povo do sítio era a caça, a pesca, como agora, era como sobreviviam o povo da zona rural. E num ponto fez muita falta para muita gente que tinha pouco recurso aquisitivo até para comprar outros alimentos, fez muita falta.
P/1 – Essa questão, quando o senhor veio para cá então, a cidade estava mudando?
R – Estava.
P/1 – O senhor disse que tinham várias empresas . Qual foi o seu primeiro emprego aqui em Iguape?
R – Ah, o primeiro emprego foi numa serraria, trabalhei na serraria que fazia essas tabuinhas de lápis para Fritz Johansen ( atual A.W. Faber-Castell).
P/1 – Como é que era essa dinâmica da serraria?
R – Olha, se trazia a tora da caxeta e industrializava todos os pedacinhos de madeira, para isto tinham as máquinas que tiravam todas as tabuinhas, com
sete centímetros de largura e 20 de comprimento, ali se tirava toda aquela montoeira de tábua, secava no sol, depois escolhia-se as de gprimeirah para fazer fardos para mandar para Fritz Johansen fazer lápis. Depois comecei a sair pela zona rural e ia puxar madeira para essa serraria, puxava muita madeira; ia buscar muita caxeta nos sítio para eles com a embarcação, tudo isso eu fiz, trabalhei.
P/1 – Desculpe, como funcionava? Como é que era esse trabalho? O senhor ia buscar...
R – Quando eu não estava mais neste trabalho na serraria, não era mais empregado.
P/1 – Ah, era em outro lugar.
R – Não, eu ia só transportar a madeira para eles.
P/1 – Como é que funcionava, você ia para o meio do rio...
R – Por rio,
com a embarcação, pegava lá no meio do mato e trazia para eles. Depois eu transportava pelas embarcações da Fepasa, nós tínhamos um rebocador e 12 chatões, cada chatão pegava 36 toneladas. Eu trabalhava neste rebocador, ia lá no rio, trazia o chatão carregado com 36 toneladas de toras para a serraria, nesta época era empregado da Fepasa, até então o meio de transporte para eles era esse, sempre quem ia buscar era eu, o outro colega que conhecia bem o rio ia buscar, trazia um chatão com 36 toneladas, carregadas de toras de caxeta.
P/1 – Nossa, mas isso foi mais ou menos em que época, seu Félix?
R – Foi em 1970, em 65 ainda estava funcionando, porque eu me aposentei em 80 e já não existia mais esse trabalho.
P/1 – Bom, vou retomar isso ainda. Antes do senhor entrar ali, estava na serraria, depois fez esses transportes e terminado isso foi para onde?
R – Depois eu trabalhei numa indústria dessa de manjuba, pegando peixe no rio Ribeira,,
eu pegava um barco da indústria e ia buscar na Ribeira, atracando de porto em porto, recebendo a manjuba, pesando, marcando e trazendo, trazia uma barcaça lotada de manjuba todo dia. Nisto se passaram seis meses de pesca, então quando terminava, recolhia-se barco e ia fazer outra coisa. Eu recolhia o barco e o patrão já me chamava para ir para o balcão do supermercado que ele tinha. Já trabalhei nisto. “Vem aqui experimentar agora para ver se você dá para balconista. Se você acertar no balcão, você fica no balcão”. Fui para loja trabalhar no
balcão, me acertei bem, quando completou um ano, eu falei, “Olha, quero sair, não quero mais”, “Mas por que vai sair?”, “Não quero mais ficar aqui, eu quero sair. Balcão é cadeia e eu não tô acostumado com cadeia, eu tô acostumado a andar livre, solto, nisso aqui não dá para ficar. Entrar sete horas da manhã e sair nove horas da noite não é pra mim, eu gosto de andar livre”, “Ah, mas agora que você está bom no balcão, que eu te trouxe para experimentar e você se acertou, vai...”, “Não, eu não quero, vou sair fora”. Sabe o que fui fazer na época? Cortar palmito, era livre na época e tinha muito para cortar, fui para a mata, com foice e machado para cortar, eu e meu pai. Lugares que você nem imagina, eu andei cortando palmito para sobreviver. Era muito longe, por isto, se fazia um rolo com quatro dúzias de palmito, colocava nas costas e trazia. Se você saísse de cima de uma madeira, de um ponteado de madeira, você atolava até a cintura de tão mole que era o solo. Então para não me atolar naquilo, eu jogava a carga fora, caso atolasse. Saía do atoleiro, pegava a carga, levava num lugar mais firme e colocava nas costas novamente. Dois lugares desses que eu trabalhei só se fazia uma caminhada por dia, ia de manhã para a mata, tirava uma carga e de tarde voltava, quando chegava em casa já era bem a noitinha; chegava e deixava na indústria, aquela carga de palmito, recebia o dinheiro e comprava o alimento e depois ia para casa. Fis isto durante muito tempo. Naquela época
não tinha a proibição de cortar palmito, não tinha nada, tinha muita indústria e foi indo assim. Depois eu falei, “Olha, isso aqui não tá certo, deixa eu procurar uma outra coisa” e fui para o DER (Departamento de Estrada e Rodagem), em 58. Trabalhei 11 meses, depois abriu uma vaga na Fepasa, fui lá, pedi o lugar, me recolheram novamente e voltei para a Fepasa no dia 11 de novembro de 58 e não saí mais. Aposentei-me em 1980, peguei os 25 anos de serviço com a lei da insalubridade, com 25 anos de trabalho. Contei os tempos que tinha trabalhado atrasado, aposentei com 25 anos, três meses e 18 dias de trabalho, é!
P/1 – E conta um pouco qual que era esse trabalho afinal, que o senhor ficou anos. Do palmito, o senhor foi para essas empresas. O que o senhor fazia nessas empresas?
R – No DER, primeiro eu trabalhei...
P/1 – Desculpa, o DER é o que?
R – O DER é o Departamento de Estrada e Rodagem. Quando começaram a abrir essa estrada aqui de Iguape, na qual vocês vieram, naquele momento eu estava lá, no dia dez de novembro de 1958. Abriu uma vaga, eu a consegui... “Vai lá no médico fazer exames, se você passar, amanhã você já entra”. Fiz o exame médico, passei, quando foi dia 11 de novembro de 1958 comecei a trabalhar, não, dia 11 não, foi quando eu saí, foi no começo do ano que eu entrei. Eu entrei, trabalhei 11 meses. O serviço lá era... primeiro comecei
na foice, o pessoal que entra primeiro tem que pegar no duro, não tem vaga, “Não tem vaga para você que tem capacidade para outra coisa, mas não tem vaga para você porque já tem um outro no lugar. Então pega uma foice e vai”, “Não quero escolher serviço, eu quero trabalhar para sobreviver, para mim não interessa, seja com a foice, machado, enxada, não tem problema”. Deram-me uma foice e no outro dia fui trabalhar. Trabalhei dois dias na foice, aí faltou um motorista para levar o engenheiro no trecho de locação pelo rio poque não tinha estrada para isso, andava-se pelo rio fazendo locação da estrada. O engenheiro me chamou, “Você entende de motor?”, “Eu entendo, trabalhei muito...”, “Vem aqui e vê se você consegue fazer funcionar esse motor”, fui lá, peguei o motor, fiz funcionar, “O que é que tem o motor? Não tem nada”, “Então você fica aqui no lugar desse outro motorista, ele vai para foice e você vai trabalhar com o engenheiro”, aí fui trabalhar com o engenheiro. Quando terminou a locação da estrada, mandaram-me guardar o barco a motor, levaram-me para o trecho de estrada com um apontador de uma companhia que estava puxando terra para fazer o aterro da estrada, fiquei numa boa, só no lápis ali apontando caminhões de terra. Quando abriu vaga aqui na antiga Fepasa, aí eu falei, “Olha, agora eu vou sair, vou fazer um exame para a Fepasa e ver se eu vou para lá”. Não quero ser melhor do que ninguém, mas sempre fui bom funcionário, obediente, nunca desobedeci, bem mandado, cumpria com o meu dever. “Ah, mas o engenheiro nem o encarregado não queriam que eu saísse do DER”, “Não, vou sair porque eu vou procurar coisa melhor, acho que é mais conveniente lá, eu vou sair”, “Bom, se você quiser sair, saia, mas se não quiser, não saia, o seu lugar está aqui”, “Não, eu vou sair”, aí peguei, saí dia 11 de novembro de 58 às 11 horas da manhã eles me deram a demissão lá, duas horas da tarde eu já entrei para cá, no mesmo dia, fiquei aqui trabalhando até aposentar. Fui trabalhando aqui com o marinheiro do barco, fui indo, depois me arrumaram uma licença para eu trabalhar como comandante do barco para Paranaguá. Quando chegou o limite, que não podia mais me dar a licença, “Agora não tem mais licença. Você tem que prestar o concurso, ver se tira a sua carta de piloto para você funcionar, se não, não damos uma licença para você”, aí fui, eu e outro colega em Paranaguá, fizemos a inscrição, passamos no teste em Paranaguá, deram-me uma carta
e para o outro colega e ficamos funcionando, os dois, até aposentar, nos aposentamos viajando para Paranaguá como piloto do barco e esse era misto, carga e passageiro. Saía daqui às terças-feiras ao meio-dia, pernoitava em Cananéia, às seis da manhã nós saíamos para Paranaguá. Chegávamos às seis horas da tarde lá em Paranaguá porque ia parando, pegando passageiro, pegando carga, deixando passageiro, fazendo parada, então chegava quatro, cinco horas lá em Paranaguá. Se fosse direto daqui de Iguape a Paranaguá, são 12 horas de viagem se for fazendo parada intermediária, pegando passageiro e deixando e não conversando muito, não molhando muito são 12 horas daqui a Paranaguá.
P/1 – Dessa sua experiência com os barcos, conte um dia que tenha sido
muito marcante na sua vida profissional, que tenha acontecido algo diferente.
R – Olha, diversas vezes aconteceram coisas que a gente, hoje em dia a gente lembra e fica pensando, “Puxa vida, como é que Deus é tão bom que guarda a gente de certas coisas”. Mesmo sendo rio, mas há tempestade de vento e tudo dá em qualquer lugar e eu passei por cada uma na baía; tem uma baía de Paranaguá que é larga para atravessar porque ela é aberta, é imensa; quando você sai do canal que sai na baía, você vê Paranaguá no tamanho disso aqui, ó, aí você sai a caminhar mas não vai direto porque ele tem pedra, tem terras, lugares baixos, então você tem que pegar um canal, certo? Quando você chega no lugar certo tem que marcar e entrar, para depois entrar no Paranaguá. Ali você passa por frente de navio, atravessa com frente, na entrada do navio. Graças a Deus comigo não aconteceu isso aí, que nós não tínhamos ordem para caminhar quando não tivesse visibilidade, tínhamos que caminhar quando tivesse seguro, então caminhar de noite, anoiteceu, não tinha ordem para viajar mas teve outras embarcações particulares, de Registro, carregada de banana que foi atravessar, o mar estava fechado de nevoeiro e o navio bateu no meio. Ela foi para o fundo, o bom foi que
que se salvaram os marinheiros, mas a embarcação foi embora. Houve momentos que eu peguei cada tempestade na baía de Paranaguá, peguei pelo menos duas na Cananéia.
Em uma dessas, o comando era de dois andares, quando batia lá na proa do barco,
batia também no vidro lá em cima, assim caíram todos os vidros e fiquei no tempo lá (risos) dirigindo com a cara na chuva; os passageiros em baixo, “Esse homem é louco! Esse homem é louco!”, que louco o quê? Quem está no perigo não pode voltar, tem que enfrentar, tem que ir para frente e graças a Deus passamos e não aconteceu nada. Uma outra viagem, não era eu o piloto, eu trabalhava com o outro piloto, só que ele era medroso, eu não tinha muito medo mas ele tinha mais. Chegamos em um trecho do rio, antes de atravessar a baía de Paranaguá, no rio Itiberê, isto um pouco antes da boca da Barra, entramos neste rio, o mar tava feio, chegamos no local eram três horas da tarde, ele falou assim, “Você amarre bem o barco aí e mande os passageiros arranjar lugar pra dormir que amanhã nós saímos daqui de manhã”. Cumpri a ordem porque era ele quem mandava, cheguei uma hora, “Olha, saiam para terra, arrumem lugar, vamos dormir pois sairemos daqui de manhã”. Teve um morador de lá que veio e me perguntou assim , “O que vocês vão fazer aqui?”, eu digo, “Vamos dormir aqui para sair daqui de manhã por isto o piloto mandou o pessoal procurar lugar para dormir, sairemos de manhã”, “Olha, esse homem é louco, ele não quer ir agora que está bom para passar, amanhã ele não sai daqui”, “Tá bom”, aí fui lá transmitir para ele o recado, “Ah, esse é um doido, não sabe o que fala” ele falou, “Então tá bom”. De noite, vento, vento, vento e esse barco batia e ninguém dormia de tanta cacetada que dava assim, da onda do mar que entrava lá dentro do rio e o vento, passamos a noite assim. Quando amanheceu, o dia estava tão feio, “Não saia. E agora para sair?”, aí ele disse, “Vamos esperar que a maré vire de enchente, quando a maré virar ela vai toda a favor, então é hora de nós chegarmos e entrarmos”. Quando foi ali pelas nove horas mais ou menos, a maré deu de virar de enchente; quando virou, o Barra a dentro, ele disse, “Pode chamar o pessoal para nós irmos embora”, fui lá e chamei o pessoal do barco e saímos. Não chegou a andar 40 minutos, uma onda bateu no nosso barco, jogou para lá, jogou para cá, ele era medroso e levou um susto, “Pega o timão e vira para voltar para onde nós saímos”, eu falei, “Agora você não volta, me dá aqui, me dá aqui”, tomei o timão da mão dele. E esse pessoal ficou gritando lá e eu aqui, o piloto tremendo no canto e eu aqui, pá-pá-pá. Quando atravessei, cheguei lá na Ilha das Cobras que fica no meio da baía, “Olha, o senhor pode pegar, está aqui”, ele disse pra mim, “Olha, se não fosse você, hoje nós estaríamos mortos”, falei, “Pois é, isso é para o senhor largar de ser teimoso e medroso, porque o homem estava certo quando disse que não sairia daqui hoje e o senhor disse que sairia. O senhor queria conhecer mais do que aqueles que estão acostumados aqui? Então essa foi uma experiência dura; houve passageiros que queriam se jogar na água para não morrer, não sei como, num mar daqueles. Um passageiro ficou entalado pela cintura porque queria passar pela janela do barco para sair e se jogar na água antes que o barco virasse. Esse foi um. Depois, em outro dia, eu ia para Paranaguá, pra Guaraqueçaba, um rebocador com um chatão desses que pesava 30 toneladas vazio, puxava ele atrás com 100 metros de espia e rebocava o chatão, iam três passageiros comigo pro Paranaguá. Quando chegou bem no meio, o tempo estava ruim,
da baía de Cananéia, mas deu um tufão de vento e o mar pegou e jogou a lancha pra lá e pra cá, os passageiros eram duas moças e um homem dormindo em cima do banco assim no salão, caíram no chão, bateram a testa
e todos
se assustaram e o vento ali. Ele pegou o rebocador direitinho assim, e tombou, ficou de lado. Eu fiquei com a cabeça aqui fora da porta da casa do comando, só dava para sair para o lado de cá, mas segurando o leme aqui, olha, eu não podia largar e não podia desligar o motor também. Tinha um marinheiro muito bom, ele era um alagoano, disse, “Escuta, o que você está precisando aí?”, “Estou precisando que você me amarre a âncora e jogue ela aí para mim”, ele saiu de calção lá na chuva, chegou lá, amarrou a âncora, jogou o ferro lá; quando o ferro chegou na terra, que segurou o rebocador, eu desliguei a máquina e o rebocador endireitou, ficou direitinho e eu fiquei segurando ali no ferro até a tempestade passar; o chatão lá atrás nem se mexeu, é livre, mas no ancorador onde tem a casaria, ele pegou, achou resistência e queria tombar. Aí ficamos ali até passar a tempestade, depois que passou levantamos o ferro e fomos embora seguindo viagem , então foram três vezes que eu peguei estas tempestades feias mesmo no mar.
P/1 – A empresa continua?
R – Não, aqui não tem mais. Aqui depois uniu com o departamento hidroviário; que
pegou todas as embarcações
e nós fomos trabalhar com o hidroviário, fui trabalhar no Ferry Boat, esse que dá passagem lá na Barra, então eu me aposentei e depois pegaram também as embarcações, algumas recolheram lá para ver e servir de carvalho, outras ficaram por aqui mesmo, isto tudo acabou. Eles têm uma embarcação ainda do hidroviário, que vai do
porto de Cananéia ao Ariri e Marujá, ainda faz; mas nem vem em Iguape.
P/1 – Não existem mais esses transportes? Até Paranaguá, Iguape?
R – Não, aqui não existe mais. Só existe de Cananéia até Marujá e Ariri, só neste trecho.
P/1 – E a produção daqui, vai para onde?
R – Aqui?
P/1 – O que se produz aqui...
R – A produção aqui não tem nada e tem estrada em todo lugar, até na beira do rio por aí, por exemplo, agora tem a Ilha Comprida, lá tem estrada que lá vai pela praia até Cananéia; pela margem de cá tem estrada, por todo lugar, então não faz falta a embarcação e por isto acabou.
P/1 – E as empresas aqui, existe alguma empresa, produção, alguma coisa em Iguape hoje?
R – Não tem.
P/1 – O que se produz aqui?
R – Não se produz nada, aqui não se produz nada, nada mais. Aqui, a única coisa é só pesca da manjuba. O pessoal que pesca a manjuba já tem os caminhões deles em que
pegam a pesca e a colocam, levam para o Ceasa e não se industrializa nada, não tem mais nada.
P/1 – A cidade já teve mais gente?
R – Já.
P/1 – Morava mais...
R – Já, já tiveram mais. Hoje, por exemplo, o pessoal que é moço, que tem um objetivo na vida, eles têm que sair daqui e procurar campo em outra cidade, em outro lugar onde exista trabalho, um lugar para estudarem melhor, tem muita gente aqui de Iguape que
saiu e está saindo ainda.
P/1 – A sua própria família saiu, né? O senhor chegou a ir para São Paulo?
R – Não, eu não cheguei a ir, a minha família ainda... só quem saiu daqui para trabalhar fora é um neto, que está em Curitiba. Ele é casado, tem a mulher, a filhinha; uma filha minha está lá em Curitiba também, ela tem um outro filho e meu outro filho também já casou, então eles estão lá em Curitiba; ele é administrador de empresas, meu filho estudou, está lá trabalhando, a mulher estudando e farmacêutica, continua estudando, então estão levando a vida deles para lá. Um filho, o segundo filho trabalha num cartório aqui, tem mulher, um casal de filhos, um filho está em São Paulo estudando também, fazendo faculdade e ele trabalha no cartório; a filha mais velha é mulher de um funcionário desse cartório aqui de frente que já se aposentou, tem um filho que trabalha no cartório com a mulher, um filho dela é médico, trabalha em São Vicente e assim a família... eu tenho um filho que é policial, trabalha em Juquiá, a mulher dele é professora, têm dois filhos e mais uma filha que estão estudando para “puxarem o carro” porque aqui não tem lugar para ficar.
P/1 – Mas o senhor chegou a visitar, conhecer outros lugares fora daqui, não? De Iguape.
R – Não.
P/1 – O senhor já foi para São Paulo, por exemplo, conhecer?
R – Para São Paulo?
P/1 – Por exemplo.
R – Já, já estive em São Paulo bastante vezes, estive em São Paulo bastante vezes já. Meu cunhado morava lá e minha irmã; São José dos Campos, minha irmã morava lá, já estive lá.
P/1 – O senhor se lembra da primeira vez que o senhor foi, não?
R – Olha, em São Paulo depois de tanto tempo, sabe o meu filho estava com dois anos, esse que trabalha no cartório; minha mulher ficou lá uma temporada com ele em São Paulo, fazendo um tratamento, na casa da minha irmã. Faz uns 50 anos.
P/1 – O que o senhor acha mais interessante aqui de Iguape? O que o senhor acha mais legal?
R – Olha, aqui em Iguape, eu acho tudo, quem viu a cidade do jeito que era, sabe, eu acho uma cidade interessante, o jeito que ela é agora porque quem viu a cidade que não tinha nada, como eu já falei aqui para vocês, era só na areia, não tinha jeito da pessoa andar em umas ruas aí; hoje em dia você vê a cidade calçada, a rua asfaltada, é... Ilha Comprida não tinha nada, hoje em dia é uma cidade tão bonita que a gente quer sair daqui e acha interessante passar essa ponte aqui que atravessa pra Ilha Comprida, foi uma obra que fizeram muito boa. Então eu acho interessante em Iguape por ser uma cidade muito gostosa da gente viver nela, sossegada, descansada, um lugar de fazer amizade facilmente com o povo daqui. Este povo é hospitaleiro, se chega aqui e faz amizade com qualquer um, não te conhece, você conversa com eles e te recebem com alegria, com carinho que em muitos lugares não se encontra mais isso e aqui sim. Tem muita gente que cativa com esse carinho do povo de Iguape, tanto que tem gente que tem mudado para cá, saiu de São Paulo para viver em Iguape, para morar aqui.
P/1 – O senhor conhece a cidade desde criança, né? Quando o senhor para para pensar assim, pensando na história de Iguape, qual foi a maior dificuldade que essa comunidade aqui já enfrentou?
R – Olha, não... as dificuldades aqui já, as maiores dificuldades aqui que passamos, foi na época que eu falei para vocês. Quando eu morava na zona rural, médico em Iguape era muito difícil. O povo de Iguape sarava de certas doenças, se curava pela misericórdia de Deus porque não tinha recurso Iguape com auxílio médico. Mesmo agora, reclama-se que a assistência médica é ruim, não é assim uma assistência que a gente diga que ela é 100% mas não é igual aquela assistência de antigamente que Iguape não tinha, não tinha médico. Eu fiquei doente com... eu tinha 20 anos, me deu a febre paratifo e não tinha médico que soubesse o que era, não só eu, nós éramos em três, deu em três rapazes aqui; um homem já era casado mas nós dois éramos solteiros e não tinha médico que soubesse. Quem nós acudimos nessa doença foi um farmacêutico, um homem que trabalhava como farmacêutico na Santa Casa aqui, ainda funcionava a Santa Casa. A minha mãe foi lá e o chamou, ele veio aqui, olhou, “Tá com paratifo. O remédio é “queio”, repouso e regime, se não fizer regime não vai escorar”. Chamaram na casa do outro rapaz, foram lá e a mesma coisa; chamaram na casa do outro e ele falou a mesma coisa mas o outro era da zona rural, lá de onde eu morava, ele chegou e disse para família, “Olha, eu quero almoçar carne seca com feijão hoje” e não podia comer porque o paratifo deixa o intestino tão fino, mais fino que uma folha de papel, se bater qualquer coisa dura ele fura e mata. Ele exigiu e queria comer carne seca com feijão e compraram carne e deram para ele almoçar. Quando foi de tarde já tava lá esticado na sala, morreu na hora, não aguentou. Eu e o outro rapaz fizemos um regime como o farmacêutico mandou fazer, depois que completou os 60 dias do regime, eu disse para minha mãe, “Eu quero ficar mais 30 por minha conta agora porque o que eu passei não quero voltar mais”, fiquei mais 30 dias comendo água de arroz com batata, batatinha e nada mais. Eu tô aqui com 82 anos, o outro tá com 82 também e o outro foi-se embora há 40 anos atrás.
P/1 – Mas foi uma epidemia, ou foi uma outra coisa?
R – Olha, nessa época deu em três... disseram que, disse o farmacêutico que foi, naquele tempo, ninguém procurava chuveiro para tomar banho, era na água do Valo Grande ali, essa água tem tudo o que é tipo de sujeira e ele disse que foi, micróbio até do banho da água do Valo.
P/1 – Em questão de remédio, as pessoas costumavam usar a mata ou não?
R – Não, não, não se usava a mata.
(TROCA DE FITA)
P/1 – Senhor Félix, então a gente já tá encaminhando um pouco pra... só retomando uma coisinha, já que a gente já falou do iguapense, o senhor falou que eles são muito solícitos, são muito agradáveis, fazem amizade fácil. De onde veio toda essa turma aqui? O senhor disse que foi, cresceu a cidade, depois foi embora. De onde vieram essas pessoas?
R – Não, foi o que eu falei. Muita gente, a maioria do povo aqui da cidade, foi da zona rural que mudaram pra cá e muita gente também de outros lugares que veem para cá, gostam da cidade e aqui ficam. A maioria do povo que mora aqui é gente de fora, vem de São Paulo, vem de outros lugares, gostam daqui e ficam. Gostam desse aconchego, dessa amizade e permanecem. Um dia eu estava na porta da minha casa, tem uma sombra de uma árvore assim, dia de calor, nós ficamos embaixo daquela árvore pegando ar fresco. Eu coloco minha cadeira ali, a esposa, os vizinhos ficamos ali conversando; um dia eu estava lá, sentando ali pegando ar fresco, aí chega um carro com uma senhora e o marido, pararam de fronte assim, foram falar com o vizinho que mora de frente para minha casa, aí daqui a pouco o correio chegou, veio com as correspondências, deu na minha mão assim, entregou-me a correspondência, aí ela disse assim, “Olha, o senhor sabe que eu ainda não vi em nenhum lugar do mundo o correio entregando correspondência na mão da pessoa na rua, nunca vi, não tem lugar assim, um lugar de sossego, um lugar tão gostoso quanto esse aqui eu nunca vi, um lugar como esse aqui. Eu disse, “A senhora mora onde?”, “Eu moro em São Paulo, eu tô aí na Ilha mas eu vou comprar uma casa e me mudar para cá, para Iguape, aqui é um lugar de viver a vida”.
P/1 – O senhor conhece muitas pessoas, conhece os seus vizinhos?
R – Conheço aqui. Olha, aqui, as pessoas
às vezes me perguntam assim, “Você conhece Fulano de Tal?”, os nomes das ruas, às vezes perguntam assim, “Você conhece onde fica a rua tal aí?”, que eu não marco o nome de rua, “Onde é que fica?”, “Olha, eu não lembro onde fica porque eu não sou muito de marcar nome de rua. Quem que você procura?”, “Eu procuro Fulano de tal”, “Olha, então ele mora aqui em tal lugar assim, assim, assim”, então o nome da pessoa a gente identifica mais do que nome de rua, eu conheço muita gente aqui. Tem uma vizinha lá que está com 92 anos, a vizinha muito boa, muito “achegada” comigo, ela falou, “Mas não tem quem você não conheça, conhece todo mundo aqui. Se perguntar você conhece todo mundo?”, “Convivo com todo mundo, viajei para muitos lugares, muita gente que eu conhecia de outros lugares mudaram pra aqui, eu conheço muita gente; em outras cidades conheço muita gente, então é fácil
conhecer”.
P/1 – Seu Félix, eu sei que aqui tem algumas comunidades. Então, por exemplo, tem os indígenas.
R – É.
P/1 – O iguapense tem influências indígenas, por exemplo?
R – O iguapense.
P/1 – Tem?
R – Tem.
P/1 – De onde?
R – Do Iguape.
P/1 – Onde você vê que tem influências, por exemplo, de uma comunidade?
R – Eu sou iguapense, eu também sou iguapense (risos).
P/1 – Essas comunidades indígenas tem contato com vocês?
R – Não, não tem. Isso não tem. O que tem é um casal que mora aqui perto mas vende na feira o palmitinho deles, vão embora, não tem contato com a gente.
P/1 – E os quilombolas? O pessoal dos quilombos tem uma relação com a cidade, como que é? Tem muitos quilombos na região, né?
R – O que?
P/1 – Quilombos.
R – Não, não tem.
P/1 – Seu Félix, como o senhor imagina Iguape daqui a dez anos?
R – Daqui a dez anos?
P/1 – É.
R – Olha, eu não sei como vai ficar isso aqui.
P/1 – Como o senhor imagina?
R – Do jeito que está eu não sei como vai ficar, não se sabe porque coisa boa a gente não espera, só coisa ruim. Em todo lugar está assim, não adianta a gente dizer que é só aqui em Iguape porque em todo lugar a maldade tomou conta da humanidade, que ficou num certo jeito que não se tem mais segurança em parte nenhuma e acontece coisa que a gente nunca viu; e agora têm visto, e estamos vendo, a gente conversa sobre isso em casa com a patroa, não se sabe como vai ficar a nossa cidade, nunca se viu coisa igual.
P/1 – Seu Félix, eu vou encaminhar para nós finalizarmos a nossa entrevista. Pensando assim, fazendo uma reflexão dos seus 80 e...
R – Dois.
P/1 – 82 anos, qual foi a maior dificuldade que o senhor já enfrentou? Em que momento foi a maior dificuldade que o senhor enfrentou?
R – Quando eu morei na zona rural.
P/1 – Na zona rural.
R – É. Minha maior dificuldade. Quando eu mudei aqui para a cidade a vida foi uma outra, um outro meio de viver que eu nunca esperava, nunca esperava. Só tem uma coisa, a fé que eu tenho no meu Deus, nunca me esmoreci com nada. Eu tenho a esperança tão grande na providência divina que não acho dificuldades certas horas. Dificuldade que eu passei maior foi quando morei no sítio e passei muitas dificuldades mas depois que eu vim para cá eu tenho tido felicidade na minha vida e às vezes eu brinco com a mulher em casa. Uma hora para gente brincar e descontrair a coisa. Eu digo para ela, “Olha, eu sou rico”, “Ah, eu tô vendo mesmo que você está, tem uma dinheirada guardada aí que é uma coisa”, “Não, não é a isso que eu me refiro mas pelo que nós temos recebido da mão de Deus, eu sou rico porque eu não tenho sofrido dificuldade nenhuma”. Tenho passado por dificuldades, doenças, eu, a família e quando eu estava criando os filhos foi com luta, com dificuldade, com salários pequenos mas vencemos, graças a Deus criei todos os quatro, todos os quatro estudaram até onde puderam, todos eles estão colocados, têm a sua família e estamos nós dois sozinhos, eles não dependem de mim, nem eu dependo deles, só dependo deles para cuidarem da nossa velhice, eles têm que dar uma cobertura para levar ao médico, levar para cá, levar para lá, eu tenho. Mas dizer que a gente precisa andar apertando a situação deles por causa da gente, não. Então, eles têm muito cuidado conosco, e nós ao dar uma assistência como pais deles mas não tenho preocupação, nem outro problema. E também a gente não tem problemas com eles porque foram filhos bem criados com nossa educação, como pudemos, foram bem criados,
e estão criando os filhos deles na mesma disciplina, não se tem dor de cabeça com filho nenhum e com neto nenhum, então é uma tranquilidade que a gente não sente dificuldade.
P/1 – O senhor comentou lá da sua esposa. Como o senhor a conheceu?
R – Como eu conheci?
P/1 – Isso.
R – É interessante contar para você (risos). Iamara está rindo já, antes de eu contar a história (risos). Ela tinha 14 anos; a mãe dela ficou doente lá na zona rural e a trouxeram para se tratar aqui na cidade. Ela ficou na casa da minha tia que morava aqui, era conhecida deles e ficaram na casa dela. Eu morava para cá. Quando foi num dia de tarde, eu cheguei do trabalho e falei, “Vou lá em casa da minha tia ver como é que tá a minha tia”, fui lá na casa, cheguei e vi a mocinha. Como eu nunca tinha visto, “Boa tarde!”, “Boa tarde!”, ela alegre falou comigo e tal, conversei ali um pouquinho com ela, entrei, conversei com a minha tia e fui embora. Eu vi a alegria dela, que me mostrou, quando foi no outro dia eu falei, “Hoje vou lá ver titia, outra vez, como amanheceu hoje”, voltei lá na outra tarde e tivemos mais um papo novamente, perguntei onde ela morava, ela me contou que era na zona rural, um lugar assim tal, tal, tal e fui embora. Nunca mais nos vimos. Depois, em setembro eu não tava trabalhando ainda nos barcos e quando foi um dia eu embarquei e fui trabalhar, saiu uma viagem lá para o local onde ela morava, eu falei, “Ah, é lá nesse lugar que nós vamos viajar hoje que mora aquela moça que estava lá na casa da minha tia. Eu quero ver se a vejo nesse lugar, ela disse que mora num lugar assim, eu quero ver...”, eu fui para lá, ia, voltava, não via essa moça, nunca mais vi. Passou, quer ver, ela tava com 14 anos, quando ela tava com 17 anos os pais compraram um lugar bem perto da casa onde eu morava. Quando eles mudaram pra cá, num dia eu olhei a moça lá, pertinho da minha casa, “Ah, pois é, aquela é a mocinha que encontrei e nunca mais vi”. Aí nos encontramos, começamos a conversar e dali saiu esse tal de casamento e eu já tinha gostado de outras moças mas nunca “casou” uma que desse interesse no meu íntimo para casar, a única foi ela. Casamos e estamos aí, ela está com 78 anos, eu tô com 82. E assim estamos levando a vida, ela está um pouco doente porque agora tem doença do coração, diabetes, osteoporose e mais complicação, perdeu uma vista já por causa da diabetes, já está enxergando pouco com a outra vista; perdeu a audição, está escutando só com um ouvido também, um aparelho e ficou com as pernas fracas por causa da osteoporose, tem esquecimento, esquece muito.
P/1 – Vocês vão ao médico aqui.
R – É. Por causa disso aí ela nem faz mais nada em casa, eu é que faço; faço a comida,
dou
todos os remédios na hora
e tem uma moça que trabalha lá em casa conosco, então ela faz a limpeza da casa, faz tudo e a comida sou eu que faço.
P/1 – Eu lembro que antes da nossa entrevista o senhor disse que era um cozinheiro nato.
R – É.
P/1 – Como o senhor aprendeu a cozinhar?
R – No barco.
P/1 – No barco?
R – É. No barco que eu aprendi a cozinhar.
P/1 – Seu Félix, então para gente ir terminando aqui, tem mais alguma coisa que o senhor queira dizer que a gente não perguntou? Tem alguma coisa que a gente deixou de perguntar que o senhor gostaria de falar e não tocamos no assunto?
R – Eu acho que não, acho que o que eu tinha de falar... vocês conhecem a Juréia, não?
P/1 – Ah, muito pouco.
R – Mas foi lá?
P/1 – Já fui. Mas por quê?
R – Não, que é um lugar bonito a Juréia.
P/1 – Sem dúvida!
R – Muito bonito! Muito bonito essa travessia aqui da Barra do Ribeira, você chega ali e já é uma paisagem bonita, você olha lá no morro da enseada e já vê que é bonita. Atravessou, pegou a estrada, foi lá no Costão a pé, então é muito bonito. Eu já estive lá no acampamento na Juréia, já estive lá. Muito gostoso, muito bonito ali.
P/1 – O que o senhor achou de nos dar essa entrevista?
R – Não, foi bom. É bom a gente conhecer outras pessoas e outras pessoas nos conhecerem. Vou te dizer uma coisa aqui com sinceridade, é uma brincadeira que eu faço lá em casa com a mulher mas é a realidade. Um menino nascido lá daquele mato de onde eu saí, vim aqui para cidade, eu não pensava em conhecer certas pessoas como vocês, da posição de vocês,
e me procurarem para eu poder ter uma conversa e falar aquilo que eu sei, para explicar a vocês. E eu fico grato por isso, agradeço a Iamara que falou comigo desde o primeiro dia marcando essa entrevista e fico grato de vocês me procurarem, eu poder dar as entrevistas a vocês, falar aquilo que eu sei a respeito da nossa cidade.
P/1 – Seu Félix, então pra fechar a última. Qual é o sentido da vida para o senhor?
R – Eu agora a pouco ainda falei para o rapaz que está lá em casa passando uma tinta na parede, falei pra ele, “Aqui, a vida para mim é muito boa”. Eu tenho uma coisa que é a vida, que tem um sentido muito bom, muito gostoso, mas a pessoa sabendo viver a vida, se não souber vivê-la, não tem sentido nenhum. E o sentido que eu acho é o da pessoa ter amizade, ter bom contato com o nosso semelhante, com os nossos amigos, irmãos, isso é bom. Agora, quando a pessoa não sabe viver esta vida, ela não tem sentido. Não sei se vocês concordam comigo, mas é, eu penso assim. Então eu estava falando para ele assim, “Olha, quando eu fui moço, eu nunca pensei em morte, nunca pensei em velhice e nunca pensei em doença” que quando a gente é moço a gente não pensa em nada disso aqui, a gente só pensa em viver a vida que a gente quer viver, passear, andar e não pensa que vai ser velho, que vai ficar doente e que vai morrer. Pelo contrário, eu tinha medo até de morrer quando era novo porque eu queria viver ainda para ver como é que era a vida neste mundo. Hoje em dia eu não tenho medo da morte, falo francamente, eu não tenho medo porque eu sei que uma coisa certa que ficou para nós é a morte, não tem dois caminhos para desviar, só tem que entrar por um, então tem que ser assim. A doença é Deus quem nos dá, nós temos que nos conformar com aquilo que Ele nos manda e a idade, é outra coisa que muita gente não quer, é ser velho, não quer ser isso, não quer ser aquilo, a pessoa tem que ficar velho e com a idade que têm quando fica velho, usufrui de muitos benefícios que não usufrui quando é moço. Então para mim a vida tem um valor e um sentido muito grande mas nesse aspecto, sabendo viver a vida, se não souber viver a vida, não adianta viver.
P/1 – Tá certo, senhor Félix.
R – E a minha vida é uma vida de uma esperança sem fim, sabe? A minha vida é uma esperança sem fim. Eu sempre digo lá para a patroa, “Mas você espera certas coisas...”, questionando a respeito dessa brincadeira sobre o salário porque a gente espera aumento do governo, espera isso, espera aquilo, direito que a gente tem, que eu tenho para receber e está lá trancado, não querem soltar o dinheiro agora que precisamos, que está de idade, doente, precisando de dinheiro para se cuidar e o governo fica amarrando. Mas fico esperando que um dia vai sair, então ela me diz, “Escuta, mas você fica, só fala isso e nunca sai, nunca sai”, “A esperança está para a frente, a esperança está para a frente. Acredito muito em Deus e que a esperança está para a frente”, até faço uma brincadeira com ela, “Nós vivemos de esperança porque se ninguém tiver esperança, não vive, porque não pode desanimar, tem que ter esperança em tudo, em tudo temos que ter esperança. Temos que ter esperança que um dia o governo vai nos liberar o dinheiro, que um dia vai melhorar de vida, que um dia nós vamos melhorar de saúde e a esperança maior que nós temos de alcançar o reino dos céus.
P/1 – Senhor Félix, muito obrigado, a gente está finalizando agora. Em nome do Museu da Pessoa, do Oikos, do grupo aqui, muito obrigado.
R – De nada. Agradeço vocês pela simpatia.
(FIM DA ENTREVISTA)Recolher